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a Catarina,
Índice Página 3
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Semear o homem, resistir, colher. Páginas 4-12
Semear, resistir à cidade, colher. Páginas 11-17
Semear, resistir, colher a palavra. Páginas 18-21
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Nota do autor. Página 22
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SEMEAR O HOMEM, RESISTIR, COLHER.
Quis
No jardim
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Isto
Isto é o passado.
A culpa de um homem, em caso de dúvida, começa aqui.
Quando se sente só, se acha perdido, é no passado que se deita,
aqui, onde a mãe o viu crescer com o nó de mãe no peito,
onde disse o primeiro palavrão com o pânico da desordem,
onde se engasgou para sempre cravando a estaca do seu esconderijo
definitivo.
Chove
Chove extraordinariamente,
ris extraordinariamente,
cantas extraordinariamente
e depois dormes,
embalas extraordinários sonhos,
sonhas enquanto o mundo chora.
Extraordinariamente acordados,
os homens, de manhã, saltam
à corda nas esperas e
libertam-se da música que lhes prende os músculos
na chuva. Cantam.
5
Quem é?
Quem é?
Salta-lhe uma luz ao olho,
já soube todas as respostas num tempo de ócio
e pensamento. Agora pergunta,
Quem és?, atira-se à dúvida,
bate em todas as portas. E chove.
Como alcançar
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Príncipe nocturno
Astros em elevação
Menos café, menos adoçante, aquela não sei quê foi em união de facto, raiva
nos olhos, comove-te ao menos por poderes dizê-lo, ele apareceu uma vez
nu, só deus sabe em que prantos, e perguntou, tens arrepios, queimam-te o
corpo?
Onde
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Sempre
Sempre fui músico, é sabido, outros tempos de outras artes: muito uísque
para desfigurar as formas, muita visão periférica, por vezes os olhos
trocados. Até partir um copo tem uma certa arte, é preciso conhecer com
exactidão as leis da física para poder dizer: eu conheço com exactidão as leis
da física e não me parece que este copo vá cair assim. Repetir isto mil vezes
até o copo transbordar de convicção: atirá-lo ao ar e admirar a sua milagrosa
suspensão, à altura do braço, a desintegrar-se com o passar dos séculos,
solidário com o tempo, as tempestades e todos os fenómenos de erosão
do planeta. Só bebo se me apetecer, não tenho qualquer problema com a
bebida, nunca me tratou mal, nunca a denegri, raramente discutimos, não
preciso de copos para nada.
Uma casa feita de copos, um copo como castiçal de cerimónias religiosas,
oferecer copos vazios aos amigos, ideias meio cheias e meio vazias de
ridículo. Bebo pela garrafa e, se for caso disso, por um sapato. Os copos
são outra história: arte, hipnose, suspensão no tempo, espaço e ciência.
E, digamos, dedico a minha vida a definir-lhes prioridades, limites e
propriedades. Não sou alcoólico, sou músico profissional.
O homem cansado
O homem cansado anula terra e mar e procura-se nas nuvens. Por força
desses homens é que se inventou, primeiro, a palavra e, depois, o avião.
Porém, o homem cansado não levanta voo sem um último suspiro. E é nesse
momento que se fragmenta em dúvidas urgentes. O homem cansado pensa:
e se chove? Pensa: e se cego a grande altitude, como aterrar? Pensa: que
horas são?
O homem cansado cansa-se tanto enquanto pensa que se propões a trocar
todas as nuvens do céu por um minuto no fundo do mar, desde que o avião
não caia.
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Na terra
Na terra das muchas cosas não há muitas coisas com que se preocupar. O
dia é curto e as distâncias tratam de o encurtar. Tome-se por exemplo esta
não remota possibilidade: um homem que se esquece dos pés em casa é um
manco para trás e para a frente e quanto mais devagar esse homem caminha
mais depressa o tempo passa. A isto chama-se a elasticidade dos corpos
fundida com o pêndulo de Foucault, dizem os rápidos. Por seu turno, um
homem com três pernas e três pés muito grandes não consegue multiplicar
o tempo, por mais rápidos que sejam os seus cálculos mentais. É a lei da
rotatividade dos corpos aliada às fezes escuras de um cão igual ao de Pavlov,
mas cego.
Tudo isto, é claro, cria muitas turbulências tanto na terra de muchas cosas
como numa província de quelque chose. Atentemos: se o homem abre uma
ventana, fecha-se uma janela, se o mesmo homem transita na carretera,
desvia-se do seu caminho. É então obrigado, por perro + pêndulo, a
procurar uma terceira língua e eis que inventa o catalão. Ainda não regulou
a ideia e já só sonha com palavras novas, órfão das terrenas.
Da turbulência nasce o novo, regista o sábio em caracteres esconsos,
sem papa para línguas. Há ainda, como é justo assinalar, uma fortíssima
possibilidade de a história das coisas não ser exactamente assim.
Exemplificando: quando o homem das nuvens aterra a grande velocidade, o
tempo não se altera mas muitas das suas crenças ficam retidas na aterragem.
Já em solo, o homem ladra e volta para trás, não tanto por já não saber quem
é, mas por ter esquecido a língua que fala.
10
não dou
é claro que isso é um homem e é óbvio que serve para alguma coisa. é isso
que me dizem: ela está pesada, ainda por cima, e não há estrutura óssea
que a aguente. é isso: a vida, uma vida de comboio, a brincar às viagens, às
distâncias e ao silêncio dos percursos.
11
Nuvens pesadas
12
SEMEAR, RESISTIR À CIDADE, COLHER.
Um rosto
Dar a volta
13
O rio
O rio secou, ou
água moeu, eu
agora a nadar, ar
sujo e profano, ano
bissexto como a lente, ente
querido que não sou, ou
que ainda vai nascer, ser
uma sombra sequer, quer
fotografar-me como sou, ou
aquele que já temeu, eu.
Bemposta
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Mingo
15
Lisanov.
16
Intensamente
17
SEMEAR, RESISTIR, COLHER A PALAVRA.
Quarto crescente
Semear
18
Resistir
Gosto
19
Tanta
A história
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Visão
No céu
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NOTA DO AUTOR
A vida
A vida sobe, pá, a vida sabe.
22
Já em solo, o homem ladra e volta para trás,
não tanto por já não saber quem é,
mas por ter esquecido a língua que fala.