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Mulheres, Natureza e Capital na Revolução Industrial1

John Bellamy Foster e Brett Clark

Nos últimos anos, a notável ascensão da “teoria da reprodução social” dentro do marxismo e
das tradições revolucionárias feministas, identificado com os estudos de figuras como Johanna
Brenner, Heather Brown, Paresh Chattopadhyay, Silvia Federici, Susan Ferguson, Leopoldina
Fortunati, Nancy Fraser, Frigga Haug, David McNally, Maria Mies, Ariel Salleh, Lise Vogel e
Judith Whitehead – para nomear apenas algumas – alterou significativamente a forma como
olhamos o tratamento que Karl Marx (e Friedrich Engels) deram às mulheres e ao trabalho na Grã-
Bretanha do século XIX 2 . Três conclusões a respeito da análise de Marx estão hoje tão bem
estabelecidas por pesquisadoras contemporâneas, que podem ser tratadas como fatos definitivos: (1)
Marx realizou um exame extenso e detalhado da exploração das mulheres como “escravas
assalariadas” [“wage slaves”] no capitalismo industrial, o que foi crucial para sua crítica geral ao
capital; (2) sua apreciação das condições de trabalho doméstico das mulheres ou do trabalho
reprodutivo foi gravemente deficiente3; e (3) o que era central na perspectiva de Marx (e Engels),
em meados do século XIX, era a severa crise e a ameaça de “dissolução” da família da classe
trabalhadora – em face do que o Estado capitalista, no fim do XIX, estaria compelido a responder
com uma ideologia de proteção, forçando as mulheres em grande medida a voltarem para dentro de
casa4.

1
Artigo publicado originalmente na revista Monthly Review de janeiro de 2018. Traduzido por
Joana Salém Vasconcelos para a Revista Mouro n. 13 (São Paulo, 2018).
2Ver especialmente, Silvia Federici, Revolution at Point Zero (Oakland, CA: PM, 2012), “Notes on Gender in Marx’s Capital,”
Continental Thought and Theory 1, no. 4 (2017): 19–37; Susan Ferguson e David McNally, “Capital, Labour-Power and Gender or
Relations: Introduction to the Historical Materialism Edition,” in Lise Vogel, Marxism and the Oppression of Women (Chicago:
Haymarket, 2013), xvii–xl; Shahrzad Mojab, ed., Marxism and Feminism (London: Zed, 2015), especialmente o ensaio de Frigga
Haug e Judith Whitehead; Tithi Bhattacharya, ed., Social Reproduction Theory (London: Pluto, 2017) — que inclui trabalhos de
Ferguson, Nancy Fraser, McNally, and Vogel; Heather A. Brown, Marx on Gender and the Family (Chicago: Haymarket, 2012);
Paresh Chattopadhyay, “Women’s Labor Under Capitalism and Marx,” Bulletin of Concerned Asian Scholars 31, no. 4 (1999): 67–75;
Leopoldina Fortunati, The Arcane of Reproduction (Brooklyn: Autonomedia, 1995); Maria Mies, Patriarchy and Accumulation on a
World Scale (London: Zed, 2014); Johanna Brenner, Women and the Politics of Class (New York: Monthly Review Press, 2000);
Ariel Salleh, “Ecological Debt, Embodied Debt” e “From Eco-Sufficiency to Global Justice,” in Salleh, ed., Eco-Sufficiency and
Global Justice (London: Pluto, 2009).
3 O próprio termo “trabalho reprodutivo” levanta questões complexas dentro da teoria marxista, segundo a economia política clássica,
que frequentemente distingue trabalho [work] de trabalho socialmente necessário [social labor], ambos vistos diretamente como
produtores de valores de uso, a partir do trabalho assalariado (e mais especificamente, trabalhos produtivos geradores de valor) sob o
modo capitalista de produção de mercadorias, que promove o valor de troca e a acumulação de capital como seu objeto alienado (ver
Karl Marx, Capital, vol. 1 [London: Penguin, 1976], 998–99). Aqui Engels adiciona uma nota útil a O Capital, vol. 1 (deixada de
lado na edição da Penguin), na qual afirma: “a língua inglesa tem duas expressões diferentes para estes dois aspectos diferentes do
trabalho, no processo de trabalho simples, o processo de produção de valores de uso, usa-se work. No processo de criação de valor
[de troca], usa-se labor, entendido em termos estritamente econômicos”. Ver Karl Marx e Frederick Engels, Collected Works, vol. 35
(New York: International Publishers, 1975),196. Work em seu sentido geral, para Marx, transcende inteiramente o sistema capitalista,
assim como o conceito de social labor (isto é, trabalho em geral, diferente de uma forma histórica específica de produção capitalista)
– ambos relacionados com a produção de valores de uso e a primeira mediação das necessidades humanas. Quando Marx discute o
“trabalho familiar” ou o trabalho doméstico reprodutivo, ele tem em mente um tipo específico de trabalho socialmente necessário
[social labor], entendido como “trabalho reprodutivo”, que, sendo familiar, não é remunerado e é externo ao processo de valorização
do capital (ver Marx, Capital, vol. 1, 517-18). A maior parte de O Capital, contudo, se debruça não sobre a análise do trabalho
socialmente necessário em seus variados aspectos e formas históricas, mas sim à análise da exploração do trabalho no contexto da
produção capitalista de mercadorias. Esse trabalho assalariado gerador de valor, então, precisa ser compreendido como uma forma
histórica específica do trabalho em geral [work in general] e do trabalho socialmente necessário [social labor] (incluindo o trabalho
familiar), que transcende margens estreitas da valorização do capital e são externos a esta. Não obstante, com o desenvolvimento
subsequente do sistema capitalista, como podemos ver, até mesmo o trabalho socialmente necessário da reprodução da família torna-
se crescentemente um apêndice da produção de mercadorias em seu conjunto.
4O conceito de “dissolução da família” foi fundamental para a obra de Marx e Engels desde o começo. Ver Marx e Engels, Collected
Works, vol. 5, 180. A ideia de “dissolução da família” em termos éticos, relacionada com educação, foi primeiramente introduzido
por Hegel. Mas o conceito tinha um significado totalmente diferente do desenvolvido pela crítica materialista de Marx e Engels,
como a análise a seguir demonstra. Ver G. W. F. Hegel, The Philosophy of Right (Oxford: Oxford University Press, 1952), 117–19.
Apesar de todos estes pontos estarem agora conclusivamente estabelecidos, ainda faz falta
uma síntese ampla, que integre tais resultados entre si e também àquilo que aprendemos com
décadas de intensa pesquisa histórica sobre mulheres e trabalho na revolução industrial. Ao
examinar as especificidades históricas das condições das mulheres na Inglaterra da primeira metade
do século XIX, podemos compreender melhor os pressupostos a respeito de gênero, família e
trabalho que influenciaram a escrita de A condição da classe trabalhadora na Inglaterra, de Engels,
e de O Capital, de Marx5. Essa síntese lançaria luz sobre problemas difíceis, tais como: (1) Por que
Marx não estendeu sua crítica ao trabalho reprodutivo doméstico, o que em certas passagens
pareceu estar prestes a fazer?; e (2) Se seguimos o argumento de Marx de que o capital nega valor
(de troca) ao trabalho doméstico e às atividades de subsistência, seria possível falar em
expropriação do trabalho reprodutivo?6
Além disso, considerando que o trabalho reprodutivo das mulheres e a natureza foram
tratados pela economia política clássica, e também por Marx em sua crítica do capital, como “um
presente gratuito… ao capital”, uma síntese histórica e teórica do tipo que propomos abriria uma
concepção mais ampla do roubo de ambos, o trabalho reprodutivo das mulheres e a natureza – como
terrenos externos ao circuito de valorização do capital, na sua compreensão ideal7. Essa análise nos
permite entender mais plenamente as conexões entre feminismo da reprodução social e teoria da
reprodução socioecológica, associada particularmente com a teoria da fratura metabólica de Marx
[Marx’s theory of metabolic rift], na qual ciclos e fluxos naturais são perturbados ou até
interrompidos e espécies são extintas.
Por último, o assunto crucial de hoje é como o capital, enquanto sistema, se engaja na
destruição criativa da totalidade das condições sociais e ecológicas que sustentam a existência
humana – incluindo a família, a constituição de seres humanos (identidade, corpo), a cultura, a
economia e o meio ambiente – e como isso torna a expansão revolucionária da liberdade humana
pela reconstituição da sociedade, no limite, uma necessidade absoluta para as gerações do presente e
do futuro.

A “questão da mulher” nos tempos de Marx

Como Federici indicou, “a ‘questão da mulher’ do momento” em que Marx escrevia se


relacionava, primeiramente, com “as condições do trabalho fabril das mulheres na revolução
industrial”8. Ao contrário das concepções difundidas sobre o predomínio masculino da força de
5 Engels, The Condition of the Working Class in England (Oxford: Oxford University Press, 2009).
6O conceito de expropriação, que Marx utiliza como categoria central na parte VIII de O Capital, vol.1, em “A assim chamada
Acumulação Primitiva”, claramente tem um significado mais amplo em relação aos cercamentos, à conquista imperial, à escravidão,
à expropriação do trabalho reprodutivo, à destruição do trabalho superexplorado, e as rupturas criadas pelo saqueio dos recursos
naturais – todas as formas de roubo que eram externas à pura lógica de valorização do capital baseada na troca de equivalentes. Por
muitos anos, desenvolvemos uma abordagem e uso do conceito de expropriação em referência à crítica de Marx nesse sentido. Ver,
por exemplo, John Bellamy Foster, Brett Clark, e Richard York, The Ecological Rift (New York: Monthly Review Press, 2010), 62,
435; John Bellamy Foster, “Foreword,” in István Mészáros, The Necessity of Social Control (New York: Monthly Review Press,
2015), 10–14. Fraser também desenvolveu paralelamente a mesma abordagem teórica – partindo, contudo, da teoria da reprodução
social ao invés da análise da fratura metabólica. Ver especialmente Nancy Fraser, “Expropriation and Exploitation in Racialized
Capitalism,” Critical Historical Studies 3, no. 1 (2016): 163–78.
7 Marx e Engels, Collected Works, vol. 37, 732–33.
8 Federici, “Notes on Gender in Marx’s Capital,” 21. É preciso notar que neste artigo estamos prioritariamente preocupados com o
que Federici chamou de “a questão das mulheres” no tempo em que Marx escrevia, do começo a meados do século XIX, e as
implicações disso para nosso próprio tempo necessariamente requer um olhar aos desenvolvimentos subsequentes, especialmente nos
países de capitalismo avançado, do século XIX até hoje. Não abordaremos aqui a questão fo trabalho reprodutivo em períodos
anteriores, como a era da acumulação primitiva (o estágio mercantilista do capitalismo). O trabalho mais importante sobre gênero e
fam[ilia neste período da acumulação primitiva é sem dúvida Silvia Federici, Caliban and the Witch (Brooklyn: Autonomedia, 2004).
Nota da tradutora: ver edição brasileira, Silvia Federici, O Calibã e a Bruxa (São Paulo: Elefante, 2017).
trabalho fabril, a revolução industrial na Inglaterra foi inicialmente fundada sobre o trabalho de
mulheres e crianças. Simbólico disso, a máquina de fiar hidráulica [spinning jenny] foi
originalmente inventada para ser usada por uma jovem mulher, com sua roda horizontal posicionada
de maneira a tornar extremamente difícil seu emprego por um trabalhador adulto, em qualquer
duração de tempo9. Do fim do século XVIII a meados do XIX, quase todas as mulheres da classe
trabalhadora – filhas, mães, esposas e viúvas – foram compelidas a assalariar-se. Como a
historiadora Maxine Berg observou, “quando falamos em indústria no século XVIII e início do XIX,
estamos falando de uma força de trabalho majoritariamente feminina”. Mulheres trabalhadoras eram
tão predominantes nos setores de algodão, lã, seda, linho, renda e outros do centro da indústria têxtil,
que até meados do século XIX constituíram a maior fonte de mais-valia para a classe emergente de
capitalistas industriais. “Era a força de trabalho feminina, e não masculina”, pontou Berg, “que
determinava a indústria mais importante de alta produtividade no período – a têxtil”. Muitas destas
mulheres trabalhadoras se concentravam em ocupações proto-industriais, nas quais a força de
trabalho feminina superava a masculina em 4 vezes, ou até 8 vezes10.
No início do século XIX, mais de 60% das mulheres trabalhadoras casadas possuíam
trabalho registrado e rendimentos positivos, majoritariamente na indústria ou no serviço doméstico.
Esses números são extremamente conservadores em relação à participação das mulheres em locais
de trabalho, já que os agentes do censo frequentemente subnotificavam as ocupações de mulheres
casadas, assim como o emprego de mulheres jovens e garotas nos setores proto-industriais como a
“indústria doméstica moderna”, que se localizavam nas casas dos empregadores, ou as chamadas
“oficinas femininas de costura” [mistress’ houses], significativamente reduzidas nos registros. Além
disso, as mulheres trabalhadoras não casadas não poderiam viver sem um emprego11. Como Joyce
Burnette mostrou, baseada em um relatório de fábrica de Dr. James Mitchell de 1833, que coletou
dados de mais de 200 indústrias da Inglaterra, em média 56,8% da força de trabalho da mostra era
composta por mulheres (setores de algodão, lã, linho, seda, rendas, olarias, tinturarias e papel).
Mulheres também predominavam por ampla margem nos serviços domésticos das casas de classe
média e rica12. De fato, os dados disponíveis sugerem que as mulheres trabalhadoras do fim do
século XVIII e início do XIX eram empregadas em um nível igual ou até maior que os homens – já
que as indústrias rurais, como agricultura e mineração, os negócios urbanos (setor relativamente
privilegiado da força de trabalho ainda envolvida em artesanato tradicional), e ao comércio em geral
estavam excluídos13. Considerando que as mulheres trabalhadoras recebiam menores salários (um

9Maxine Berg, “What Difference Did Women’s Work Make to the Industrial Revolution?” History Workshop 35 (1993): 34; Melanie
Reynolds, Infant Mortality and Working-Class Childcare (London: Macmillan, 2016), 77.
10Berg, “What Difference Did Women’s Work Make,” 29; Maxine Berg, “Women’s Work and the Industrial Revolution,” ReFresh 12
(1991): 3.
11 Joyce Burnette, “Women Workers in the British Industrial Revolution,” Economic History Association, http://eh.net, November 12,
2017; Sally Alexander, Becoming a Woman (New York: New York University Press, 1995), 7. Alguns estudos anteriores, como o
trabalho de Louise Tilly e Joan Scott, insistiam que as mulheres casadas eram “uma pequena proporção de todas as operárias”, e que
“àquela altura, nos anos 1870”, apenas “em torno de um terço das mulheres empregadas na indústria têxtil britânica eram casadas ou
viúvas”. Contudo, nos anos 1870 não foi o período do emprego feminino da revolução industrial, mas consideravelmente além da
introdução de um enorme número de crianças no total de “mulheres trabalhadoras”, distorcendo o resultado geral. Pesquisas mais
recentes foram além dos limites dos dados do censo, enfatizando que o grande número de mulheres casadas e viúvas eram
empregados em todos os níveis da força de trabalho industrial – como operárias e outras funções. Em algumas regiões, mais de dois
terços das mulheres casadas e viúvas eram assalariadas. Ver Louise A. Tilly e Joan W. Scott, Women, Work and Family (New York:
Holt, Winehart and Winston, 1978), 124; Berg, “What Difference Did Women’s Work Make,” 37–39
12 Burnette, “Women Workers in the British Industrial Revolution.”
13Em sua perspicaz introdução para Marxism and the Oppression of Women, de Lise Vogel, Ferguson e McNally afirmaram
incorretamente que a “as taxas de participação feminina no emprego estabilizaram em torno de 25% ao longo do século XIX”. A
única fonte para este dado é um artigo escrito por Jane Humphries in the Cambridge Journal of Economics em 1977, no qual
Humphries apresenta este número e cita como fonte um livro de Geoffrey Best (1972), Mid-Victorian Britain, no qual o mesmo
número aparece. Tudo indica que a fonte deste dado é um artigo de Charles Booth do Journal of the Royal Statistical Society de 1886.
Os números de Booth são desenhados a partir do censo. Porém, se soube por pesquisas históricas que estão largament subestimados a
esse respeito, refletindo a subnotificação de mulheres empregadas durante a revolução industrial. Isso é significativo para o presente
argumento, uma vez que Humphries defende que Marx estava errado sobre a ameaça de dissolução da família proletária associada
com a alta participação laboral de todos os seus membros – sustentando, ao contrário, que ao redor e três quartos das mulheres
terço ou metade dos salários dos homens), elas eram preferencialmente contratadas pela nova
indústria, como operadoras de fábrica e dos setores protoindustriais14. Na realidade, durante um
período, os salários das mulheres eram tão baixos que seria mais barato pagá-las para puxar
barcaças ao longo dos canais do que usar cavalos, devido aos custos de manutenção dos animais15.
Nos tempos de Marx, o fato de ambos os sexos da família proletária serem igualmente parte
da força de trabalho era algo dado, e normalmente não era considerado algo que precisasse ser
estabelecido. Quando o assunto surgiu, teve mais a ver com as demandas da época para forçar as
mulheres trabalhadoras para fora da indústria. Por isso, John Stuart Mill, escrevendo no Examiner
em 1832, sustentou que “devíamos desejar ver uma lei que proibisse ao mesmo tempo o emprego de
crianças menores de 14 anos e mulheres de qualquer idade nas fábricas”. Marx e Engels sempre se
opuseram fortemente às proibições do emprego de mulheres adultas, ideia não obstante apoiada por
parte da classe trabalhadora masculina16.
Embora a realidade generalizada do emprego das mulheres na indústria não estivesse posta
em dúvida nos tempos de Marx, ele sim examinou cuidadosamente, com sua usual meticulosidade,
as estatísticas disponíveis sobre divisões de gênero dentro das fábricas. Baseado no censo de 1861
para Inglaterra e País de Gales, ele mapeou as classes altas; os trabalhadores urbanos de ofícios
especializados; os comerciantes; os trabalhadores “improdutivos” de maneira geral (destacando as
aspas para indicar que se tratava de um critério capitalista), “grupos como membros do governo,
padres, advogados, soldados, etc”; os muito velhos ou muito jovens para trabalhar; e a parte
marginalizada da população17. Ele era foi capaz de fazer estimativas aproximadas da divisão de
gênero da classe trabalhadora entre aqueles empregados como operários no centro da indústria ou
como serviçais domésticos – ambos cruciais na proletarização. Olhando para o setor têxtil, de longe
o maior da manufatura, ele mostrou que somente 27,6% dos trabalhadores eram homens adultos.
(Embora não indicado diretamente por Marx, o censo de 1861 revelava que as mulheres
trabalhadoras predominavam enormemente sobre os homens na indústria têxtil em qualquer idade,
inclusive crianças)18. Da mesma forma, entre empregados domésticos apenas 11,4% eram homens

britânicas durante o século XIX (incluindo todas as classes, de regiões rurais e urbanas) estavam fora do assalariamento – conclusão
que hoje os historiadores mostraram estar incorreta, particularmente no que se refere às mulheres da classe trabalhadora. Ver
Ferguson and McNally, “Capital, Labour-Power, and Gender-Relations,” in Vogel, Marxism and the Oppression of Women, xxx–xxxi;
Jane Humphries, “Class Struggle and the Persistence of the Working-Class Family,” Cambridge Journal of Economics 1, no. 3
(1977): 251; Geoffrey Best, Mid-Victorian Britain (New York: Schoken, 1972), 100; Alexander, Becoming a Woman, 7–9; Edward
Higgs e Amanda Wilkinson, “Women Occupations and Work in Victorian Census Revisited,” History Workshop 81 (2016): 17–38.
14 Berg, “Women’s Work and the Industrial Revolution,” 3.
15 Marx, Capital, vol. 1, 517.
16John Stuart Mill, “Employment of Children in Manufactories,” Examiner, January 29, 1832, 67–68; Karl Marx, On the First
International (New York: McGraw-Hill, 1973), 93. Sob a influência de Harriet Taylor, Mill posteriormente alterou sua visão sobre a
exclusão das mulheres do emprego na indústria manifatureira e enfatizou seu direito de competir no mercado de trabalho. Ver John
Stuart Mill, Three Essays (Oxford: Oxford University, 1975), 458.
17 Na nossa explicação, elaboramos aproximadamente sobre o método de Marx de desglosar vários grupos dentro dos dados, para
focar nos setores proletários, baseados no exame do censo de 1861 ao qual ele se referia. Usando este censo, Marx estava
prioritariamente preocupado com duas coisas: a composição de gênero da força de trabalho e o elevado número de trabalhadores
domésticos. A chave deste método parece ter sido enfocar em 3 de 6 “classes” de ocupações/condições do censo: classes da
agricultura, da indústria e do serviço doméstico, excluindo os “profissionais”, o comércio e os “indefinidos e não-produtivos”, na
terminologia do censo. Mineração era uma subcategoria de Indústria. Mineração, como a agricultura, era uma atividade
majoritariamente rural, separada do proletariado industrial. Marx pontuou, baseado no censo de 1861, que o número de trabalhadores
domésticos (a maioria mulher), excedia o de trabalhadores têxteis (a maioria mulher) e os mineiros juntos. (Census of England and
Wales for the Year 1861, Population Tables, vol. 2 [London: Her Majesty’s Stationary Office, 1863], Table XVIII, xl; Marx, Capital,
vol. 1, 575). Ver também B. R. Mitchell, Abstract of British Historical Statistics (Cambridge: Cambridge University Press, 1962),
60–61.
18Nem todos os números de Marx coincidem com os dados publicados no censo de 1861, mas os resultados são extremamente
próximos, e as diferenças são tão irrisórias que efetivamente não interferem nas suas conclusões. Por exemplo, os números de Marx
para os trabalhadores domésticos masculinos (sobre o que ele se refere a homens adultos) é 11,4% de todos os trabalhadores
domésticos, enquanto o censo, como publicado em 1863, reporta 12,5%. A única área que parece apresentar notável diferença é a
designação das diferenças de idade entre crianças e adultos. Nos dados de Marx, a linha de corte de idade da indústria têxtil era 13
anos, enquanto no censo de 1861, como publicado em 1863, o dado está dividido entre acima e abaixo de 20 anos. Isso sugere que
adultos. Ao contrário, na indústria metalúrgica, um setor consideravelmente menor, mulheres eram
somente 8% do total. Os números de Marx sugeriam que em geral a força de trabalho nas indústrias
e manufaturas dos centros urbanos eram predominantemente femininas. Ademais, isso eram
também verdadeiro para os serviços domésticos (considerando os trabalhadores improdutivos na
contabilidade capitalista, remunerados com parte da mais-valia), quem claramente constituiu parte
da força de trabalho proletarizada. Ao enfatizar a severa opressão das mulheres jovens nos serviços
domésticos, Marx observou, irritado, que se referiam a elas no senso comum como “pequenas
escravas” - indicando que isso era muito próximo da verdade19.
Apesar de os censos Vitorianos serem criticados por pesquisadores contemporâneos por
geralmente subestimar o nível de emprego das mulheres e exagerar o número total de empregados
domésticos, nada disso enfraqueceu substantivamente as principais conclusões de Marx, que
apontavam: (1) o maior número de mulheres do que homens empregados nas indústrias urbanas,
excluindo negócios e comércio; (2) o maior nível de emprego de mulheres na indústria têxtil, que
era o setor mais importante da revolução industrial (liderando como fonte de extração de mais-
valia); (3) a enorme proporção de trabalhadores dedicados a serviços domésticos nas casas
prósperas, nas quais as mulheres serviçais superavam os homens expressivamente; e (4) a condição
análoga à escravidão imposta a estas empregadas domésticas, que normalmente trabalhavam 18
horas por dia em condições degradantes e quase sem remuneração20.
Como a literatura recente confirmou, Marx dedicou porções substanciais de O Capital para
descrever a condição brutal de trabalho das mulheres nas fábricas, que ele percebia como mais
exploradas que os homens. Mulheres trabalhadoras predominavam na indústria doméstica moderna,
também frequentemente empregadas em “oficinas femininas de costura” [mistress’ houses], com o
que Marx associava ao que chamou de porção “inerte” do exército industrial de reserva, por causa
da precariedade do seu trabalho21. A indústria doméstica moderna (como “moderna manufatura” ou
moderno artesanato) era majoritariamente desregulamentado, mesmo depois da aprovação das Leis
das Fábricas (Factory Acts) e da Lei da Jornada de Dez Horas (Ten-Hour-Day Bill). Apontando os
“horrores” desse setor da produção, Marx destacava a morte de uma jovem de 20 anos, Mary Anne
Walkley, empregada de um dos melhores estabelecimentos de costureiras ou “oficinas femininas de
costura” [mistress’ houses]. Ela foi forçada a trabalhar continuamente durante 26,5 horas em uma
sala lotada com outras 30 jovens mulheres, produzindo roupas para um baile de honra à nova
Princesa de Gales. Havia somente um terço do ar necessário em metros cúbicos por pessoa – o que
não era incomum na época. Observando os dados de 600 mulheres tratadas no Nottingham General
Dispensary, todas elas rendeiras e a maioria entre 17 e 24 anos, Marx descobriu que o número das
pacientes com tuberculose cresceu de modo fenomenal em menos de uma década, de uma em 45
trabalhadoras em 1952 para uma a cada oito em 1861 – uma medida da rapidez com que as
condições de trabalho se degradaram, comprometendo severamente a saúde das trabalhadoras 22.
Considerando que os trabalhadores homens (normalmente maridos e pais) eram, em geral,
incapazes de ganhar salários suficientes para alcançar as necessidades de subsistência da família
(incluindo a reprodução social da força de trabalho) e que as trabalhadoras mulheres e adultas eram
frequentemente pagas com um terço dos salários dos homens, o capitalismo de meados do século
XIX, como enfatizou Marx, estava crescentemente empurrando a entrada de todos os membros da
família proletária no mercado de trabalho, simplesmente para garantir-lhes a sobrevivência: “no

Marx estava usando uma fonte ligeiramente diferente, talvez preliminar ou uma versão resumida do censo – ou que o censo foi
revisado. (Census of England and Wales, Table XVIII, xl).
19Marx, Capital, vol. 1, 574–75; “Occupations: Census Returns for 1851, 1861 and 1871,” Victorian Web, http://victorianweb.org;
Brown, Marx on Gender and the Family, 77. O censo vitoriano não registra situação de emprego e desemprego, o que
inevitavelmente distorce os dados.
20 Marx, Capital, vol. 1, 575; Deborah Valenze, The First Industrial Woman (Oxford: Oxford University Press, 1995), 171–80.
21 Marx, Capital, vol. 1, 796–97.
22 Marx, Capital, vol. 1, 364–66, 595–99.
lugar dos homens que foram substituídos pelas máquinas, a fábrica poderá empregar, talvez, três
crianças e uma mulher!… [consequentemente] quatro vezes mais trabalhadores vivos são usados a
mais do que antes, para obter a subsistência de uma única família proletária”23. A consequência era
a abolição do tempo livre (inclusive para consumir e dormir) para todos os membros de uma família,
que frequentemente trabalhava seis ou sete dias por semana, em geral 12 ou mais horas por dia. Tais
condições contribuiam para a quase completa desintegração da família proletária.
Essa situação era especialmente evidente para as mulheres, quem, na época como hoje, eram
consideradas as principais cuidadoras da casa. Segundo uma contabilidade do período, informada
por um inspetor de fábrica em 1844 como um caso típico, uma operária casada tinha:

Meia hora para amamentar sua filha e levá-la para o berçário; uma hora para deveres domésticos
antes de sair de casa; meia hora para transportar-se até a fábrica; 12 horas efetivas de trabalho;
uma hora e meia para refeições; meia hora para retornar para casa a noite; uma hora e meia para
mais deveres domésticos e preparar-se para dormir, restando seis horas e meia para recreação,
convivência com amigos e sono; e no inverno, quando é mais escuro, meia hora extra até a fábrica
e mais meia hora no caminho de volta para casa24.

Em meados do século XIX, como Margaret Hewitt observou em Wives and Mothers in
Victorian Industry, “as operárias casadas saiam de casa antes das seis da manhã até seis da noite –
às vezes mais tarde se estivesse trabalhando para um patrão inescrupuloso”. O efeito nas crianças
era horrendo. “‘O que eles fazem’, perguntava Charles Dickens ao reitor de uma paróquia de uma
grande cidade inglesa, ‘o que eles fazem com as crianças das mães que trabalham nas fábricas?’.
‘Oh’, replicou o clérigo, ‘elas as trazem para mim e eu cuido delas no cemitério da Igreja!’”25.
Em alguns locais, a taxa de mortalidade infantil de crianças menores de 2 anos com mães
operárias era registrada em 50% ou mais26. Nos distritos industriais maiores, como Manchester,
Stockport e Bradford, como Marx explicou baseado no Sexto Relatório de Saúde Pública (1864),
possuíam taxas de mortalidade infantil mais altas que 25% para crianças menores de um ano “as
maiores taxas de morte… além de causas específicas” eram “principalmente devido ao emprego das
mães longe de suas casas e a negligência e os maus tratos gerados por sua ausência”, incluindo
frequentes envenenamentos de crianças com opiáceos 27 . Em Lancashire em meados de 1850, a
porção de operárias casadas com filhos menores de um ano era em média 21%. De acordo com o
censo de 1851, 50% das mulheres em seu auge (muitas das quais eram mães) não tinham maridos
para sustentá-las e, portanto, eram parte ativa da força de trabalho. Como resultado, mesmo na
segunda metade do século XIX, quando as condições melhoraram um pouco, a taxa geral de
mortalidade infantil nos distritos industriais cresceu de 19% para 25%. A amamentação de bebês era
inviável para a classe trabalhadora e o leite de vaca tinha preço proibitivo, além de estar
frequentemente contaminado. No lugar, bebês da classe trabalhadora eram alimentados com uma
papa de pão amassado com água e às vezes adoçado com açúcar. Como Hewitt escreveu (e Marx
notou), “para acalmar os gritos angustiados dos bebês”, que estavam subnutridos e sofrendo com
uma dieta normalmente inapropriada, “enfermeiras tinham o hábito de administrar gim com menta e
algumas outras drogas, como sedativos [Godfrey’s Cordial, Atkinson’s Royal Infants’Preservative e

23Karl Marx, Wage-Labour and Capital/Value, Price and Profit (New York: International Publishers, 1935), 46–47 (Wage Labour
and Capital).
24 Margaret Hewitt, Wives and Mothers in Victorian Industry (London: Rockliff, 1958), 22.
25Rev. J. Elder Cumming, “On the Neglect of Infants in Large Towns,” Transactions of the National Association for the Promotion of
Social Science (1874): 723–24; Hewitt, Wives and Mothers in Victorian Industry, 29, 99.
26 Hewitt, Wives and Mothers in Victorian Industry, 106–10.
27 Marx, Capital, vol. 1, 520–22
Mrs. Wilkinson’s Soothing Syrup]”, junto com ópio (ou láudano ou morfina), que era o “ingrediente
para tudo”28.
O precário cuidado dos bebês se expressava em uma dieta deficiente e na pobreza absoluta
da classe trabalhadora urbana, tanto quanto a quase-completa eliminação do tempo necessário para
as tarefas de recuperação e reprodução social no interior das famílias proletárias. A dieta da classe
trabalhadora consistia, basicamente, de “chá e pão, pão e chá”, às vezes suplementados por batatas e
alguns condimentos. Leite e carne de qualquer tipo eram raridades, assim como a maioria dos
vegetais. Trabalhadores adultos comiam em média cerca de 4,5 quilos de pão por semana, todo ele
comprado de padarias, e todos gravemente adulterados29. As instalações e utensílios de cozinha nas
casas eram limitados e o combustível era caro. A água, com frequência extremamente poluída, tinha
que sere carregada para casa por longas distâncias, quase sempre por mulheres. Não existiam
instalações sanitárias. As doenças estavam espalhadas e as epidemias eram frequentes. Os
trabalhadores nos centros industriais viviam amontoados em quartos de aluguel e cortiços, muitas
vezes em um único quarto com os mais simplórios móveis, uma cama, uma mesa e algumas
cadeiras30. Mais significativo era a expropriação de quase todo tempo necessário para reprodução
social da família proletária, até o nível mais baixo da existência – uma situação que dificilmente
poderia prosseguir. “As mulheres que trabalhavam 14 horas ao dia nas fábricas de Midland durante
1830”, escreveu Caroline Davidson sombriamente, em A Women Work Is Never Done, “poderia
sobreviver sem muito serviço doméstico. Elas e suas famílias existiam de pão de trigo e batatas,
deglutidos com chá e café e viviam, quase sempre, em casas imundas”31.
As famílias da classe trabalhadora, Marx e Engels observaram, estavam em um estado e
severa crise e “dissolução”, com a velha estrutura da família patriarcal em colapso em meio à
falência das casas como centros de produção, seguidas de uma massiva entrada das mulheres como
força de trabalho. A esperança entre os primeiros ingleses radicais era que uma nova estrutura
familiar mais igualitária, baseada na equidade entre sexos, iria emergir junto com a luta da classe
trabalhadora, uma aspiração política que apareceu no movimento Owenista [seguidores de Robert
Owen], mas em grande medida subsistiu até a era Cartista32. Enquanto isso, porém, estava claro que
a família proletária precisava de proteção, dada a mórbida condição com a qual se confrontavam.
Quando eventualmente alguma proteção era fornecida, nos termos da burguesia, pela legislação
fabril e a jornada de 10 horas, a grande questão para Marx continuava sendo a auto-organização dos
trabalhadores e a igualdade no local de trabalho, que constituiriam as sementes da nova sociedade.
Como escreveu Marx em 1880, “a emancipação da classe produtora envolve todos os sres humanos
sem distinção de sexo e raça”33. Uma das razões para o silêncio de Marx a respeito do trabalho
reprodutivo das mulheres nas casas, Federici sugere, era a “quase ausência” de tal trabalho
reprodutivo “nas casas proletárias no tempo em que Marx escrevia, considerando que as famílias
inteiras estavam empregadas nas fábricas de sol a sol”. E ela acrescento: “Marx descreveu a
condição do proletariado industrial do seu tempo, tal como ele o viu, e o trabalho doméstico das
mulheres era dificilmente parte disso… Embora desde a primeira fase do desenvolvimento

28Hewitt, Wives and Mothers in Victorian Industry, 102, 136–37, 141; Reynolds, Infant Mortality and Working-Class Child Care,
1850–1899, 2–3, 74, 146.
29 AnthonyS. Wohl, Endangered Lives (Cambridge, MA: Harvard University Press, 1983): 50–52; John Bellamy Foster, “Marx as a
Food Theorist,” Monthly Review 68, no. 7 (December 2016): 1–8.
30Ivy Pinchbeck, Women Workers and the Industrial Revolution, 1750–1850 (London: Cass, 1969), 310; Bridget Hill, Women, Work,
and Sexual Politics in Eighteenth Century England (London: Blackwell, 1989), 105–15. Sobre epidemias e epidemiologia social da
revolução industrial, ver The Second Sickness (New York: Free Press, 1983).
31 Caroline Davidson, A Woman’s Work Is Never Done (London: Chatto and Windus, 1982), 184.
32Marx, Capital, vol. 1, 620–21; Ferguson and McNally, xxix–xxx; Brown, Marx on Gender and the Family, 95–96; Chattopadhyay,
“Women’s Labor Under Capitalism and Marx,” 69, 74; Fortunati, The Arcane of Reproduction, 91, 170–71. Sobre Owenismo e as
lutas das mulheres trabalhadoras, ver Barbara Taylor, Eve and the New Jerusalem (New York: Pantheon, 1983). A destruição da
família proletária já era uma tese central adotada em 1845 por Engels, The Condition of the Working Class in England, 140.
33 Marx and Engels, Collected Works, vol. 24, 340. Citação transcrita de Lise Vogel, Marxism and the Oppression of Women, 75.
capitalista, e especialmente no período mercantilista, o trabalho reprodutivo era formalmente
subsumido à acumulação de capital, foi apenas no fim do século XIX que o trabalho doméstico
emergiu como a força motriz da reprodução da força de trabalho industrial” 34 . Comentando o
fechamento de fábricas têxteis nos Estados Unidos durante a guerra civil, Marx observou que aquilo
ao menos tinha um efeito positivo para as mulheres, que agora “teriam lazer suficient [isto é, tempo
fora da fábrica] para dar o peito aos seus bebês, ao invés de envenená-los com Godfrey’s Cordial
[um opiáceo]”35. Para Marx, “o coletivo de trabalhadores”, que

é composto de indivíduos de ambos os sexos e todas as idades precisa, sob condições apropriadas,
tornar-se a fonte do desenvolvimento humano, muito embora na forma espontânea e brutal de
desenvolvimento capitalista o sistema funciona na direção oposta e torna-se uma fonte pestilenta
de corrupção e escravidão, uma vez que o trabalhador passa a existir para o processo de produção
e não o processo de produção para o trabalhador.36

A maioria destas condições seriam reduzidas nos anos seguintes. O período entre o fim do
século XVIII e meados do século XIX provou ser uma “grande descontinuidade” no que concerne
ao papel do trabalho das mulheres, diferente tanto da produção anterior, baseada no trabalho
doméstico, quanto do posterior regime de “esferas separadas” da era Vitoriana. A proporção das
assim chamadas “mulheres ocupadas” caiu para média de 0,7% ao ano na segunda metade do século
XIX. “De níveis recordes altos como 67,5% de mulheres casadas trabalhando em Cardington nos
anos 1780, a taxa de participação de mulheres casadas no mercado de trabalho em todo país caiu
para 10% em 1911”37. Muito dessa mudança se deveu à legislação de fábrica, à jornada de 10 horas,
ao aumento salarial, e à ideologia agora oficialmente burguesa do provedor masculino e da mulher
dona de casa. Esta última serviu para definir estritamente os papeis de gênero na nova era do
capitalismo de monopólio, na qual a mais-valia relativa tornou-se dominante, em contraposição à
mais-valia absoluta38. Tendo enfrentado “obstáculos naturais insuperáveis” na sua aniquilação do
tempo do conjunto da família proletária, o capital subsequentemente introduziu um novo regime de
salário familiar, no qual o homem adulto, sozinho, poderia em teoria ganhar o suficiente para
sustentar sua casa inteira. Esse salário foi mantido baixo, contudo, pelo crescimento do trabalho
doméstico feminino de reprodução social, que funcionava como um presente gratuito ao capital.
Mais além, o salário familiar somente foi aplicável para homens provedores [“bradwinners”] em
um setor privilegiado da classe trabalhadora39. Já em 1884 na Origem da Família, da Propriedade
Privada e do Estado, Engels argumentou que a emancipação feminina requeria um novo impulso
para libertar as mulheres do confinamento doméstico e a “reintrodução” revolucionária das
mulheres no mercado de trabalho, para romper o novo patriarcado burguês e estabelecer condições
para uma família mais igualitária.
Hoje, na grande maioria dos casos, o homem precisa ser o provedor, o ganha-pão da família… e
isso lhe fornecesse uma posição dominante que não requer nenhum privilégio legal. Na família, ele
é o burguês; a esposa representa o proletariado. O caráter peculiar da dominação masculina sobre
as mulheres na família moderna, e a necessidade, tanto quanto a maneira, de estabelecimento da
verdadeira igualdade social entre ambos será trazido a um total alívio somente quando ambos
estejam completamente iguais perante a lei. Ficará então evidente que a primeira premissa para a
emancipação da mulher é a reintrodução de todo o sexo feminino na indústria pública; e que isso

34 Federici, Revolution at Point Zero, 94; Federici, “Notes on Gender in Marx’s Capital,” 27.
35 Marx, Capital, vol. 1, 517-18.
36 Marx, Capital, vol. 1, 621.
37Sara Horrell e Jane Humphries, “Women’s Labour Force Participation and the Transition to the Male Breadwinner Family,”
Economic History Review 48, no. 1 (1995): 93; Berg, “Women’s Work and the Industrial Revolution,” 4.
38 Federici, Caliban and the Witch, 98–99.
39 Marx, Capital, vol. 1, 599; Brown, Marx on Gender and the Family, 90.
novamente demanda que o caráter possuído pela família individual de ser a unidade econômica da
sociedade precisa ser abolido [itálico adicionado]40.

Trabalho Reprodutivo, Natureza e Valorização

Embora seja necessário conhecer o entendimento de Marx sobre a crise e a dissolução da


família proletária de seu tempo, associada com a participação de todos os membros da família
(incluindo mulheres casadas e crianças) na força de trabalho do seu tempo – isso não pode explicar
inteiramente a ausência de um exame detalhado da reprodução social do lar. Uma explicação mais
profunda reside na própria estrutura da crítica da economia política capitalista. Aqui é crucial
compreender que a crítica de Marx em O Capital pretendia desvelar a lógica interna e as
contradições do modo de produção capitalista. As categorias usadas, como aquelas associadas com
a teoria do valor trabalho – à qual Marx adaptou e desenvolveu a partir dos clássicos da economia
política e sobre a qual pensava viabilizar a análise científica do capital como sistema – não eram,
para ele, universais, mas sim categorias históricas específicas a serem superadas pela transcendência
revolucionária do próprio sistema capitalista. Indo além, Marx, como se sabe, estruturou sua crítica
da economia política burguesa na forma de sucessivas aproximações, movendo-se da análise mais
abstrata no volume 1 de O Capital para níveis cada vez mais concretos de análise nos inconclusos
volumes 2 e 341. O Capital, por si mesmo, foi originalmente concebido como o primeiro de cinco
livros, incluindo volumes sobre a propriedade da terra, o trabalho assalariado, o Estado, o comércio
internacional, o mercado mundial e a crise.
A natureza incompleta do projeto de Marx, considerando que mesmo O Capital ficou
inconcluso, consistiu em um grande problema para os teóricos marxistas posteriores, que tentaram
edificar sobre sua ciência social dialética. Como Michael Lebowitz brilhantemente argumentou, o
livro não escrito sobre trabalho assalariado teria necessariamente se dedicado ao que Marx chamou
de a “economia política do trabalho”, como oposta à “economia política da propriedade” 42 .
Logicamente, isso requeria a incorporação de uma análise detalhada sobre a reprodução social da
força de trabalho – de um tipo que Marx parecia às vezes estar prestes a formular – mas que residia
analiticamente além da crítica imediata do capital43. Na raiz dessa pesquisa, estava o entendimento
de Marx sobre a relação capitalista em si mesma, como retratada na economia política burguesa
clássica. A lógica interna do capital como sistema de valorização e acumulação, como explicou os
Grundrisse de 1857-58, passaria por cima de todas as outras relações e condições naturais de
produção herdadas, que permaneceriam externas ao seu modo de produzir44. O desenvolvimento do
Estado seria em parte, em si mesmo, o produto de necessidade de administração de “mediações

40 Frederick Engels, The Origin of the Family, Private Property, and the State (Moscow: Progress Publishers, 1948), 74.
41 Paul M. Sweezy, The Theory of Capitalist Development (New York: Monthly Review, 1970), 11–20.
42 Marx, On the First International, 10; Michael A. Lebowitz, Beyond Capital (New York: St. Martin’s, 1992).
43 Por exemplo, Marx escreveu: “Já que algumas funções familiares, como cuidados de maternidade e amamentação de crianças, não
podem ser inteiramente suprimidas, as mães que foram confiscadas pelo capital devem encontrar alguma forma de substitutos.
Trabalhos domésticos como costurar e remendar, precisam ser substituídos pela compra de artigos prontos. Consequentemente, a
redução do tempo de trabalho doméstico é acompanhada pelo aumento do gasto em dinheiro fora de casa. Ver Marx, Capital, vol. 1,
518. Ver também Federici, “Notes on Gender in Marx’s Capital,” 26–27; Ferguson e McNally, “Capital, Labour-Power and Gender-
Relations,” xxvii–xxviii. Estas afirmações na análise de Marx estão quase invariavelmente nas notas de rodapé ou em palestras para
trabalhadores, como Wage Labour and Capital. Isso levou à crítica de que ele teria dado pouca importância ao assunto. No entanto, a
crítica dialética de Marx sobre estes aspectos, em termos lógicos, seria elaborada posteriormente, junto com a determinação concreta
dos salários – o que nunca chegou a ser alcançado. Sua prática, contudo, foi sempre anotar tais pontos em notas de rodapé, como
forma de levantar questões mais concretas depois. Ver Kenneth Lapides, Marx’s Wage Theory in Historical Perspective (Tucson:
Wheatmark, 2008), 210–35.

44 Karl Marx, Grundrisse (London: Penguin, 1973), 334–35, 409–10.


alienadas”, não somente internas ao sistema de classes, mas também entre o capital e o vasto terreno
de existência, do qual ele é parte45. O capital, em seu processo de expansão ilimitada, é apresentado
com “obstáculos naturais insuperáveis”, incluindo aqueles impostos pelos limites do corpo humano,
resultando no “roubo de todas as condições normais necessárias para trabalhar e viver” 46 .
Constantemente buscando superar, mas nunca capaz de transcender tais obstáculos naturais, o
sistema periodicamente confrontou crises de acumulação, nas quais, quando parecia resolver-se a
cada passo do seu progresso, constantemente expandia seu alcance.
Esse aspecto da crítica de Marx, relacionado com as condições fronteiriças do sistema, pode
ser vista de maneira mais premente quando ele se refere à “assim chamada acumulação primitiva
[primária]” - em referência crítica à economia política clássica burguesa –, mas que o próprio Marx
preferiu tratar como o problema da expropriação 47 . Isso representava a tentativa necessária e
contínua do capital em transcender e reajustar suas fronteiras em respeito às suas condições externa
de produção, para então incrementar o processo de acumulação48. O capitalismo industrial requer,
como base inicial, a expropriação e monopolização da terra, essencial para a proletarização da força
de trabalho e para o desenvolvimento de propriedades da terra e agricultura capitalistas. Enquanto,
em um sentido mais amplo, a constante necessidade de expropriação cria e recria a base de seu
funcionamento, fazendo possível a contínua exploração do trabalho, se projeta a realidade de que o
sistema capitalista existe invariavelmente no meio natural e emerge dos modos de produção
domésticos anteriores 49 . Levado a transcender as condições de produção externas e naturais, e
tratando-as não como fronteiras, mas como barreiras a superar, o capital constantemente busca
expropriar tudo o que pode do ambiente natural e social, enquanto externaliza seus custos para
territórios externos ao seu circuito de valor. Especialmente na teoria da fratura metabólica, mas
também em outras partes – por exemplo, seus posteriores estudos etnológicos sobre a família –
Marx se moveu mais e mais no sentido de abraçar as contradições entre as determinações internas e
externas do capital como sistema50. Isso refletiu no próprio curso do desenvolvimento capitalista,

45 Karl Marx, Early Writings (London: Penguin, 1975), 261, 409–10.


46 Marx, Capital, vol. 1, 599.
47Marx, Capital, vol. 1, 871. Ao referir-se ao conceito de acumulação primária, Marx era explícito que tal categoria estava sendo
tomada principalmente de Adam Smith. Marx, no entanto, indicou reservas sobre o termo, não apenas ao referir-se como “assim
chamada acumulação primitiva [primária]”, mas também ao utilizar destacadas aspas. Sua solução foi focar na expropriação como
chave das condições fronteiriças do capitalismo - não apenas em relação às suas origens, mas implicitamente em todos os seus
estágios, incluindo o “colonialismo moderno”. Ver Marx, Capital, vol. 1, 775, 873, 939. Sobre a importância de conceber a análise de
Marx como “acumulação primária” ao invés de “acumulação primitiva” e sua aplicabilidade a todos os momentos do capitalismo, ver
Harry Magdoff, “Primitive Accumulation and Imperialism,” Monthly Review 65, no. 5 (October 2013): 13–25. Sobre as origens do
conceito na economia política clássica, ver Michael Perelman, The Invention of Capitalism (Durham: Duke University Press, 2000).
Sobre a relação entre acumulação primitiva e a restruturação das tradicionais relações familiares patriarcais e de gênero com o
advento do capitalismo ver Federici, Caliban and the Witch. Sobre as conexões entre expropriação e as “condições de bastidor que
possibilitam a exploração”, ver Nancy Fraser, “Behind Marx’s Hidden Abode: For an Expanded Conception of Capitalism,” New Left
Review 86 (2014): 55–72.
48O conceito de “condições de produção” e seu papel na análise de Marx, se referindo a aspectos do meio ambiente externo e às
condições de reprodução doméstica foram trazidas por James O’Connor em seu trabalho pioneiro sobre marxismo ecológico. Ver
James O’Connor, Natural Causes (New York: Guilford, 1998), 144–57.
49 Jason W. Moore usa o termo “apropriação” para se referir à extração humana de “trabalho não remunerado” da natureza – que ele
chama de “rede da vida”. Na obra de Marx, contudo, a “apropriação gratuita” da natureza e do processo natural – assim como o
trabalho de reprodução socialmente necessário – não poderia ser materialmente transcendido, assim como não seria possível
transcender a condição de seres humanos enquanto seres objetivos, que possuíam sua materialidade – seus meios de existência – fora
de si mesmos. Somente a mediação alienada das relações humanas na rede da vida, isto é, a expropriação da natureza e dos processos
naturais, do trabalho de subsistência e do trabalho reprodutivo – tudo isso por fora do circuito de valorização do capital – que está
sujeito à transcendência devido à luta revolucionária na história. A única resposta ao regime do capital, para Marx, era expropriar os
expropriadores, como primeiro passo para a criação da nova ordem, o que István Mészáros chamou de “reprodução social
metabólica”. Ver Jason W. Moore, Capitalism in the Web of Life (London: Verso, 2015), 17, 29, 54, 70, 101–02, 146-47; Marx, Early
Writings, 389–90, Grundrisse, 87–88, Capital, vol. 1, 929; István Mészáros, Beyond Capital (New York: Monthly Review Press,
1995), 39–71.
50 Sobre a teoria da fratura metabólica e as dialética entre barreiras e fronteiras (que Marx tomou de Hegel), ver Kohei Saito, Karl
Marx’s Ecosocialism (New York: Monthly Review, 2017); Foster, Clark, e York, The Ecological Rift, 73, 284–86. Sobre o trabalho
tardio de Marx sobre a etnologia da família, ver Brown, Marx on Gender and the Family, 176–209.
que crescentemente levantou a questão da “ativação dos limites absolutos do capital” - na sua
relação com a família, com o Estado-nação e com o meio ambiente51.
Todavia, a crítica do capital como relação social precisa ser abordada inicialmente do ponto
de vista de sua concepção ideal e do seu processo intrínseco, como presentes na economia política
clássica, e em termos de sua lógica interna de geração de valor (de troca) ou valorização. Essa
concepção ideal do capital precisa ser submetida a uma crítica completa desde o início, no nível
abstrato (como no livro 1 d’O Capital). É somente a partir daí que, no projeto de Marx, a realidade
histórico-concreta do capitalismo passa a ser abordada, movendo-se para níveis menores de
abstração e então alcançando uma análise histórica mais compreensível. No nível concreto do
capitalismo histórico, torna-se claro que o sistema requer o controle das suas fronteiras, como
produto de sua própria lógica interna, e para manter seu impulso de acumulação de capital –
controle este representado pelos termos de expropriação das condições mais amplas de produção,
definido pelo conjunto do sistema. Nesse sentido, a ênfase de Rosa Luxemburgo na dependência do
capitalismo, como sistema imperialista, em relação à constante expropriação das zonas externas,
refletiu a mesma lógica52. A formação de capital do Estado-nação e seu controle da imigração e
emigração eram meios de controle e gerenciamento das fronteiras da sua força de trabalho,
juntamente das fronteiras sociais e naturais.
Ainda assim, do ponto de vista do próprio sistema de geração de valor via produção de
mercadorias, tais zonas externas à produção mercantil, incluindo a reprodução da força de trabalho
e a expropriação da natureza, eram consideradas como “presentes gratuitos... para o capital” e eram
excluídas dos cálculos de valor (e de renda) – uma realidade do sistema que é tão verdadeira hoje
como no tempo em que Marx escrevia 53 . Por conseguinte, como Marilyn Waring observou, “o
tratamento à mãe Terra e o tratamento às mulheres e crianças no sistema de contabilidade nacional
tem fundamentos paralelos” – significativamente, nenhum deles está incluído como “valor
agregado”54.
O próprio Marx definiu riqueza em termos de produção de valores de uso; contudo, a
economia política burguesa, naquilo que Marx caracterizou como sua grande contradição, está
interessada apenas no valor de troca, e cada vez mais reduz riqueza à geração de valor pela
produção de mercadorias55. Valores de uso derivam da natureza, de processos naturais e os custos
domésticos da reprodução social são, dessa maneira, tratados pelo sistema como gratuitos, para ser
livremente expropriados na sua expansão. Aqui, em contraste com a exploração, não há troca de
equivalentes, nem mesmo em termos formais, mas simplesmente roubo – usurpação, expropriação,
dependência e escravização56.

51 Mészáros, Beyond Capital, 142–253.


52 Rosa Luxemburg, The Accumulation of Capital (New York: Monthly Review Press, 1951).
53 Marx and Engels, Collected Works, vol. 37, 732–33; Ver também Paul Burkett, “Nature’s ‘Free Gifts and the Ecological
Significance of Value,” Capital and Class 23 (1999): 89–110. A ideia equivocada de que Marx errou ao não atribuir valor de troca ao
trabalho doméstico não remunerado das mulheres em condições capitalistas ainda aparece frequentemente na literatura. O que não se
compreende em tais críticas, como Chattopadhyay observou, é que “na sua formulação da determinação salarial, Marx não estava
oferecendo nenhuma fórmula prescritiva, muito menos uma aspiração neste sentido. Ele estava apenas rigorosamente mostrando
como a determinação do salário advém da realidade do capitalismo”. Ver Chattopadhyay, “Women’s Labor Under Capitalism and
Marx,” 73. Para exemplos mais recentes dessa continua confusão ver Rohini Hensman, “Revisiting the Domestic Labour Debate: An
Indian Perspective,” Historical Materialism 19, no. 3 (2011): 7–8; Peter Custers, Capital Accumulation and Women’s Labour in
Asian Economies (New York: Monthly Review Press, 2012), 46–47, 88; Fortunati, The Arcane of Reproduction, 8–11, 69–98, 157.
54 Marilyn Waring, Counting for Nothing (Toronto: University of Toronto Press, 2009), 204.
55Karl Marx e Frederick Engels, Selected Correspondence (Moscow: Progress Publishers, 1975), 180; Marx, Capital, vol. 1, 132,
134.
56Em A Ideologia Alemã, Marx e Engels referem-se à “latente escravidão no seio da família”. Ver Marx e Engels, Collected Works,
vol. 5, 46. Ao tartar da escravidão, neste contexto, Marx e Engels claramente tinham em mente não a escravidão como comércio de
pessoas, mas sim a escravidão antiga, e a designação comum das mulheres na família patriarcal (especialmente a aristocrática) como
ocupante de um status de escrava, no sentido de disponibilizar toda sua força de trabalho para os outros. Para uma análise detalhada
Essa contradição entre acumulação de capital e suas próprias condições de produção está
subjacente a toda análise de Marx. A exploração no coração do sistema, na qual a mais-valia é
extraída do trabalho (capital variável), pode prosseguir, em última instância, somente através da
destruição da vida e do corpo dos trabalhadores – em termos relativos ou absolutos – tanto quanto
da separação dos trabalhadores de seus meios de produção (particularmente, a terra). A aniquilação
do tempo e o dano à saúde física e mental dos trabalhadores, conjuntamente com o verdadeiro
“sistema de roubo” através do qual a natureza é expropriada sem preocupação com sua reprodução,
possui efeitos devastadores no lar e na relação metabólica mais ampla com o meio ambiente57.
Exploração e expropriação, portanto, tem uma relação dialética na análise de Marx – uma não pode
ser entendida sem a outra. Apreendendo isso de modo sucinto, Eleanor Marx escreveu que “as
mulheres... foram expropriadas tanto em seu direito como seres humanos, quanto como
trabalhadores eram expropriados de seus direitos como produtores. O método em cada caso é o
único que torna possível qualquer expropriação in qualquer época e possível circunstância – o
método da força” 58 . Como Karl Marx indicou, o capital em seu processo de autovalorização
“usurpou [expropriou] a família proletária o trabalho necessário para consumir”59.
A lógica da crítica da economia política de Marx sugere fortemente a necessidade do
trabalho reprodutivo não remunerado forma a base para o também necessário trabalho assalariado
aportado pelos trabalhadores. Os valores de uso gerados no meio doméstico e o tempo utilizado
para sua produção – dentro do qual o trabalho reprodutivo não é simplesmente aniquilado,
ameaçando a família de dissolução como nos tempos de Marx – torna-se um anexo ao sistema
capitalista de exploração. Essa expropriação do trabalho reprodutivo socialmente necessário dentro
dos lares contribui para a redução do valor da força de trabalho e, especialmente sob o capitalismo
monopólico, também promove a realização da mais-valia. Isso não é apenas consistente com o
conjunto de argumentos do Marx, como prenunciado em O Capital (embora não propriamente
analisado em termos de trabalho doméstico), mas também e mais importante, constitui a realidade
da produção capitalista. O capitalismo industrial rompe com a economia doméstica antiga, pré-
industrial e patriarcal, na qual todo trabalho era visto como essencial em bases mais ou menos
equivalentes, e divide esse trabalho em uma esfera de trabalho doméstico invisível e o trabalho
“público” produtor de mercadorias, ambos explorados na indústria e expropriados na reprodução
social da vida. A atual divisão do trabalho entre estas duas esferas – o lugar de trabalho
propriamente capitalista e o doméstico – foi historicamente afetado pelas necessidades da
acumulação de capital como um todo, pelo tamanho do exército industrial de reserva em
determinado período, pela regulação do aparato de Estado, pelas desigualdades sociais e pelos
movimentos de trabalhadores. Qualquer entendimento do trabalho produtivo/reprodutivo precisa
considerar essa relação dialética.
Marx em distintos momentos indicou que a definição capitalista de trabalho produtivo, da
forma como contribuiu para a produção e valor/mais-valia, é historicamente específica ao
capitalismo e não deve ser confundida com a produtividade do trabalho humano em termos mais
amplos. Para Marx, não há dúvida de que o trabalho não produtor de mercadorias (ao contrário da
contabilidade do capital) também é trabalho socialmente necessário – do contrário, o trabalho
socialmente necessário estaria historicamente confinado às relações mercantis. Além disso, é
somente na medida em que o trabalho socialmente necessário [social labor] gera valor de uso (e não
valor de troca) que podemos falar realmente em trabalho [work], nos termos de Marx. Ele foi
absolutamente claro (embora breve demais, o que lamentamos) sobre a contradição principal

desse aspecto e suas implicações na obra de Marx, ver G. M .E. de Ste. Croix, The Class Struggle in the Ancient Greek
World (London: Duckworth, 1981), 98–111.
57
A noção de capitalismo como sistema de roubo do solo foi introduzida por Justus von Liebig e adotada por Marx. Ver John
Bellamy Foster, Marx’s Ecology (New York: Monthly Review Press, 2000), 147–63.
58 Eleanor Marx-Aveling e Edward Aveling, Thoughts on Women and Society (New York: International Publishers, 1987), 17.
59 Marx, Capital, vol. 1, 517–18; Chattopadhyay, “Women’s Labor Under Capitalism and Marx,” 69–70.
relacionada à família e à produção naquele período – que o capital usurpava o “trabalho livre da
subsistência familiar” ao submeter as mulheres à condição de “escravas assalariadas” [wage slaves]
da indústria, subjugando-as simultaneamente ao chefe patriarcal da família60.
Em meados do século XIX, como vimos, eram as mulheres trabalhadoras que geravam
ambos, as maiores taxas de mais-valia para capitalistas e a máxima somatória absoluta de valor. Isso
está implícito na análise de Marx. Como Chattopadhyay escreveu: “”na discussão sobre
determinação do valor pela quantidade de tempo de trabalho abstrato dentro de uma mercadoria,
Marx se refere ao ‘trabalho humano [menschliche] e trabalho não masculino [männliche]’. Em
outras palavras, o trabalho (abstrato) produtor de mercadorias, para Marx, é neutro em gênero”61.
Marx deixou claro que mulheres são mais exploradas que homens na produção de mercadorias; mas
adicionalmente, considerando a dinâmica do sistema do capital e dos costumes sociais, seu trabalho
doméstico reprodutivo socialmente necessário é expropriado (pela expropriação do tempo usado
para produção de valores de uso e/ou do consumo (re)produtivo [consumption work] para realização
de mais-valia), perpetuando gravemente a condição de dependência imposta as mulheres na família
patriarcal. A expropriação da natureza e do trabalho reprodutivo socialmente necessário, que reside
em “outras moradas ocultas”, fora da esfera de produção de mercadorias, como Fraser sustentou,
torna-se crucial para o entendimento completo de Marx sobre o capital como sistema62. Engels,
mais tarde, observou que na Alemanha o capital era capaz de manter baixos salários para os
trabalhadores porque grandes porções do custo de produção da força de trabalho era conduzido por
trabalho doméstico não remunerado – com efeito, produzindo altas taxas de exploração e maiores
lucros, indiretamente, por meio da expropriação de trabalho não mercantilizado63.

Regimes de reprodução social

Prosseguindo nosso raciocínio, uma contabilidade compreensível do sistema capitalista


precisaria se referir às “condições de possibilidade dos bastidores”, que incluem as sublinhadas
relações e condições da reprodução social e ecológica. Como Fraser escreveu: “a reprodução social
é uma condição de bastidor indispensável para a possibilidade econômica da produção de
mercadorias na sociedade capitalista”, na qual a reprodução social e a produção econômica estão
constituídas como esferas separadas64. Por isso, “a capacidade da natureza em sustentar a vida e
renovar a si mesma constitui outra condição de bastidor necessária para a produção de mercadorias
e acumulação de capital”65. Ela destaca que tais condições de bastidor da valorização do capital
possuem um “caráter distinto”, mas interagem e se alteram com as condições históricas do
desenvolvimento do sistema capitalista, o que se manifesta em diferentes regimes de reprodução
social.
O István Mészáros maduro, reforçando Marx, lançou luz sobre as relações alienadas que
emergem das transformações históricas do capital. Como Marx explicou, os seres humanos, por
necessidade, mediam sua relação com a natureza pelo trabalho. Essa relação metabólica, na qual

60 Chattopadhyay, “Women’s Labor Under Capitalism,” 68, 71–72. As palavras de Marx estão citadas na tradução de Chattopadhyay.
61Paresh Chattopadhyay, Marx’s Associated Mode of Production (London: Palgrave Macmillan, 2016), 87; “Women’s Labor Under
Capitalism,” 72.
62 Fraser, “Behind Marx’s Hidden Abode,” 62.
63 Frederick Engels, The Housing Question (Moscow: Progress Publishers, 1979), 14-15; Marx e Engels, Selected Correspondence,
358–59. Na análise de Marx e Engels, o aumento da taxa de mais-valia pelo barateamento do capital variável via substituição de
trabalho doméstico e de subsistência foi conhecia como “dedução da lucros”. Ver John Bellamy Foster, “A Missing Chapter
of Monopoly Capital,” Monthly Review 64, no. 3 (July–August 2012): 13–15.
64Nancy Fraser, “Crisis of Care? On the Social-Reproductive Contradictions of Contemporary Capitalism,” in Bhattacharya,
ed., Social Reproduction Theory, 23.
65 Fraser, “Behind Marx’s Hidden Abode,” 60, 63, 70.
substancias são trocadas e transformadas em movimento, os seres humanos confrontam-se com as
imposições da natureza no processo de alterações do mundo material e com a influência destas
circunstâncias sobre o trabalho e a estrutura de produção a ele associada. A sociedade da classe
capitalista, contudo, produz um conjunto de mediações de segunda ordem (o que Marx chamou de
“mediações alienadas”), conectadas com a troca de mercadorias, que resultam em um
estranhamento da humanidade, do trabalho e da natureza66. De acordo com Mészáros: “as primeiras
funções do metabolismo social, sem as quais a humanidade não poderia sobreviver mesmo na forma
mais ideal de sociedade – da reprodução biológica de indivíduos à regulação das condições de
reprodução econômica e cultural – estão cruamente equacionadas com as variedades capitalistas
(segunda ordem de mediações), não importa quão problemático esta última possa ser”. A forma
específica da dominação associada com esta segunda ordem de mediações – por exemplo, a dupla
jornada imposta às mulheres e a destruição invasiva dos ecossistemas – estão subrepresentadas
como “naturais e intransponíveis”, desafiando o contorno das turbulências e das crises por elas
engendradas67.
Tudo isso está associado com a separação entre produção e reprodução, e opera através de
processos gêmeos de exploração e expropriação. Para Fraser, “a expropriação é um mecanismo
contínuo de acumulação, embora não oficial [em termos de contabilidade capitalista], que
seguidamente acompanha o mecanismo oficial de exploração” 68 . Esse processo é evidente na
transformação histórica da reprodução social e dos padrões de expropriação.
Como detalhado anteriormente, durante a revolução industrial da Inglaterra, as condições da
reprodução social no contexto das famílias proletárias, que viabilizam as operações da economia
capitalista, estavam colapsando. “A situação era tão desesperadora”, observou Fraser,
que mesmo os mais astutos críticos como Marx e Engels se enganaram sobre este conflito
originário entre a produção e a reprodução social como última palavra. Imaginando que o
capitalismo havia entrado em sua crise terminal, acreditaram que, ao desentranhar a família
proletária, o sistema estaria também erradicando a base da opressão da mulher [caso a mudança
social revolucionária se soerguesse e triunfasse]. No entanto, o que realmente aconteceu foi
justamente o contrário: com o tempo, as sociedades capitalistas encontraram recursos para
administrar suas contradições – em parte criando “a família” em sua forma moderna e restrita; ao
inventar e intensificar novos significados para a diferença de gênero; e modernizar a dominação
masculina69.
A separação entre produção e reprodução tornou-se parte da constituição do sistema
capitalista – produzindo uma segunda ordem de mediações alienadas. Enquanto a produção
depende da reprodução social, esta última é esgotada ao seu limite – nos bastidores – e serve como
território de expropriação, do qual depende o sistema capitalista de acumulação 70 . A potencial
dissolução da família proletária torna0se uma contradição severa nas fronteiras do sistema, uma vez
que mina a reprodução social dos trabalhadores. Fraser alega que os esforços para conter essa
contradição-chave do sistema capitalista levaram a três regimes de reprodução social, subsequentes
à revolução industrial na Inglaterra. “Em cada regime... as condições de reprodução social assumiu
uma forma institucional diferente e incorporou distintas ordens normativas: primeiro, as ‘esferas
separadas’; depois a ‘família assalariada’, e agora a ‘família com dois provedores’”71.
Na segunda metade do século XIX, de acordo com as contas de Fraser, presenciou-se a
ascensão de um regime de “capitalismo competitivo liberal” no qual as “esferas separadas” da

66 Marx, Early Writings, 261.


67 Mészáros, Beyond Capital, 137.
68 Fraser, “Behind Marx’s Hidden Abode,” 60.
69 Fraser, “Crisis of Care?” 26.
70Fraser, “Crisis of Care?” 21, 24–25; Martha Gimenez, “Capitalism and the Oppression of Women: Marx Revisited,” Science and
Society 69, no. 1 (2005): 11–32.
71 Fraser, “Crisis of Care?”26.
reprodução social e da produção foram firmemente estabelecias pela primeira vez. A dissolução da
família proletária serviu como limite, criando um problema para o sistema do capital, que
atravessava uma fase volátil. Uma série de mudanças políticas e sociais se desenrolaram na
tentativa de “proteção” das famílias, para assegurar a continuidade da acumulação. Reformistas de
classe média, perturbados pelo que entendiam como “assexualização” da mulher trabalhadora e
nivelamento social entre os sexos em razão do emprego das mulheres nas fábricas, impulsionaram
legislações para proteger mulheres e crianças. Nesse período, a reprodução social e a produção
econômica foram definidas pelo sistema como esferas separadas. Fraser explicou que “ao separar o
trabalho reprodutivo do universo maior de atividades humanas, no qual o trabalho das mulheres
anteriormente estava presente com um papel significativo”, este foi reduzido a “uma ‘esfera
doméstica’ recém institucionalizada, na qual sua importância social foi obscurecida” 72 . Tais
esforços foram acompanhados por justificativas ideológicas da dominação masculina, nas quais se
afirmava que os homens eram provedores e as mulheres esposas do lar. Essa posição amplificava
continuamente “o fato de que as mulheres tinham que ocupar uma posição subordinada em todas as
classes sociais, sem exceção”73.
Leis como da jornada de dez horas e as Leis de Fábrica foram tentativas limitadas para
mitigar a exploração das mulheres e das crianças nas indústrias, que também cumpriam um papel na
ideologia patriarcal do tempo. Contudo, legislações de Estado para proteção estavam repletas de
contradições, considerando o contexto mais amplo da produção econômica e o fato de que o
conjunto do aparato regulatório necessitava estabelecer um o sistema da família assalariada
inteiramente desenvolvido, o que estava por ser construído 74 . O estabelecimento das “esferas
separadas” era problemático em termos de divisões raciais, étnicas, de gênero e de classe. Salários
para trabalhadores industriais (homens ou mulheres) continuavam baixos e a ausência de salários
adicionais minava a reprodução social, o que foi exacerbado pela poluição industrial e a baixa
qualidade da alimentação. Perdas salariais não eram repostas por apoios adicionais do Estado,
limitando verdadeiras mudanças nas situações confrontadas pelas famílias. O regime liberal
competitivo do capitalismo estava definido, então, em parte pela via formal, mas não real, de
subsunção do trabalho reprodutivo às necessidades do sistema capitalista75.
Para Mies, cuja análise em Patriarchy and Accumulation on a World Scale oferece uma
contrapartida global para o mesmo argumento, a “domesticação das mulheres” [“housewifization”]
nesse período – a criação de esferas separadas do provedor [“breadwinner”] e da dona de casa
[“housewife”] – estava intimamente ligada à emergência do imperialismo e da superexploração em
uma escala verdadeiramente global, tradicionalmente associada com a transição do capitalismo
competitivo ao monopólico. Isso envolveu a expropriação adicional de riqueza para ser concentrada
nos centros do sistema, parte da qual foi usada para garantir melhores remunerações à aristocracia
operária e ao conjunto do sistema familiar assalariado emergente. Tais mudanças incluíam a
destruição das relações integradas de produção-reprodução entre os povos indígenas, dizimando
capacidades produtivas das colônias para criar novos mercados aos tecidos britânicos, perpetuando
o sistema escravista ao máximo para enriquecer os capitalistas europeus e estabelecendo um
sistema de troca ecológica desigual pelo contínuo assalto ao sul global76.

72 Fraser, “Crisis of Care?”24, 26-29.


73 Mészáros, Beyond Capital, 203
74 Fraser, “Crisis of Care?” 27-29.
75 Anoção de deslocamento da subsunção formal para subsunção real do trabalho reprodutivo segue a famosa distinção de Marx a
respeito do trabalho produtor de mercadorias em “The Results of the Immediate Process of Production.” Ver Marx, Capital, vol. 1.,
101–9, 138. Ver também Salar Mohandesi e Emma Teitelman, “Without Reserves,” in Bhattacharya, ed., Social Reproduction Theory,
60–62.
76Mies, Patriarchy and Accumulation on a World Scale, 74–81; Fraser, “Crisis of Care?” 28; Harry Magdoff, The Age of
Imperialism (New York: Monthly Review Press, 1969), Imperialism (New York: Monthly Review Press, 1978); John Bellamy Foster
e Hannah Holleman, “The Theory of Unequal Ecological Exchange: A Marx-Odum Dialectic,” Journal of Peasant Studies 41, no. 2
(2014): 199–233.
O que Fraser chama de regime de “capitalismo administrado pelo Estado”, mas que pode ser
melhor compreendido em termos de capitalismo monopólico, emerge principalmente depois da
Grande Depressão e da Segunda Guerra Mundial e foi caracterizado pela família assalariada 77 .
Durante o período do capitalismo monopólico, o Estado no norte global cumpriu um amplo papel
regulador da produção econômica e da reprodução social, criando ou expandindo uma gama de
programas de “bem estar social” e outras formas de gasto público (frequentemente em resposta às
pressões dos trabalhadores e outros movimentos sociais), que institucionalizaram o modelo familiar
“homem-provedor/mulher-dona de casa”. Estas reformas estavam destinadas a reforçar as
condições de reprodução social, subsequente a um longo período de desemprego massivo, extrema
exploração do trabalho e conflito, educação precária e dificuldades familiares. Isso envolvia
distribuir parte do excedente gerado durante um período de taxas de crescimento econômico
extraordinárias e de “sindicalismo de resultados” [business unionism]. Ao mesmo tempo, uma
preocupação abrangente do capitalismo monopólico foi a realização da mais-valia, especialmente
devido à crescente escala de produção de mercadorias e à mecanização industrial em geral78. Esse
era o contexto o qual a família assalariada torna-se a norma, relativamente privilegiada, formada
pelos setores predominantemente brancos da classe trabalhadora, especialmente nos Estados Unidos.
Durante meados do século XX, o capital monopólico expandiu-se enormemente e
desenvolveu novos esforços de vendas79. Números como de Harry Braverman e Susan Strasser
destacam como o capitalismo monopólico, nas palavras do velho, transformou os lares na medida
em que “penetrou a vida cotidiana das famílias e da comunidade” 80 . A expansão do sistema
capitalista criou o mercado universal, onde o abastecimento das casas e a produção de alimentos –
eventualmente a diversão, o entretenimento, o cuidado dos idosos, a vestimenta, os serviços, etc –
foram crescentemente obtidos. Batya Weinbaum e Amy Bridges explicam que com a separação de
esferas e o estabelecimento da família assalariada, “a reprodução do trabalho nas sociedades
capitalistas requer que a produção e os serviços com fins de lucro estejam juntos e transformados
para atender determinadas necessidades sociais”. Nesse sentido, o capital busca transformar
qualitativamente o trabalho de reprodução social para auxiliar a realização da mais-valia,
adicionando “consumo (re)produtivo para mulheres” [consumption work for women] 81 .
Considerando a divisão sexual do trabalho doméstico, o aumento do tempo “livre” disponibilizado
para as mulheres na tarefa de reprodução social termina sendo um momento de realização de mais-
valia, servindo às necessidades do sistema capitalista, em face de mercados saturados, muito mais
que da satisfação das necessidades humanas. Fraser enfaiza que a “atividade de reprodução social é
absolutamente necessária para a existência do trabalho assalariado, da acumulação de mais-valia e
do funcionamento do sistema capitalista enquanto tal”82. Ainda assim, sob capitalismo monopólico,
o trabalho socialmente reprodutivo é ainda mais voltado para a realização da mais-valia do que para
atender as necessidades elementares da família.
Aqui ocorreu um deslocamento para a verdadeira subsunção do trabalho de reprodução
social, tornada possível pela institucionalização de setores relativamente privilegiados da família
assalariada no seio da classe trabalhadora durante um período 83. Claramente, para muitas famílias
negras dos Estados Unidos, essa condição nunca foi aplicada: “mulheres negras encontravam
empregos de baixos salários, criando suas crianças e limpando casas de famílias brancas às próprias
77 Fraser, “Crisis of Care?” 29–31.
78 Paul A. Baran and Paul M. Sweezy, Monopoly Capital (New York: Monthly Review Press, 1966).
79 Baran e Sweezy, Monopoly Capital; Michael Dawson, The Consumer Trap (Urbana: University of Illinois Press, 2003).
80Harry Braverman, Labor and Monopoly Capital (New York: Monthly Review Press, 1998), 188-191; Susan Strasser, Never
Done (New York: Pantheon, 1982), 242–312.
81Batya Weinbaum e Amy Bridges, “The Other Side of the Paycheck: Monopoly Capital and the Structure of
Consumption,” Monthly Review 28, no. 3 (1976): 96.
82 Fraser, “Behind Marx’s Hidden Abode,” 61.
83 Mohandesi e Teitelman, “Without Reserves,” 60–62.
custas” 84 . Os recursos que ajudaram sustentar as famílias assalariadas e os programas sociais
também se sustentavam sobre a “contínua expropriação das periferias (incluindo as periferias dentro
dos centros)”. As terras dos povos indígenas ao redor do mundo foram expropriadas para sustentar
“projetos de desenvolvimento”, tais como a construção de barragens. Além disso, por todo o sul
global, o capital se engajou na superexploração do trabalho e na expropriação do trabalho de
reprodução social, considerando a posição “semiproletarizada” de alguns lares, como das famílias
com acesso a pequenas parcelas de terra para plantar alimentos que lhes ajudava a alcançar suas
necessidades reprodutivas não atingidas com salários – essenciais para muitos sistemas de trabalho
ocupado por migrantes85.
O mais recente regime de reprodução social identificado por Fraser, a família de dois
provedores, emergiu no processo de “globalização do capitalismo financeiro”. Este período de
capital financeiro monopólico global e neoliberalismo é marcado pela privatização dos bens
públicos e pela erosão ou eliminação de muitos programas que sustentavam a reprodução social.
Isso significou a reincorporação e recrutamento das mulheres trabalhadores de setores relativamente
privilegiados à força de trabalho remunerada, em parte devido à inflação, à queda dos salários reais
das famílias trabalhadoras e o crescente endividamento doméstico, assim como às mudanças de
normas sociais inspiradas por movimentos feministas. Mulheres trabalhadoras menos privilegiadas,
que sempre tiveram que trabalhar, encontraram empregos adicionais em serviços e setores de
cuidado que se expandiram.
Mais horas de trabalho remunerado, contudo, não são suficientes para sustentar famílias,
gerando a perda de uma parte do tempo disponível para o trabalho doméstico. Fraser nota que a
consequência disso “é uma nova organização dual da reprodução social, mercantilizada por aqueles
que podem pagar por isso e privada para aqueles que não podem, na qual os segundos oferecem
trabalhos de cuidado por baixos salários para os primeiros”86. Ao invés de fechar a brecha, essa
situação cria um déficit, reminiscente de meados do século XIX. Mulheres trabalhadoras são
aprisionadas na dupla jornada, na qual se desdobram em dupla responsabilidade, o assalariamento e
o trabalho doméstico não remunerado87.
Esforços no sentido de fechar esta brecha foram pesadamente racializados, pois as
trabalhadoras imigrantes “carregam a atribuição do trabalho de reprodução e cuidado anteriormente
desempenhado por mulheres mais privilegiadas. Mas para isso, as imigrantes precisam transferir os
cuidados da sua própria família e comunidade para responsabilidade de outros, cuidadoras ainda
mais pobres, que por sua vez precisam fazer a mesma coisa”, continuamente através da hierarquia
global entre as nações88.
Todos estes processos estão “intensificando a contradição inerente do capitalismo entre a
produção econômica e a reprodução social”89. Em contraste com os regimes de reprodução social
anteriores, no qual o Estado foi usado como meio de reprodução social, o Estado está
decididamente aos pés do capital financeiro monopólico. A reprodução social está sendo desacatada

84 Fraser, “Crisis of Care?” 30–31.


85Immanuel Wallerstein, Historical Capitalism (London: Verso, 1983), 39; ver também Wilma Dunaway, ed., Gendered
Commodity (Stanford, CA: Stanford University Press, 2013); Joan Smith e Immanuel Wallerstein, eds., Creating and Transforming
Households (Cambridge: Cambridge University Press, 1992); Mies, Patriarchy and Accumulation on a World Scale, 112–44.
86 Fraser, “Crisis of Care?” 32–34.
87 Pat Armstrong e Hugh Armstrong, The Double Ghetto (Toronto: McClelland and Stewart, 1978).
88Johanna Brenner nota que essa divisão de classe e raça está firmemente entranhada nos Estados Unidos. Ela explica que “as
instâncias mais bem-exploradas de interseccionalidade de raça/gênero foram diferentes lugares das mulheres brancas e das mulheres
negras na reprodução social. Historicamente e hoje, enquanto na esfera privada doméstica (serviçais e suas empregadoras)” ou na
esfera pública (empregadas de hotéis, enfermeiras, trabalhadoras de cozinha, por um lado, e profissionais, supervisoras e pessoal
administrativo, por outro) mulheres negras realizam a maior parte dos trabalhos mais subordinados e sujos” (Brenner, Women and the
Politics of Class, 295). Sobre a brecha do cuidado, ver Nancy Folbre, The Invisible Heart (New York: New Press, 2001).
89 Fraser, “Crisis of Care?” 33–35.
de tal modo que está “sistematicamente expropriada das capacidades disponíveis para sustentar
conexões”. Por isso, Fraser destaca que “a fronteira dividindo a reprodução social da produção
econômica emergiu como o lugar mais importante e a estaca central da luta social” – deixando
aberta a questão do que poderia emergir da presente crise.

Metabolismos sociais e ecológicos

A lógica da acumulação de capital é aquela de um sistema que constantemente expropria suas


próprias condições sociais e naturais de reprodução, enquanto externaliza seus custos em tudo que está fora
do circuito do capital – incluindo suas próprias condições de produção90. Isso se manifesta em uma contínua
crise do cuidado no terreno da reprodução social e uma cada vez mais profunda fratura metabólica na
reprodução ecológica. Ademais, ambas adquirem dimensões cada vez mais globais-imperiais. Isso é
reconhecido por Fraser que fala sobre as “lutas das fronteiras” do capitalismo, implicando não apenas a
expropriação do trabalho de reprodução social em suas várias formas e períodos, mas também a “livre
apropriação da natureza”. Como ela explica:
Estruturalmente, o capitalismo assume – na verdade, inaugura – uma divisão nítida entre o terreno
da natureza, concebido como oferecimento livre, não produzido, de abastecimentos de matérias-
primas disponíveis para apropriação [expropriação], e um terreno econômico, entendido como a
esfera do valor, produzido por e para seres humanos... O capitalismo brutalmente separa os seres
humanos dos ritmos sazonais da natureza, circunscrevendo-os na indústria manufatureira, movida
a combustíveis fósseis, e a agricultura voltada para o lucro, expandida por fertilizantes químicos.
Introduz, dessa forma, o que Marx chamou de “fratura metabólica”, o sistema inaugura o que
agora tem sido apelidado como Antropoceno, uma era geológica inteiramente nova na qual a
atividade humana adquire impacto decisivo nos ecossistemas terrestres e na atmosfera91.
Essa luta em torno da reprodução social e ecológica – junto daquelas sobre a hegemonia
imperial global – conformam aquilo com o que Mészáros estava prioritariamente preocupado ao
levantar a questão do sistema social de reprodução metabólica. Hoje esse problema é trazido à tona
pela “ativação dos limites absolutos do capital”, com relação às fronteiras fundamentais do sistema:
o microcosmos doméstico, o sistema imperialista e o sistema terrestre. Como uma ordem
metabólica criativamente destrutiva, o sistema capitalista expropria suas próprias condições de
produção, externalizando os custos para o ambiente social e natural. Nesse sentido, progresso se
transforma em retrocesso. Tanto a teoria da reprodução social, como a ecologia marxista o
desvelaram por diferentes caminhos. Ambos apontaram para o fato de que, como Mészáros
enfatizou, nós precisamos substituir o atual sistema alienado de reprodução social metabólica por
um inteiramente distinto, regido pela finalidade da igualdade substantiva92. Uma visão similar foio
oferecida por Salleh, que argumentou que a crise da reprodução social e a fratura metabólica são
intrinsecamente relacionadas, e que as lutas das mulheres trabalhadoras no terreno da reprodução
social, quando unificadas com o que poderíamos chamar de um “proletariado ecológico” – uma
coalisão ampla e unificada da humanidade trabalhadora em revolta contra a degradação ecológica e
a exploração social – constitui a chave para mudança revolucionária construtiva. Aqui poderíamos
ver uma síntese do marxismo com as teorias revolucionárias feministas, centradas no “metabolismo
humano-natureza”93.

90Foster, Clark, e York, The Ecological Rift, 207–11; John Bellamy Foster, “The Age of Planetary Crisis,” Review of Radical
Political Economics 29, no. 4 (1997): 124–34
91Fraser, “Behind Marx’s Hidden Abode,” 63; John Bellamy Foster, “Marx’s Theory of Metabolic Rift,” American Journal of
Sociology 105, no. 2 (1999): 366–405.
92 Mészáros, Beyond Capital, 142–253; Foster, Clark, e York, The Ecological Rift, 401–22.
93 Salleh, “Ecological Debt, Embodied Debt” e “From Eco-Sufficiency to Global Justice,” 1–40, 291-312.
Conclusão

Na operação capitalista normal de produção, de acordo com Marx:


Todos os órgãos sensoriais são danificados pelas temperaturas artificialmente altas, pela atmosfera
carregada de poeira, pelo ruído ensurdecedor, para não mencionar o perigo à vida e os membros
entre as máquinas que são amontoadas uma ao lado da outra, um perigo que, com a mesma
regularidade das estações do ano, produz sua lista de mortos e feridos na batalha industrial. O uso
econômico dos meios sociais de produção, envelhecidos e pressionados nas caldeiras do sistema
fabril, se tornaram, nas mãos do capital, um roubo sistêmico do que é necessário para a vida dos
trabalhadores enquanto estes trabalham, ou seja, espaço, luz, ar, proteção contra perigos ou
insalubridades do processo produtivo, para não mencionar o roubo dos equipamentos para conforto
dos trabalhadores94.
Esse roubo da saúde dos trabalhadores homens e mulheres nos locais de trabalho
naturalmente transita para o território doméstico e para a reprodução social da força de trabalho.
Nos tempos de Marx, a pressão sobre os trabalhadores na indústria aniquilava o tempo existente
para reprodução da força de trabalho. Ao final do século XIX, contudo, o capital criou formalmente
as esferas separadas e alienadas da dona de casa e do provedor – estabelecendo com firmeza dois
terrenos, do trabalho doméstico não remunerado e do trabalho remunerado fora de casa – alterando
as condições destas duas esferas. Isso transformou a própria família sob o capitalismo monopólico,
resultando na expropriação relativa, não absoluta, do tempo de trabalho doméstico – e voltando a
dar lugar, no período neoliberal recente, a novas formas de expropriação absoluta. Junto disso, o
capital lida com sua primeira crise ecológica (a degradação do solo e o desflorestamento de rapina),
por meio de novas mediações alienadas (fertilizantes sintéticos), o que no longo prazo reaparecem
como aspectos cruciais de uma fratura metabólica global, que degrada ainda mais a natureza.
O que se requer, nestas circunstâncias, é uma luta que desafie a subjugação do capital sobre
o trabalho reprodutivo, sua colonização dos povos de todo planeta, e a degradação da própria
Terra95. Nesse sentido, se a luta revolucionária para o socialismo falhou no passado, é porque não
foi suficientemente revolucionária e não levou em conta o sistema capitalista na sua totalidade, com
suas formas particulares de reprodução social e metabólica. Não objetivou a reconstituição do
trabalho humano baseada em uma sociedade de produtores associados e um mundo de trabalho
criativo – visando a plenitude do potencial humano, regulando racionalmente o metabolismo junto à
natureza para proteger a Terra para as gerações futuras. Não abraçou a diversidade da vida humana
e do meio ambiente96. Em nosso tempo, o Antropoceno revolucionário, esse erro não pode se repetir.

94 Marx, Capital, vol. 1, 552–53.


95 Fraser, “Crisis of Care?” 36.
96Todas estas condições para o socialismo foram estipuladas por Marx. Ver Marx, Capital, vol. 3 (London: Penguin, 1981), 754, 911,
948–49; John Bellamy Foster, “The Meaning of Work in a Sustainable Society,” Monthly Review 69, no. 4 (September 2017): 1–14.

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