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Nos últimos anos, a notável ascensão da “teoria da reprodução social” dentro do marxismo e
das tradições revolucionárias feministas, identificado com os estudos de figuras como Johanna
Brenner, Heather Brown, Paresh Chattopadhyay, Silvia Federici, Susan Ferguson, Leopoldina
Fortunati, Nancy Fraser, Frigga Haug, David McNally, Maria Mies, Ariel Salleh, Lise Vogel e
Judith Whitehead – para nomear apenas algumas – alterou significativamente a forma como
olhamos o tratamento que Karl Marx (e Friedrich Engels) deram às mulheres e ao trabalho na Grã-
Bretanha do século XIX 2 . Três conclusões a respeito da análise de Marx estão hoje tão bem
estabelecidas por pesquisadoras contemporâneas, que podem ser tratadas como fatos definitivos: (1)
Marx realizou um exame extenso e detalhado da exploração das mulheres como “escravas
assalariadas” [“wage slaves”] no capitalismo industrial, o que foi crucial para sua crítica geral ao
capital; (2) sua apreciação das condições de trabalho doméstico das mulheres ou do trabalho
reprodutivo foi gravemente deficiente3; e (3) o que era central na perspectiva de Marx (e Engels),
em meados do século XIX, era a severa crise e a ameaça de “dissolução” da família da classe
trabalhadora – em face do que o Estado capitalista, no fim do XIX, estaria compelido a responder
com uma ideologia de proteção, forçando as mulheres em grande medida a voltarem para dentro de
casa4.
1
Artigo publicado originalmente na revista Monthly Review de janeiro de 2018. Traduzido por
Joana Salém Vasconcelos para a Revista Mouro n. 13 (São Paulo, 2018).
2Ver especialmente, Silvia Federici, Revolution at Point Zero (Oakland, CA: PM, 2012), “Notes on Gender in Marx’s Capital,”
Continental Thought and Theory 1, no. 4 (2017): 19–37; Susan Ferguson e David McNally, “Capital, Labour-Power and Gender or
Relations: Introduction to the Historical Materialism Edition,” in Lise Vogel, Marxism and the Oppression of Women (Chicago:
Haymarket, 2013), xvii–xl; Shahrzad Mojab, ed., Marxism and Feminism (London: Zed, 2015), especialmente o ensaio de Frigga
Haug e Judith Whitehead; Tithi Bhattacharya, ed., Social Reproduction Theory (London: Pluto, 2017) — que inclui trabalhos de
Ferguson, Nancy Fraser, McNally, and Vogel; Heather A. Brown, Marx on Gender and the Family (Chicago: Haymarket, 2012);
Paresh Chattopadhyay, “Women’s Labor Under Capitalism and Marx,” Bulletin of Concerned Asian Scholars 31, no. 4 (1999): 67–75;
Leopoldina Fortunati, The Arcane of Reproduction (Brooklyn: Autonomedia, 1995); Maria Mies, Patriarchy and Accumulation on a
World Scale (London: Zed, 2014); Johanna Brenner, Women and the Politics of Class (New York: Monthly Review Press, 2000);
Ariel Salleh, “Ecological Debt, Embodied Debt” e “From Eco-Sufficiency to Global Justice,” in Salleh, ed., Eco-Sufficiency and
Global Justice (London: Pluto, 2009).
3 O próprio termo “trabalho reprodutivo” levanta questões complexas dentro da teoria marxista, segundo a economia política clássica,
que frequentemente distingue trabalho [work] de trabalho socialmente necessário [social labor], ambos vistos diretamente como
produtores de valores de uso, a partir do trabalho assalariado (e mais especificamente, trabalhos produtivos geradores de valor) sob o
modo capitalista de produção de mercadorias, que promove o valor de troca e a acumulação de capital como seu objeto alienado (ver
Karl Marx, Capital, vol. 1 [London: Penguin, 1976], 998–99). Aqui Engels adiciona uma nota útil a O Capital, vol. 1 (deixada de
lado na edição da Penguin), na qual afirma: “a língua inglesa tem duas expressões diferentes para estes dois aspectos diferentes do
trabalho, no processo de trabalho simples, o processo de produção de valores de uso, usa-se work. No processo de criação de valor
[de troca], usa-se labor, entendido em termos estritamente econômicos”. Ver Karl Marx e Frederick Engels, Collected Works, vol. 35
(New York: International Publishers, 1975),196. Work em seu sentido geral, para Marx, transcende inteiramente o sistema capitalista,
assim como o conceito de social labor (isto é, trabalho em geral, diferente de uma forma histórica específica de produção capitalista)
– ambos relacionados com a produção de valores de uso e a primeira mediação das necessidades humanas. Quando Marx discute o
“trabalho familiar” ou o trabalho doméstico reprodutivo, ele tem em mente um tipo específico de trabalho socialmente necessário
[social labor], entendido como “trabalho reprodutivo”, que, sendo familiar, não é remunerado e é externo ao processo de valorização
do capital (ver Marx, Capital, vol. 1, 517-18). A maior parte de O Capital, contudo, se debruça não sobre a análise do trabalho
socialmente necessário em seus variados aspectos e formas históricas, mas sim à análise da exploração do trabalho no contexto da
produção capitalista de mercadorias. Esse trabalho assalariado gerador de valor, então, precisa ser compreendido como uma forma
histórica específica do trabalho em geral [work in general] e do trabalho socialmente necessário [social labor] (incluindo o trabalho
familiar), que transcende margens estreitas da valorização do capital e são externos a esta. Não obstante, com o desenvolvimento
subsequente do sistema capitalista, como podemos ver, até mesmo o trabalho socialmente necessário da reprodução da família torna-
se crescentemente um apêndice da produção de mercadorias em seu conjunto.
4O conceito de “dissolução da família” foi fundamental para a obra de Marx e Engels desde o começo. Ver Marx e Engels, Collected
Works, vol. 5, 180. A ideia de “dissolução da família” em termos éticos, relacionada com educação, foi primeiramente introduzido
por Hegel. Mas o conceito tinha um significado totalmente diferente do desenvolvido pela crítica materialista de Marx e Engels,
como a análise a seguir demonstra. Ver G. W. F. Hegel, The Philosophy of Right (Oxford: Oxford University Press, 1952), 117–19.
Apesar de todos estes pontos estarem agora conclusivamente estabelecidos, ainda faz falta
uma síntese ampla, que integre tais resultados entre si e também àquilo que aprendemos com
décadas de intensa pesquisa histórica sobre mulheres e trabalho na revolução industrial. Ao
examinar as especificidades históricas das condições das mulheres na Inglaterra da primeira metade
do século XIX, podemos compreender melhor os pressupostos a respeito de gênero, família e
trabalho que influenciaram a escrita de A condição da classe trabalhadora na Inglaterra, de Engels,
e de O Capital, de Marx5. Essa síntese lançaria luz sobre problemas difíceis, tais como: (1) Por que
Marx não estendeu sua crítica ao trabalho reprodutivo doméstico, o que em certas passagens
pareceu estar prestes a fazer?; e (2) Se seguimos o argumento de Marx de que o capital nega valor
(de troca) ao trabalho doméstico e às atividades de subsistência, seria possível falar em
expropriação do trabalho reprodutivo?6
Além disso, considerando que o trabalho reprodutivo das mulheres e a natureza foram
tratados pela economia política clássica, e também por Marx em sua crítica do capital, como “um
presente gratuito… ao capital”, uma síntese histórica e teórica do tipo que propomos abriria uma
concepção mais ampla do roubo de ambos, o trabalho reprodutivo das mulheres e a natureza – como
terrenos externos ao circuito de valorização do capital, na sua compreensão ideal7. Essa análise nos
permite entender mais plenamente as conexões entre feminismo da reprodução social e teoria da
reprodução socioecológica, associada particularmente com a teoria da fratura metabólica de Marx
[Marx’s theory of metabolic rift], na qual ciclos e fluxos naturais são perturbados ou até
interrompidos e espécies são extintas.
Por último, o assunto crucial de hoje é como o capital, enquanto sistema, se engaja na
destruição criativa da totalidade das condições sociais e ecológicas que sustentam a existência
humana – incluindo a família, a constituição de seres humanos (identidade, corpo), a cultura, a
economia e o meio ambiente – e como isso torna a expansão revolucionária da liberdade humana
pela reconstituição da sociedade, no limite, uma necessidade absoluta para as gerações do presente e
do futuro.
9Maxine Berg, “What Difference Did Women’s Work Make to the Industrial Revolution?” History Workshop 35 (1993): 34; Melanie
Reynolds, Infant Mortality and Working-Class Childcare (London: Macmillan, 2016), 77.
10Berg, “What Difference Did Women’s Work Make,” 29; Maxine Berg, “Women’s Work and the Industrial Revolution,” ReFresh 12
(1991): 3.
11 Joyce Burnette, “Women Workers in the British Industrial Revolution,” Economic History Association, http://eh.net, November 12,
2017; Sally Alexander, Becoming a Woman (New York: New York University Press, 1995), 7. Alguns estudos anteriores, como o
trabalho de Louise Tilly e Joan Scott, insistiam que as mulheres casadas eram “uma pequena proporção de todas as operárias”, e que
“àquela altura, nos anos 1870”, apenas “em torno de um terço das mulheres empregadas na indústria têxtil britânica eram casadas ou
viúvas”. Contudo, nos anos 1870 não foi o período do emprego feminino da revolução industrial, mas consideravelmente além da
introdução de um enorme número de crianças no total de “mulheres trabalhadoras”, distorcendo o resultado geral. Pesquisas mais
recentes foram além dos limites dos dados do censo, enfatizando que o grande número de mulheres casadas e viúvas eram
empregados em todos os níveis da força de trabalho industrial – como operárias e outras funções. Em algumas regiões, mais de dois
terços das mulheres casadas e viúvas eram assalariadas. Ver Louise A. Tilly e Joan W. Scott, Women, Work and Family (New York:
Holt, Winehart and Winston, 1978), 124; Berg, “What Difference Did Women’s Work Make,” 37–39
12 Burnette, “Women Workers in the British Industrial Revolution.”
13Em sua perspicaz introdução para Marxism and the Oppression of Women, de Lise Vogel, Ferguson e McNally afirmaram
incorretamente que a “as taxas de participação feminina no emprego estabilizaram em torno de 25% ao longo do século XIX”. A
única fonte para este dado é um artigo escrito por Jane Humphries in the Cambridge Journal of Economics em 1977, no qual
Humphries apresenta este número e cita como fonte um livro de Geoffrey Best (1972), Mid-Victorian Britain, no qual o mesmo
número aparece. Tudo indica que a fonte deste dado é um artigo de Charles Booth do Journal of the Royal Statistical Society de 1886.
Os números de Booth são desenhados a partir do censo. Porém, se soube por pesquisas históricas que estão largament subestimados a
esse respeito, refletindo a subnotificação de mulheres empregadas durante a revolução industrial. Isso é significativo para o presente
argumento, uma vez que Humphries defende que Marx estava errado sobre a ameaça de dissolução da família proletária associada
com a alta participação laboral de todos os seus membros – sustentando, ao contrário, que ao redor e três quartos das mulheres
terço ou metade dos salários dos homens), elas eram preferencialmente contratadas pela nova
indústria, como operadoras de fábrica e dos setores protoindustriais14. Na realidade, durante um
período, os salários das mulheres eram tão baixos que seria mais barato pagá-las para puxar
barcaças ao longo dos canais do que usar cavalos, devido aos custos de manutenção dos animais15.
Nos tempos de Marx, o fato de ambos os sexos da família proletária serem igualmente parte
da força de trabalho era algo dado, e normalmente não era considerado algo que precisasse ser
estabelecido. Quando o assunto surgiu, teve mais a ver com as demandas da época para forçar as
mulheres trabalhadoras para fora da indústria. Por isso, John Stuart Mill, escrevendo no Examiner
em 1832, sustentou que “devíamos desejar ver uma lei que proibisse ao mesmo tempo o emprego de
crianças menores de 14 anos e mulheres de qualquer idade nas fábricas”. Marx e Engels sempre se
opuseram fortemente às proibições do emprego de mulheres adultas, ideia não obstante apoiada por
parte da classe trabalhadora masculina16.
Embora a realidade generalizada do emprego das mulheres na indústria não estivesse posta
em dúvida nos tempos de Marx, ele sim examinou cuidadosamente, com sua usual meticulosidade,
as estatísticas disponíveis sobre divisões de gênero dentro das fábricas. Baseado no censo de 1861
para Inglaterra e País de Gales, ele mapeou as classes altas; os trabalhadores urbanos de ofícios
especializados; os comerciantes; os trabalhadores “improdutivos” de maneira geral (destacando as
aspas para indicar que se tratava de um critério capitalista), “grupos como membros do governo,
padres, advogados, soldados, etc”; os muito velhos ou muito jovens para trabalhar; e a parte
marginalizada da população17. Ele era foi capaz de fazer estimativas aproximadas da divisão de
gênero da classe trabalhadora entre aqueles empregados como operários no centro da indústria ou
como serviçais domésticos – ambos cruciais na proletarização. Olhando para o setor têxtil, de longe
o maior da manufatura, ele mostrou que somente 27,6% dos trabalhadores eram homens adultos.
(Embora não indicado diretamente por Marx, o censo de 1861 revelava que as mulheres
trabalhadoras predominavam enormemente sobre os homens na indústria têxtil em qualquer idade,
inclusive crianças)18. Da mesma forma, entre empregados domésticos apenas 11,4% eram homens
britânicas durante o século XIX (incluindo todas as classes, de regiões rurais e urbanas) estavam fora do assalariamento – conclusão
que hoje os historiadores mostraram estar incorreta, particularmente no que se refere às mulheres da classe trabalhadora. Ver
Ferguson and McNally, “Capital, Labour-Power, and Gender-Relations,” in Vogel, Marxism and the Oppression of Women, xxx–xxxi;
Jane Humphries, “Class Struggle and the Persistence of the Working-Class Family,” Cambridge Journal of Economics 1, no. 3
(1977): 251; Geoffrey Best, Mid-Victorian Britain (New York: Schoken, 1972), 100; Alexander, Becoming a Woman, 7–9; Edward
Higgs e Amanda Wilkinson, “Women Occupations and Work in Victorian Census Revisited,” History Workshop 81 (2016): 17–38.
14 Berg, “Women’s Work and the Industrial Revolution,” 3.
15 Marx, Capital, vol. 1, 517.
16John Stuart Mill, “Employment of Children in Manufactories,” Examiner, January 29, 1832, 67–68; Karl Marx, On the First
International (New York: McGraw-Hill, 1973), 93. Sob a influência de Harriet Taylor, Mill posteriormente alterou sua visão sobre a
exclusão das mulheres do emprego na indústria manifatureira e enfatizou seu direito de competir no mercado de trabalho. Ver John
Stuart Mill, Three Essays (Oxford: Oxford University, 1975), 458.
17 Na nossa explicação, elaboramos aproximadamente sobre o método de Marx de desglosar vários grupos dentro dos dados, para
focar nos setores proletários, baseados no exame do censo de 1861 ao qual ele se referia. Usando este censo, Marx estava
prioritariamente preocupado com duas coisas: a composição de gênero da força de trabalho e o elevado número de trabalhadores
domésticos. A chave deste método parece ter sido enfocar em 3 de 6 “classes” de ocupações/condições do censo: classes da
agricultura, da indústria e do serviço doméstico, excluindo os “profissionais”, o comércio e os “indefinidos e não-produtivos”, na
terminologia do censo. Mineração era uma subcategoria de Indústria. Mineração, como a agricultura, era uma atividade
majoritariamente rural, separada do proletariado industrial. Marx pontuou, baseado no censo de 1861, que o número de trabalhadores
domésticos (a maioria mulher), excedia o de trabalhadores têxteis (a maioria mulher) e os mineiros juntos. (Census of England and
Wales for the Year 1861, Population Tables, vol. 2 [London: Her Majesty’s Stationary Office, 1863], Table XVIII, xl; Marx, Capital,
vol. 1, 575). Ver também B. R. Mitchell, Abstract of British Historical Statistics (Cambridge: Cambridge University Press, 1962),
60–61.
18Nem todos os números de Marx coincidem com os dados publicados no censo de 1861, mas os resultados são extremamente
próximos, e as diferenças são tão irrisórias que efetivamente não interferem nas suas conclusões. Por exemplo, os números de Marx
para os trabalhadores domésticos masculinos (sobre o que ele se refere a homens adultos) é 11,4% de todos os trabalhadores
domésticos, enquanto o censo, como publicado em 1863, reporta 12,5%. A única área que parece apresentar notável diferença é a
designação das diferenças de idade entre crianças e adultos. Nos dados de Marx, a linha de corte de idade da indústria têxtil era 13
anos, enquanto no censo de 1861, como publicado em 1863, o dado está dividido entre acima e abaixo de 20 anos. Isso sugere que
adultos. Ao contrário, na indústria metalúrgica, um setor consideravelmente menor, mulheres eram
somente 8% do total. Os números de Marx sugeriam que em geral a força de trabalho nas indústrias
e manufaturas dos centros urbanos eram predominantemente femininas. Ademais, isso eram
também verdadeiro para os serviços domésticos (considerando os trabalhadores improdutivos na
contabilidade capitalista, remunerados com parte da mais-valia), quem claramente constituiu parte
da força de trabalho proletarizada. Ao enfatizar a severa opressão das mulheres jovens nos serviços
domésticos, Marx observou, irritado, que se referiam a elas no senso comum como “pequenas
escravas” - indicando que isso era muito próximo da verdade19.
Apesar de os censos Vitorianos serem criticados por pesquisadores contemporâneos por
geralmente subestimar o nível de emprego das mulheres e exagerar o número total de empregados
domésticos, nada disso enfraqueceu substantivamente as principais conclusões de Marx, que
apontavam: (1) o maior número de mulheres do que homens empregados nas indústrias urbanas,
excluindo negócios e comércio; (2) o maior nível de emprego de mulheres na indústria têxtil, que
era o setor mais importante da revolução industrial (liderando como fonte de extração de mais-
valia); (3) a enorme proporção de trabalhadores dedicados a serviços domésticos nas casas
prósperas, nas quais as mulheres serviçais superavam os homens expressivamente; e (4) a condição
análoga à escravidão imposta a estas empregadas domésticas, que normalmente trabalhavam 18
horas por dia em condições degradantes e quase sem remuneração20.
Como a literatura recente confirmou, Marx dedicou porções substanciais de O Capital para
descrever a condição brutal de trabalho das mulheres nas fábricas, que ele percebia como mais
exploradas que os homens. Mulheres trabalhadoras predominavam na indústria doméstica moderna,
também frequentemente empregadas em “oficinas femininas de costura” [mistress’ houses], com o
que Marx associava ao que chamou de porção “inerte” do exército industrial de reserva, por causa
da precariedade do seu trabalho21. A indústria doméstica moderna (como “moderna manufatura” ou
moderno artesanato) era majoritariamente desregulamentado, mesmo depois da aprovação das Leis
das Fábricas (Factory Acts) e da Lei da Jornada de Dez Horas (Ten-Hour-Day Bill). Apontando os
“horrores” desse setor da produção, Marx destacava a morte de uma jovem de 20 anos, Mary Anne
Walkley, empregada de um dos melhores estabelecimentos de costureiras ou “oficinas femininas de
costura” [mistress’ houses]. Ela foi forçada a trabalhar continuamente durante 26,5 horas em uma
sala lotada com outras 30 jovens mulheres, produzindo roupas para um baile de honra à nova
Princesa de Gales. Havia somente um terço do ar necessário em metros cúbicos por pessoa – o que
não era incomum na época. Observando os dados de 600 mulheres tratadas no Nottingham General
Dispensary, todas elas rendeiras e a maioria entre 17 e 24 anos, Marx descobriu que o número das
pacientes com tuberculose cresceu de modo fenomenal em menos de uma década, de uma em 45
trabalhadoras em 1952 para uma a cada oito em 1861 – uma medida da rapidez com que as
condições de trabalho se degradaram, comprometendo severamente a saúde das trabalhadoras 22.
Considerando que os trabalhadores homens (normalmente maridos e pais) eram, em geral,
incapazes de ganhar salários suficientes para alcançar as necessidades de subsistência da família
(incluindo a reprodução social da força de trabalho) e que as trabalhadoras mulheres e adultas eram
frequentemente pagas com um terço dos salários dos homens, o capitalismo de meados do século
XIX, como enfatizou Marx, estava crescentemente empurrando a entrada de todos os membros da
família proletária no mercado de trabalho, simplesmente para garantir-lhes a sobrevivência: “no
Marx estava usando uma fonte ligeiramente diferente, talvez preliminar ou uma versão resumida do censo – ou que o censo foi
revisado. (Census of England and Wales, Table XVIII, xl).
19Marx, Capital, vol. 1, 574–75; “Occupations: Census Returns for 1851, 1861 and 1871,” Victorian Web, http://victorianweb.org;
Brown, Marx on Gender and the Family, 77. O censo vitoriano não registra situação de emprego e desemprego, o que
inevitavelmente distorce os dados.
20 Marx, Capital, vol. 1, 575; Deborah Valenze, The First Industrial Woman (Oxford: Oxford University Press, 1995), 171–80.
21 Marx, Capital, vol. 1, 796–97.
22 Marx, Capital, vol. 1, 364–66, 595–99.
lugar dos homens que foram substituídos pelas máquinas, a fábrica poderá empregar, talvez, três
crianças e uma mulher!… [consequentemente] quatro vezes mais trabalhadores vivos são usados a
mais do que antes, para obter a subsistência de uma única família proletária”23. A consequência era
a abolição do tempo livre (inclusive para consumir e dormir) para todos os membros de uma família,
que frequentemente trabalhava seis ou sete dias por semana, em geral 12 ou mais horas por dia. Tais
condições contribuiam para a quase completa desintegração da família proletária.
Essa situação era especialmente evidente para as mulheres, quem, na época como hoje, eram
consideradas as principais cuidadoras da casa. Segundo uma contabilidade do período, informada
por um inspetor de fábrica em 1844 como um caso típico, uma operária casada tinha:
Meia hora para amamentar sua filha e levá-la para o berçário; uma hora para deveres domésticos
antes de sair de casa; meia hora para transportar-se até a fábrica; 12 horas efetivas de trabalho;
uma hora e meia para refeições; meia hora para retornar para casa a noite; uma hora e meia para
mais deveres domésticos e preparar-se para dormir, restando seis horas e meia para recreação,
convivência com amigos e sono; e no inverno, quando é mais escuro, meia hora extra até a fábrica
e mais meia hora no caminho de volta para casa24.
Em meados do século XIX, como Margaret Hewitt observou em Wives and Mothers in
Victorian Industry, “as operárias casadas saiam de casa antes das seis da manhã até seis da noite –
às vezes mais tarde se estivesse trabalhando para um patrão inescrupuloso”. O efeito nas crianças
era horrendo. “‘O que eles fazem’, perguntava Charles Dickens ao reitor de uma paróquia de uma
grande cidade inglesa, ‘o que eles fazem com as crianças das mães que trabalham nas fábricas?’.
‘Oh’, replicou o clérigo, ‘elas as trazem para mim e eu cuido delas no cemitério da Igreja!’”25.
Em alguns locais, a taxa de mortalidade infantil de crianças menores de 2 anos com mães
operárias era registrada em 50% ou mais26. Nos distritos industriais maiores, como Manchester,
Stockport e Bradford, como Marx explicou baseado no Sexto Relatório de Saúde Pública (1864),
possuíam taxas de mortalidade infantil mais altas que 25% para crianças menores de um ano “as
maiores taxas de morte… além de causas específicas” eram “principalmente devido ao emprego das
mães longe de suas casas e a negligência e os maus tratos gerados por sua ausência”, incluindo
frequentes envenenamentos de crianças com opiáceos 27 . Em Lancashire em meados de 1850, a
porção de operárias casadas com filhos menores de um ano era em média 21%. De acordo com o
censo de 1851, 50% das mulheres em seu auge (muitas das quais eram mães) não tinham maridos
para sustentá-las e, portanto, eram parte ativa da força de trabalho. Como resultado, mesmo na
segunda metade do século XIX, quando as condições melhoraram um pouco, a taxa geral de
mortalidade infantil nos distritos industriais cresceu de 19% para 25%. A amamentação de bebês era
inviável para a classe trabalhadora e o leite de vaca tinha preço proibitivo, além de estar
frequentemente contaminado. No lugar, bebês da classe trabalhadora eram alimentados com uma
papa de pão amassado com água e às vezes adoçado com açúcar. Como Hewitt escreveu (e Marx
notou), “para acalmar os gritos angustiados dos bebês”, que estavam subnutridos e sofrendo com
uma dieta normalmente inapropriada, “enfermeiras tinham o hábito de administrar gim com menta e
algumas outras drogas, como sedativos [Godfrey’s Cordial, Atkinson’s Royal Infants’Preservative e
23Karl Marx, Wage-Labour and Capital/Value, Price and Profit (New York: International Publishers, 1935), 46–47 (Wage Labour
and Capital).
24 Margaret Hewitt, Wives and Mothers in Victorian Industry (London: Rockliff, 1958), 22.
25Rev. J. Elder Cumming, “On the Neglect of Infants in Large Towns,” Transactions of the National Association for the Promotion of
Social Science (1874): 723–24; Hewitt, Wives and Mothers in Victorian Industry, 29, 99.
26 Hewitt, Wives and Mothers in Victorian Industry, 106–10.
27 Marx, Capital, vol. 1, 520–22
Mrs. Wilkinson’s Soothing Syrup]”, junto com ópio (ou láudano ou morfina), que era o “ingrediente
para tudo”28.
O precário cuidado dos bebês se expressava em uma dieta deficiente e na pobreza absoluta
da classe trabalhadora urbana, tanto quanto a quase-completa eliminação do tempo necessário para
as tarefas de recuperação e reprodução social no interior das famílias proletárias. A dieta da classe
trabalhadora consistia, basicamente, de “chá e pão, pão e chá”, às vezes suplementados por batatas e
alguns condimentos. Leite e carne de qualquer tipo eram raridades, assim como a maioria dos
vegetais. Trabalhadores adultos comiam em média cerca de 4,5 quilos de pão por semana, todo ele
comprado de padarias, e todos gravemente adulterados29. As instalações e utensílios de cozinha nas
casas eram limitados e o combustível era caro. A água, com frequência extremamente poluída, tinha
que sere carregada para casa por longas distâncias, quase sempre por mulheres. Não existiam
instalações sanitárias. As doenças estavam espalhadas e as epidemias eram frequentes. Os
trabalhadores nos centros industriais viviam amontoados em quartos de aluguel e cortiços, muitas
vezes em um único quarto com os mais simplórios móveis, uma cama, uma mesa e algumas
cadeiras30. Mais significativo era a expropriação de quase todo tempo necessário para reprodução
social da família proletária, até o nível mais baixo da existência – uma situação que dificilmente
poderia prosseguir. “As mulheres que trabalhavam 14 horas ao dia nas fábricas de Midland durante
1830”, escreveu Caroline Davidson sombriamente, em A Women Work Is Never Done, “poderia
sobreviver sem muito serviço doméstico. Elas e suas famílias existiam de pão de trigo e batatas,
deglutidos com chá e café e viviam, quase sempre, em casas imundas”31.
As famílias da classe trabalhadora, Marx e Engels observaram, estavam em um estado e
severa crise e “dissolução”, com a velha estrutura da família patriarcal em colapso em meio à
falência das casas como centros de produção, seguidas de uma massiva entrada das mulheres como
força de trabalho. A esperança entre os primeiros ingleses radicais era que uma nova estrutura
familiar mais igualitária, baseada na equidade entre sexos, iria emergir junto com a luta da classe
trabalhadora, uma aspiração política que apareceu no movimento Owenista [seguidores de Robert
Owen], mas em grande medida subsistiu até a era Cartista32. Enquanto isso, porém, estava claro que
a família proletária precisava de proteção, dada a mórbida condição com a qual se confrontavam.
Quando eventualmente alguma proteção era fornecida, nos termos da burguesia, pela legislação
fabril e a jornada de 10 horas, a grande questão para Marx continuava sendo a auto-organização dos
trabalhadores e a igualdade no local de trabalho, que constituiriam as sementes da nova sociedade.
Como escreveu Marx em 1880, “a emancipação da classe produtora envolve todos os sres humanos
sem distinção de sexo e raça”33. Uma das razões para o silêncio de Marx a respeito do trabalho
reprodutivo das mulheres nas casas, Federici sugere, era a “quase ausência” de tal trabalho
reprodutivo “nas casas proletárias no tempo em que Marx escrevia, considerando que as famílias
inteiras estavam empregadas nas fábricas de sol a sol”. E ela acrescento: “Marx descreveu a
condição do proletariado industrial do seu tempo, tal como ele o viu, e o trabalho doméstico das
mulheres era dificilmente parte disso… Embora desde a primeira fase do desenvolvimento
28Hewitt, Wives and Mothers in Victorian Industry, 102, 136–37, 141; Reynolds, Infant Mortality and Working-Class Child Care,
1850–1899, 2–3, 74, 146.
29 AnthonyS. Wohl, Endangered Lives (Cambridge, MA: Harvard University Press, 1983): 50–52; John Bellamy Foster, “Marx as a
Food Theorist,” Monthly Review 68, no. 7 (December 2016): 1–8.
30Ivy Pinchbeck, Women Workers and the Industrial Revolution, 1750–1850 (London: Cass, 1969), 310; Bridget Hill, Women, Work,
and Sexual Politics in Eighteenth Century England (London: Blackwell, 1989), 105–15. Sobre epidemias e epidemiologia social da
revolução industrial, ver The Second Sickness (New York: Free Press, 1983).
31 Caroline Davidson, A Woman’s Work Is Never Done (London: Chatto and Windus, 1982), 184.
32Marx, Capital, vol. 1, 620–21; Ferguson and McNally, xxix–xxx; Brown, Marx on Gender and the Family, 95–96; Chattopadhyay,
“Women’s Labor Under Capitalism and Marx,” 69, 74; Fortunati, The Arcane of Reproduction, 91, 170–71. Sobre Owenismo e as
lutas das mulheres trabalhadoras, ver Barbara Taylor, Eve and the New Jerusalem (New York: Pantheon, 1983). A destruição da
família proletária já era uma tese central adotada em 1845 por Engels, The Condition of the Working Class in England, 140.
33 Marx and Engels, Collected Works, vol. 24, 340. Citação transcrita de Lise Vogel, Marxism and the Oppression of Women, 75.
capitalista, e especialmente no período mercantilista, o trabalho reprodutivo era formalmente
subsumido à acumulação de capital, foi apenas no fim do século XIX que o trabalho doméstico
emergiu como a força motriz da reprodução da força de trabalho industrial” 34 . Comentando o
fechamento de fábricas têxteis nos Estados Unidos durante a guerra civil, Marx observou que aquilo
ao menos tinha um efeito positivo para as mulheres, que agora “teriam lazer suficient [isto é, tempo
fora da fábrica] para dar o peito aos seus bebês, ao invés de envenená-los com Godfrey’s Cordial
[um opiáceo]”35. Para Marx, “o coletivo de trabalhadores”, que
é composto de indivíduos de ambos os sexos e todas as idades precisa, sob condições apropriadas,
tornar-se a fonte do desenvolvimento humano, muito embora na forma espontânea e brutal de
desenvolvimento capitalista o sistema funciona na direção oposta e torna-se uma fonte pestilenta
de corrupção e escravidão, uma vez que o trabalhador passa a existir para o processo de produção
e não o processo de produção para o trabalhador.36
A maioria destas condições seriam reduzidas nos anos seguintes. O período entre o fim do
século XVIII e meados do século XIX provou ser uma “grande descontinuidade” no que concerne
ao papel do trabalho das mulheres, diferente tanto da produção anterior, baseada no trabalho
doméstico, quanto do posterior regime de “esferas separadas” da era Vitoriana. A proporção das
assim chamadas “mulheres ocupadas” caiu para média de 0,7% ao ano na segunda metade do século
XIX. “De níveis recordes altos como 67,5% de mulheres casadas trabalhando em Cardington nos
anos 1780, a taxa de participação de mulheres casadas no mercado de trabalho em todo país caiu
para 10% em 1911”37. Muito dessa mudança se deveu à legislação de fábrica, à jornada de 10 horas,
ao aumento salarial, e à ideologia agora oficialmente burguesa do provedor masculino e da mulher
dona de casa. Esta última serviu para definir estritamente os papeis de gênero na nova era do
capitalismo de monopólio, na qual a mais-valia relativa tornou-se dominante, em contraposição à
mais-valia absoluta38. Tendo enfrentado “obstáculos naturais insuperáveis” na sua aniquilação do
tempo do conjunto da família proletária, o capital subsequentemente introduziu um novo regime de
salário familiar, no qual o homem adulto, sozinho, poderia em teoria ganhar o suficiente para
sustentar sua casa inteira. Esse salário foi mantido baixo, contudo, pelo crescimento do trabalho
doméstico feminino de reprodução social, que funcionava como um presente gratuito ao capital.
Mais além, o salário familiar somente foi aplicável para homens provedores [“bradwinners”] em
um setor privilegiado da classe trabalhadora39. Já em 1884 na Origem da Família, da Propriedade
Privada e do Estado, Engels argumentou que a emancipação feminina requeria um novo impulso
para libertar as mulheres do confinamento doméstico e a “reintrodução” revolucionária das
mulheres no mercado de trabalho, para romper o novo patriarcado burguês e estabelecer condições
para uma família mais igualitária.
Hoje, na grande maioria dos casos, o homem precisa ser o provedor, o ganha-pão da família… e
isso lhe fornecesse uma posição dominante que não requer nenhum privilégio legal. Na família, ele
é o burguês; a esposa representa o proletariado. O caráter peculiar da dominação masculina sobre
as mulheres na família moderna, e a necessidade, tanto quanto a maneira, de estabelecimento da
verdadeira igualdade social entre ambos será trazido a um total alívio somente quando ambos
estejam completamente iguais perante a lei. Ficará então evidente que a primeira premissa para a
emancipação da mulher é a reintrodução de todo o sexo feminino na indústria pública; e que isso
34 Federici, Revolution at Point Zero, 94; Federici, “Notes on Gender in Marx’s Capital,” 27.
35 Marx, Capital, vol. 1, 517-18.
36 Marx, Capital, vol. 1, 621.
37Sara Horrell e Jane Humphries, “Women’s Labour Force Participation and the Transition to the Male Breadwinner Family,”
Economic History Review 48, no. 1 (1995): 93; Berg, “Women’s Work and the Industrial Revolution,” 4.
38 Federici, Caliban and the Witch, 98–99.
39 Marx, Capital, vol. 1, 599; Brown, Marx on Gender and the Family, 90.
novamente demanda que o caráter possuído pela família individual de ser a unidade econômica da
sociedade precisa ser abolido [itálico adicionado]40.
40 Frederick Engels, The Origin of the Family, Private Property, and the State (Moscow: Progress Publishers, 1948), 74.
41 Paul M. Sweezy, The Theory of Capitalist Development (New York: Monthly Review, 1970), 11–20.
42 Marx, On the First International, 10; Michael A. Lebowitz, Beyond Capital (New York: St. Martin’s, 1992).
43 Por exemplo, Marx escreveu: “Já que algumas funções familiares, como cuidados de maternidade e amamentação de crianças, não
podem ser inteiramente suprimidas, as mães que foram confiscadas pelo capital devem encontrar alguma forma de substitutos.
Trabalhos domésticos como costurar e remendar, precisam ser substituídos pela compra de artigos prontos. Consequentemente, a
redução do tempo de trabalho doméstico é acompanhada pelo aumento do gasto em dinheiro fora de casa. Ver Marx, Capital, vol. 1,
518. Ver também Federici, “Notes on Gender in Marx’s Capital,” 26–27; Ferguson e McNally, “Capital, Labour-Power and Gender-
Relations,” xxvii–xxviii. Estas afirmações na análise de Marx estão quase invariavelmente nas notas de rodapé ou em palestras para
trabalhadores, como Wage Labour and Capital. Isso levou à crítica de que ele teria dado pouca importância ao assunto. No entanto, a
crítica dialética de Marx sobre estes aspectos, em termos lógicos, seria elaborada posteriormente, junto com a determinação concreta
dos salários – o que nunca chegou a ser alcançado. Sua prática, contudo, foi sempre anotar tais pontos em notas de rodapé, como
forma de levantar questões mais concretas depois. Ver Kenneth Lapides, Marx’s Wage Theory in Historical Perspective (Tucson:
Wheatmark, 2008), 210–35.
desse aspecto e suas implicações na obra de Marx, ver G. M .E. de Ste. Croix, The Class Struggle in the Ancient Greek
World (London: Duckworth, 1981), 98–111.
57
A noção de capitalismo como sistema de roubo do solo foi introduzida por Justus von Liebig e adotada por Marx. Ver John
Bellamy Foster, Marx’s Ecology (New York: Monthly Review Press, 2000), 147–63.
58 Eleanor Marx-Aveling e Edward Aveling, Thoughts on Women and Society (New York: International Publishers, 1987), 17.
59 Marx, Capital, vol. 1, 517–18; Chattopadhyay, “Women’s Labor Under Capitalism and Marx,” 69–70.
relacionada à família e à produção naquele período – que o capital usurpava o “trabalho livre da
subsistência familiar” ao submeter as mulheres à condição de “escravas assalariadas” [wage slaves]
da indústria, subjugando-as simultaneamente ao chefe patriarcal da família60.
Em meados do século XIX, como vimos, eram as mulheres trabalhadoras que geravam
ambos, as maiores taxas de mais-valia para capitalistas e a máxima somatória absoluta de valor. Isso
está implícito na análise de Marx. Como Chattopadhyay escreveu: “”na discussão sobre
determinação do valor pela quantidade de tempo de trabalho abstrato dentro de uma mercadoria,
Marx se refere ao ‘trabalho humano [menschliche] e trabalho não masculino [männliche]’. Em
outras palavras, o trabalho (abstrato) produtor de mercadorias, para Marx, é neutro em gênero”61.
Marx deixou claro que mulheres são mais exploradas que homens na produção de mercadorias; mas
adicionalmente, considerando a dinâmica do sistema do capital e dos costumes sociais, seu trabalho
doméstico reprodutivo socialmente necessário é expropriado (pela expropriação do tempo usado
para produção de valores de uso e/ou do consumo (re)produtivo [consumption work] para realização
de mais-valia), perpetuando gravemente a condição de dependência imposta as mulheres na família
patriarcal. A expropriação da natureza e do trabalho reprodutivo socialmente necessário, que reside
em “outras moradas ocultas”, fora da esfera de produção de mercadorias, como Fraser sustentou,
torna-se crucial para o entendimento completo de Marx sobre o capital como sistema62. Engels,
mais tarde, observou que na Alemanha o capital era capaz de manter baixos salários para os
trabalhadores porque grandes porções do custo de produção da força de trabalho era conduzido por
trabalho doméstico não remunerado – com efeito, produzindo altas taxas de exploração e maiores
lucros, indiretamente, por meio da expropriação de trabalho não mercantilizado63.
60 Chattopadhyay, “Women’s Labor Under Capitalism,” 68, 71–72. As palavras de Marx estão citadas na tradução de Chattopadhyay.
61Paresh Chattopadhyay, Marx’s Associated Mode of Production (London: Palgrave Macmillan, 2016), 87; “Women’s Labor Under
Capitalism,” 72.
62 Fraser, “Behind Marx’s Hidden Abode,” 62.
63 Frederick Engels, The Housing Question (Moscow: Progress Publishers, 1979), 14-15; Marx e Engels, Selected Correspondence,
358–59. Na análise de Marx e Engels, o aumento da taxa de mais-valia pelo barateamento do capital variável via substituição de
trabalho doméstico e de subsistência foi conhecia como “dedução da lucros”. Ver John Bellamy Foster, “A Missing Chapter
of Monopoly Capital,” Monthly Review 64, no. 3 (July–August 2012): 13–15.
64Nancy Fraser, “Crisis of Care? On the Social-Reproductive Contradictions of Contemporary Capitalism,” in Bhattacharya,
ed., Social Reproduction Theory, 23.
65 Fraser, “Behind Marx’s Hidden Abode,” 60, 63, 70.
substancias são trocadas e transformadas em movimento, os seres humanos confrontam-se com as
imposições da natureza no processo de alterações do mundo material e com a influência destas
circunstâncias sobre o trabalho e a estrutura de produção a ele associada. A sociedade da classe
capitalista, contudo, produz um conjunto de mediações de segunda ordem (o que Marx chamou de
“mediações alienadas”), conectadas com a troca de mercadorias, que resultam em um
estranhamento da humanidade, do trabalho e da natureza66. De acordo com Mészáros: “as primeiras
funções do metabolismo social, sem as quais a humanidade não poderia sobreviver mesmo na forma
mais ideal de sociedade – da reprodução biológica de indivíduos à regulação das condições de
reprodução econômica e cultural – estão cruamente equacionadas com as variedades capitalistas
(segunda ordem de mediações), não importa quão problemático esta última possa ser”. A forma
específica da dominação associada com esta segunda ordem de mediações – por exemplo, a dupla
jornada imposta às mulheres e a destruição invasiva dos ecossistemas – estão subrepresentadas
como “naturais e intransponíveis”, desafiando o contorno das turbulências e das crises por elas
engendradas67.
Tudo isso está associado com a separação entre produção e reprodução, e opera através de
processos gêmeos de exploração e expropriação. Para Fraser, “a expropriação é um mecanismo
contínuo de acumulação, embora não oficial [em termos de contabilidade capitalista], que
seguidamente acompanha o mecanismo oficial de exploração” 68 . Esse processo é evidente na
transformação histórica da reprodução social e dos padrões de expropriação.
Como detalhado anteriormente, durante a revolução industrial da Inglaterra, as condições da
reprodução social no contexto das famílias proletárias, que viabilizam as operações da economia
capitalista, estavam colapsando. “A situação era tão desesperadora”, observou Fraser,
que mesmo os mais astutos críticos como Marx e Engels se enganaram sobre este conflito
originário entre a produção e a reprodução social como última palavra. Imaginando que o
capitalismo havia entrado em sua crise terminal, acreditaram que, ao desentranhar a família
proletária, o sistema estaria também erradicando a base da opressão da mulher [caso a mudança
social revolucionária se soerguesse e triunfasse]. No entanto, o que realmente aconteceu foi
justamente o contrário: com o tempo, as sociedades capitalistas encontraram recursos para
administrar suas contradições – em parte criando “a família” em sua forma moderna e restrita; ao
inventar e intensificar novos significados para a diferença de gênero; e modernizar a dominação
masculina69.
A separação entre produção e reprodução tornou-se parte da constituição do sistema
capitalista – produzindo uma segunda ordem de mediações alienadas. Enquanto a produção
depende da reprodução social, esta última é esgotada ao seu limite – nos bastidores – e serve como
território de expropriação, do qual depende o sistema capitalista de acumulação 70 . A potencial
dissolução da família proletária torna0se uma contradição severa nas fronteiras do sistema, uma vez
que mina a reprodução social dos trabalhadores. Fraser alega que os esforços para conter essa
contradição-chave do sistema capitalista levaram a três regimes de reprodução social, subsequentes
à revolução industrial na Inglaterra. “Em cada regime... as condições de reprodução social assumiu
uma forma institucional diferente e incorporou distintas ordens normativas: primeiro, as ‘esferas
separadas’; depois a ‘família assalariada’, e agora a ‘família com dois provedores’”71.
Na segunda metade do século XIX, de acordo com as contas de Fraser, presenciou-se a
ascensão de um regime de “capitalismo competitivo liberal” no qual as “esferas separadas” da
90Foster, Clark, e York, The Ecological Rift, 207–11; John Bellamy Foster, “The Age of Planetary Crisis,” Review of Radical
Political Economics 29, no. 4 (1997): 124–34
91Fraser, “Behind Marx’s Hidden Abode,” 63; John Bellamy Foster, “Marx’s Theory of Metabolic Rift,” American Journal of
Sociology 105, no. 2 (1999): 366–405.
92 Mészáros, Beyond Capital, 142–253; Foster, Clark, e York, The Ecological Rift, 401–22.
93 Salleh, “Ecological Debt, Embodied Debt” e “From Eco-Sufficiency to Global Justice,” 1–40, 291-312.
Conclusão