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Horizonle1 Anlropológicol, Poria Alegre, ano 14, n. 29, jan./jun. de 2008. ' Doutoranda em Antropologia Social.
Horizontes Antropológicos, Porto Alegre, ano 14, n. 29, p. 279-314, jan./jun. 2008
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nannos ~1s primeiras décadas do século XX, perceberemos que o interesse dos
artistas por outras culturas já se faz presente, embora desprovido do
questionamento político c moral inerente aos trabalhos contemporâneos menci-
onados acima.
É impressionante- embora já tenha sido bastante discutida- a semelhan-
ça entre os rostos angulosos, geométricos e coloridos das Demoiselles d'Avignon
(1907) de Picasso e certas máscaras africanas. No caso de Paul Gauguin, o
"primitivismo" se traduziu em distanciamento geográfico. O desejo de partir
acometeu vários atiistas da virada do século XIX para o XX, ansiosos por
encontrar contextos mais adequados para uma criação artística "pura" do que
os centros urbanos "civilizados" (Pcny, 1998). O afastamento de Gauguin co-
meçou pela Bretanha, região agrícola e tradicional da França, c culminou com
sua mudança para o Taiti - provavelmente influenciada pela representação
literária paradisíaca daquela colônia francesa. Como explica Peny ( 1998, p. 8):
O "ir embora" para províncias rurais distantes -ou para as supostas margens da
civilização- passou a ser visto como um aspecto crucial. [ ... ) Costumava ser
combinado com a produção de uma obra num estilo "primitivo". [... ]O culto do "ir
embora" não era ele fonna alguma exclusivo do vanguardismo francês e do círculo
em tomo de Gauguin. Em toda a Europa, inclusive a Rússia, a Escandinávia e a .·,,l~~ ·~·
Inglaterra, e na Alemanha em particular, a voga de formar comunidades e colônias 1.'<·
de artistas longe dos centros urbanos havia sido estabelecida em meados do . -' . ,.. ,.. ~.·"ri)•",:>,;···.·<::;,);§'•'(l,l!,&í"~
século XIX. figuro 2. Paul Gouguin, A'ove #ove /!toe, 1894. Óleo sobre feio, Museu Hermifoge, São Pefesburgo.
Horizontes Antropológicos, Porto Alegre, ano 14, n. 29, p. 2 79-314, jan./jun. 2008
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fkfk'·'""' .<;llhll' :1 arh· ·'p111111111':t"
Segundo CliiTord, no início do século XX, u Ál'ricn, a ( kcuniu c a ÂlliL'I'Í\ -~lu·.···· Branly p;tr<~ kvantar questücs gerais sobre o estudo e a exposição da
eram vistas como um reservatório de novas formas c valores. Nas ckcadas ,,,,,. "pnntÍI íva". Sem a pretensão de esgotar tema tão vasto e espinhoso, o
1920 c 1930, a atitude ctnográfica representava a possibilidade de uma críl IJI'II\'o 1; tra1;ar um panorama geral e introdutório, sugerindo de que maneira a
cultural subversiva e da relativização da sociedade moderna ocidental. ltl'-1111 i;1 d;t arte, a museologia e a antropologia pennitem interfaces interessan-
li•.' ,_.analiticamente férteis.
Below (psychologically) and beyond (geographically) ordinary reality, tlwre
existecl another reality. Surrealism shared this ironic siluation with rclativi~!
ethnography. [ ... ] The surrealists were intensely interested in exotic worlds j .• , I
The fieldworker who strives to render the unfamiliar comprehensible tendcd
work in the reverse sense, making lhe familiar strange. (Ciifford, I 996, p. I 20-1 :r
' Po< ~""" d" E.'f"'''"'"' C"l""'"'' do '" Po<" DmÜ, om 193 t, d~idio-.o "'""""' om "'""''"
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o diopo;io o ""'"' m oolooi,domo. O <om do opologio ,o oolm<iolismo d•o"" """' 1
O Pavillon des Sessions é o conjunto de salas das "artes primeiras" no Louvre, que foi uma espécie
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d'Qwo-M"' oom "'"'"'""""'"""""'"'"I" de "projeto-piloto" do Musée Branly. Ele existe desde 2000 e representou um grande marco.
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Ckio" ion< O f"o do fi o,c ,; modo po>IO do bmq'" do o do P"'" i< mo "'"''io """ 1" i ' ' l.ouvre é a cenografia lealral, que põe em destaque as cores e formas de cada peça.
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o f<o i o '""' q"' f O'>' om "'""" "'"""" oi<i "'"" po< f" m11 i'". "" '' 'l'rl'dtll rt·lirado do silt• do Musl~<· Brunly. scçfio "La Chupicuaro" (hllp://www.quaibranly.f'r/fr/
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cullt•<'l inns/la dt11pi•·ua1 '•/i ndc \ l11111l ).
Dum expo1içóes pionei rm t'JIIil'r 111 a ,.:1.1'.11•· p:1st (IL'IIJiniscwl of lhe label 'nineteenth-twentieth century' that
:wcolltp:Jnil.'s .r\ lhr:u1 :111d ( >ccanian pieces at the Metropolitan Museum's Rockfeller
A concepção do Muséc Branly foi possível, em grande parte, devido ao Wing) nr in :1 purl'iy COIH:t:plual space defíned by 'pri.mitive' qualities: magic, ritualism,
caminho que fora aberto por outras mostras que classificavam na categoria de dosl'ncss lo nature, mythic or cosmological aims. (Ciifford, 1996, p. 202).
arte objetos coletados em sociedades não-ocidentais. A mostra Primitivism in
20th Ccntllly Arr: Afflnity of'the Tribal and the Modem, realizada no MaMA, Poucos anos depois, Magiciens de la Terre, realizada no Centro Pompidou
em Nova Iorque, no inverno de 1984/1985, tematizou a redcscoberia da ar/ c 11:1 ( irandc 1-lalle de La Villcte, em Paris, de maio a agosto de 1989, veio se
t:~lll(rapor à mostra do MoMA. Conforme consta no catálogo, assinado pelo
negre pelas vanguardas modernas c foi a primeira grande aparição de artefa-
tos de sociedades não-ocidentais em um museu de belas-artes. O curador William ('iii'<Jdor Jcan-Hubcrt Martin, a mostra se pretendia "pós-moderna", dando ao
Rubin reuniu peças de museus ctnográficos europeus, de galerias especializadas Pulnl voz, nome c rosto. Queria também tomar os tennos intemacional e con-
c de coleções particulares c as expôs lado a lado com obras de mestres ociden- h'lllporünco "abrangentes" e "inclusivos" e criticava a concepção da exposi-
~~i\n do Mo MA, por excluir os "primitivos" da cena, como se fossem inacionais
tais modernos, como Picasso, Giacometti e Brancusi. A idéia era mostrar aos
visitantes o quão semelhantes eram suas formas (Rubin, 1984). n dispcnsúvcis.
A crítica negativa que antropólogos fizeram ao evento referia-se à ênfase O curador Jean-Hubert Martin visitou artistas não-ocidentais contcmpo-
U'itlcos nos quatro cantos do globo, para romper, em primeira instância, com a
excessiva nas afinidades formais, que acabavam por encobrir desigualdades
culturais c políticas (cf. Price, 2000, p. 11). Criava-se uma atmosfera de apa- 1dóiH de que obras "primitivas" são arcaicas. Alguns artistas ocidentais também
rente comunhão, para revelar que os artistas ocidentais seriam geniais, por l(rralll convidados por ele para a mostra do Pompidou, notadamente aqueles
terem descoberto e recriado "primitivos" anônimos c atcmporais. A pcrcepçflo estabeleciam relações com outras culturas, seja pela origem, seja pelo teor
!lils nbras. Os dois eixos curatoriais principais de Magiciens de la Terre foram
dos africanos, maori c kwakwiutl sobre a arte ocidental moderna em ncnhun1
11 disct1ssão da mudança de significado dos objetos na passagem de uma cultu-
momento foi requisitada, tampouco artistas modernos dos países em desenvol
IH 11 outra c a comprovação de que existe autoria artística "primitiva". Um dos
vimento foram convidados a expor. Além disso, as diferenças entre o significa-
do e o processo de fabricação da arte "primitiva" e da arte moderna ociden1al ·" principais desdobramentos da exposição do Pompidou foi a ascensão de alguns
· " 1111 islns em seus países de origem, como é o caso de Bruly Bouabré e também
foram apagadas, em nome da primazia da afinidade formal. Conforme Jaml'~:
Clifford (1996), a mensagem da exposição se resumia à idéia de que, se :1·: · ('vpricn Tokoudagba, que esteve na penúltima Bienal de São Paulo. 9
máscaras africanas pareciam tanto com Picasso, Brancusi c Paul Klcc, ch: Por outro lado, a maior crítica que se fez à exposição francesa foi o fato
deveriam ser valiosas esteticamente. de da l'olclorizar e csscncializar o não-ocidental, associando-o sempre ao ar-
t.'HII.'tl, ao mágico, ao alternativo- o que deveria resultar bastante artificial, já
A grande novidade da mostra foi tomar o partido do impulso criador s11
postamentc universal, como algo que une homens de diferentes épocas c cul111
ras. Simultaneamente, abria-se mão de identificar c situar artistas e povos n:l11
ocidentais. Nas palavras de Clifford: 11 <'llladpr llubcrt-Marlin também se notabilizou a partir de então c. alé pouco tempo atrás, foi
dnl'lnr do nH1~cu Kunsl Palas!, em Diisscldorf. no qual orgunizou a polêmica mostra Altare.1: Arte
/'111,1 X•' .·t;o('l/wr, no inverno de 2001/2002. Sua idéia era aproximar as culturas por meio de objetos
At MaMA treating tribal objects as arl means excluding the original cultm;li ;k d<'\11\'Üo c cxplicilar o quanto a arte niio-ocidcntal é indissociável da religiosidade. Alguns líderes
conlext. Consideration of context, we are finnly told atthe exhibition 'seu trance. 1:. rt'llf'.l""'s acompanharam seus altares à exposição, para garantir que as obrigações c interdições
lhe business of anthropologists. Cultural background is no! essential to corn·, 1 l11''·' l'lll <.'lllllflridas. outros mandaram confeccionar réplicas para serem expostas no museu. Em
aesthetic appreciation and analysis: good art, the masterpiece, is universalh 111<'1<' 1111:: all:~res mcxic;~nos, africanos, coreanos. etc. havia também um pequeno altar católico c
11111:1 1nsi:IIH~iio vull:~d:~ aos devotos de Elvis l'rcslcy. No entanto. em abril de 2006, Martin se
recognizable. [... ] Nothing on West Fifty-third suggests that goocl tribal art 1·. dl·illlllll d11 Kunsl l':dasl :ilcgando que a empresa de energia elétrica que patrocina o museu não
beeing produced in the l980s. The non-westem artifacts on display are loe<lf•·d (llllt'tlltb t'tllll p / 1,randc espa,·o que consagrn :1 arle não-ocidental.
Ho1·izontes Antropológicos, Porto Alegre, ano 14, n. 29, p. 279-314, jan./jun. 2008
292 llana Goldstein RetJexões sobre a arte "primitiva"
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que foram convidados artistas como o brasileiro Cildo Mcircles, complctflmcn-
te inserido no circuito internacional das artes. Vale destacar a ironia de Hcrmano A acusação foi em 1999, quan-
Vianna (2004, p. 8-9) a respeito: do o Musée Branly se encon-
trava em fase de construção.
No dossiê que a revista Ar! Press publicou em maio de 1989 sobre essa exposição Três estátuas de terracota nok,
[ .. . ] havia uma entrevista com o curador Jean- Hubert Martin. Tive imensa da Nigéria, foram adquiridas a
dificuldade de acreditar no que estava lendo. [ ... ] Logo a primeira resposta preços milionários para o acer-
terminava assim (vale a pena citar todas as palavras): "não encontramos em todos
vo do museu, de forma ilegal,
os países onde fomos objetos que pudessem figurar na exposição. Na América do
já que a Nigéria proíbe a saída
Sul, notadamente, fora o Brasil, tivemos decepções, pois encontramos artistas
situados num sistema idêntico ao sistema da arte ocidental, com galerias, museus,
dessas esculturas de seu terri-
10
etc. E as produções desses artistas nos pareceram dependentes de nossos grandes tório. O mal-estar foi resol-
centros, quando o que procurávamos era uma outra coisa- coisas que pudessem vido quando os ministros das
renovar o olhar, o interesse." A entrevistadora lhe pede para explicar melhor o que culturas de ambos os países
procurava. A resposta, agora curta, é antológica: "Obras ancoradas em crenças e assinaram um documento, se-
valores que não sejam aqueles de nossas redes artísticas. Não me interessava gundo o qual a propriedade ju-
mostrar que os artistas da América Latina lêem aArtfórum. rídica da Nigéria sobre as pe-
ças fica assegurada, mas elas
O aprendizado com essas duas grandes exposições pioneiras, somadas ao ficam sob guarda do Musée
desejo de Jacques Chirac de deixar a marca de sua gestão no patrimônio cultu- Branly por 25 anos - prazo
ral francês e ao provável interesse de Jacques Kcrchachc de valorizar o mer- renovável de comum acordo
cado de arte "primitiva" ajudam a compreender o contexto em que surgiu o (Roux, 2000).
Musée du Quai Branly. Voltemos a ele. Sally Price (2007) conta
que a idéia do Musée Branly
Ocais das controvérsias surgiu casualmente, com o en-
contro entre Jacques Chirac e
hgura 5. fsfafuefa nok (Nígéría, oprox. 250 a.[.) perhmcenfe ao
Bcrnnrd Dupaignc foi diretor do Laboratório de Etnologia do Muséc lk Mu1dc Branly, semelhante à que esfó exposfa dentro do Louvre, Jacques Kerchache em um
I'Homme de 1991 a 1998. Transitou, assim, pelos bastidores do projeto de cri (11/0 legalidade do aquisição foi alvo de polêmicas, em 1999. hotel de luxo na Ilha Maurício,
ação de um museu de artes "primeiras" em Paris, sobre o qual publicou lllll folo: Divulgação. em 1992, quando os dois
livro tão ressentido quanto repleto de informações de primeira mão sobrL· :1:: Jacques descobliram a paixão
nuanças c disputas que se escondem por trás do imponente Musée Branly.
De acordo com o relato de Bernard Dupaignc, a maioria dos pcsquis:Hill
res do antigo Muséc de I 'Homme - que teve seu acervo translcrido, cxv,·t"
pelas peças consideradas européias, portanto não "primitivas" · · acah!HI ·,,
aposentando precocemente ou pedindo transferência para oulr:ts in ...;liltli':"' . i\~ ''''<'lilfnras nok sim provcnicnlcs dus regiões de Katsina c Sokoto, no Norte da Nigéria, onde estão
públicas, por não concordar com os métodus c as cs~;!llhas du din.·tm do I \r:ud\ l'l'siiJ•.i".'; anJuco/tígicos da civilizarão nok, que se desenvolveu de 900 a.C. ao ano 800 de nOSS<l
E.~tado.
· l.l!i
t'iil. l'l'la lei HiJ•.eriann, lodos os achados an,ucológicos pertencem ao Na pnítica, de cerca de
Stcphanc M~trlin, quL~ chcJ!."II :t ::n :H'Jt:::uJ., •h· t'olltpr:u· jll't;:t:-: 1ti)•,l'l'ia11:t:. d•
(l~oux,
.'<lt•t illt"'• Jliua d. /"'\'"' nok /H>de1n ser eucou!radas cn1 leiliícs c exposições fora da Nigéria. O valor
•~fin,·Jn if,·p~d. : ,J,- • '"'" ft'"'"'"LI on/i 11/i<ap:L•.,.,;, 11111 •oill<all 1le cnr11s 2000).
294 llana Goldstein
Reflexões sobre a arte "primitiva"
295
comum pela arte africana. Chirac por hobby e Kerchache por profissão -
enriqueceu como marchand de mie primitiva e publicou uma antologia foto-
gráfica sobre o tema. Chirac, prefeito de Paris desde 1989, elegeu-se presiden-
te da França em maio de 1995. Kerchache lhe deu apoio durante a campanha.
Poucos meses após a posse de Chirac, já estava nomeada uma comissão para
estudar a possibilidade de expor peças de sociedades ágrafas da África, Amé-
rica c Oceania no Louvre, e para discutir uma reforma do Musée de I 'Homme.
A comissão de "artes primeiras" foi chefiada por um terceiro Jacques: Jacques
Friedmann.
Alguns anos antes, J acques Kerchache encabeçara um manifesto pela
entrada das artes "primeiras" no Louvre. Naquele momento, não foram poucos
os cientistas sociais a assinarem o documento. O manifesto, publicado no jomal
Libération, no dia 15 de março de 1990, reclamava que o Louvre iria entrar no
século XXI sem abrir espaço para objetos oriundos de culturas africanas, ame-
ricanas, asiáticas, do Ártico e da Oceania, reproduzindo, portanto, a mentalida-
de colonial que fez com que "três quartos da humanidade" ficassem excluídos
do principal museu francês. Pedia-se, então, a abertura de uma oitava seção no
Grand Louvre, dedicada a esse tipo de produção. Assinaram o manifesto nada -· -····--
menos que Marc Augé - então presidente da École de Hautes Études em figura 6. Manifestação da Brigade de I' argent des français (BAf), representando a "lribo dos conlribuinles ' ,
Sciences Sociales- George Balandier, Maurice Godelier, Françoise Heritier- em frente ao Musée Branly, em fevereiro de 2006. Fofo: Joel françois.
lt,::
Augé, Michel Leris e Jean-PietTe Vemant, entre outros.
,,,
Mas o projeto acabou mudando de rumo e, além do pavilhão de arts
meio como se fossem objetos rituais. 11 De fato, os 150 milhões de l"r;"" ·~ •s
11::!
,,I·,
11\ premiers, inaugurado no Pavillon des Sessions do Louvre, em 2001, a comissão
: ~: 1 Friedmann lançou a idéia de criar uma nova instituição para acolher os acervos gastos em 2001, apenas com aquisições, para completar as lacunas do <1n'1 v• •
' ,1
1!;;:1 do Muséc de l'Homme e do Muséc des Arts de l'Afhque et de l'Oceanie. Não do Musée Branly, eram exatamente a mesma quantia gasta por todos o~; o1111o~.
~,,,~ ·: 111useus franceses naquele ano 12 (Dupaigne, 2006, p. 117).
11'1
se pode esquecer que, na França, todos os últimos presidentes procuraram
:•:1\11
deixar sua marca construindo grandes instituições culturais. Como lembrou o Pairava no ar a suspeita de que essa súbita visibilidade das arll's "pri 111111
"~: jornal Le Figaro de l º-de outubro de 1996: "Jacques Chirac à la tête de l'État, vas" teria como finalidade principal a valorização desse segmento do lllt·rcado
de arte, o que de fato ocorreu. Mas, acima de tudo, a querela sL~ dava t'llln· o~;
,•
11
dcs burgcois parvcnus" (Dumont apud Dupaignc, 2006, p. 37).
jl, ~ Steven Hopper, diretor de pesquisas sobre artes da Áfriea, < ln·:JIIt;J 1·
:1.1 América da Universidade de East Anglia, concordou com a rclalivtd:llk d.t
,',I Artefato etnográfico, obra de arte, mercadoria classificação dos objetos artísticos:
jll
' li
I
I! est ünportant de comprendre que la classification ne porte pas sur dl'~ ralt~l'.''l H\·;
r!,·,
1111 Existem algumas tensões em relação ao modo de se lidar com a atte
I
11!,11: "primitiva" no Ocidente que se tomaram particulam1ente nítidas com a criação fixes, mais veritablement sur des relations. [.. .] Pour moi, le rôle d'unnHJ:;c:~~ I I
!1,1 do Muséc du Quai Branly. 13 A primeira delas diz respeito à dicotomia entre est de dissoudre ces anciennes distinctions entre arte artefact, cnlre ohjt"l d' :JI!t•l
1((1
Ii tratar os artefatos como testemunhos etnográficos ou como criações estéticas. objet ethnographique. Ces choses changent tout le temps. lime selllhl,· q11' <"I k:.
~;r,(! A segunda conccrnc às relações de poder envolvidas na aquisição dos objetos. dépendent du contexte et qu'elles concernent véritablement lcs n:laiion.·; <'11111" 1··:;
,li A terceira tensão está ligada ao problema da autenticidade, numa era em que a objets réels et entre les personnes et les objets; ces personnes Jk'ti\'("JJt ,:ti<· d•··,
,Ji globalização engendra a produção de souvenirs étnicos. A quarta conceme à conservateurs, des chercheurs, des habitants de Fiji ou de Nouvelk /d:Jittk <JIII
portent un intérêt à ces objets et qui les réinterpretenl, ks H'<'I:J::::li~<·JJI
! 11/
11111'
atribuição de autoria c a datação, nas legendas das exposições.
l/,'11,1
constamment. (Hopper apud Latour, 2007, p. 30).
,I 1') Nos debates internacionais realizados por ocasião da inauguração do novo
Li
i· ,1,1 museu, 14 todas essas tensões vieram à tona, de um modo ou de outro. O primei-
'1''1·
'''i ro debate do evento de inauguração, "A metamorfose da qualificação", girou Se por um lado é política e cientificamente necessário cxpl iril:tr o t't ''Jin
lo original de fabricação dos objetos, por outro lado não se pode tll').~;ll qtw
I '1'1~·1
'li!
,·p:i em torno do binômio arte versus miefato. Susan Vogel, pesquisadora de arte
i! diversas leituras serão suscitadas por eles, ao longo do tempo ..kan A lllll'
',' }:,1 africana da Columbia Univcrsity, sustentou que um objeto impregnado de sen-
. 'I Rakotoarisoa, diretor do Museu da Universidade de 1\nlanauatJVo, ''IIJ
I) 1/1,( tido por seus criadores c por sua cultura é um objeto attístico, ao passo que UI\ I
r, ·1,· Madagascar, presente no debate inaugural, provocou: "cnquanlo prolissit'lidt:;
i 1'11[
hr dos museus, nós coletamos o objeto em um detenninado motm·ntu c,~ :qh'aJ;J~.
1.·
I
ill
:11: e~sa informação que aprisionamos em uma bela vitrine, com um:.J hda íltJJIJJiliJ
(
~:fio" (apud Latour, 2007, p. 44, tradução minha). É por isso quL~ .lol111 f\L1~ J,,
histol"iador da arte da Universidade de East Anglia, propôs que Sl' kvl' ~i<'lli] il ,.
,I'!. I 11
1•: Seria importante discutir também a pertinência c os limites do conceito de "arte" na abordagen1 ""'·
~ l'r,: fenômenos enf"ocados nesse arligo. Se nos guiarmos pela abordagem da sociologia da cultura (Bomdll'll.
19X9. 200J: Hcinich. 199X), concluiremos que só existe arte nas sociedades ocidentais, pois ,,·, o·L1· L'lll conta a "carreira dos objetos", o que abrangeria não apenas <~S]Wl'fo~; ltl•,il
'i!
i,, são dotadas de insttineias de consagração c profissionalização específicas. No entanto, dl"llil" .J,
,,
antropologia hú autores cuja concepção ampliada de arte permite aplicação n um niunern 111:11111 .J,
li li 111anili:staçiks cullurais. t': o caso de Alfrcd Gcll (1998). por exemplo. para quem ohjclos ar1i·.t1'"
11 1
siio aqueles que suscitam rcaçôcs no receptor c podem mesmo lcv;í-lo a agir. Sc·gundo (i,·\1, a '"'' '
,!,1
rclacional, reside naquilo que acontece com c por causa dos objcJos · portanto, n;lo ,, L'Hiu:.l\.1 ,~,, 1
qll
socicda(ks ocidentais. ' Vale lc1nbrar que o Ccntcr l(w Afi·ican Arl (hoje Muscu111 oi' At'rican 1\rt) '"I'.•IIIÍI.Illl. c'lli i'IX,'i. 11111;1
14 O seminúrio foi organizado plll' Bruno Latour. sob o ll<lllll' /.c· lliu/ogll<' des t '~tlllll'l's: 1-.'u, ""I', (",xposi\:;1o Chill\liHia AIO'IAHI/a('/ justamente para discutir (I 'lli:\1\(0 o"""'" <h.- ··xilll>,':lll ,. "nlh:u ""
lnallgllralc.\· r/11 Aln1ú· riu {i11ui i!l'clllli'. 1\s ;<\as do l'll<'llllito, l<':dlnl!lo d,·lltl'll do IIIU:'l.'ll, "" d1,, 'I pt'illli!'o ,, qm• dctim·a11 1il' as Jll'\':ls s;lo "objeto.' nrtisti,·os" "'' ,jlllpk>; "arll'li1111<' 1·~a '''l'•l'oil,il".
de ju11h11 d,· 2(1(1(,, i<Jr:un puhlic:ula1; pllS\l'llllllll•'llil' (I "'""', .'llll'/). nhkiiiS 11111it11 .'>l'llll'ih:ul\o·:; i>lli\11\ l'lll<lt'ildiiS l'll\ :;al;u; <'!llll illlilllt'llt:l\'111';: dll'!'l:oil.'., qlll' 11\lldn\',1111 11
l;ll<"<llo•il':: 111a nlo'"'· d,· "11•·. 11111 l'<"•;a.'. d,· Ílltt·n·,;:;,· <'ill''l'''d''" (.';•·lt•u·ld<'l, .'IIOt., I' 1/J
298 Ilana Goldstein Reflexões sobre a arte "primitiva"
299
dos à sua proveniência e à sua aquisição, como igualmente as sucessivas mu-
danças na forma de interpretá-los c classificá-los. já haviam começado e os maori deseja-
Vislumbra-se aí uma primeira tensão, refletida na dicotomia de atitudes vam sepultar os restos mortais de um pro-
n>Hx>.'~'~':r"~~-. vável gueneiro morto em combate. En-
expositivas das instituições ocidentais em relação à arte "primitiva", que osci-
tretanto, a ministra francesa da cultura,
lam entre tratar seus construtos como testemunhos etnográficos ou como cria-
ChristineAlbanel, paralisou o processo de
ções estéticas. Como explica Sally Pricc (2000, p. 134):
devolução com base na lei Tasca, de 2002,
O ponto crucial do problema, como eu o vejo, é que a apreciação da arte primitiva
que proíbe a venda de peças pertencen-
tem sido quase sempre apresentada em termos de uma escolha falaciosa: uma tes a coleções públicas francesas, sem o
opção é deixar o olho esteticamente discriminante ser o nosso guia, com base em parecer de uma comissão científica. O
algum conceito indefinido de beleza universal; a outra é enteiTanno-nos no saber prefeito de Rouen, Piene Albertini, havia
tribal para descobrir a função utilitária ou ritual dos objetos em questão. Estes considerado a cabeça maori como um
dois caminhos são geralmente vistos como contrários e incompatíveis, vestígio humano, regido pela bioética, mas
especialmente no contexto da exibição em museus onde, como já vimos, espera-se o tribunal considerou que se trata de uma
que os curadores escolham entre a "beleza" e a "antropologia" do seu material. obra de arte. Na verdade, o medo do go-
Figura 7. Desenho de cabeça maori, tatuada e vemo francês é abrir um precedente que
Além disso, a história da fom1ação das coleções é obscura e há questões mumificada, que o Museu de Rouen pretendia poderia levar à dilapidação de algumas
éticas e de tradução cultural implicadas. No ciclo de debates inaugurais do resliluir à Nova Zelândia. Divulgação. coleções francesas (Roux, 2007). Mais
Musée Branly, Manucla Carneiro da Cunha lembrou a existência de um direito uma vez, a resposta para o impasse não
autoral moral inalienável, que garante ao autor de uma obra poder acompanhar é simples, mas, como escreveu 1ames Clifford, "the relations of power whereby
a trajetória de sua criação, independentemente de havê-la vendido ou doado, c 1; · une portion of humanity can select, v alue and collect the pure products of others
ser consultado quando houver modificações na obra (Latour, 2007, p. 109). Jú : nced to be criticized and transformed" (Clifford, 1996, p. 213).
John Friede, colecionador cstado-unidense que faz parte do comitê de aquisi- r Em relação à terceira tensão, que opõe as idéias de autenticidade e falsi-
ções do Museu Branly, pronunciou-se a favor da autonomia dos museus e co- ·~ ;f'kação, Anthony Appiah (1997)- que também esteve presente no colóquio de
lecionadores em relação às sociedades tradicionais, para que possam prcscr·· inauguração- alerta sobre o fato de que o sistema internacional de comércio
var o que, de outro modo, se perderia no tempo c no espaço. Ele deu doi.~ '!,;,llf'Hstico exige a fabricação artificial da alteridade. As produções artísticas dos
exemplos opostos: os sencca, da América do Norte, estão exigindo da funda ·. 'puíscs em desenvolvimento e das sociedades sem escrita servem, nesse con-
ção que ele dirige que seus objetos sejam destruídos e entcnados. John Fricdl· '.ít~)\lo, para satisfazer o desejo curo-americano de encontrar um Outro exótico
contou que, "felizmente", não é obrigado porlci a fazer isso. Por outro lado, 11111 ppiah, 1997). Compreendendo esse nicho de mercado, algumas sociedades
grupo da Nova Guiné ficou lisonjeado ao saber que havia artefatos seus 11;1 ·ç:mas têm produzido e comercializado o que Appiah in titula escultura
fundação dirigida por Jolm Friedc (Latour, 2007, p. 102). .llradicional", criada exclusivamente para o Ocidente, à maneira das peças
Essa segunda tensão, relacionada às questões de poder c de propricd;11k liuamente pré-coloniais (Appiah, 1997, p. 207).
intelectual envolvidas na apropriação da arte "primitiva", pode também ser i 111'. Bastante próxima é a noção de "pseudotradicional", empregada por Nel-
trada por uma notícia recente que virou manchete em jornais do mundo l111l11 ( lrahurn (2006) para se referir aos artefatos indígenas feitos para corresponder
Em outubro de 2007, o tribunal de Rouen suspendeu a decisão do pn~ll.·iiP t'Sil'I'Ciílipos que o comprador projeta sobre a cultura do Outro. O artista
dessa cidade de devolver ú Nova Zcli1ndia uma cabct,:a 111auri laluad:1, q111' 'ltlfiVll, nesses casos, cria conscientemente o efeito de autenticidade que se
estava há décadas no Muséurn d' li isloi rc Nalurd k de Rouc11. As IIL'l·',m· i;u,t 11 •• 'In dl'il'. uplando por representar personagens e fatos familiares aos coleci-
lon·s, 1'111 t'slilos 1";1cilmenh:. reconhecíveis ou hem aceitos. Graburn não
Bana Goldstein Ret1exões sobre a arte "primitiva" 301
300
condena a produção pscudotradicional. Ao contrário, sugere que, de alguma Essa terceira tensão, entre o autêntico e o falso, o pré-moderno e o
maneira, ela carrega a mensagem do tipo "nós existimos, somos diferentes, globalizado, levou alguns participantes do debate inaugural do Branly a se
fazemos algo de que temos orgulho c que é unicamente nosso". A respeito da posicionarem contra a abertura do museu a produções contemporâneas, pro-
pondo que o acervo se concentre em aquisições do século XIX e começo do
fabricação da autenticidade, Graburn (2006, p. 425) exemplifica:
XX, para garantir sua "autenticidade", enquanto outros sugeriram, ao contrário,
The Makondo ofTanzânia, who only recently took up ebony carving beca use of que artistas contemporâneos de sociedades não-ocidentais sejam convidados a
poverty and displacement from Mozambique, have made the best use of tbis intervir e expor no espaço. Essa segunda alternativa, vale mencionar, foi a
trcnd: they have developcd two entirely new tourist art forms, the bindamu, adotada pelo National Museum of the Amcrican Indian, inaugurado em Wa-
purcly realistic forms that are rccognizable African, and the shetani, or spirit shington, em 2004. Sob direção de Richard West, advogado e ativista de origem
fonns, which are scmi-abstract. [ ... ) Africans are "supposed" to be woodcarvers, indígena, a instituição faz consultas sistemáticas às comunidades indígenas con ..
and, even whcre they are nol, they take up the métier and become good at it! tcmporâncas c envolve seus representantes, da programação educativa às cs-·
colhas museográficas 17 (Degli; Mauzé, 2006, p. 148).
O problema das "falsificações" gerou polêmica nos debates do evento de Em relação ao recorte temporal das coleções, há que se destacar o pro-·
inauguração do Musée Branly. Foi lembrado que os escultores da Groenlândia blcma da datação imprecisa, que costuma caracterizar as exposições de arll'
produzem peças no estilo de Henry Moore para agradar aos canadenses c ''primitiva"; não é raro ver reunidas peças da Pré-História, do século XIX c
esculpem peças figurativas em marfim para os habitantes do Alaska. Há mes- outras contemporâneas, numa mesma sala, ou explicadas por um mesmo k:do.
mo casos em que se instala um eficiente modo de produção em série de souvenirs Mas qual a relação entre os legados da Pré-História c a produção atu;il d:1~:
étnicos, que, para competir com attigos industriais, são simplificados, reduzidos populações indígenas? Robert Layton (200 1) alerta para o fato de que nf10 se
ou aumentados de tamanho, despojados de detalhes e tornados mais "compre- pode nomear com um mesmo termo sociedades distantes mais ele 5 rnil ano:;
ensíveis" .16 O problema é que a idade é justamente um dos critérios de auten- _ _ _·-._.· _ urnas das outras. As sociedades atuais não são "fósseis" do passado, de JJiodo
ticidade mais acionados no mundo dos museus e dos colecionadores de arll' ._,~;; ·''•>: . q!IL' a arte pré-histórica não deveria ser equiparada às artes indígL·n:1.•; tk JJn:;
"primitiva". Normalmente, o autêntico é associado por esses especialistas ao ~:ns dias.
pré-moderno. A raridade é outro critério que valoriza um aticfato indígena no À datação vaga ou ausente, soma-se a ausência de atribui\~fio aJJior;d n:1:.
mercado especializado. Assim, existe uma bifurcação na produção de artefal< 1:; ,.. jll.\'ils expostas, seja por falta de informação das galerias c mtrSL'IIS, ::t'J.'l 1H11
"pseudotradicionais", como argumenta Ruth Phillips (2006, p. 444): ;. Hl'l'nlitarcm que se trata de obras coletivas e anônimas. No cnlarrlo, a llli!J;;~
> \'iÍo do termo "artista" é recorrente entre os estudiosos de arte "prÍIItÍIJv:J"
Multiple replication of tbe object- supply - is the essential precondition l'o1 ;~ ·c.:M:nrricc Godclier, em sua fala no debate inaugural do Muséc Bra11ly, n·:;:-:allnlr
successful commodity trade, but this same condition empties the object of vallll <ti11t'. ntcsmo nas sociedades tradicionais, não é qualquer pessoa que(· c:1pa/ dt·
for the rare art collector. ln this sense, the collector's interest runs countcr Jt<'l
"'"lwit·ar um objeto carregado do sentido c poder; somente alguns individJJn:.
only to tbat o f the aboriginal producer but also to that of the tourist-collcch 11
estado original. Nesse sentido, não se está longe da proposta de André Mnlrau:;
podem fazê-lo e a aprendizagem deste ofício pode levar muitos anos. Appiah
,J:, ex-ministro da cultura que, na década de 1960, praticamente criou a pnlíftt
I (1997, p. 206) sintetiza o problema:
cultural francesa. Malraux propunha a valorização do que chamava de 1111.
111'1
1'
I_!
A arte africana, até recentemente, foi colecionada como propriedade de grupos
primordiaux (Dias, 2006).
1'\
1.!! "étnicos" e não de indivíduos e estúdios, de modo que não é incomum que É fácil compreender por que os cientistas, sobretudo antropólogos, 111:1111
nenhuma das peças da exposição Perspectivas 18 tenha sido identificada na lista festaram-se contra as expressões arts premiers e art primitif, no monlcnlo th
catalográfica pelo nome de um artista individual, embora muitas delas sejam do batismo do novo museu. E só lembrar o contexto intelectual em que a ct t·nç<
século XX (e ninguém há de ter-se surpreendido, em contraste, com o fato de a na existência de sociedades "primitivas", no sentido de "menos evoluídas". fi 11
maioria delas ser gentilmente rotulada com o nome dos proprietários das coleções, nou-se hegemônica: o evolucionismo, paradigma científico da segunda llll'lndt;
basicamente particulares, em que hoje elas se encontram). do século XIX. De acordo com autores evolucionistas como Morgan c 'l'ylni',
haveria uma pirâmide evolutiva entre as "raças" humanas, em cujo topo esta ri,
Eis alguns dos desafios a serem enfrentados pela nova instituição e por
am os brancos caucasianos e em cuja base estariam negros e índios, P"'''Y·
todos os pesquisadores que se interessam pela intersecção entre arte, antropo- "menos evoluídos" (Perry, 1998; Schwarcz, 1993).
logia e museologia.
Para a maioria do público burguês dessa época, a palavra [primitivo! sigttiltt':l\il
&" • -·-i~ji_ As muitas faces da arte ''primitiva" povos e culturas atrasados e incivilizados. Numa época em que os fr:IIH:t·:w::,
como os britânicos e os alemães [ ... ]criavam museus etnográficos e vúrias r, 1111 !<Ih
i
~I ! I r.L Conforme constava no projeto inici- de estudo antropológico institucionalizado, os artefatos dos povos coloni;:HIP!i
:I ·}\i~ '"i ...,.. al, o Musée du Quai Branly deveria eram vistos amplamente como prova de sua natureza incivilizada, "l,:'irhnm".. dt·
19
A arte bruta muitas vezes nasce da arte-terapia. Hanz Prinzhom foi quem usou pioneiramente a :uh -· ·~··~ ''"•u•uwun tll'll•lll r11\'tl;~do r~m Ir ·- ···---~-~····
como forma de tratamento de psicoses c da esquizofrenia, numa clínica em Hcildclbcrg, na dc\·ad" Figura 9. "Bêbado", de Antonio Ro!eno de lima, sem data. Acervo do Centro de Memória da Unicamp;
de 1920, dando origem à primeira coleção de "arte bruta" de que se tem notícia. Essa clinira '"'
tomada pelos nazistas em 1933 c a coleção foi usada para equiparar artistas modernos con111 l'aul
~lunritlnnnm mbre o artista "bruto" Antonio Roseno de Uma no Correio Popular. Campinas, 26 de março de 2006.
Klcc. Van Gogh, Kandinsky c Chagall a "degenerados" mentais.
20 Bispo do Rosário teve uma visão com um cortejo de anjos que lhe traziam tlma mensagem de I,..,,,,
ordenando-lhe que registrasse sua passagem sobre a Terra. Após esse cpisúdio. pcrcgi'Ínllll p•ii .l;í a arte na(f' aparece principalmente no discurso de galeristas que ven-
clinicas c hospícios, produzindo obsessivamente estandartes, murais, bordados ~ ou Iras 1"'1 "'· " . 1 pinluras coloridas e hiper-realistas, marcadas pela espontaneidade e pela
partir de panos velhos c sucata. Após sua morte, fora111 cutalogudos cerca de 900 trubalho, .. 'Jil•··
escaparam do descaso porque foram rcquisitudos pelos organizadores du Bienal du Veneza, <'lll I 'l'•··· · 1 de aspectos acadêmicos, como regras de composição e perspectiva.
(Hidalgo, 1996). ''siJJ,Ilifica "ing6nuo" em francês, c o termo sugere uma associação com um
o ~\~Indo de pun·1.a. I knri "Douanicr" Rousscau ( l R44-191 0) foi, prova-
21 O documcntilrio se chama Moocil; ;ll·te 1/mtu (2!11)(>).
Reflexões sobre a arte "primitiva" \O I
llana Goldstein
306
Existem no Brasil várias galerias especializadas em arte popular, cotllo a
velmente, o primeiro pintor considerado naif de que se tem notícia. Esse alfan- JacquesArdies e a Brasiliana, 22 ambas em São Paulo. O motivo pelo quall~:;:;~·
degário francês foi descoberto no final do século XIX, no Salão dos Indepen- tipo de expressão cultural costuma ser chamada de "primitiva" é o autodida!is1111)
dentes, e acabou aclamado por artistas consagrados como Apollinaire, Delaunay dos autores, cuja criação é definida pelos marchand'i como "instintiva c cspllll
e Picasso. No Brasil, foi somente na década de 1950 que se começou a dar tânea, realizada por pintores [ ... ] que, alheios aos movimentos artísticos, s1 1ci·
atenção aos artistas populares, com as primeiras exposições de Heitor dos ais e culturais de sua época, criam unicamente movidos por suas emoções".''
Prazeres e José Antônio da Silva. As décadas de 1960 e 1970 conheceram uma Com efeito, no início dos anos 1970, os artistas naif- ou populares, coJIH)
verdadeira explosão de pintores "ingênuos" brasileiros. preferem alguns- eram conhecidos no Brasil como "primitivos", em virtude< k
não terem formação artística e de serem de origem social humilde. A utilização
do tenno "primitivo" foi diminuindo gradualmente, com o aumento do reconhe-
cimento da arte popular no mercado. Mas não desapareceu.
Atiefatos da pré-história constituem o terceiro conjunto que aparece sob
o rótulo de arte "primitiva". Segundo Michel Lorblanchet ( 1997), a representa-
ção figurativa data de 35 mil anos, quando teria oco1Tido uma verdadeira "revo-
lução mental" no Homo sapiens. São dessa época as estatuetas e as pinturas
rupestres mais antigas, que surgem mais ou menos ao mesmo tempo em diver-
sas regiões do planeta, provavelmente associadas a uma nova espiritualidade.
Muitas pinturas foram achadas em salões profundos, onde até espeleólogos
têm dificuldade de entrar, indicando uma possível ligação com práticas xamânicas
individuais. Outras têm grandes dimensões, como se tivessem sido criadas para
ser vistas, em salas que comportam cerimônias coletivas. A pintura rupestre
c brasileira, tão abundante quanto pouco conhecida, contém cenas de seres hu-
inanos realizando suas atividades numa proporção muito superior à das caver-
ts curopéias 24 (Guidon; Martin; Pessis, 2004).
li111horu. em geral, os adjetivos na{!' c popular sejam atribuídos aos mesmos artistas, existe uma
simbólica interessante entre Jacques Ardics, proprietário da galeria que leva seu nome, c
onio Ruggiero, dono da Galeria Brasiliana. O primeiro se apresenta como o grande descobridor
lu :Uil' na!'/ no Brasil -comprada por estrangeiros ávidos por um exotismo palatável. O segundo se
•l'l:una representante da "verdadeira" arte popular brasileira, acusando os pintores na!f de produ-
ctn em série c para mercado.
ÍIIICnlo de .Jncqucs Ardies no site da sua galeria (http://www.ardies.com/quem.htm).
:.itios arqueológicos rupestrcs mais importantes do Brasil encontram-se em Naspolini (Santa
atma), Lagoa Santa c Varzcliindia (Minas Gerais), Toca da Esperança (Bahia) c Serra da Capivara
1.111\HIIIdo Non:11o - Piaui). Só em Raimundo Nonato, há 590 focos de pintura rupestre, conslitu-
.ln 11 uwiur conceutr:l\':lo <k motivos por melro quadrado do mundo. Inicialmente, foram datadas
1/ 111il :tuns, 111a:; hoj" algumas pesquisas apontam para uma data anterior (Guidon: Martin:
figura 10. Jogo de Baralho, 2007, de l:verenice lomonini. reprc1en\oda pelo Goletia Rrmillono u;, .1110·1).
Reptoduçôo oulori1adu pelo mlido.
Reflexões sobre a arte "primitiva" l(l()
Ilana Goldstein
308
os Waurá não as vendem, nem dão para gente de fora. São feitas para ,l',:lltha
O último grupo de manifestações estéticas que é freqüentemente classifi- rem a vida por um instante e depois desaparecem. 25
cado como "primitivo" é o das artes indígenas contemporâneas. Embora muito Existem dois critérios de classificação que aproximam todas essas t'.\
diversas entre si, elas têm em comum a efemeridade- não são feitas para pressões artísticas e fazem com que elas caibam na categoria de arte "pri111ifi-
durar - e o respeito à tradição -já que a eficácia vale mais do que inovação. va", ao menos no senso comum. O primeiro critério é a associação entre t:sse:'
São muitas as linguagens das artes indígenas, englobando desde a vertente processos de criação e os impulsos humanos instintivos e "genuínos", supnsf;.t"
performática (canto e dança), até o artesanato utilitário (bancos e cerâmicas), mente predominantes em estágios arcaicos da evolução da espécie, em indiví-
passando pelas máscaras rituais, adornos plumários e pinturas sobre a pele. duos com baixo nível de instrução fonnal ou em pessoas cujo inconscienlt"
Eis uma definição da especialista Lucia Hussak Van Velthen para as artes efervescente invade as fronteiras da consciência. O segundo critério reside na
,'I indígenas, que relaciona expressões estéticas e cosmologia: posição marginal de seus produtores, seja em relação à "normalidade'' psíquica
I]
',·r
(arte bruta), seja em relação à cultura erudita (arte naif ou popular). sL~ja t~nl
!:1
Essas produções revelam dimensões do universo mítico e metafísico, assim relação a um menor grau evolutivo (arte pré-histórica) ou à supremacia ccoJlti-
/I como transmitem preocupações eminentemente comunitárias e identitárias,
'I' mica e tecnológica da sociedade Ocidental (artes indígenas).
A1·l
1•.•1
almejando, sob certo aspecto, ao título de. ''au~o-retrato". [ ... ] Os objetos No caso das artes não-ocidentais expostas no Musée Branly, o primeiro
I li.
!1,1!
rl, das e usadas exclusivamente em rituais de cura. Elas "andam" sempre en1 lia-se do velho problema do etnocentrismo.
11:/1:!
dupla, sendo uma "macho" e a outra "fêmea". Presentificam as entidades Quando se designam as artes indígenas contemporâneas co111o "pnn1111
:r11:r
'I''
·''i',·r patogênicas reveladas pelos sonhos do xamã, daí seu visual onírico e assusta s", o que está em jogo é a equiparação entre sociedades tradicional:; alllill~:; c
llrl',. 'l .os pré-históricos, como se índios fossem seres do passado. Akm di:;~;( I, do
'li dor. Durante o ritual, as máscaras dançam ao som de três enormes flautas que
,'11/,'! só os homens podem ver l' 1to de vista técnico, "primitivo" sugere algo menos sofisticado., fn~;ro, tll:\1
I :'')'11,
l'jlll tocar. Apesar de utilizarL'''' •ito. Contudo, as inúmeras provas de habilidades manuais indígl'na:; ch:ITIJJ
','I'Mi,l:l
,
1
!1/l!:,
somente as cores amarela. erlir-nos "contra a crença de que as obras deles parecem gmlcst·a:' pnrqtw
·:·1/!li, vermelha e preta, os Wa11n1 lilziam melhor. Não é o padrão de capacidade artística desses arti li I' c:-; que
1
11!
·,, 111
obtêm grande variedade p111 _.dos nossos, mas as idéias deles" (Gombrich, 1988, p. 24 ).
r\n~
')p meio da combinação de I .' Cmiosamcnte, a arte ~·primitiva", em suas várias facetas, cosllllllil :w,ta-
1
1·1',11 '
formatos diferentes e de i1111 .J, ao grande público mais do que a arte ocidental conll:mpor:lnca. T:dvc/
1
11'11'1
.111
'1.'!.
1,11·'·,··
1
11''
1 meros tipos de grafisn1os )',r
''''itl
1"il]
'
1 ométricos ou zoomorfos ( Ba1
'iilli :•110:1. os Waurú viajaram do Xingu para :1 Fran\':1. para liiZL'I' IIIH ril!~:d dentro ela i""I'.I:IIJI:tt;:ln
celos Neto, 2002). ll•1
'··\'til Ulll k•,ll\':11 clt: Monlpl'iicr. Foi assi111 que o IVhi"'L' lln111lv ,·on::cguín :1dq111111 :dp.11111a:. n,;,._,.,,,,,,,
'>}I pouquíssin10s c.xe.mplarn: '~c~. 'iÍ li :<1111 l'Ok\·:-io lradicioll:dllil'IIIL', os paltn<·inadon·:, da l'<·:.la lt'lll dlf<'IIO -.ol•r•' il'i 111:1\< aL1;.
'\i/r figurol1. Pintura rupe1he em Raimundo Nonato (Pil, datado de sas lll:Íscaras em nHISl'-liS, P~'"' ··ri<•:; Nt'l". t'lllllllllir:!l;:lll l"''•hn:ll. ~01111).
',,1,!'1
li i 50 mil onm. Divulgacõo.
I,, I
310 Ilana Goldstein Reflexões sobre a arte "primitiva"
111
porque, como aponta Heinich ( 1998), a arte contemporânea faça entrarem em
crise os princípios canônicos que definem tradicionalmente as obras de arte, cado apenas o objeto visível e colecionável. Como afirmou Daniel Max in~, 11·
desde a noção de figuração até a própria idéia de invenção e de beleza, engen- ferindo-se ao novo museu parisiense, "um objet n 'a aucun sens sans 1'immalt'·ri,·l
drando um vazio de significado no público. Isso poderia explicar, em parte, o qu'il peut de maniere lumineuse renvoyer vers cclui qui !c regarei c. C \·st :::1
seulc vocation" (apud Latour, 2007, p. 405).
interesse atual por obras "primitivas"- figurativas, por vezes utilitárias, pOiia-
doras de mensagens passíveis de serem decifradas e, supostamente, mais fá- Por outro lado, o partido estetizante do Musée Branly é, na rc;il idad,·,
ceis de compreender. Ledo engano ... parte de um movimento mais amplo, iniciado na década de 1980. A conviq·:tt 1
de que é possível reconstituir uma sociedade a partir de sua cultura rn:tll'l i:tl
caiu em descrédito e os museus etnográficos foram acusados de n.:il'il-:11 ~.·
Considt?rações finais caricaturizar culturas alheias. 26 Frente a essa crise, museus c cxposi~·,,,._.,
etnográficas começaram a buscar novas alternativas, dentre as quais a I r:t11::
Ao examinarmos as artes não-ocidentais, estamos diante de objetos que formação em museus e exposições de arte (L'Estoile, 2007).
operam, simultaneamente, como testemunhos etnográficos de outras culturas aos
A dimensão estética é, hoje, uma das vias de acesso à diversidade t·tdlu
olhos ocidentais, como manifestações estéticas com fmte poder de comunicação, ral. E a diversidade cultural, por sua vez, foi eleita como valor universal pl'!;,
no seio das comunidades em que são produzidas, e como mercadorias com valor Declaração Universal adotada pela Unesco no dia seguinte aos atcntadu:; dt·
de troca, no mercado global. Trata-se de dimensões distintas, sobrepostas e inter-
11 de setembro. É nesse cenário que o Musée Branly se revela um nl:icto f('·tl iI
relacionadas. Pode-se até priorizar uma ou outra dimensão, mas é fundamental para repensar várias questões clássicas da antropologia, tais t:OIIItl :t·;
não perder de vista as demais. Assim, a abordagem predominantemente estética (im)possibilidades de tradução cultural, o exercício de poder implicado na ,,.
que deu a tônica do projeto Branly, desde o início, continua a merecer debate. presentação da alteridade, o problema da propriedade intelectual nas snl'inl:t·
Quando se criou o Musée Branly, partiu-se da idéia de que os objetos
eles sem escrita, a relatividade dos padrões estéticos e a inserção das cultur:t:;
produzidos por sociedades sem escrita contêm as premissas da expressão ar- tradicionais no mercado global.
tística mais genuína da Humanidade. Portanto, deveríamos apreendê-los pm
meio da emoção estética. Os idealizadores do Branly pareciam acreditar qul'
as peças da coleção seriam capazes de veicular uma verdade profunda, impc
nctrávcl ao discurso racional e acessível somente pela via sensível (Dias, 200(1 ).
Ora, Lévi-Strauss já mostrou que a introdução da escrita e o advento lh 1 é ACiUILAR, Nelson (Org.). Mostra do redescobrimento: arlc.s indíl~''llil.': :;,il,
individualismo obscureceram, entre nós, o papel de linguagem que a arte onq 1:1 r. Paulo: Fundação Bienal de São Paulo: Associação Brasil 500 ílllll:; dv !\I k:•
Visuais, 2000.
nas sociedades tradicionais. O antropólogo francês diferencia a arte ocidcul:d
da "primitiva" com base em dois fatores. O primeiro é a tendência à rcprcsl'll
PPIAH, Kwamc Anthony. Na casa do meu pai: a Álhca na l"ilo:.;nllit di!
!'i tação na arte ocidental, ao passo que a arte "primitiva", ao invés de rcprodtl/.11 Ifura. Rio de Janeiro: Contraponto, 1997.
I
modelos, comunica, funcionando como um sistema de signos. O segundo(· 'I"'·
!I\ a recepção artística é mais individualizada nas sociedades modernas. Nas snr1
i!/1 edades tradicionais, ao contrário, é a coletividade que espera do mtista qul· v h
lhe forneça certos objetos confeccionados de acordo com os cânoncs c n'1dí
'i 1
i' gos culturais (Lévi-Strauss, 1989). · 11 llillll <':11'1:1 enviada l'lll 1'! )(, a .facqnl's l'rit'dn1111111 prvsi<knk du ''"IIIÍ.''·"'" dt• :u 11·, '"1"'"""11•1·.'·
ft''l'l Sii:IW:.'; alil'llt:ll'll ljlll' liS IIIIIS<"IIS de \'lilll/',l'llli:t, ltni<', IIÚII pnd<'lll lll:IÍ.': uit'II'LI'I liJII;t IIILII'.''lll
Justamente por isso, nlio é possível m~gligL"nciar todos os aspedos Ílll:llq•l
i'll Íl!i~t'llllc:t I;~:;«
1"1:~.. ,.,... '''"'"'!<·::
.. d,· ::ot'Í<'d:id<'.', diJi·ll'llh':, da lln:;:.:< I\ IIH!Iii'O :JJ<',<'.Hd« JI«J .-Jc ,. :.IIIJH•'<.'IIIi<·J!I<' ':\
vcis que envolvem os arkf:tlos makriais d:ts sm·iedadcs ltft~t·ori<k·nlai.•;, tk•;lrt ··t\'jlll'lqtu·:. pr.:" .. 'I'"
',Piillllll"~"
n•·•·plióill:. Ih' ditll.'l«lll :.«nl l''"l'''"·'.ll'<'lli<'JJI llllo·J•It·., .. , " l.t
·i ,., " 1·,., ..,""'"'' "'"""'"""· 111p11d I J, .... IJ. 1\la!l;•·. 'lll!f,, I' I)
Ilana Goldstein Reflexões sobre a arte "primitiva" 313
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