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COMUNICAÇAO NOS MOVIMENTOS


POPULARES

2~ EDiÇÃO

Cicilia Maria Krohling Peruzzo "EDITORA


Y VOZES
Cicilia Mariá Krohling Peruzzo
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COMUNICAÇÃO NOS
MOVIMENTOS POPULARES
A participação na construção da cidadania

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)


(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)
2a Edição
Peruzzo, Cicilia Krohling

Comunicação nos movimentos populares: a participação na


construção da cidadania / Cicilia Maria Krohling Peruzzo. - Petrópolis,
RJ : Vozes, 1998.

Bibliografia

ISBN 85.326.2047-7

1. Autogestão 2. Cidadania 3. Comunicação de massa - Aspectos


sociais 4. Movimentos sociais 5. Participação social 6. Radiodifusão -
Aspectos sociais I. Título.

98-1855 CDD-302.14

índices para catálogo sistemático:

1. Comunicação de massa: Participação popular:


"EDITORA
Sociologia 302.14
Y VOZES
2. Participação popular: Meio de comunicação: Petrópolis
Sociologia 302.14 1999
Capítulo 3

COMUNICAÇÃO POPULAR

Primeira parte
FUNDAMENTOS TEÓRICOS
A comunicação popular não é um fenômeno recente, mas
só nos anos setenta e oitenta é que ela apareceria de forma mais
significativa na produção científica do campo da comunicação
1
social. Em cem anos - de 1883 a 1983 -, de 1.312 títulos,
apenas 21 versavam sobre a comunicação popular ou alternativa,
enquanto no final da última década este número subiu para 38,
2
entre dissertações e teses, além de artigos e livros. Uma pesquisa
levada a efeito, englobando textos de reflexão teórica e de
capacitação técnica até os de atividade propriamente dita, reve-
lou que, de 1974 a 1991, foram catalogados 198 documentos,
3
sendo que o maior crescimento se verificou entre 1986 e 1988.
Alguns autores chegam a ver nos estudos da comunicação
popular uma contribuição para a teoria de comunicação. Diz
Christa Berger: "O estudo da comunicação popular redefiniu os
marcos de problemática da comunicação. Durante muito tempo,
falar de comunicação significou falar de meios, canais, mensa-
gens. Agora, falar de comunicação popular implica falar de
cultura, de relação. E necessita, para tanto, da interdisciplinari-
dade em seu sentido mais profundo. Trazer a comunicação
popular para o espaço da cultura fez introduzir a dimensão do

1. Ver MELO, José Marques de. Inventário da pesquisa da comunicação no Brasil, 1984.

2. BERGER, Christa. A comunicação emergente: popular e/ou alternativa no Brasil, 1989,


p.19.

3. DOI MO, Ana Maria. A vez e a voz do popular: movimentos sociais e participação política
no Brasil pós-70, 1995, p. 135-136.

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conflito (...) histórico do qual o popular se define enquanto maioria e das restrições à liberdade de expressão pelos meios
movimento de resistência (...). E, conseqüentemente, a idéia de massivos, criaram-se instrumentos "alternativos" dos setores
ação, de práxis. A comunicação popular é uma prática em populares, não sujeitos ao controle governamental ou empre-
conflito (...) interc/asses, mas também intrac/asses. Ou seja, o sarial direto. Era uma comunicação vinculada à prática de
estudo da comunicação popular redefiniu o próprio conceito de movimentos coletivos, retratando momentos de um processo
popular, superando a versão populista e idealista, para quem democrático inerente aos tipos, às formas e aos conteúdos dos
povo é consciência de c/asse em oposição à massa despolitizada. veículos, diferentes daqueles da estrutura então dominante,
Esta redefinição do popular permitiu pensar a diversidade e a da chamada "grande-imprensa". Nesse patamar, a "nova"
pluralidade e revalorizar a relação entre comunicação de massa comunicação representou um grito, antes sufocado, de denún-
e comunicação popular, redimensionando este espaço ambíguo cia e reivindicação por transformações, exteriorizado sobretu-
e conflitivo em que se produz o popular, fora do qual é elevado do em pequenos jornais, boletins, alto-falantes, teatro, folhe-
a uma categoria ebstrete"," tos, volantes, vídeos, audiovisuais, faixas, cartazes, põsteres,
cartilhas etc.
Joana Puntel, citando R. White, explica: ')1. comunicação
I. CONTEXTUALlZAÇÃO NA DINÂMICA SOCIAL
popular, em sua gênese, não é um tipo qualquer de mídia,
O maior interesse pela pesquisa na linha do popular, nas como mídia grupal, rádio local ou material impresso. Não é
últimas duas décadas, coincidiu com sua maior incidência tam-
também uma instrução religiosa ou o desempenho comunitá-
bém no nível da prática, o que, por sua vez, correspondeu a todo rio de especialistas em agricultura falando a camponeses em
um processo de mudança no interior das sociedades latino-ame- linguagem singela. Ela surgiu de um movimento em nível mais
ricana e brasileira. Foi um momento da história em que a antítese profundo: grupos de camponeses ou de trabalhadores discu-
do status quo aparecia com nitidez, devido, possivelmente, à tindo entre si ou com outros grupos simileres." Quer dizer,
realidade sócio-política, econômica e cultural concreta do País, ela é resultado de um processo, realizando-se na própria
na qual predominava a negação da plenitude da cidadania à
dinâmica dos movimentos populares, de acordo com as suas
maioria da população.
necessidades. Nessa perspectiva, uma de suas característi-
As investigações sobre a comunicação popular implicam a cas essenciais é a questão participativa voltada para a
necessidade de a teoria abarcar os processos no contexto mais mudança social. A autora menciona, nesse contexto, os
amplo em que se realizam, ou seja, devem ir além do estudo projetos audiovisuais dos centros de Produção e Capacita-
do meio comunicativo em si mesmo, de um jornal, por exem- ção da Bahia e do Piauí, que, criados em função do trabalho
plo, pois a dinâmica social na qual este se insere é que vai lhe pastoral da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil com
dar significados. movimentos populares, mostram como a comunicação é
Numa conjuntura em que vinha à tona a insatisfação decor- parte da prática destes. Os vídeos são produzidos "não para
rente das precárias condições de existência de uma grande

5. WHITE, R. "Comunicación popular: language of liberation". In Media development.


Londres, WACC, 1980, nO3, p. 4. Apud PUNTEL,Joana T. A Igreja e a democratização
4. Id., ib., p. 30-31. " da comunicação. São Paulo, Paulinas, 1994, p. 133.

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as comunídadesmascom as comunidedes'", com a partici- às dominantes. Por fim, o sexto posicionamento é o que diz
pação destas em todo o processo. respeito a "povo" como um conceito dinâmico, aberto, conflitivo
e, portanto, histórico, encerrando uma rica negatividade, que o
1. "Do povo" dinamiza e atualiza permanentemente, na relação dialética entre
povo e antipovo.
Quando se fala em comunicação popular, parece claro, à
primeira vista, que se trata de uma comunicação do povo. Mas A maioria dos estudos da comunicação popular, na perspec-
o adjetivo "popular" abrange uma multiplicidade de significados tiva dos movimentos sociais, parte do pressuposto de que povo
diferentes, sendo consensual apenas que tem a ver com "povo". são as classes subalternas, submissas, econõmica e politicamen-
Assim, é da definição de "povo" que se parte para explicitar o te, às classes dominantes. Gilberto Giménez", por exemplo, em
que é "popular", embora essa categoria encerre a mesma pro- cujos textos alguns se baseiam, baliza nessa linha sua análise
blemática, podendo ser compreendida de várias maneiras. teórica da comunicação popular.

Segundo Luiz Wanderle/, uma primeira abordagem, do Porém, tanto esta formulação quanto os conceitos marxis-
senso comum, entende por "povo", de maneira vaga e abstrata, tas-Ieninistas ortodoxos de classes sociais, se tomados dogmati-
os que não têm recursos, posses e títulos, em contra posição ao camente, podem ser restritivos e, assim, não dar conta de nossa
não-povo, formado por empresários, profissionais liberais, inte- realidade concreta. Parece-nos que, ao se pretender lidar com a
lectuais etc. Uma segunda interpretação, baseada na dicotomia comunicação popular no Brasil e em outras sociedades latino-
elite-massa, sustenta que existem, na história, minorias compos- americanas, em constante movimento de mudança, há que se
tas por aristocratas, plutocratas e membros de organizações estar aberto às situações históricas conjunturais. O povo é
partidárias, constituindo a elite governante ou "classe política", composto por classes subalternas, mas não necessariamente só
e, por outro lado, a massa atomizada e desorganizada, o "povo", por elas. Há momentos em que ele engloba quase toda a nação.
dominado por aquela, dada a sua superioridade. Uma terceira Foi o que aconteceu, por exemplo, no auge da revolução nicara-
concepção vê no "povo" um conjunto de indivíduos iguais e com güense ou nos processos brasileiros das "eleições diretas já" e do
interesses comuns, que conflitam apenas por pequenas diferen- ímpeachment do presidente Fernando Collor de Meio. Forma-se
ças, ocorrendo aqui aqueles que acreditam na unidimensionali- nesses casos um grande elo, uma identificação em torno de um
dade provocada por uma cultura imposta por uns poucos que objetivo muito forte, uma coisa que aglutina e que tem um
detêm o poder. Uma quarta corrente, ligada à questão do caráter de oposição ao status quo. Povo, neste sentido, é todo
nacional-popular, identifica como "povo" aqueles que lutam um conjunto lutando contra alqo e a favor de algo, com vistas
contra um colonizador estrangeiro, sendo o "não-povo" todos os aos interesses da maioria.
que (elite e grupos nativos) se aliam ao colonizador. Uma quinta Povo não tem estatuto teórico universal, não se podendo,
formulação toma por "povo" as classes subalternas, em oposição portanto, vê-Io sob uma categoria de análise prefixada. É preciso
apanhá-Io em seu contexto, como uma realização histórica, cuja

6. PUNTEL, Joana T. ld., ib.

7. WANDERLEY, Luiz Eduardo. "Apontamentos sobre educação popular". In: VALLE, João 8. GIMÉNEZ, Gilberto. "Notas para uma teoria da comunicação popular". Cadernos Ceas,
E. e QUEIROZ, José (orçs.). A cultura do povo, 1979, p. 64. maijjun de 1979.

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cornposrçao e cujos interesses variam em função de fatores 2.3. Popular-alternativo
determinantes, estruturais e conjunturais, constituindo-se sem-
Para a terceira corrente, o popular situa-se no universo dos
pre num todo plural e contraditório.
movimentos sociais. Como escreveu Canclini", trata-se de uma
nova maneira de pensar o popular, ligando comunicação e
2. "Popular"
cultura. Ela ocupa-se da comunicação no contexto de organiza-
Falar de uma comunicação "popular" também envolve cono- ções e movimentos sociais vinculados às classes subalternas ou,
tações diversas, destacando-se, a nosso ver, três correntes em como dizem enfaticamente, da comunicação "ligada à luta do
seu estudo: povo" por melhores condições de existência e pela sua emanci-
pação, mediante movimentos de base organizados. Essa corren-
te subdivide-se em duas linhas de pensamento: a) a primeira,
2. 1. Popular-folclórico
surgida logo no início dos anos oitenta, concebe a comunicação
Para a primeira corrente, o popular abarca o universo das popular como libertadora, revolucionária, portadora de conteú-
expressões culturais tradicionais e genuínas do "povo", presentes dos críticos e reivindicativos capazes de conduzir à transformação
em manifestações folclóricas, festas, danças, ritos, crenças, cos- social; ela concretizar-se-ia pelos meios "alternativos", como
tumes, objetos etc. contracomunicação da cultura subalterna, colocada em antago-
nismo com a comunicação de massa; é chamada de "populista
esquerdizante" por Jorge González'"; b) a segunda, que apare-
2.2. Popular-massivo
ceu no início dos anos noventa, em função das reelaborações
Para a segunda corrente, o popular circunscreve-se ao universo ocorridas no âmbito da sociedade civil, tem uma postura mais
da indústria cultural, pautando-se os estudos por três linhas, defini- dialética e mais flexível; considera que a comunicação popular
das pela maneira como cada uma vê o popular: a) na apropriação pode inferir modificações em nível de cultura e contribuir para a
e incorporação das linguagens, da religiosidade e de outras carac- democratização dos meios comunicacionais e da sociedade, a
terísticas da cultura do povo pelos meios de comunicação de massa; cuja transformação imediata ela não consegue levar, por suas
b) nos meios massivos e em certos programas de elevado poder de limitações e contradições e sua inserção numa grande diversida-
penetração, influência e aceitação, a exemplo de "fenômenos de de cultural; e, por concretizar-se em espaço próprio, ela não se
audiência" como as novelas e os programas Sílvio Santos, Faustão, contrapõe à comunicação massiva. Aceita-se a coexistência entre
Aqui e Agora, Cidade Alerta e outros desse tipo, que podemos as duas linhas de pensamento, cada uma delas conservando suas
caracterizar mais como "popularescos": c) em programas massivos especificidades. Em suma, os estudiosos que seguem esta cor-
sintonizados com as problemáticas de bairro ou comunitárias, os rente entendem a comunicação popular como uma realização
quais, entendidos em geral como de utilidade pública, abrem da sociedade civil, que se constitui historicamente e, portanto, é
espaço para as pessoas fazerem denúncias, pedirem esclarecimen- capaz de sofrer as metamorfoses que o contexto lhe impõe,
tos ou externarem reivindicações quanto a questões que afetam
interesses comuns a determinados grupos de pessoas.

9. CANCLlNI, Néstor García. "De qué estamos hablando cuando hablamos de 10 popular?"
In: Comunicación y culturas populares en Latinoamérica, 1987, p. 21·37.

10. GONZALEZ, Jorge A. "A razão e o coração nos tão falados tempos do cólera: oralidade,
modernidade e meios". In: HAUSSEN, Doris F. (org.). Sistemas de comunicação e
identidades da América Latina, 1993.

118
119

II
admitindo o pluralismo e ocupando novos espaços ou incorpo- ':4 imprensa alternativa foi expressão da média burguesia,
rando canais de rádio e televisão e outras tecnologias de comu- dos trabalhadores e da pequena burguesia, defendeu interes-
nicação, como as redes virtuais (Internet, etc.). ses nacionais e populares (...). Fez mais que opor-se à forma
Alguns autores têm chamado a comunicação popular de
política - ditadura militar - assumida pelo regime: opôs-se ao
alternativa - além de muitos outros adjetivos que lhe são atribuídos,
conteúdo antinacional e antipopular, opôs-se à monopo-
como comunitária, participativa, dia lógica, horizontal, usados ge- lização da economia, à sua integração com grandes trustes
ralmente como sinônimos. Contudo, na bibliografia corrente, se faz
financeiros internacionais". 14
uma distinção entre os termos popular e alternativo. Em razão de condições conjunturais diversas, ela desapare-
No Brasil, a expressão "imprensa alternativa" tem recebido ceu, mas deixou herdeiras: a imprensa popular e a imprensa
conotação específica 11, entendendo-se por ela não o jornalismo partidária." A propósito, Regina Festa diz que, na mesma linha
de interpretação, ela "apenas mudou de lugar social. Ao contrá-
popular, de circulação restrita, mas os periódicos que se tornaram
uma opção de leitura crítica, em relação à grande imprensa, rio de jornais que aglutinavam diversas correntes, surgiram as
editorialmente enquadrada nas regras da censura imposta pelo publicações político-partidárias, representantes de novas e tradi-
regime militar, mas confortavelmente assentada na condição de cionais tendências da esquerda: Voz da Unidade, Tribuna da Luta
monopólio informativo. Também chamada de "nanica", foi lan- Operária, Hora do Povo, Trabalho, Alicerce, Em Tempo, Compa-
çada no mercado a partir da década de sessenta, para tornar-se
nheiro. (...) Esse período caracteriza-se, ainda, pelo surgimento
mais freqüente e variada nos anos setenta.12 Ela "identifica um
de uma imprensa alternativa especializada (...) [:} Cadernos do
Terceiro Mundo (...), Porantin (...)".16
tipo de jornal tebloide ou revista, de oposição, dos anos setenta,
cuja venda era feita em bancas ou de mão em mão. Eram Nesse processo, também a imprensa sindical recebeu um
publicações de caráter cultural, político e expressavam interesses impulso inovador, sobretudo a partir das greves do final dos anos
da média burguesia, dos trabalhadores e da pequena burguesia. setenta, no chamado "ABCD Paulista" (Santo André, São Bernar-
Eram espaços nos quais grupos de oposição em frentes políticas do do Campo, São Caetano do Sul e Diadema). Ela adquiriu
emitiam uma corajosa condenação ao regime político".13 São expressão, editando-se diariamente suplementos informativos
exemplos dessa época, entre outros veículos: Posição, Movimen- dos jornais da área, como o da Tribuna Metalúrgica, do Sindicato
to, Pasquim, Co ojorna I, Versus, Extra. dos Metalúrgicos de São Bernardo do Campo e Diadema, distri-
buído nos portões ou na saída dos restaurantes das fábricas. O
Sindicato dos Bancários de São Paulo lançou a Folha Bancária e
o Sindicato dos Químicos, o Sindiluta Diário. Muitos outros
11. Ver: MOREIRA, Sônia Virgínia. "Retratos brasileiros: vinte anos de imprensa alternati-
pequenos veículos foram publicados nesse período, chegando-se
va". In: Antologia do Prêmio Torquato Neto, 1985; PEREIRA, Raimundo. "Vive a
imprensa alternativa. Viva a imprensa alternativa". In: FESTA, Regina e SILVA, Carlos
Comunicação popular e alternativa no Brasil, 1986; MEDINA,
E. l.ins da (orgs.).
Cremilda. "Notas sobre o trabalho social na imprensa popular". Cadernos Intercom,
1982; CAPARELLI, Sérgio. Comunicação de massa, sem massa, 1980; e FESTA, Regina.
"Movimentos sociais, comunicação popular e alternativa". In: FESTA, Regina e SILVA,
Carlos E. Lins da. Op. cit. 14. PEREIRA, Raimundo. Op. cit., p. 55-57.

12. MOREIRA, Virgínia. Op. cit., p. 17. 15. Id., ib., p. 56.

13. FESTA, Regina. Op. cit., p. 16. 16. FESTA, Regina. Op. cit., p. 25.

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a cerca de mil títulos em 1991. Sem anunciantes nem assinan- Num primeiro momento, ela foi identificada como aquela
tes, e também sem encalhes, a imprensa sindical, no Brasil, edita
comunicação simples, de circulação limitada, produzida quase
20 milhões de exemplares ao mês." artesanalmente por grupos populares. Em seguida, passou-se a
Não há consenso quanto a uma tipologia da imprensa alterna- dizer que ela "não se refere ao tipo de instrumento utilizado,
tiva. Uns entendem por ela só os jornais que tiveram origem mas ao conteúdo das menseqem'", vendo-se-a como expressão
especificamente nessa variante, como Movimento e Posição.Ou- dos interesses, do "conteúdo das classes subalternas", entendido
tros incluem nela os jornais de igrejas e de partidos. E há ainda os este enquanto crítico-libertador. Depois apareceram aqueles que
que lhe acrescentam os jornais sindicais e comunitários. sustentam que "não são os meios técnicos em si que definem a
comunicação popular, nem tampouco são os seus conteúdos. O
3. Abordagens fragmentadas alternativo estaria no processo de criação conjunta, diálogo,
construção de uma realidade distinta na qual a pessoa seja
É necessário levar em consideração que por comunicação sujeito pleno. O que torna a comunicação popular é sua
popular se podem compreender processos variados, o que lhe inserção num contexto alternativo (.. -J, [caracterizado 1 por
confere características singulares. Primeiro, porque ela envolve sua tendência a romper a ordem do capital, integrar aquilo
desde os pequenos meios de comunicação dirigida até os de que o fragmenta".2o Vários autores de outros países latino-
comunicação grupal e os de comunicação massiva. Segundo, americanos, como Felipe Espinosa, Maria Cristina Mata, Mar-
porque os veículos especificamente populares não são elabora-
tínez Terrero e Martínez Pardo, valorizam o contexto como
dos com metodologias uniformes. Terceiro, porque enquanto
elemento significativo da comunicação popular, embora não
existem instrumentos de uma comunicação realmente participa-
afirmem que ele defina o que seja popular.
tiva, outros só abrem espaço ocasionalmente para a "voz do
Apreendidas isoladamente, essas exposições acarretam um
povo" e alguns nem chegam a isso, traduzindo até mesmo
fracionamento de um processo que encerra várias dimensões.
formas autoritárias de comunicação.
Articulá-Ias, mesmo que eventualmente elas não bastem, talvez
Talvez se possa debitar à diversidade de práticas da comuni- represente o melhor caminho para ajudar a compreender o
cação popular e ao surgimento ainda recente desse fenõmeno o fenômeno da comunicação popular, que não é, automaticamen-
fato de, em grande parte, as abordagens sobre ela serem um te, sinônimo de revolução nem tampouco de democracia.
tanto fragmentadas. Estas geralmente giram em torno de expe-
Uma das iniciativas mais recentes, no sentido de delinear a
riências setorizadas e caracterizam-se como estudos de casos
comunicação popular brasileira numa perspectiva mais global, é
concretos, não podendo, portanto, ser tomados individualmente
o estudo de C.b.Ij.?!E.J2.e~ger21,
que identifica a existência de quatro
para uma explicação de conjunto. Assim, no nível teórico, até
linhas de pesquisa sobre o tema: a que pega a imprensa como
este momento, há carência de uma sistematização mais globali-
zante sobre o tema.

19. FESTA,Regina. "Comunicação popular". In: SILVA, Roberto (coord.). Temas básicos
em comunicação, 1983, p. 89.
20. GOMES, Pedro Gilberto. "Jornalismo popular: uma experiência democrática". Revista
17. Id., ib.
Tempo e Presença, 1988, nO228, p. 9.
18. FRANZIN, João. "Imprensa sindical: uma alternativa de 20 milhões de exemplares".
21. BERGER,Christa. A comunicação emergente, popular e/ou alternativa, no Brasil,
In: Revista de Comunicação, agosto de 1993, nO33, p. 12·15.
1989, p. 23·24.

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ponto de partida, analisando jornais operários, sindicais, popula- americano de opressão da maioria da população e o movimen-
res e alternativos; a que busca uma referência teórica para to de sua negação, constituído autonomamente no âmbito da
descrever a comunicação popular, perpassando conceitos de . sociedade civil. Ela apresenta-se então como forma de corres-
classes subalternas e hegemonia; a que trabalha a recepção das ponder às necessidades de expressão e organização desse
mensagens; e a que relaciona a comunicação com os movimen- movimento de negação e, ao mesmo tempo, de construção
tos sociais. Ao fazer uma interpretação dos estudos existentes, de uma sociedade nova. Está articulada a um processo de
ela também mostra que o significado da comunicação popular conscientização-organização-ação mais amplo de setores de
está em ser um fenômeno emergente, do povo ou com ele classes subalternas.
relacionado, comprometido com a mudança social e a transfor- Nesta perspectiva, a comunicação "refere-se ao
popular
mação deste em sujeito histórico."
modo de expressão das c/asses populares de acordo com a sua
capacidade de atuar sobre o contexto social da qual ela se
4. Uma releitura do processo reproduzi." Ela "está ligada à luta do povo e tende a converter-
se em um processo dialético entre a teoria e a prática". 24 Ela não
Ao invés de retomar conceitos e definições, já bastante
tem um fim em si mesma, mas relaciona-se com um pleito mais
tratados na literatura pertinente, tentaremos fazer uma leitura
amplo. É meio de conscientização, mobilização, educação políti-
mais por dentro da comunicação popular. No conjunto da pro-
ca, informação e manifestação cultural do povo. É canal por
dução teórica, identificamos alguns traços comuns que se carac-
excelência de expressão das denúncias e reivindicações dos
terizam como fundamentos da concepção de comunicação
setores organizados da população oprimida. "Deve estar vincu-
popular relacionada aos movimentos sociais.
lada à luta pela conscientização [e integrada} num processo de
Essas características, na prática, acontecem inter-relaciona- luta com a perspectiva de [uma} nova sociedade ".25
das, não aparecendo necessariamente ao mesmo tempo em
todos os textos, mas são detectáveis na globalidade da produção
4.2. Conteúdo crítico-emancipador
acadêmica e também daquela gerada no âmbito do próprio
movimento popular ou por pessoas e instituições como as Ela encerra uma crítica da realidade e um anseio de emanci-
organizações não-governamentais. As principais, no conjunto da pação, na luta por uma sociedade justa. Como produto de uma
bibliografia sobre a comunicação no seio dos movimentos popu- situação concreta, seu conteúdo, nos últimos anos, é essencial-
lares, são apresentadas a seguir. mente configurado por denúncias das condições reais de vida,
oposição às estruturas de poder geradoras de desigualdades,
estímulo à participação e à organização, reivindicações de acesso
4. 1. Expressão de um contexto de luta a bens de consumo coletivo etc.
Ela desenvolve-se no bojo da educação popular libertadora,
"ligada à luta do povo" contra a degradação das condições de
existência e pela defesa da vida. Referimo-nos aqui ao patamar
onde ela se realiza, explicitando-se o contexto brasileiro e latino- 23. FESTA, Regina. Comunicação popular e alternativa: realidade e utopias, 1984, p.
169-170.

24. MERINO UTRERAS, Jorge. Comunicación popular alternativa y participatoria, 1988,


p.20.

22. ld.. ib., p. 14. 25. GOMES, Pedra G. O jornalismo alternativo no projeto popular, 1990, p. 39.

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de acordo com a ooçêo que as pesso s (..,) v o fI Jl1d, (.. ,) '001/1'111', ( .. ,) Ori! lri mo ou dirigi mo dos m di dor , u
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que vai se gestando geralmente por meio de uma organização (,IIftl d co rêrcis com a opção essumkie':" Contudo, a partici-
popular, na qual os objetivos são c/aros e de acordo com as lutas P,IÇ 10 na comunicação popular não diz respeito unicamente à
[de] um povo em prol de sua libertação".26 I rodução de meios. Ela perpassa as relações interpessoais e
jrupais e ali ajuda a construir a base de nova cultura política.
4.3. Espaço de expressão democrática
1/.4. O povo como protagonista
Ela é um espaço de comunicação democrática, vinculada aos
interesses dos segmentos subalternos da população, tanto em A comunicação popular tem como protagonistas o próprio
sua metodologia quanto em sua forma e em seu conteúdo. Isto povo e/ou as organizações e pessoas a ele ligadas organicamente.
evidencia-se nos fatos de ela: significar a abertura de novos canais Nesse caso, ele é visto no seu antagonismo em relação às classes
para segmentos sociais sem garantia de acesso aos meios mas- dominantes e conçebido como o conjunto das classes subalternas.
sivos para expor suas idéias e suas reivindicações; ser portadora "que
Mas ela pode ser elaborada em dois sentidos: aquela
de uma nuance democrática por transmitir informações a partir se dá no âmbito das próprias c/asses subalternas (...) [e/ou] a
das bases; ser constituída pelo ambiente onde se situa e ajudar (...) que tem origem nas 'alturas' da cultura hegemônica e é
a constituí-Io; participar na manifestação dos conflitos entre as dirigida às c/asses subalternas".29 Ambos os casos implicam, ao
classes sociais nos campos dos interesses e da hegemonia; dispor menos tendencialmente, a quebra da lógica da dominação e se
de material (cartilhas, manuais, folhetos) que, em grande parte, dão não a partir de cima, mas a partir do povo, compartilhando
apresenta a participação como princípio e aspiração, ao mesmo dentro do possível seus próprios códiços."
tempo em que divulga metodologias para aperfeiçoá-Ia.

No campo da produção acadêmica, a participação na comu- 4.5. Instrumento das c/asses subalternas
nicação é um temà presente tanto nos estudos de casos quanto A comunicação popular é entendida como a das classes
na perspectiva conceitual. Quando se trata de comunicação subalternas ", realizada num processo de luta de classes. Nesse
popular, esta é vista a priori como democrática. Na realidade,
entretanto, apesar de a democracia se fazer presente em muitos
movimentos populares, ela não está necessariamente assegura-
7 28. Neste trabalho, as citações extraídas de obras escritas em espanhol foram por nós
da no nível da elaboração da comunicação. Maria C. Mati
traduzidas.
alerta, a propósito, sobre as práticas débeis e imperfeitas dessas
29. GIMÉNEZ, Gilberto. "Notas para uma teoria da comunicação popular". Cadernos Ceas,
organizações: "a cada passo aparece a falta de participação, a 1979, nO 61, p. 58.

30. Cf. id., ib., p. 60.

31. "Quando falamos em comunicação popular, a um certo tipo de comunica-


referimo-nos
ção que de alguma forma tem a ver com o povo. Por povo entendemos
o conjunto das
c/asses subalternas." GIMÉNEZ, Gilberto. Op. cit., p. 57, Outros autores que trabalham
nessa linha são: FESTA,Regina, "Comunicação popular", In: SILVA,Roberto p,da, Temas
26. CEPALC."Construyendo una teoría de Ia comunicación popular". Revista Encuentro,
básicos em comunicação, 1983; Comunicação popular: realidade e utopias, 1984;
, 1988, nO 31, p. 30.
GOMES, Pedro Gilberto, O jornalismo alternativo no projeto popular, 1990; e MOTTA,
27. MATA, Maria Cristina. "Cuando Ia comunicación puede ser sentida como propia". In: Luiz Gonzaqa. "Alternativa popular: comunicação e movimentos sociais", In: GRINBERG,
II Comunicación y culturas populares en Latinoamérica, 1987, p. 227. Máximo (orq.). A comunicação alternativa na América Latina, 1987,

126 127
I
caso, ela é vista como oposta ao modelo massivo em poder das OU por pressão de organizações da sociedade civil. Além do que,
classes dominantes, o qual é encarado como impositivo, alienan- ntidades e grupos dos movimentos populares passaram a ocu-
te ou pervertedor dos interesses populares. A primeira repre- par espaços nos grandes veículos, para transmitir suas mensa-
sentaria o lado "bom", "puro" e transformador, enquanto a gens e os programas por eles produzidos, e mesmo a deter
segunda encarnaria a manipulação e o controle da sociedade a posse de canais de comunicação como jornais e rádios de
pelas classes hegemônicas. Tal visão é contemporânea à fase da alcance local ou até regional.
pesquisa que primou por denunciar os efeitos alienantes dos
meios de comunicação de massa sobre os receptores.
11.COMUNICAÇÃO POPULAR, MEIOS MASSIVOS E CULTURA
Foi justamente no auge de estudos dessa natureza que
Passado o auge da comunicação "alternativa", bem como da
ocorreu uma efervescência da comunicação popular no Brasil,
censura implacável do então regime militar sobre a mídia massi-
num momento onde os meios massivos se revelavam comprome-
va, a postura baseada no antagonismo entre as duas vem sendo
tidos, estrutural e conjunturalmente, com a ordem estabelecida.
revista, não só na área acadêmica, mas também no âmbito de
Nessa situação, os textos enfatizararn a incompatibilidade entre
organizações envolvidas com a comunicação popular.
as duas formas. Exemplos do tipo de linguagem usado: "Os
meios de comunicação de massa podem, então, ser úteis ao Autores como Anamaria Fadul, Jesús Martín-Barbero, Néstor
trabalhador? Tal como os conhecemos e sabemos que são García Candini. Rosa Maria Alfaro e Hernando Martínez Pardo estão
usados em nosso País, nêo"." 'f:\ rádio popular quer colocar o entre os que têm criticado essa visão. O último, citado por Gomes,
ouvinte cada vez mais em contato com sua realidade, para afirma que "não se pode isolar o processo como uma luta entre a
compreendê-Ia e poder transformá-Ia. A rádio comercial nunca comunicação popular e a comunicação burguesa. O objetivo da
fala da realidade do povo, mas de outras coisas, de outras comunicação popular não pode se contrapor à comunicação
realidades, justamente para atrapalhar a luta popular pela trans- burguesa, pois a luta não é esta. Sua luta é 'a favor [de}' e não
formação da sociedade em que vivemos". 33 'contra algo'. O problema deve ser colocado de maneira distinta:
Essa postura de opor os meios populares aos massivos sofreu
onde há comunicação popular? Noutra situação, a cpmunicação
burguesa, massiva, comercial teria os mesmos resultados ?"... 34
uma profunda revisão nos anos noventa, em função das mudan-
ças que ocorrem na socieade. Apesar de serem campos de Como diz Fadul, "na década de setenta se proclamou o
conflitos e terem suas especificidades, sob a ótica do receptor império do popular e do alternativo como forma de se fazer
não se estabelece esse antagonismo. Por outro lado, muitas frente à dominação, reforçando assim a oposição entre o mas-
das metas e linguagens antes restritas ou acessíveis apenas sivo e o popular. {Isto}, desconhecendo que nunca houve ruptura
aos meios alternativos começaram a ser incorporadas na entre as diferentes formas de cultura, nem mesmo no passado,
programação da mídia convencional, seja por iniciativa desta pois a cultura não é coisa estática. Ela sempre incorporou
elementos das diferentes culturas, isto é, das manifestações da

32. CEM!. A comunicação do povo, 1985, p. 17.


34. Apud GOMES, Pedra Gilberto. O jornalismo alternativo no projeto popular, 1990,
33. CEM!. No ar.. uma rádio popular, 1984, p. 3. p.40-43.

128 129
cultura erudita, popular, massiva, cruzada com aquelas da cul- tlld" I tlS necessidades em nível de comunidades e de movimen-
tura local, nacional e internacional". 35 to I ci is organizados. Além disso, o fenômeno da cultura
Assim, opor a comunicação popular e os meios massivos não I' I!l11 sa todo o seu processo, o que colabora para incorporá-Ios
é uma idéia compartilhada por todos os estudiosos da área. lI! otidiano e para que agreguem valores do povo em sua
Vários, a exemplo de Grinberg, vêm tentando mostrar que a pie qr mação. Afinal, "o próprio povo já é partícipe na formação
grande mídia é poderosa, mas não onipotente: '~o longo da ,li, uma cultura de massas hegemonizada pela burçuesie"."
história, as elites sempre usufruíram do monopólio da palavra Há que se reconhecer o grande poder da mídia e sua
escrita. E hoje acrescentaram ainda o monopólio da voz e da 11\ mipulaçào, prioritariamente, a serviço dos interesses das elas-
imagem (...). Se os meios fossem, porém, realmente, esses • dominantes, mas nem por isso ela deixa de dar sua contribui-
maravilhosos reprodutores da submissão, esses todo-poderosos ~t10 ao conjunto da sociedade. Quando quer, divulga campanhas
conformadores de consciência, a ordem social seria inamoví- I programas educativos e outros de elevado interesse público.
vel. Neste caso, deveria ser fechada, com resignação fatalista, I or outro lado, ao informar, instantaneamente, sobre fatos que
toda possibilidade de mudança (...). O surgimento de vias ocorrem em qualquer parte do mundo, também propicia entre-
alternativas de comunicação-informação é um sintoma de tenimento, preenchendo, assim, necessidades que os meios
processos que se verificam no fundo da vida social, uma populares não se propõem e nem conseguem satisfazer. Temos
tentativa de romper o cerco das estruturas informativas pre- que levar em conta que ela vem sendo aceita tal como é pela
dominantes (...). Mas os meios alternativos, que não são maioria da população, o que inclui as classes subalternas. Seu
massivos dentro da sociedade de massas e de sua cultura - conteúdo, seus formatos e sua linguagem têm muito a ver com
trata-se de experiências do tipo teatral, de jornais murais, do o universo cultural de segmentos de receptores. Quem, mesmo
denominado cine-denúncia ou qualquer outro canal =, de lendo o jornalzinho da "comunidade", não acompanha o noticiá-
forma alguma substituem os mass medie"," rio da televisão? Ou quem deixa de ver a "novela das oito" para
assistir um programa da tevê educativa ou cultural?
1. Comunicação popular e comunicação massiva >
Os veículos de comunicação massiva não são, portanto,
Na prática, os meios de comunicação popular, apesar de sua necessariamente, "perversos" com relação aos interesses popu-
importância e de seu significado político, não chegam a colocar- lares. Eles, enquanto meios técnicos, permitem diversas formas
se como forças superadoras dos meios massivos. Os dois são de emprego, como já disse Brecht há muitos anos. Muitas
complementares e não excludentes. Os grandes veículos, por um experiências, principalmente no setor da radiofonia, têm de-
lado, fazem-se necessários e importantes no campo do diverti- monstrado sua potencialidade quanto a um trabalho educativo
mento e da informação, por exemplo, mas não conseguem suprir na perspectiva emancipadora. O fato é que a comunicação
popular também pode valer-se deles. Do rádio, por exemplo,
divulgando mensagens de interesse dos setores subalternos

35. FADUL, A. "Cultura e comunicação: a teoria é necessária". In: KUNSCH, Margarida


M. Krohling e FERNANDES,Francisco de Assis (orgs.). Comunicação, democracia e
cultura, 1989, p. 74.
36. GRINBERG, Máximo. "Comunicação alternativa: dimensões, limites, possibilida-
des". In: GRINBERG,Máximo (org.). A comunicação alternativa na América Latina, 37. ALFARO, Rosa Maria. "Un enfoque político Ele Ia participación en Ia co~.u~~&lcjón
1987, p. 31·33. popular". Revista Diálogos de Ia Comunicación, 1988, p. 63. . ·~o•.·.;" ..

130 131
dentro da programação convencional, conseguindo espaço para
I 1111 Icctuais de esquerda. Estes puseram-se a valorizá-Ia -
iniciativas próprias, obtendo a concessão de emissoras ou cons-
(li',Iel irnente ou idealmente, segundo alguns - e a apresentá-Ia
tituindo canais livres. Por outro lado, em plena era eletrônica, as
(11111) I rça revolucionária portadora de potencial para alterar as
forças progressivas não poderiam desprezar a oportunidade de
tnltw sociais, em oposição ao seu contrário, encarnado nas
se comunicar simultaneamente com milhares de pessoas.
I (\11 dominantes e em seus mecanismos de poder.
A tendência a repudiar a mídia massiva talvez tenha até
) estudos, em grande parte, estruturaram-se a partir desses
influenciado a elaboração de uma comunicação popular não tão
prrn (pios, mas é preciso levar em conta que não são eles que criam,
atraente, que atribui um espaço e um valor muito reduzido ao
plll i sós, uma mitificação do popular. Eles têm muito a ver com a
entretenimento, ao lazer, às amenidades, ao humor e ao lúdico
I "Iidade e refletem concepções arraigadas na prática concreta de
- às coisas do mundo do sonho, da fantasia, do divertimento e
IjIUpOS sociais, que, sob o influxo da Igreja Católica, de partidos
do afetivo, enfim, que integram o dia-a-dia e os anseios humanos
li I(ticos e de outras instituições, chegaram a conceber-se como
e das massas. Às vezes ela até chega a levar em conta essas
ntra-hegemônicos. Por outro lado, essa visão foi compartilhada
dimensões, mas não raro o faz de modo instrumentalizado: o
I or uma parcela significativa da produção científica de outras áreas
horóscopo é adaptado para um discurso de caráter mobilizatório,
10 conhecimento, como as ciências sociais e políticas. Ambas as
por exemplo. Se os meios comunitários quiserem alcançar suces-
nuances, por sua vez, encontraram arrimo nos ideais revolucionários
so e se mostrar democráticos, terão que repensar esta prática e
originados das experiências cubana e nicaragüense e de movimen-
trabalhar com os valores culturais onde se inserem.
tos guerrilheiros de outros países, em concepções políticas da
A temática da relação entre comunicação popular e massiva squerda clássica e na situação premente e de participação desigual
remete-nos a algumas questões. Por um lado, esgotou-se todo do povo. Talvez toda essa práxis tenha dificultado a percepção de
um período de análise dos mass media, que privilegiou a abor- que os movimentos coletivos se dão mais em torno das condições
dagem de suas estruturas, a par de seus processos de manipu- imediatas de existência, que requerem mudanças, do que da
lação e dos possíveis efeitos maléficos nos receptores. Depois transformação revolucionária global da sociedade.
passou-se a uma revisão dessas posições, adentrando-se os níveis
Junto com a construção de utopias, no entanto, realizaram-se
da recepção e da cultura popular, na tentativa de compreender
nos anos oitenta grandes aspirações de sociedades latino-america-
os fenômenos comunicativos. Ao mesmo tempo, emergiam com
nas, fortemente influenciadas por todo o movimento da sociedade
vigor, na América Latina, estudos de formas alternativas de
civil. Diz Festa que "os latino-americanos construíram experiências
comunicação gestadas na sociedade civil, alicerçados geralmente
inéditas: governos eleitos democraticamente em quase todos os
numa prática ou num engajamento, se não de militância, pelo
países da região, conquista de direitos civis e políticos como em
menos de pesquisa-ação ou de pesquisa participante. Para tanto,
nenhum outro momento da história do continente, capacidade de
adotou-se uma linha crítica progressista, amparada nas contribui-
organização social e de ousadia cívica, fazendo emergir novos
ções científicas da fase da pesquisa-denúncia e numa leitura
atores e sujeitos sociais nos diversos cenários da região, e ainda a
cotidiana da programação dos meios massivos.
construção de uma vasta rede de processos comunicativos dentro
. - .. ,,38
e fora das orgamzaçoes SOCIaiS.
2. Questionando o mito do antagonismo
Nessa época, a práxis popular ampla, sobremaneira expres-
38. FESTA, Regina. Elementos para uma análise da comunicação na América Latina:
siva e demolidora de padrões então vigentes, empolgou militan-
perspectivas para os anos 90,1991, p. 2.

132
II 133

I
Na verdade, o que se achava na base dos acalorados debates 11111111 ,'. m fins lucrativos e de movimentos sociais; é multidirecio-
acadêmicos de então era a idéia embutida naqueles estudiosos " I, hnrl/ontalizada, emitida a partir dos anseios das classes subal-
que concebiam os grandes meios de comunicação (rádio, televi- 111.1'0; mobiliza e organiza o povo em torno de seus interesses,
são, jornal) como recursos de "[uma} mera manipulação, uma 1111 dldnle a persuasão; desvenda a realidade; sustenta a existência
lavagem cerebral e comercial (...), distração vazia feita pelas d 1 nnflitos entre as classes sociais; inter-relaciona os fatos, para
corporações multinacionais, que doravante controlam cada as- 111 IIlltlr uma compreensão de conjunto; politiza a comunidade;
pecto da produção e distribuição da cultura de massa", em plopi ia o diálogo e a participação no que diz respeito às decisões;
39
palavras de Jameson, citado por Fadul. I onomicamente instável; tem um raio de ação limitado; não se
1111 li segura o acesso às ondas nem à tecnoloqia."
Os meios de comunicação de massa, segundo os estudos da
época, em síntese: estão nas mãos da burguesia; orientam-se Essas descobertas da pesquisa, que marcavam época nas
pela unidirecionalidade e verticalidade; privilegiam os objetivos e ultimas décadas, com o correr do tempo passaram a ser refuta-
a ideologia das classes dominantes; criam hábitos de consumo li" na área acadêmico-científica. À primeira vista, parece tratar-
por meio da persuasão; ocultam ou desvirtuam a realidade; I' de uma apreciação indiscriminada no sentido de desautorizar
distorcem os fatos; despolitizam o receptor; desmobilizam inte- t.rls interpretações. Na verdade, o que se põe em xeque é a linha
resses das classes subalternas; impedem o acesso, o diálogo e a unidirecional e antidialética na compreensão da comunicação
participação da sociedade no que se refere a decisões relativas massiva e da comunicação popular como manifestações sociais.
a programações e mensagens; apropriam fragmentos da cultura Mesmo porque os referidos estudos, no que toca aos meios de
popular; detêm a tecnologia; e são economicamente estáveis." comunicação de massa latino-americanos, evidenciam mecanis-
mos reais de funcionamento e de estrutura" que não poderiam
Os meios comunitários, por sua vez, estariam ligados "à
ser negados. As críticas, em essência, apontam que, enquanto
cultura popular, que desempenharia um papel de 'cultura de fenômenos, os dois tipos de comunicação estão mediatizados
resistência' (ao capitalismo, à ideologia dominante, à cultura pela cultura e por isso não podem ser avaliadas como instrumen-
oficial). (...) Para tanto, sua produção estaria desvinculada do talizadas, onipotentes, isoladas nem opostas."
maquiavelismo da cultura de massa. Seria pura em sua criação,
ousada em seu conteúdo e permaneceria imaculada na divulga-
~ - ,,41
çao e recepçao .
No todo, os estudos da comunicação popular a vêem como
42. Cf. FESTA,Regina. Ib.
portadora das seguintes características: está nas mãos de insti-
43. No Brasil, o sistema de telerradiodifusão pertence à União, que o explora direta ou
indiretamente. Assim, as emissoras de rádio e televisão só podem instalar-se mediante
concessão do governo federal, poder durante muitos anos circunscrito ao presidente
da república. A partir da constituição de 1988, essa decisão precisa do aval do
Congresso Nacional. Na prática, isso significa que o governo tem concedido o direito
de operar o rádio e a televisão conforme seus interesses políticos e econômicos. O
39. Apud FADUL, Anamaria. Comunicação e democracia no Brasil: a crítica à concepção
resultado é que os meios estão monopolizados nas mãos de grandes conglomerados.
instrumental, 1982, p. 2.
No campo da imprensa escrita, há liberdade de criação de veículos, mas os principais
40. FESTA,Regina. "Mulher e comunicação alternativa: um processo de resistência em jornais e revistas também são produzidos por grandes grupos empresariais do País.
explosão". Revista Comunicação e Sociedade, 1982, nQ 8, p. 178.
44. Vários autores trabalham nessa linha, entre eles Jesús Martín-Barbero, Néstor G.
41. SANTOS, Roberto E. dos. "Mitos e preconceitos na teoria da cultura de massa". In: Canclini, Anamaria Fadul, F. Jameson, Marco Morei, Roberto Elísio dos Santos, Rosa
GOMES, Pedro Gilberto e PIVA, Márcia (orgs.). Políticas de comunicação, 1988, p. 97. Maria Alfaro, Carlos Eduardo Lins da Silva e Miguel de Moragás.

I
134 135

II
Escreve Fadul: 'í1. crença de que os meios manipulam as I "'11 uuç
O de um novo modelo de análise que coloca uma
consciências ignora a dimensão fundamental da pessoa humana f I "'''~'' ,social e teórica, da comunicação com o popular. (...)
e, portanto, seu universo cultural, para aceitar que os valores do I '( le r o popular como ponto de arranque da reflexão em
povo são constituídos por aqueles veiculados pelos meios mas- 1I111/ll/i( çêo não significa de modo algum equiparar o popular
sivos. É necessário examinar o que passa do projeto de manipu- "1/11 '''/0 dado, já que o popular não é homogêneo e não pode,
lação das c/asses dominantes, quando as c/asses trabalhadoras 1'1111"/1/0, ser compreendido por fora do ambíguo e conflitivo
se defrontam com o universo da representação, que não tem I I1I H'" o em que se produz e emerge atualmente =, nem a uma
nada a ver com a vida de cada um. A leitura desses meios não Itlr"", já que isto equivaleria a convertê-Io em uma espécie de
é uniforme e não pode ser pensada como pura passividade, já ( "/1 qoris universal' metafísica ".47

que é possível uma outra decodificação em função das lutas e Assim, há que se tomar a comunicação popular em seu
crenças coletivas e individuais. O emissor não tem o monopólio I utorno. onde, necessariamente, ela será captada não como
da decodificação da mensagem, porque, uma vez construída, uma ilha isolada, mas como algo que tem suas especificidades e
ela é lida das mais diferentes maneiras, pois diz respeito aos ',1 relaciona com a sociedade, convive com ela e dela usufrui mais
valores culturais de uma sociedede'.? .unplarnente. E também se verá que o popular não é homogê-
Em outra oportunidade, a autora refere-se ao popular: 'í1.0 11 0, porque é pluralista e histórico." Importa que ele seja
negar uma importante dimensão do real, o popular como uma .ipreendido em seu contexto, entendendo-se em seu interior a
dimensão do massivo, elegeu-se uma interpretação da realidade ultura. Desse modo, possivelmente não "demoniaremos" o
que, apesar de 'popular' em tese, não conseguiu compreender massivo nem faremos pouco caso de seu potencial de influencia-
a realidade do mundo popular, porque o fenômeno definido ção, como também não "endeusarernos" ou menosprezaremos
como popular não conseguiu interessar a públicos mais amplos ° popular. Ou seja, este não será tomado simplesmente em sua
(...). Instituições como [a] Igreja (...). os partidos políticos, os virtualidade revolucionária nem, por outro lado, só na perspecti-
sindicatos, os movimentos sociais voltaram as costas para o va saudosista do folclórico, arcaico'", melodramático e/ou mas-
massivo como uma forma de buscar uma aproximação com as
massas, esquecendo-se [de] que em nosso continente a institui-
ção que mais conseguiu se aproximar das massas, por se
apropriar de seu modo de pensar, falar e ver o mundo, foi a 47. MARTIN-BARBERO,Jesús. "La comunicación desde Ia cultura: crísis de 10 nacional y
emergencia de 10 popular". Revista Estudios sobre Ias culturas contemporáneas, 1987,
indústria cultura/". 46 nQ 3, p. 42-43.

48. Sobre as várias maneiras de se conceber o popular ver: CANCL/NI, Néstor G. "O
3. Expressão da cultura nacional e o popular nas políticas culturais: concepções atuantes na América Latina".
In: MELO, José Marques de (org.). Teoria e pesquisa em comunicação: panorama
Como saída para os impasses da produção teórica sobre latino-americano, 1983; e GONZALEZ, Jorge. "A razão e o coração nos tão falados
comunicação, Barbero esclarece: "Nós falamos em um processo tempos do cólera: oralidade, modernidade e meios". In: HAUSSEN, Doris (org.).
Sistemas de comunicação e identidades da América Latina, 1993.
49. Existe uma corrente que centra os estudos nessa linha, conforme Canclini (1987:25):
''Alguns escritores românticos, antropólogos e especialistas em folc/ore produziram
desde princípios do século livros úteis para conhecer os mitos, as intuições e os
45. FADUL, Anamaria. "Políticas culturais e processo político brasileiro". In: MELO, José costumes de nossos povos. (...) [Estudaram] 'comunidades' isoladas (..-). viram cultura
Marques de (org.). Comunicação e transição democrática, 1985, p. 183-184. popular como uma coleção de objetos, práticas e crenças. (...) Esse reducionismo (...)
46. FADUL,Anamaria. "Cultura e comunicação: a teoria é necessária".ln: Op. cit., p.74-75.
fomentou uma realização do popular que subsiste hoje. (...) [Basta vermos os] museus

136 137
sivo. Como a sociedade, a cultura não é algo estático. Em seu t 1/ 111'''1/' de parentesco e reciprocidades, como valores ou (...)
movimento, nas décadas de setenta e oitenta, ele tem sido ,,11 1.1 nas convicções religiosas". 52
reflexo não só da reprodução de valores e da criação e recriação nzélez escreve: "Cultura nos parece que é antes de tudo
Ir
de outros, mas também da introdução da utopia. 1/1" 1/1 do de organizar o movimento constante da vida concreta,
Diz Barbero: "Começo a ver nos movimentos sociais uma "IfIlICltlna e cotidianamente. A cultura é o princípio organiza-
aproximação aos fenômenos de comunicação ligada à cultura e rir)! I· experiência, mediante a qual ordenamos e 'estrutura-
ligada ao cotidiano; ligada a um peso muito maior das matrizes IIlr " nosso presente, a partir do lugar que ocupamos nas
a partir das quais a comunicação funciona, quer dizer, uma /r',I/' das relações sociais. É, a rigor, nosso sentido prático da
comunicação que não se explica nem se encerra no fenômeno vul«. Mas a cultura não só permite domesticar nossa situação
comunicativo".50 Em outro texto, ele expõe concretamente o l}fl' ente, ela é também constitutivamente sonho e fantasia,
peso cultural desses movimentos, vendo neles fatores de "fer- '/11 transgride os cercos do sentido prático: fantasia e projeto
mentação social e política de uma nova identidade popular. (...) '111 sobrepassa os duros e estreitos limites da pesada e
É um projeto de democracia nova que [eles] apontam. (...) O wrltssime realidade. A cultura é escape, evasão e destruição
bairro aparece (...) como o grande mediador entre o universo / crua realidade que nos permite - a 'sonhar', a brincar, a rir
privado da casa e o mundo público da cidade. (...) A rua não é abrir as comportas da utopia e, a partir desta, nos deixa
puro espaço de passagem, mas lugar de encontro, de trabalho projetar outras formas de organização, distintas do vivido e -
e de jogo. (...) A denúncia política abre-se à poesia popular e ís vezes - no momento irrealizáveis" .53
enche-se de densidade política". 51 A comunicação popular, consideradas procedentes as críticas
A cultura, de acordo com Thompson, está relacionada com aos estudos que a apanham de um modo unidirecional, encerra
a experiência: 'As pessoas não experimentam sua própria expe- as dimensões das contradições, dos conflitos e das lutas existen-
riência apenas como idéias, no âmbito do pensamento e de seus tes nas sociedades latino-americanas. Isso compreende a existên-
procedimentos, ou (...) como instinto proletário etc. Elas tam- cia de novas formas de expressão e novas nuances de valores
bém experimentam sua experiência como sentimentos e lidam presentes no dia-a-dia das pessoas, incluindo aqueles alimenta-
com esses sentimentos na cultura, como normas, obrigações dos pelos grandes meios. Não é pertinente, hoje, pensar-se numa
cultura dissociada da mídia. Afinal, na práxis cotidiana, o popular
no sentido conscientizador não se isola do massivo. O gosto pela
de cultura popular e os grupos artísticos que recriam ( ... ) músicas e danças tradicionais; programação melodramática e por cenas de violência, por exem-
mostram os produtos e escondem o processo social que os engendrou. ( ... ) Necessi-
plo, continua vivo, o que não quer dizer que o modo de pensar
tamos deter-nos no sentido que o popular recebe em suas práticas". CANCLlNI, Néstor.
"De qué estamos hablando cuando hablamos de 10 popular?" In: Comunicación y
culturas populares en América Latina, 1987, p. 25. Ver também: GONZALEZ, Jorge.
"Culturas, mapas, y luchas por Ias definiciones
poderes legítimas de los sentidos
sociales de Ia vida". Revista Estudios sobre Ias culturas contemporáneas, 1987, nO 3;
e LOPES, Maria Immacolata. "O popular nas pesquisas de comunicação". Revista
Brasileira de Comunicação, 1989, nQ 61. 52. THOMPSON, E. A miséria da teoria - ou um planetário de erros, 1981, P 189.
50. MARTIN-BARBERO, Jesús. "A cultura: mediação entre política, comunicação e educa-
53. GONZALEZ, Jorge. Op. cit., 1987, p. 8. A cultura também é, "em excesso, a fábrica
ção". Revista Proposta, nO 28, p. 44.
de todos os nossos sonhos e o princípio de todas as nossas esperanças. (...) [Ela] é
51. MARTIN-BARBERO, Jesús. "A comunicação no projeto de uma nova cultura política". simultaneamente raiz e ligadura com o que vimos sendo, fazendo, gozando, sofrendo
In: MELO, José Marques de (org.). Comunicação na América Latina: desenvolvimento (. . .). É (. .. ) memória. É (. .. ) o que dá forma ao presente e exeqüibilidade ao futuro."
e crise, p. 91-97. Id., ib.. p. 9.

I 138 139

11
de segmentos expressivos da população não tenha mudado em , ti 1 tor.55 Mas essa noção em geral é adotada abstrata-
nada." De qualquer forma, ali também se canta a utopia: , I nt c h ga-se a utilizar conceitos e categorias de comunicação
Quando o dia da paz renascer, I I tl( Ip.lliva oriundos de outros países latino-americános, sem a
quando o sol da esperança brilhar, I' (J( 111 ção de verificar sua adequação à realidade da experiên-
eu vou cantar! I (011 reta, provocando um certo deslocamento entre a funda-
Quando o povo nas ruas sorrir 1111 11t.lÇoo teórica utilizada e o estudo de caso em foco.
e a roseira de novo florir,
eu vou cantar! Por outro lado, as abordagens sobre a comunicação partici-
Quando as cercas caírem no chão, fi tIV.l, na América Latina, revelam uma diversidade de interpre-
quando as mesas se encherem de pão, to\ () S. No fundo, ela tem sido vista como toda e qualquer forma
eu vou cantar! ri interferência popular nos meios. E, por se tratar, na maioria,
(Refrão) dI studos de casos, ela é encontrada tanto em experiências
fll Jimentares quanto em outras mais elaboradas, como na pro-
Vaiser bonito se ouvir a canção cantada de novo. dução de programas radiofônicos, por exemplo.
No olhar do homem a certeza do irmão, reinado do povo. A participação tem sido efetivada em vários casos concretos
Quando as armas da destruição, J comunicação popular na América Latina. Parece mesmo ser
destruídas em cada nação, uma meta já colocada desde a opção inicial por "dar voz aos que
eu vou sonhar! n - o a têm". Na prática, ela passou por pontos altos e baixos no
E o decreto que encerra a opressão, eu desenvolvimento. No Brasil, ela tem sido incrementada mais
assinado só no coração, no plano da transmissão de mensagens (entrevistas, avisos,
vai triunfar!
depoimentos). É muito comum meios populares serem produzi-
Quando a voz da verdade se ouvir
dos por uns poucos e estes fazerem suas próprias interpretações
e a mentira não mais existir,
será enfim das necessidades de informações e de outras mensagens dos
Tempo novo de eterna justiça, receptores. Neste sentido, pode estar havendo uma certa repro-
sem mais ódio, sem sangue ou cobiça. dução do dirigismo e do controle por parte de lideranças e/ou
Vaiser assim! instituições mediadoras da comunicação popular.
Por isso, convém não esquecer, como já dissemos, que tanto
"participativo" como "popular" não qualificam necessária e auto-
111.COMUNICAÇÃO POPULAR PARTICIPATIVA

Comumente, sob o ponto de vista teórico, a comunicação


popular é entendida numa perspectiva de igualdade entre emis-
55. Como está explicitado na seguinte definição da Unesco: "Comunicação é o processo
de interação social democrática baseado no intercâmbio de símbolos, os quais os seres
humanos compartilham voluntariamente suas experiências sobre condições de acesso
livre e igualitário, diálogo e participação. Todos têm direito à comunicação com o
propósito de satisfazer suas necessidades de comunicação por meio da utilização dos
recursos da comunicação. Os seres humanos comunicam-se com múltiplos propósitos.
54. Se não dá para pensar em "cultura brasileira separada dos meios de comunicação de O principal não é o exercícío de influência sobre o comportamento dos outros". Apud
massa e especialmente da televisão, (...) também a cultura de massa não pode ser BELTRAN,Luiz Ramiro. "Adeus a Aristóteles: comunicação horizontal". Revista Comu-
vista de forma separada do povo". FADUL, Anamaria. Op. cit., 1985, p. 202. nicação e Sociedade, 1981, nQ 6, p. 31.

140 141
maticamente o substantivo democracia. Muitas organizações 1111',)1111
O processo de gestão da instituição comunicacional
podem estar às voltas com propostas conservadoras e autoritá- "fl 11111
lodo.
movimento popular
rias. O Brasil está cheio de exemplos. "O
I Illtll1demos que as várias formas são válidas. Contudo,
também é atravessado pelas contradições de c/asse e de proje-
1I I " 1105que não é mais suficiente permanecer no âmbito do
tos de sociedade que disputam a hegemonia em nosso mundo
d, I VOI vez", do "dar voz a quem não tem voz" ou, ainda, do
e país".56
111" 5 microfones ao povo", tão propalado, na última década,
1111mundo da educação popular. Sabemos que no nível da
1. Formas de participação I umunicação a participação, além de ser desejável e importante,
«ntinua sendo de difícil realização em diversas partes de nosso
Devido às especificidades, precisamos ter claro de que parti-
I nntinente. tanto pelas estruturas dos meios como pelas condi-
cipação estamos falando, uma vez que esta abrange uma diver-
I (11' sócio-econõmicas e culturais de grandes contingentes po-
sidade de processos, formas, níveis e intensidades. Existe até
pu] cionais. Não obstante, é preciso promover o desenvol-
quem considere ser "virtualmente impossível falar de 'uma co-
vim nto de formas mais ousadas de fazê-Ia presente, de maneira
municação perticipetive', entendida como categoria ou con-
.unpliada. nos meios de comunicação.
ceito, se não que se nos impõe a referência precisamente a
práticas ou experiências de comunicação participativas. As Haverão de ser superadas, ainda, práticas ditas democráti-
diferenças (...) [ são muitas eJ vão desde o âmbito mesmo da s. mas que no fundo ficam restritas a algumas lideranças, que,
experiência, seu contexto político, econômico e social e, o que I or integrar o grupo ou conviver com ele, julgam ter poder e
é determinado em grande parte pelo anterior, o nível de utonomia para tratar da comunicação a seu bel-prazer, de
participação, até os recursos tecnológicos empregados. Isso cordo com seus gostos e interesses, e mesmo assim acham estar
para não falar da natureza das organizações e instituições a fazendo aquilo que as bases desejam e precisam.
que se vinculam as práticas (...)".57 Do lado da produção teórica, consideramos ultrapassadas e
superficiais constatações como: "Ah! O 'povo' participa muito!
Concretamente, a participação popular na comunicação
comunitária pode significar, numa gradação crescente: o simples
As pessoas dão depoimentos e fazem denúncias, telefonam ou
envolvimento das pessoas, geralmente ocasional, no nível das
enviam cartas e bilhetes, com sugestões e pedidos de músicas";
ou, ainda: "O locutor é gente da base", "esse meio de comuni-
mensagens, ou seja, dando entrevistas, avisos, depoimentos e
sugestões ou cantando, pedindo a inserção de músicas e aderin-
cação é produzido por moradores do próprio bairro"... Por vezes
tudo isso pode até ser desejável, mas não é o caso de se
do a concursos; elaborar matérias (notícias, poesias, desenhos);
supervalorizar esse tipo de participação, sem analisar criticamen-
compartilhar a produção global do jornalzinho, do programa de
te as limitações, distorções e manipulações que podem ocorrer.
rádio etc.; tomar parte na definição da linha política, do conteú-
do, do planejamento, da edição, do manejo de equipamentos;
2. Níveis de participação

Ao tratarmos da participação na perspectiva da democracia


da comunicação, é recomendável percorrer um caminho que nos
56. SOUZA, Luiz Alberto. "Elementos éticos emergentes nas práticas dos movimentos
sociais". Síntese - Nova Fase, 1990, nQ 48, p. 5. favoreça captar o processo com mais profundidade, penetrando
57. MÜLLER,Carlos Alves. "Marco conceptual de Ia comunicación participativa". Cuader- na radicalidade do contexto onde ele se concretiza. Em outras
nos de Periodismo, 1984, nQ 5, p. 11. palavras, é premente tentarmos compreender o envolvimento

I 142 143

I [I
popular na produção, no planejamento e na gestão da comuni- "IICldic ou ocasional, de notícias, artigos, poesias e dese-
cação comunitária, como forma até de contribuir para o avanço 111 u.n mitidos pelo meio de comunicação. E, também, na
em qualidade participativa e na conquista da cidadania. I I' I/oIÇ 10 (linha política, objetivos, estrutura, conteúdo, dura-
Podemos utilizar os níveis apresentados por Merino Utre- I, lu r rio), elaboração (textos, roteiros, diagramação, locu-
58 11, rnontagem) e edição (seleção, cortes, complementos) de
ras , a partir de princípios aprovados em reunião sobre a
autogestão (Belgrado, 1977) e em seminário sobre a comunica- r, ,tI ridi impressos e programas de rádio e de televisão, exigin-
ção participativa (CiespaIjUnesco, 1978): o da produção, no qual 11 I I necessário domínio e o acesso a recursos da tecnologia,
o "povo" se envolve na elaboração de programas e mensagens, II til da partilha na tomada de decisões.
contando com ajuda profissional, facilidades técnicas e recursos;
o do planejamento, em que ele toma parte tanto na definição / Planejamento dos meios
de políticas, objetivos, princípios de gestão, planos, atividades e
Compreende a participação no estabelecimento da política
financiamentos quanto na formulação de projetos nacionais,
I ditorial, dos objetivos e da formatação de programas e veículos,
regionais e locais; o da gestão, onde ele tem acesso às decisões
,,,',im como dos princípios de gestão e das formas de sustentação
relativas à programação (conteúdo, duração, seleção de horá-
un nceira, além de planos ou políticas globais de comunicação,
rios), bem como ao controle, à administração e ao financiamento
I'm âmbito local, regional e nacional.
da organização comunicacional. Como referencial para pesqui-
sas, acrescentamos mais um nível: aquele em que as pessoas se
."envolvem, tão-somente e ocasionalmente, nas mensagens divul- .4. Gestão dos meios
gadas, sem interferir diretamente nos demais processos. Compreende a participação no processo de administração e
Isto posto e tomando como base as experiências da América controle do veículo ou da instituição de comunicação como um
Latina, procuramos apresentar na seqüência, de forma didática, todo, requerendo-se também aqui o exercício conjunto do poder.
níveis de participação ampliada, isto é, da população em geral, Em suma, a participação das pessoas pode tanto concretizar-se
nos meios de comunicação populares ou comunitários. apenas em seu papel como ouvintes, leitores ou espectadores
quanto significar o tomar parte dos processos de produção,
planejamento e gestão da comunicação. Os níveis mais avança-
2. 1. Mensagens
dos postulam a permeação de critérios de representatividade e
Compreende a participação pura e simples nas mensagens, de co-responsabilidade, já que se trata de exercício do poder de
representadas por entrevistas, depoimentos, denúncias, avisos, forma democrática ou compartida.
pedidos de músicas, envio de sugestões e inscrição em concur-
Em todos esses níveis, a participação popular requer a
sos, entre outras possibilidades.
existência de canais de participação abertos e desobstruídos.
Porém, não lhe basta isto. Há que se incentivá-Ia e facilitá-Ia
2.2. Produção de mensagens, materiais e programas mediante uma metodologia que a privilegie enquanto processo
Compreende a participação, mediante a aplicação da capa- que vai crescendo em qualidade.
cidade pessoal e da qualificação técnica, na produção sistemáti-
3. Democracia da comunicação

O que acabamos de apresentar não é um esquema classifi-


58. MERINO UTRERAS, Jorge. Op. cit., 1988, p. 28-29. catório que se encerra em si mesmo. Caso contrário, ele terá

144 145
contribuído pouco para o entendimento da comunicação. A I' IIli lp ção popular "é um processo longo e lento, que não
questão da participação popular não pode estar desarraigada do rio! cf um dia para o outro nem ao longo de um ano de
contexto, da realidade mais ampla onde ela se dá. Isso exige tI /),IIho. Pode levar muito tempo até que um grupo chegue
compreendê-Ia nos processos globais de ação social e de sua l}fdU de maturidade e consciência crítica que lhe permita
concepção, como a co-gestão e a autogestão, bem como dos I/I"'(dr seus conhecimentos culturais e dia lógicos, tornando
mecanismos de manipulação normalmente encontrados, confor- "m~rvel uma efetiva participação autônoma na comunica-
me explicitamos no capítulo anterior. ,I H, o Neste sentido, ele diz que não basta criar mecanismos
Em termos gerais, nos dias atuais, tratando-se do Brasil e da anais de participação.
comunicação, uma participação mais avançada, ou seja, com Na verdade, não existe consenso nem estão encerrados os
capacidade de partilhar o poder de decisão, terá que ser conquis- d(ll tes quanto à questão da participação popular na comunica-
tada. O processo tende a ser conflituoso e demorado. As media- ~"o, Alguns argumentam que ela é inviável devido às caracterís-
ções são muitas, podendo estar entre elas o dirigismo autoritário li s dos próprios meios, sendo difícil, por exemplo, empenhar
de lideranças, instituições, interesses individuais e políticos, como lodo um grupo social na produção de um jornal. Para nós, é
também a apatia e o conformismo por parte de grandes contin- I vidente que isso seria improdutivo! Contudo, não se pode
gentes populacionais. I rescindir de mecanismos de representatividade nem de meto-
Segundo Utria, a participação popular, em sentido amplo, dologias apropriadas para sua efetivação. Outros, como Jack
no âmbito da América Latina, "começa com um lento e articula- Banks e Deanna Robinson'", consideram-na impossível, pelo fato
do processo de tomada de consciência, pelo qual os indivíduos de o poder se fazer onipresente no contexto social e não ser
adquirem uma vivência real de sua situação e de seu destino no eliminável, porque é necessário para a organização, que, sem
universo social e político que os rodeia, elaboram e definem uma ele, "seria uma anarquia". E exteriorizá-Io sempre será fator de
62
imagem de seus autênticos interesses e os contrastes, analitica- condições injustas. Com apoio em Dem0 , também achamos
mente, com a ordem social, política e econômica. Através deste certo que nenhuma sociedade sobrevive e se organiza sem
processo, o homem e a comunidade se descobrem a si mesmos, estrutura de poder. A questão não é acabar com ele, mas, pela
se identificam com tudo aquilo que resulte compatível com sua participação, democratizá-Io.
dignidade humana e que propicie a sua realização e se rebelam
contra tudo aquilo que pode conspirar contra seus interesses e
aspirações. Nessas condições homem e comunidade estão po-
tencialmente preparados para iniciar o complexo processo de
participação popular". 59
Na mesma linha, também Kaplún, analisando a sua experiên-
cia com o cassete-fórum no Uruguai, chega à conclusão de que
60. KAPLÚN, Mario. "Uruguai: participação, práxis, problema. A experiência do cassete-
foro". In: GRINBERG,Máximo. A comunicação alternativa na América Latina, 1987,
p.70.
61. BANKS,Jack e ROBINSON,Deanna C. Theimpossibility of democratic communication:
a power analysis, 1988.
59. UTRIA, Rubén. Desarrollo nacional, participación popular y desarroflo de Ia comunidad 62. DEMO, Pedro. "Elementos metodológicos da pesquisa participante". In: BRANDÃO,
en América Latina, 1969, p. 55. Carlos Rodrigues (org.). Repensando a pesquisa participante, 1987, p. 105.

I 146 147

III
Segunda parte m.mifestaçôes desse tipo de comunicação afloram com
I d. nvoltura quando se trata de socializar informações
A PRÁTICA DA COMUNICAÇÃO POPULAR
, llJl', i ntizar, mobilizar e organizar a população em torno,
Os movimentos sociais populares brasileiros estão construin- I! .un nte, da busca de soluções para problemas vivencia-
do algo de "novo", expressando interesses coletivos que trazem I JT1 comum, embora cheguem a dar-se em outros níveis
em seu interior um esforço pela autonomia e por um "quefazer" p.u ticipação política, ou seja, contra formas de poder,
democrático, num novo espaço de ação política, e contribuindo, pl - o e discriminação.
assim, para a elaboração de outros valores.

Neste processo, eles forjam sua própria comunicação, ou IMITAÇÕES


seja, a comunicação popular, desenvolvida no contexto onde
S a comunicação dos movimentos sociais populares repre-
atuam, enquanto necessidade de expressão em nível local, e com
conteúdos específicos que. os grandes meios massivos não con- nt um campo rico em significado político-cultural, ela, por
seguem satisfazer. utro lado, também passa por muitas limitações.

Os canais caracterizam-se sobretudo como instrumentos


1, Abrangência reduzida
simples e de baixo custo, em flagrante contraste com o progresso
tecnológico já ao dispor da sociedade, mas inacessível, sob o Os meios atingem, geralmente, apenas uma parcela de
ponto de vista de emissão de mensagens, para a maioria dos I itores, ouvintes e espectadores potenciais. Um jornal ou
segmentos organizados das classes subalternas. boletim informativo, por exemplo, só chega a um número
restrito de moradores do bairro e, quase sempre, àqueles já
São os meios grupais, impressos, visuais, sonoros e audiovi-
"conscientizados" ou sensibilizados para a luta. Por quê? Em
suais: festas, celebrações religiosas, teatro popular, música, poe-
razão da tiragem reduzida, neste caso, ou do baixo, alcance
sia, jornalzinho, boletim, mural, panfleto, cartilha, folheto,
dos veículos sonoros e visuais, quase sempre em dec~rrência
cartaz, faixas, camisetas, fotografias, filmes, vídeos, cassete-fó-
da falta de recursos materiais.
runs, seqüências sonorizadas de slides, discos, alto-falantes,
carros de som, programas radiofônicos, troças carnavalescas etc.
2. Inadequação dos meios
A maior incidência é dos veículos mais baratos e mais rudimen-
tares, mas ocorre, em países latino-americanos, o uso de outros de
É comum a utilização de algum tipo de veículo de comunica-
ção sem maiores preocupações com sua apropriação ao público-
maior alcance e mais avançados, como rádios legalmente instala-
alvo. Chega-se às vezes ao absurdo de se produzir um jornal
das. Conquistaram-se espaços, cedidos ou vendidos, para a trans-
impresso destinado a uma população de maioria analfabeta ou
missão, em emissoras comerciais, de programas produzidos pelos
a decidir-se por ele quando as condições materiais e de mobiliza-
próprios grupos ou por suas entidades orgânicas.53 E já existem
ção participativa são mais favoráveis ao jornal mural ou a um
várias experiências com rádios e tevês comunitárias.
sistema de alto-falantes. Quanto ao áudio, às vezes se faz a opção
pelo alto-falante, sem um estudo sobre a aceitação desse veículo
e os melhores dias e horários para ser levado aoar. O som invade
63. Por exemplo, mais de trezentos programas de trabalhadores rurais são transmitidos
os lares sem pedir licença e sem poder ser interceptado pelos
no País. E o programa A voz da Contag, da Confederação dos Trabalhadores na
Agricultura, é enviado para cerca de seiscentas emissoras. ouvintes, o que tem gerado insatisfações.

148 149
3. Uso restrito dos veículos I dUllllcI, . A especialização é deficiente, colocando-se no ar,
I'.
Em razão, talvez, de dificuldades financeiras e operacion " I mplo. locutores cuja fala não se consegue entender ou

e da carência de elementos devidamente preparados, os movi- I I ,lIIe1 que o líder ocupe o microfone por quase uma hora
mentos populares acabam apostando mais na comunicação I I 1 Wr1 discurso inadequado ao meio.
interpessoal e grupal e adotando meios mais cômodos, mais
ágeis e menos onerosos. Assim, valem-se especialmente de nteúdo mal explorado
contatos informais, reuniões e assembléias. Boletins, panfletos,
A limitações em relação ao conteúdo da comunicação
cartazes e cartas são bastante explorados. Os instrumentos que
pllplJI r escrita e de áudio são gritantes, tanto na linguagem
requerem mais elaboração técnica e mais recursos, como seqüên-
qu.urto na variedade da programação ou dos materiais divulga-
cias de slides, alto-falantes e vídeo, por exemplo, são menos
dll'•. No que diz respeito à primeira, ela é quase sempre dura
usados. Espaços potencialmente disponíveis nos meios massivos
I ada. Talvez devido ao afã de "conscientizar" a qualquer
e as técnicas de relações públicas populares também são subu-
(IJ~to e rapidamente, transmitem-se discursos abstratos, pre-
tilizados. No Brasil, não existe, até agora, uma rnobilização mais
put ntes, panfletários ou doutrinários. Além disso, os textos e
ampla em torno da reivindicação de acesso à concessão de
,I' falas costumam ser demasiadamente longos. Quanto à
emissoras de rádio e televisão comunitárias e locais.
diversificação, boletins e jornalzinhos insistem no mesmo tipo
d assuntos e na mesma diagramação, não passando de
4. Pouca variedade p lavras e mais palavras umas ao lado das outras. Nos progra-
As organizações e os movimentos populares valem-se de mas de alto-falantes não se muda o formato ou se inova pouco.
poucos tipos de veículos de comunicação. Se utilizam o jornal, ~ música (às vezes muito repetida, porque se dispõe de poucos
dificilmente exploram o rádio, por exemplo, ou, se lançam mão discos), "doutrinação" e aviso.
deste, não desenvolvem o vídeo. Servem-se do rádio, mas não Em suma, a comunicação popular impressa e radiofônica tem
aproveitam a canção popular criada no próprio contexto onde sido séria demais. Abre pouco espaço para amenidades, para o
ele está inserido. Esses meios poderiam ser complementares uns entretenimento, o lúdico. Explora insuficientemente o humor, a
aos outros, o que os tornaria mais dinâmicos, participativos e canção popular, a fotografia, os desenhos, enquanto expressões
certamente aumentaria sua potencialidade comunicativa e, con- da criatividade popular, o que poderia tornar os meios mais
seqüentemente, seu sucesso, devido ao enraizamento na cultura. participativos e atraentes. Esses veículos fazem realmente suces-
so junto ao público a que se destinam? Por que será que, ao se
5. Falta de competência técnica receber um jornalzinho ou um panfleto, costuma-se dar uma
olhada nele, dobrá-Io e guardá-Io para ser lido depois e esse
Além de se utilizarem em escala reduzida os veículos de
depois quase nunca chega? É algo que merece ser investigado.
maior alcance, isto ainda se dá de forma pouco competente. Não
se faz um planejamento correto, elaborando-se os impressos e
os programas, geralmente, na última hora, às carreiras. A peri- 7.lnstrumentalização
odicidade não é observada com rigor, ocorrendo que uma Com o tom pesado relaciona-se a instrumentalização que se
publicação semanal acaba virando quinzenal ou mensal, se é que faz dos meios de comunicação populares. Ou seja, eles geralmen-
de fato vem à luz, e o quadro de avisos às vezes serve mais para te são utilizados para um fim, corno a conscientizaçãojmobiliza-
"arquivo morto", de tão desatualizado, o que acaba afetando a çãojtransformação da sociedade e, ao mesmo tempo, negam-se,

150 151

I~I
em parte, suas características e as mediações do contexto. É, pOI 1 I U o de meios de comunicação populares decorre das
exemplo, o horóscopo sendo desviado de suas denotações 'ul"d 5 de expressão, conscientização e mobilização, justi-
sentimentais e direcionado para os objetivos mobilizadores." II 1« mpenho no sentido de que sejam aceitos por parte dos
o rádio e o jornal não dando vez - ou o fazendo de forma muito I IIIIItI D' a que se destinam. Nesta perspectiva, não há como
restrita - a amenidades e ao entretenimento, ou seja, às dimen- , I I louco-caso da demanda pela mídia massiva. Em outras
sões do sonho, que também são necessidades humanas, lado a p l,lVlds, se o instrumento utilizado é o rádio, não se pode
lado com as de moradia, vestuário, alimentação, educação, I .1'1 lar a contribuição das emissoras comerciais que fazem
saúde etc. As poesias divulgadas são, freqüentem ente, as que se 1111' 'O, na montagem de uma boa programação, que atenda
arraigam no contexto da denúncia de conjunturas e estruturas li, mteresses da comunidade.
ou da esperança de mudanças. Essetipo de conteúdo pode fazer
parte das mensagens populares, mas há que se evitar dar
rência de recursos financeiros
destaque excessivo aos aspectos sociológicos, políticos ou eco-
nômicos e menosprezando ou ignorando outras manifestações ~ mais um dos pontos críticos das organizações populares.
do campo existencial e cultural. Mais espaço para o lazer, o (, muitas vezes, as pessoas não têm dinheiro nem para se
deleite e a fantasia poderiam ajudar a conferir maior atratividade d locar até a sede do movimento e freqüentar reuniões, é
aos micromeios, já que fazem parte do mundo dos anseios e dos difrcil fomentar veículos apoiados por recursos da própria
interesses das pessoas, na busca de felicidade. omunidade. A saída costuma estar em conseguir verbas
mediante projetos apresentados a instituições financiadoras
Anamaria Fadul, em pesquisa sobre o jornal O São Paulo,
ou na arrecadação de fundos com anúncios comerciais, festas
constata que este veículo da Igreja Católica "não atribui
populares, donativos. O problema financeiro é um complica-
importância à esfera do divertimento. (...) Mesmo o futebol,
dor da comunicação popular, podendo tanto pôr em risco sua
que representa uma das manifestações culturais mais impor-
geração como até mesmo inviabilizar sua continuidade, pois
tantes no Brasil (...) não mereceu [dele] mais que quatro
a auto-sustentação, que seria um dos pilares de sua autono-
matérias no período de seis anos e todas elas (...) relacionadas
mia, é um problema de difícil solução.
com a Copa do Mundo de 1982".65 Mesmo assim, a ênfase
foi posta nesse esporte como um mito, uma ocultação da Contudo, a experiência mostrou-nos que buscar subsídios de fora
realidade, embora algum articulista tenha visto nele um mo- não tem levado a ingerência na linha política dos veículos populares.
mento de alegria, de união e paz. Os movimentos que recorrem a esse expediente normalmente
deixam claro que querem ficar independentes e, por outro lado, os
contribuintes geralmente são entidades que, comprometidas com
a autopromoção do homem, não interferem.

II 64. Por exemplo, com relação ao signo de câncer: "O mês é totalmente favorável para
você conversar com seus vizinhos sobre problemas da comunidade. Afinal, os
9. Uso emergencial

problemas são os mesmos, é conversando que a gente vai achar a solução" (Jornal Há muitos casos de experiências comunicativas com
Mensageiro do Vidigal, da Favela do Vidigal, no Rio de Janeiro. Apud FADUL, Anamaria. características de emergência, faltando-Ihes continuidade e
I Op. cit., 1986, p. 217).
estruturação adequada.
65. FADUL, Anamaria. Os meios de comunicação de massa: um desafio para a Igreja. (O
São Paulo - 1979-1985), 1986, p. 204.
I
152 153
10. Ingerências políticas ralmente nem ser contestada pela comunidade, que
Sempre existe o risco de as iniciativas comunitárias ser 111
encará-Ia como natural.
utilizadas com objetivos particulares ou político-eleitorais, d
viando-as de suas finalidades e conturbando todo o processo.
CTOS POSITIVOS
Cresce a tendência nesse sentido.
111<1 ivla. apesar de todas essas limitações, não deixam de
c II rI r t mbém experiências avançadas, que, envolvendo efeti-
11. Participação desigual
IIH nt a participação conjunta, contribuem para uma comuni-
Apesar de não dispormos de dados de pesquisa, podemos .1 popular realmente útil ao processo de educação para a
afirmar com segurança que, na maioria das práticas brasileiras Id.IC! mia, encerrando um significado político inovador, que pode
de comunicação popular, a produção de mensagens, o planeja- I r bservado nas seguintes características:
mento e a gestão dos meios se centralizam em poucas mãos.
Além de envolver o risco de controle da informação e do poder,
. Diversificação dos instrumentos
entre outras implicações, isso favorece a reprodução de padrões
de dominação e uma contradição da prática participativa mais A comunicação popular serve-se de vários tipos de instru-
ampla dos movimentos. ntos, de acordo com a disponibilidade de recursos financeiros,
lTl
m teriais e de tempo e em função do contexto, das necessidades
Nesse caso, a comunicação passa a ser tratada como ativi-
( dos objetivos do movimento onde se desenvolve.
dade-fim, perdendo sua potencialidade de atividade-meio com
função político-educativa para o conjunto das pessoas. O resul-
2. Apropriação de meios e técnicas
tado é que poucos fazem tudo e dão aos veículos e a seus
conteúdos o rumo que Ihes aprouver, conformando-os à sua A comunicação popular assume os meios técnicos e as
imagem e semelhança e não às da organização social em que formas de produção antes mantidos, mais monopolicamente, nas
estão inseridos. É, por exemplo, o alto-falante como instrumento mãos de uns poucos, devido à estrutura de funcionamento dos
da equipe de produção ou das lideranças ou o jornal sindical veículos massivos neste País. É o caso, por exemplo, do rádio ou do
servindo mais aos dirigentes do que à categoria. Quando isso jornal, com relação aos quais ela se apropria tanto da tecnologia
ocorre, a participação dos membros ou dos associados em geral (aparelhagem, processos de impressão) quanto da linguagem (téc-
é facilitada apenas em mecanismos que não afetem a tomada nicas de programação radiofônica, de redação de notícias, de
de decisões ou que não comprometam interesses ou a linha diagramação). Isso democratiza o acesso à comunicação e ajuda
política dos meios. Chegam a ser feitos muitos convites no na desmistificação de seus instrumentos. Profissionais especializa-
sentido de um envolvimento da comunidade, mas na prática não dos como jornalistas, relações-públicas e radialistas, entre outros,
se viabiliza a abertura de canais para tanto. têm contribuído para a socialização desses recursos, quando "con-
vidados" por movimentos populares.
Por que se estaria deixando de propiciar a participação
ampliada da população? Em razão, talvez, de ingenuidade, de
objetivos pessoais, de interesses partidários, de convicções polí- 3. Conquista de espaços
ticas vanguardistas. Ou mesmo de um componente cultural A comunicação popular consegue lugar nos meios massivos,
ligado à inexperiência brasileira no que se refere a uma prática para divulgar informações dos movimentos e apresentar progra-
participativa democrática, o que pode explicar o fato de tal mas elaborados em seu âmbito. Trata-se aqui de uma conquista,

154 155
porque na realidade os espaços não foram doados, mas de',( II 11, 11 desenho, na literatura, na poesia, na dramatização
bertos e alcançados num processo de luta, a partir da constat.i I I, 11.1 medicina popular e em outras manifestações da
ção de uma necessidade e da possibilidade de sua viabilizaç p pulação, de pessoas da localidade, que assim têm
Em alguns casos, os movimentos chegam mesmo a ter seu ,I I xpressar.

veículos próprios, mediante concessão oficial.


boração de valores
4. Conteúdo crítico 1\ omunicação popular, trabalhando e articulando elemen-

A comunicação popular tem, em geral, um conteúdo essen- ulturais. contribui para romper a dicotomia emissor versus
I

I ptor. Este último assume o papel de emissor e, coletivamen-


cialmente crítico. Ou seja, julga-se a realidade concreta, local ou
, V.lO sendo reelaborados valores simbólicos condizentes com
mais abrangente, tanto em nível de denúncia descritiva quanto
). ( rcício da cidadania.
de interpretação ou de opinião, levantando reivindicações, ape-
lando à organização e à mobilização popular, apontando para a
necessidade de mudanças. Neste sentido, ela, em grande parte, . ormação das identidades
não é conservadora e, mesmo se o fosse no plano global da A comunicação popular, ao abordar temas locais ou especí-
sociedade e da ideologia, até certo ponto o refutaria no plano fIIOS, tende a despertar o interesse por parte da audiência, pelo
imediato, ao negar as condições de existência dadas. Tudo isso 100tode o conteúdo e os personagens terem relação mais direta
mexe com a cultura, mesmo que não de forma predominante. ( m as pessoas. Os programas não são espetáculos a que se
Há na verdade a incorporação de novos valores, ao mesmo ,1 siste. mas dos quais se participa, o que leva a incrementar o
tempo em que se reproduzem outros. processo de construção das identidades e de cultivo dos valores
históricos e culturais.
s. Autonomia institucional
9. Mentalidade de serviço
A comunicação popular, salvo em casos isolados, pauta-se
pela autonomia em relação às instituições privadas e públicas. A comunicação popular é predominantemente um serviço
Via de regra, essa independência é perseguida em relação tanto de interesse público, com benefícios reais para a população
ao conteúdo quanto à sustentação técnica e financeira. Talvez envolvida, que encontra nela uma forma de "proteger-se" do
seja por isso que, geralmente, se usam os veículos mais baratos. mercantilismo da mídia.
Mas, mesmo quando alguém custeia os mais onerosos, há todo
um esforço para se fugir da tutela ou de interferências em sua 10. Preservação da memória
linha política. A autonomia assim considerada não chega a atingir A comunicação popular, ao documentar decisões, progra-
a autogestão da comunicação, pois esta, como tem funcionado, mas e fatos relacionados com os processos de orqanizaçào e de
não se vê investida desse caráter só por ser obra autônoma dos lutas dos movimentos, concorre para registrar a história dos
movimentos sociais, constituída de baixo para cima. segmentos subalternos.

6. Articulação da cultura 11. Democratização dos meios

A comunicação popular abre espaços para a transmissão de A comunicação popular, à medida que se for ampliando o
produtos da cultura e da criatividade presentes na música, na número de rádios, televisões e outros veículos a serviço da

156 157
Capítulo 4
comunidade, estará servindo cada vez mais à dernocratizaç.u I

dos meios e do poder de comunicar.


ARTICIPATIVA NO ÂMBITO
12. Conquista da cidadania MOVIMENTOS SOCIAIS
A comunicação popular, enfim, contribui para a dernocrati-
zação da sociedade e a conquista da cidadania. Que não
significa só alguém poder votar a cada cinco anos naqueles
que vão decidir por ele, mas também aprender a participar
politicamente da leitura do bairro e da escola para os filhos, a Primeira parte
apresentar sua canção e seu desejo de mudança, a denunciar
ALTO-FALANTES
condições indignas, a exigir seus direitos de usufruir da riqueza
gerada por todos, por meio de melhores benefícios sociais e .tIl falantes vêm sendo utilizados como "rádios do
de salários mais justos, a organizar-se e a trabalhar coletiva- ,"', om várias partes do continente latino-americano, por
I( I,H.O 5 e movimentos que, não podendo operar emissoras
mente. A comunicação popular não faz tudo isso por si só,
mas apenas se estiver inserida na dinâmica dos movimentos, IIV rlC ionais, em razão das limitações impostas pelo sistema de

gerando-se a partir deles e, como conseqüência, caminhando li ,',io de canais e pelas condições econômicas, se valem

na mesma direção por eles apontada. ( ln trumento para transmitir programas e satisfazer, assim,
hJlltlh\ de suas necessidades de comunicação.
Assim, toda a práxis - teoria e prática - da comunicação
M s. convém que atentemos desde já para o fato de que,
popular no Brasil representa uma conquista muito expressiva
cI longo do tempo, esse sistema foi adquirindo feições diferen-
para os setores que dela se servem, num amplo processo políti-
l,lf1.15. Existe um modelo que, vinculado às organizaçôes popu-
co-educativo de uma população sem tradição de participar, de
I r locais, funciona como um produto da comunidade, que o
forma igualitária, nas decisões que a afetam e, ainda por cima,
drninistra voluntária e coletivamente, desenvolvendo uma pro-
impedida de se reunir, se expressar, denunciar, reivindicar e
reI mação baseada em informação, entretenimento e serviço de
interferir durante mais de duas décadas de regime militar auto-
utilidade pública. Outro modelo conserva essas características
ritário. Contudo, ela não se constitui numa força predominante
m s é dirigido apenas por uma ou duas pessoas comprometidas
nem hegemônica na sociedade civil, mas está cooperando para
om o bem-estar social e, sobretudo, amantes do rádio. O
a democratização desta e da comunicação como um todo.
terceiro modelo chega a colocar o sistema a serviço de melhorias
na comunidade, mas seus idealizadores têm interesses particula-
res, almejando reconhecimento público, prestígio e en:prego nas
grandes emissoras. Um último modelo é o que visa primordial-
mente ao lucro, usando o meio para a veiculação de anúncios e
outras formas de patrocínio.

1. Nesta parte, ao usarmos os termos "rádio".e "emissora" para esse sistema de


transmissão, entendam-se-os entre aspas.

158 159
I., , I.
de mecanização das lavouras e na impossibil« 1.11 ." Capítulo 7
diante da escassez de recursos, da ausência di' 1I' ,,111,
" I
de ?om senso que seria uma pequena prop.« 'I 1.11
Ir di I
COMUNICAÇÃO POPULAR NA
e~Ulpamentos exclusivos, para uso em apena-, ,111/1111I
d~as do ano, No entanto, a sugestão de um Pdllll", CONSTRUÇÃO DA CIDADANIA
foru.m, no sentido de se adquiri-Ios de forma co li I I 'I
servirem a todos os associados, não causou enlll" I 1II
respostas a essa proposta continham reservas e obJ II
no fundo, revelavam uma visão e uma prática indivicJllidl I

A experiência mostrou como reproduzir valores id 1(1111)1 Primeira parte


e culturais é mais fácil do que transformá-Ios, Por isso I1 UMA QUESTÃO POLíTICA
s~rio superar triunfalismos, como o de se achar que a conuun
çao popular é necessariamente libertadora, e assumi! 11111
I. O DIREITO DE PARTICIPAR
atitu~e crí:ica ante as suas mensagens. Muitas delas, s qlllul
Kaplun, veiculam conteúdos conservadores e desmobiliz IUII A Declaração Universal dos Direitos Humanos estabelece, em
II us artigos 27 e 29, que todos os homens têm o direito de
p irticipar livremente da vida da comunidade e que, por outro
lado. têm deveres para com esta mesma comunidade, na qual é
r ossível o livre e pleno desenvolvimento de sua personalidade.
E, em 1976, a Conferência das Nações Unidas deixou firmado
que a participação popular é um direito humano, um dever
político e um instrumento essencial de construção nacional.

A história mostra que as nações respeitam esses princípios


fundamentais em menor ou maior grau, dependendo da cultura
de cada povo, das oportunidades, da conjugação de forças e dos
interesses dominantes. Esseprocesso tem a ver com as decisões dos
governantes e a capacidade do povo para exigir o cumprimento de
seu direito, com vistas à realização de seu dever de contribuir
ativamente, como sujeito, para a construção da sociedade.

1. Efetivando a participação
Uma das múltiplas instâncias pelas quais o homem pode
exercer esse direito e esse dever é a comunicação social,
compreendendo-se nela todos os níveis e todos os meios
criados para efetivá-Ia. No Brasil e em outros países latino-ame-
ricanos, ela tem sido obstaculizada pelo Estado e por setores
dominantes, que, por sua posição hegemônica ou pela impo-

274
275
sição, acabam ganhando a cumplicidade da sociedade como Os brasileiros estão inseridos nessa crise, que só será supe-
um todo, embora haja resistências.
rada se o próprio homem exercer seu direito e seu dever de
Nos anos recentes têm ocorrido mudanças significativas em participar, como cidadão e como protagonista do processo.
termos de abertura nessa área. Dentro de toda uma dinâmica
histórica, instituições, grupos e movimentos sociais das ~Iass~s 2. Ampliando a participação
subalternas vêm constituindo um processo de auto-orqaruzaçào
e de comunicação. Inicialmente, eles se valem de meios ~Ieme.n- Essa situação sinaliza a necessidade de saídas que propiciem
tares, mas aos poucos também conquistam veícul~s ~als sofis- o envolvimento ampliado da população na busca da democrati-
ticados. Sua meta é, em última instância, contribuir para a zação do poder, colocando a sociedade a serviço dos homens,
transformação da sociedade. de forma igualitária, e estendendo os direitos de cidadania. Para
Morin, "a revolução não depende mais de um agente principal
A participação popular implica uma decisão política e o ~~pre-
go de metodologias operacionais que o favor~çam. E~ matena,
comunicação, não basta incentivar o envolvimento. E necessano
= (o partido, o proletariado), de uma ação principal (a tomada de
poder), de um núcleo social principal (os meios de produção);
precisa de múltiplas mUdanças/transformações/revoluções si-
criar canais para tanto e mantê-Ios desobstruídos. Isso tem a ver
multaneamente, autônomas e independentes, em todas as
com objetivos estratégicos, ou seja, aonde se quer chegar.
áreas. (...) Não há nenhum lado bom por onde começar; é
A era pós-industrial é uma síntese do progresso e do atraso. preciso começar por todos os lados ao mesmo tempo".' Um
O mundo experimenta um desenvolvimento tecnológico ext~aor- desses lados é, sem dúvida, o da comunicação, sob todas as
dinário e uma crescente globalização de mercados. Apesar disso, formas de que esta possa revestir-se. E aqui a necessidade de
continuam visíveis e se aprofundam cada vez mais os contrastes mudanças é irrefutável.
entre países que gozam de uma situação invejável de bem-es_tar
e outros onde milhões de pessoas sobrevivem em condições Urge que os meios massivos poderosos, ao mesmo tempo
indignas, evidenciando um crescente desequilí~ri.o ecológic.o, em que desenvolvem um elevado padrão tecnológico, artístico e
tanto no meio ambiente quanto nas relações SOCIaiSe na subje- mercadológico, também o façam no campo filosófico, para o
tividade do indivíduo. São contradições de uma sociedade que bem da sociedade como um todo, em sua pluralidade e diversi-
não optou por colocar as potencial idades da ciência e da técnica, dade, revendo a filosofia que os leva a serem movidos mais por
primordialmente, a serviço do homem e de todos os homens. interesses econõmicos e políticos de determinados segmentos.
Diz Guattari, a propósito disso: "Chernobyl e a AIOS ~os É imprescindível, também, reconhecer a importância desses
revelam brutalmente os limites técnico-científicos da humanlda: instrumentos. Não é suficiente e não leva a muita coisa pôr-se
de e as 'marchas à ré' que a 'natureza' nos pode reservar. E simplesmente a denunciar as manipulações realizadas pelos
evidente que [se impõem] uma responsabilidade e uma. gestão grandes sistemas de rádios, televisões e jornais. Há que se
mais coletiva (00.) para orientar as ciências e as técnicas em procurar ocupar os espaços abertos e propugnar pelo acesso a
direção a finalidades mais humanas". O autor também ressalta esses veículos, por sua descentralização e por seu reordenamen-
a premência de uma nova articulação ético-polItica para enfren- to ético-político. Eles são bens públicos, no sentido de que
tar a problemática em todos os seus aspectos.

1. GUATTARI, Félix. As três ecologias, 1990, p. 24.


2. MORIN, Edgar. Para sair do século XX, 1986, p. 343.

276 277
pertencem à União e, portanto, .à coletividade, devendo, co~o ção da informação e do conhecimento. A seguir se faz uma
tais, estar prioritariamente a serviço do bem-estar con:um e nao explanação de cada um deles.
de pessoas ou grupos que detêm o poder de controla-Ios.
É, ainda, premente que as organizações sociais progr:ssist~s, 1. Autopromoção
os movimentos e os sindicatos façam a opção pela partlcl~açao
da população ou, pelo menos, dos associados nos seus veículos É o objetivo de uma ação centrada nos próprios interessados,
de comunicação e criem condições para que ela se desenvolva. que autogerem ou, pelo menos, cogerem a satisfação de suas
necessidades. Nesse campo, não se promove ninguém caso
não se chegue à autopromoção.4 Significa a pessoa deixar a
11. POR QUE PARTICIPAR?
condição de "paciente" de outros e de instituições, sob os
A democratização do poder vem no bojo de uma estraté~ia aspectos político, social e econômico. Numa situação de assis-
mais ampla de transformação da cultura e da .r~alidade. Assim, tencialismo, ela vive uma relação de dependência frente ao
interessa que vejamos aqui por que se particrpa ou se deve doador, assumindo uma atitude de subserviência e de expec-
participar, em qualquer campo. . tativa, que inibe aos poucos a capacidade de iniciativa tanto
As motivações são muitas e podem conter d~ferenç~s ~m SI em nível individual quanto no de ação coletiva. E o "benemé-
mesmas, dependendo das especificidades, das ClrcunstanCla.s e rito" mantém sua supremacia sobre o "beneficiá rio", alimen-
dos propósitos em jogo. Por exemplo, a intenção de um prefeito, tando os seus interesses próprios.
ao favorecer a participação, pode não ser a mesma dos seto~es
populares que a desejam. Isso acontece também com os r.nelos 2. Realização da cidadania
de comunicação, excetuando, até certo ponto, o caso de veículos
ligados organicamente à comunidade. Cidadania" é a qualidade social de uma sociedade organiza-

Como os interesses políticos, econômicos, classistas e eleito-


da sob a forma de direitos e deveres majoritariamente reco-
rais podem permear a relação, torna-se necessário ~ue os prota-
nhecidos. Trata-se de uma das conquistas mais importantes
gonistas conheçam exatamente os obje.tiv~s, assim como as
na história. Do lado dos direitos, repontam os ditos direitos
melhores estratégias e maneiras para atinqi-los, A cI~reza das
humanos (...), cuja conquista demorou milênios. (...) No lado
táticas indispensáveis no curto e médio prazos contnb.UI para dos deveres, aparece sobretudo o compromisso comunitário
avanços na qualidade da participação. Ne~t~ perspectlv~,. ela
de cooperação e co-responsabilidade. Cidadania pressupõe o
adquire sentido, não se resumindo a um participar por participar. estado de direito, que parte, pelo menos na teoria, da igual-
dade de todos perante a lei e do reconhecimento de que a
Para Demo, a participação tem como objetivos: a aut?pro-
pessoa humana e a sociedade são detentores inalienáveis de
moção, a realização da cidadania, a definição das.regras ~~ jogo, direitos e deveres". 5
o controle do poder, a moderação da burocracia, a ,p.ratl;a ~a
negociação e a construção de uma cultura dem.ocratlca '. ~os
acrescentamos a abertura e manutenção de canais e a socializa-

4. Id., ib., p. 67.

3. DEMO, Pedra. Participação é conquista, 1988, p. 67-69. 5. ld., ib., p. 70.

278 279
3. Definição das regras do jogo
(...) ou a necessidade de recorrer' a pessoas influentes (...), e a
Participação é exercício da democracia. Por meio dela, apren- população é levada a internalizar tisso como normal. (...) Acaba-
demos a eleger, destituir, fazer rodízios no poder, exigir a pres- se aceitando que as escolas públiccas sejam de nível inferior, que
tação de contas, desburocratizar, intervir para que ações e as cirurgias feitas em pobres admlitam maior risco de vida, que
políticas sirvam aos interesses dos destinatários, formar autênti- a merenda para crianças da periiferia seja de qualidade mais
cos representantes da comunidade e assim por diante." baixa, que as casas feitas para a população carente sejam
cubículos. (...) Uma sociedade or(ganizada e participativa, po-
4. Controle do poder rém, não tolera tais vícios, porqui» tem consciência de que a
Este é "o fenômeno básico da democracia. Não (...) um burocracia é mantida com o traba,/ho e a produção da socieda-
8
controle feito somente (...) por meio de leis e decretos, mas de". A moderação da burocracia Crertamente será bem-sucedida
substancialmente (...) pela base. Olhando de cima para baixo, o se levada a efeito pelos que a SUlstentam e precisam de seus

poder tende historicamente a concentrar-se e a. =r-r: préstimos ágeis, sérios e competefl1tes. Ou seria possível esperar
que ela se controlasse a si mesma»
Desenvolve todos os expedientes no sentido de se tornar leclti-
mo, ou seja, aceito como (...) necessário e adequado, com a
conseqüente eliminação das possibilidades de contestação. (...) 6. Prática da negociação
A democracia visa à convivência crítica e criativa com o poder".
No sistema político democrátic:o, há que se procurar equali-
Um dos instrumentos para tanto é o sufrágio universal, uma
zar os conflitos pela negociação e não tentar ignorá-Ios, camu-
conquista grande e indispensável, porém relativa, tendo em vista
flá-Ios ou exacerbá-Ios por meio) de iniciativas autoritárias
as limitações que cercam o voto, como a passividade, a espora-
unilaterais e parciais." Ou seja, não se deve ter em vista elimina~
dicidade e a falta de domínio na seleção dos candidatos.' Assim,
as divergências, mas acomodá-Ias erT) patamares onde se respeite
ou se delega a outros o poder ou então se exerce o mesmo a
a convivência com a pluralidade le a existência de interesses
partir das bases. Não se trata de fazer o controle pelo controle
específicos. Isso postula um ambiernte de tolerância e abertura
com relação ao poder, para inverter o pólo de dominação, mas em que se saiba ceder, ganhar ou fJerder. r

de democratizá-Io na sociedade.

7. Construção de uma cultura d~mocrática


5. Moderação da burocracia
"Cultura democrática significa democracia como cultura de
A burocracia pública é um fenômeno deprimente quando
um povo, ou seja, como marca cara(~terística de sua organização
"voltada para si mesma, emperrada e alienada do serviço à
e sobrevivência (...), algo tão vitê~1como o oxigênio para a
comunidade. (...) Instala-se então uma variedade de processos
vida". 10 Assim, a participação perrmearia com naturalidade o
de corrupção democrática, desde a gorjeta (...) ou o suborno
cotidiano, realizando-se no exercício do poder partilhado e

8. DEMO, Pedra. Op. cit., p. 75·76.


6.808810, Narberta. Apud DEMO, Pedra. Op. cit., p. 71.
9. Id., ib. p. 77.
7. DEMO, Pedra. Op. cit., p. 74·75.
10. Id., lb., p. 79.

280
281
co-responsável, de acordo com os graus de representatividade que 9. Socialização da informação e do conhecimento

a sociedade requer. A participação objetiva, ainda, a partilha da informação.


Todos conhecem o ditado de que "informação é poder". Socia-
lizá-Ia é, então, um primeiro passo no sentido de compartir o
8. Abertura e manutenção de canais
poder com o grupo, os membros e a comunidade. Como envol-
É necessário criar e desenvolver mecanismos que viabilizem ver-se ativamente nos debates de uma assembléia quando se está
a participação, sem o que esta não ocorre e não se sustenta. Em por fora dos assuntos em pauta? Ou na produção do programa
nível global, os canais mais palpáveis são as organizações da de uma rádio popular se não se tem o domínio das técnicas mais
sociedade civil (partidos políticos, sindicatos, movimentos e enti- elementares? Por meio dela, também se tem acesso mais fácil
dades sem fins lucrativos), o planejamento conjunto, a educação ao conhecimento científico e técnico. Este não fica restrito a
formal, a identidade cultural comunitária e o processo de con- umas poucas lideranças, mas é estendido ao grupo, potenciali-
quista de direitos." zando-se as pessoas para uma ação entre iguais. Quer dizer, é
preciso haver comunicação, sem a qual não pode existir a
Para não· nos perdermos em sonhos mirabolantes, é bom
participação, segundo Bordenave."
lembrar que a participação pode começar pelo que está mais
próximo. Deixar que os associados colaborem na elaboração do Tudo isso é capaz de, em última instância, levar à participa-
jornal sindical ou viabilizar um envolvimento mais amplo da ção-poder. Não é necessário que o trabalhador seja dono da
população na programação das rádios populares, por exemplo. empresa para, de forma digna, tomar parte do processo produ-
É'no dia-a-dia, no relacionamento com as instituições que afetam tivo, dos planos, das deliberações e dos lucros. Nem que o
diretamente a vida das pessoas, como uma associação de mora- morador pertença à diretoria da associação para envolver-se,
dores ou o poder público local, que se firmam os alicerces da com poder de decisão, em seu funcionamento. E os especialis-
educação para a cidadania. tas? Sempre serão imprescindíveis, pois nem todos podem fazer
Diz Bobbio: "O único modo de fazer com que o súdito se tudo. Mas todos podem participar. Os mecanismos de repre-
transforme em cidadão é atribuir-lhe [aquilo} que os escritórios de sentatividade possibilitam isso.
direito público do século passado tinham chamado de '{iura}
activae civitatis' [direitos da cidadania ativa}. Com isso, a educação
111.PARTICIPAÇÃO E CIDADANIA
para a democracia surgiria no próprio exercício da prática demo-
crática (...) Não antes, como prescreve o modelo jacobino, segundo
o qual primeiro vem a ditadura revolucionária e apenas depois, num 1. O que é cidadania?
segundo tempo, o reino da virtude. Não, para o bom democrata, No texto da lei que regula os direitos e deveres da pessoa,
o reino da virtude (...) é a própria democracia; (...) entendendo
bem como no discurso corrente em nosso País, o conceito de
virtude como amor pela coisa pública, dela não pode privar-se e ao
. ~,,'2 cidadania predominante é o do pensamento liberal, para o qual
mesmo tempo a promove, a /imente e reforça .

11. DEMO, Pedro. Pobreza política, 1988, p. 97-100.


12. BOBBIO, Norberto. Estado, governo, sociedade: para uma teoria geral da política,
1987, p.31.
13. BORDENAVE,Juan Díaz. o que é participação, 1983, p.68.

282 283
ela se baseia na propriedade privada como direito universal, sem ação coletiva, portanto, na liberdade coletiva. A cidadania refle-
garantias à liberdade política ou à soberania coletiva." tia a integração do indivíduo à coletividade política". 16
"O modelo liberal de sociedade é caracterizado pela indivi- Segundo Barbalet", a cidadania encerra manifestamente
dualização da cidadania, a privatização da vida social e uma uma dimensão política, mas a prática mostra que isto não é
separação clara entre as esferas pública e privada, na qual aquela suficiente para que ela seja compreendida. O problema está em
deve ter seu alcance minimizado, enquanto se ampliam ao quem pode exercê-Ia e em que termos. A questão está, de um
máximo os limites do privado. (00.) [Ele] desaconselha a ação lado, na cidadania como direito e, de outro, na incapacitação
social e política, com base na concepção de que apenas a ação política dos cidadãos, em razão do grau de domínio dos recursos
econômica privada pode conduzir ao bem-estar coletivo. A sociais e de acesso a eles. Por exemplo, da ágora 18 grega não
personalidade do cidadão era absorvida pela 'petsone' do pro- participavam escravos, mulheres e metekes (estrangeiros). No
dutor e trocador de mercadorias, enquanto a ação política Brasil, a mulher e os analfabetos só adquiriram o direito de votar
tornava-se mecanismo puramente defensivo. A sociedade civil em 1934 e 1988, respectivamente. Assim, dependendo do
era vista por todos os liberais, de Locke a IS. Mil!, apenas como período histórico e do país ou lugar, só uma parcela da população
pode exercer plenamente a cidadania.
proteção às atividades centradas no interesse próprio contra a
interferência de outros indivíduos também buscando promover Fazendo de súditos cidadãos, a cidadania 19 é um arcabouço
seus interesses particulares". 15 social que requer o envolvimento das pessoas, condicionando-se
seu status à qualidade da participação. Esta é uma de suas bases.
Rousseau já havia desenvolvido, no século XVIII, um outro
Outra está na noção de que suas formas se condicionam ao tipo
conceito, originado da noção grega de polis (cidade), vendo a
de sociedade política em que se vive. "Estes princípios foram
cidadania como um direito coletivo, que, favorecendo o desen-
enunciados há quase dois mil e quinhentos anos, no terceiro livro
volvimento da individualidade, pressupõe a ação política e sua
da obra Política, de A ristóteles. A principal diferença entre a
socialização. Tendo como suporte uma legislação que procura
cidadania nas cidades-estados gregas e no moderno Estado demo-
levar em conta os princípios de igualdade e de liberdade, ela
crático é a extensão do âmbito da comunidade política em cada
implica não só os direitos do indivíduo, mas também seus direitos
um deles. ParaAristóteles, cidadania era o 'stetus' privilegiado do
e deveres na sociedade.
grupo dirigente da cidade-estado. No Estado democrático moder-
'~ 'polis' integralmente constituída correspondia a uma no, a base da cidadania é a capacidade para participar no exercício
sociedade politizada, na qual a esfera pública ocupava um
território mais amplo nas vidas dos cidadãos e estava situada
num plano muito mais elevado de importância do que os
assuntos privados dos indivíduos. (00.) A 'polis' baseava-se na

16. ld., ib., p.9.

17. BARBALET,J. M. A cidadania, 1989, p.11-12.


14. Cf. ABRANCHES, Sérgio. "Nem cidadãos nem seres livres: o dilema político do
indivíduo na ordem liberal-democrática". Dados - Revista de Ciências Sociais, 1985, nO 18. Praça onde se reuniam os cidadãos para debater os assuntos da cidade.
28, p. 9. 19. Em direito internacional, cidadania também equivale a nacionalidade, significando o
15. Id., ib., p. 9. direito de pertencer a uma nação.

284 285
do poder político por meio do processo eleitoral. (...) Para casa digna, de comer bem, de poder estudar e trabalhar. É, por
Aristóteles, o 'stetus' da cidadar'lia estava limitado aos autênticos fim, ter o direito de participar, com igualdade, na produção, na
participantes nas deliberações e no exercício do poder. Presen- gestão e na fruição dos bens econômicos e culturais.
temente, a cidadania nacional estende-se a toda a sociedade".20 Num contexto de desigualdades como o brasileiro, é absolu-
Na sociedade moderna, os cidadãos são membros de uma tamente necessário que se tenha a oportunidade de exercer
sociedade política baseada no sufrágio universal e na qual todos efetivamente os direitos civis e políticos, já assegurados, e de
são iguais perante a lei. No entanto, isso nem sempre se dá na conquistar definitivamente os direitos sociais. Isso não cairá do
prática. No caso do Brasil e de outros países latino-americanos, céu, pronto e acabado, mas terá que ser construído pelos
homens e pelas mulheres, de forma ativa e responsável. Nesse
por exemplo, ter direito à educação, à propriedade privada e aos
processo, a participação se torna não só um ato político, mas
bens de consumo coletivo é uma coisa, mas ter acesso real e
também educativo, na medida em que, por meio dela, se vão
efetivo a tudo isso são outros quinhentos ...
dando passos cada vez maiores. A ampliação da cidadania levará
Não obstante, o status de cidadão é uma construção social o homem e a mulher a serem, cada vez mais, sujeitos e não
que vem se modificando ao longo da história, numa extensão objetos da história.
que varia de país para país. A simples aquisição de direitos em
nível legal já foi uma grande conquista das sociedades e de seus
Segunda parte
movimentos, representando a ampliação da cidadania.
UMA QUESTÃO METODOLÓGICA
2. Os direitos do cidadão No Brasil, como em outros países latino-americanos, as
A cidadania é conformada por três tipos de direitos, que conquistas, no que se refere a uma participação política mais
podem configurar-se, ou não, de maneira mais abrangente ou mais ampla, têm sido crescentes. Depois de duas décadas de regime
restrita, na práxis de um povo: os civis, os políticos e os sociais. Os militar autoritário, conseguimos restaurar a democracia, as elei-
civis são os que dizem respeito à liberdade individual, sendo ções diretas em todos os níveis, assim como a liberdade de
responsável por eles o sistema judiciário. Os políticos são os que se organização e de expressão. O mesmo não está ocorrendo
ligam ao exercício do poder, cabendo sua salvaguarda às organiza- quanto a uma democratização maior do campo sócio-econômi-
ções parlamentares. Os sociais são os que se relacionam com o nível co. A concentração de renda aumenta e a distribuição da riqueza
de vida e o patrimônio social, cuja promoção compete aos serviços é cada vez mais desigual, gerando-se vastos contingentes popu-
para isso existentes e à estrutura educacional." lacionais desprovidos do necessário à vida, com mais de trinta
e dois milhões de seres humanos passando fome. A formação
Ser cidadão é ter o direito de ver-se protegido legalmente, cultural é obstada pela precariedade das condições, que invia-
de locomover-se, de interferir na dinâmica política, de votar e ser biliza o acesso de todos à educação formal básica e provoca
votado, de expressar-se. É também ter o direito de morar numa uma evasão escolar imensa. As pessoas não são envolvidas nos
planos e nas decisões que as afetam diretamente, nas áreas
da habitação, da saúde e da comunicação. Não se favorece de
forma igualitária o desenvolvimento de habilidades. Assim,
20. BARBALET, J.M. Op. cit., p. 12·13. ainda é longo o caminho a ser percorrido, no embate entre a
21. Cf. MARSHALL. Apud BARBALET, J.M. oo. cit, p. 18-19. alienação e a cidadania.

286 287
I. COMO PARTICIPAR? 1. Mecanismos de facilitação

Muitos instrumentos podem ser utilizados. Aqui vamos nos Com base no que expusemos sobre a participação nos
prender aos meios de comunicação popular ou comun~t~rios, capítulos iniciais, apresentamos a seguir alguns mecanismos que
que requerem uma metodoloqia condizen~e com a p.raxl~ = podem facilitar o processo participativo nos meios de comunica-
comunidade enquanto sujeito de um projeto emanClpatono. ção populares ou comunitários.
Segundo Fadul, não se pode Enfrentar de forma ,c?rret~, a I~ta
nesse sentido se não se adotarem técnicas democratlca~ .. Os f/~s 7. 7. Estabelecer a representação
não justificam os meios. (...) Procedimentos autontanos nao
Ante as características de nossas comunidades e dos movi-
permitem que se atinja esse fim".22
mentos populares, seria uma ingenuidade advogar a necessidade
Esses veículos geralmente sstão próximos ao local de mora- de todos os membros participarem, simultaneamente, de todo
dia de trabalho e de recreação, tendo, por isso, uma grand: ./' .
o processo. Mas é perfeitamente viável que a base eleja demo-
po~encialidade no que se refere a faci~it~r a partici~ação. Mas ha craticamente os integrantes da equipe coordenadora, conferin-
que se descobrir maneiras de confe~lr a_populaçao o ~oder. de do-Ihes um mandato temporário (para evitar o risco de se
criar e de decidir. Só assim a comunl~açao se torn;3 meio e fim, tornarem "donos" da comunicação) e revogável (para substituí-
ou seja, meio e fim se constroem reciprocamente. los se não cumprirem sua missão). A participação não elimina a
Existem várias formas de vincular a população aos meios de representação. Podem-se criar instâncias consultivas (conselhos,
comunicação. Mas, se a estra1égia for a ampliação do status da comitês), deliberativas e executivas, ficando os assuntos funda-
cidadania, é preciso que, levando em conta se~ .grau de mentais para decisão de assembléia.
escolaridade e de experiência, se empreguem táticas ~ue
favoreçam o aprendizado crescente da ~a~ticipação. ASSim,
7.2. Favorecer a identidade
das formas mais elementares de transrrussao de m.en:agens
poder-se-á chegar a snvolver a comuni~ade na crtaç.ao, ~a O poder de decidir sobre a organização de comunicação deve
produção, no planejamento e na gestao da. ~~munlcaça~. estar nas mãos da comunidade ou do quadro de associados.
Trata-se de um processo que, por nossas espeClflcldades histó- Cabe à base definir a política, objetivos, princípios de gestão,
rico-culturais e educacionais, tende a ser lento. normas, formas de sustentação financeira. Ou seja, é ela quem
aprova as linhas-mestras da ação, cuja operacionalização é con-
fiada a uma equipe. Com isso, mantém-se a identidade nas
relações veículo-comunidade.
22. FADUL, Anamaria. Comunicação € democracia no Brasil: a crítica à concepção
instrumental, 1982, p. 4-5.
. - I -oéumfimem 7.3. Abrir e manter canais
23. Em vários textos aparece a noção de que a comunlcaçao popu ar na
. mas um meio de particiJação na dinâmica social transformadora, ao Muitas vezes se fazem convites para que as pessoas partici-
SI mesma, . - I ão tem valor
promover a canscientização e a moblização. 'A comunlcaçao popu ar n .
em si mesma, mas enquanto se inte~re num processo de luta com uma perspectiva
pem com notícias para o jornal ou a rádio, mas raramente se
d e uma nova sOCle
. dede" .,GOMES PedraGilberto '. Ojornalismo sltemetivo no projeto
. obtêm resultados. Pedidos de músicas, no entanto, chegam em
1990 44 'A comunicaçãJ não é um fim em 51 mesma. Ela se define em
popu Iar, , p. . . I "BERGER rande quantidade aos serviços de alto-falantes e às emissoras.
função do que (mensagem) e a quem(sujeito e contexto) se comunica a go . r

Christa. A comunicação emergente, Jopular e/ou alternatIVa, no Brasil, 1989, p. 39. Não seria porque, nesse caso, o canal está mais aberto, graças

288 289
a uma divulgação maior e à operacionalização efetiva? Os canai tais. O como-fazer democrático, no processo comunicativo, é
abertos devem permanecer desobstruídos e acessíveis. parte da construção do homem-sujeito.

1.4. Democratizar a equipe 2. Canais de participação


O trabalho, as decisões, as vitórias e os fracassos podem ser Na seqüência, arrolamos uma série de canais que podem ser
compartilhados por todos os membros. Mas, democracia interna usados para a implementação e a ampliação da participação no
não significa cada um fazer o que bem entende. São necessárias processo de comunicação popular.
regras comuns. É indispensável a divisão de tarefas e responsa-
bilidades. A equipe pode eleger um coordenador e responsáveis • Estabelecer uma sistemática de reuniões periódicas com a
por seções, temas ou determinadas funções. população em geral ou representantes dos grupos sociais e dos
sindicatos, para a discussão dos objetivos e da política da orga-

1.5. Valer-se de especialistas nização comunicacional, a definição da programação, o planeja-


mento de apresentações radiofônicas, a feitura da pauta do
Em geral, as organizações populares não são auto-suficientes
jornal, a análise de problemas, avaliações.
em termos de comunicação e necessitam de ajuda externa. Os
veículos, às vezes, são incrementados por instituições mediado- • Manter programas e matérias total ou parcialmente sus-
ras, como a Igreja, por exemplo. Nesses casos a contribuição de tentados numa participação popular ampla, propiciando o aces-
especialistas é importante, contanto que ela não se dê de forma so ao microfone, ao jornal e a outros veículos, por meio de
dirigista e autoritária. entrevistas individuais e coletivas, depoimentos, notícias, histó-
rias de vida, dramas, contos, cartas, poesias, canções, desenhos,
1.6. Ter em mente o pluralismo piadas. É importante que se reproduzam o mais possível as falas
e os textos das próprias pessoas e não apenas se faça sua
Numa sociedade pluralista, as organizações e os movimentos
interpretação ou edição.
populares também o são. Admitir o sectarismo no processo
comunicativo seria totalmente contrário ao espírito participativo, • Ceder espaços para matérias (jornais) e programas (rádio
por se tratar de uma atitude acintosamente antidemocrática. e televisão) elaborados por organizações representativas locais,
o que pode começar pela simples participação do trabalhador e
1.7. Compartilhar sempre da dona-de-casa e chegar a um ponto em que os técnicos dos
As necessidades, os interesses, os valores e a linguagem dos veículos acabam apenas colaborando na produção e edição.
destinatários são o ponto de partida e de chegada do processo • Incentivar a produção de peças teatrais, debates e outras
comunicativo popular. Compartilhar isso continuamente pode formas de comunicação.
determinar o sucesso da participação.
• Organizar a forma de coletar avisos, sugestões e reclamações.
Em suma, a população, a comunidade ou o associado tem
como participar ativamente de sua comunicação. Com isso, o • Criar uma rede de correspondentes populares distribuída
meio não seria algo exteriorizado, mas criado, produzido e por ruas, bairros, setores, movimentos, associações, escolas e
consumido por dentro. As pessoas envolvem-se diretamente, igrejas, que enviem regularmente informações gravadas ou es-
mantendo o controle do poder quanto às dimensões fundamen- critas sobre problemas e acontecimentos da região.

290 291
• Dispor de repórteres populares responsáveis pelo acompa- comunicação popular, podemos colocar agora algumas metas
nhamento e pela cobertura de fatos locais, regionais, nacionais desafiadoras para os anos que ainda restam desta década e
e internacionais. mesmo para o futuro.

• Montar e aplicar pesquisas de oprruao, para colher • Produzir uma comunicação que corresponda mais aos
subsídios que ajudem na produção de uma comunicação interesses dos destinatários, sem perder de vista seu valor edu-
sintonizada com a realidade, as necessidades, os gostos e os cativo e político, usando linguagens adequadas e que estabele-
interesses da população. cem empatia.

• Socializar os conhecimentos técnicos a pessoas que não • Democratizar o consumo das mensagens, aumentando o
fazem parte da equipe coordenadora, por meio de cursos rápidos alcance do veículo, para que mais pessoas sejam atingidas.
ou oficinas de capacitação, com vistas a uma eventual ampliação
• Reconhecer a importância da comunicação e estender o
ou renovação dos quadros.
uso diversificado de veículos, inclusive de rádios e tevês de baixa
• Prestar contas às instâncias competentes, de acordo com potência.
as regras estabelecidas.
• Proporcionar condições para que a população participe de
• Alargar a participação mediante técnicas de planejamento forma crescente no processo de produção, planejamento e
pa rticipativo. 24 gestão dos meios de comunicação comunitários locais.
• Avaliar o processo e os resultados junto com todos os • Pôr as relações públicas comunitárias a serviço da mobili-
envolvidos, valendo-se, por exemplo, da metodologia do ver-jul- zação, do angariamento de simpatia, da adesão de aliados, de
gar-agir, pois os métodos tradicionais do ieedbeck'" são impor- uma atuação maior nas instituições e nas universidades.
tantes, mas insuficientes.
• Democratizar as técnicas de produção de jornal, rádio,
• Fazer relações públicas com a comunidade, os movimentos
televisão etc., ou seja, investir de forma expressiva na formação
populares, os sindicatos, as instituições sociais e outros grupos
e qualificação de produtores populares.
com os quais a organização comunicacional tenha vínculos.
• Fazer-se cada vez mais presente nos grandes meios de
comunicação de massa, divulgando realizações, lutas e reivindi-
11.DESAFIOS PARA OS ANOS NOVENTA
cações dos setores organizados das classes subalternas e contri-
Consubstanciando tudo o que expusemos nas partes teóricas buindo para que se instaure neles uma nova ética e um
deste trabalho e nas descrições de experiências concretas de compromisso efetivo com a sociedade como um todo.

• Conquistar espaços, nas rádios e tevês comerciais e educa-


tivas, para programas montados por organizações da sociedade
civil (federações de associações, conselho das comunidades
eclesiais de base etc.) e para vídeos independentes, até agora
24. Cf. DEMO, Pedro. Participação é conquista, 1988; Pobreza política, 1988. JACOBI, subutilizados.
Pedro e NUNES,Edison. "Movimentos populares urbanos: participação e democracia".
In: Movimentos sociais urbanos, minorias étnicas e outros estudos, 1983. • Conseguir a aprovação de dispositivos legais que obriguem
25. Cf. KAPLÚN, Mário. fi comunicador popular, 1985, p. 63. DEMO, Pedro. Avaliação tais veículos a cederem um tempo diário, semanal ou mensal para
qualitativa, 1988. essa finalidade.

292 293
• Pleitear a concessão de canais de rádio e de televisão, locais • Assegurar a autonomia ideológica, política e metodológica.
e regionais, para entidades coletivas e representativas, com vistas
• Definir as táticas metodológicas para viabilizar uma parti-
à democratização da propriedade dos meios de comunicação e
cipação de qualidade crescente na busca da cidadania ativa.
do poder de comunicar.

• Participar das discussões e dos embates em torno de Desse modo, assegurar-se-iam mecanismos de socialização
mudanças na estrutura oligopolizada dos meios de comunica- do poder de produzir e transmitir mensagens, colocando-se
ção de massa, que assegura o seu uso prioritariamente em técnicas, recursos e espaços sob o controle da coletividade e a
função de interesses econômicos e políticos de uma minoria serviço do bem comum.
da população.
As dificuldades são muitas, tanto em nível geral (poucos
• Desenvolver as tevês livres, como a TV Sala de Espera (Belo recursos; falta de capacidade técnica; tempo limitado; entraves
Horizonte), a TV dos Trabalhadores (São Paulo), a TV Maxam- burocráticos, políticos e legais) quanto no da participação (con-
bomba (Rio de Janeiro), a Tv s/ive (Pernambuco) e a TV Moco- dicionamento cultural; subserviência, comodismo, ingenuidade;
ronga (Pará). jogo de interesses partidários; esperteza dos políticos; dirigismo;
• Operacionalizar os canais comunitários a cabo garantidos cooptação; autoritarismo).
pela lei 8.977, de 6 de janeiro de 1996.
Tudo isso pode obstar, mas não necessariamente impedir a
• Competir pela audiência, transmitindo programas de boa construção de uma comunicação popular de qualidade. Para
qualidade técnica e que tenham aceitação e façam sucesso. atingir formas mais avançadas de participação, como a cogestão
• Participar da gestão das tevês comunitárias a cabo e em e até mesmo a autogestão, certamente há que se enfrentar riscos
UHF e das tevês educativas que produzam parte da programa- como o da manipulação, além de termos que nos contentar
ção localmente. temporariamente com meios menos eficazes. O importante é
• Planejar a comunicação, cuja qualidade não vem da impro- que, nos marcos da potencialidade e da limitação, se procure
visação, carecendo de ordenamento, pesquisa e sistematização. aperfeiçoar cada vez mais o processo, dentro da dialética entre
realidade e utopia.
• Descobrir mecanismos de auto-sustentação financeira."
Sabemos que "democracia dá muito trabalho. Onde todo
• Adequar o veículo de comunicação popular às condições
da audiência e da recepção, pois não adianta muito produzir um
mundo quer opinar (...), decidir junto, o que mais acontece é
jornal para uma população de maioria analfabeta ou um progra- uma dificuldade enorme de gerir a balbúrdia. As discussões
ma de rádio que não desperta interesse. tornam-se intermináveis. (...) Facilmente emerge o cansaço e a
decepção, até mesmo o reconhecimento afoito de que demo-
• Contar com a ajuda de técnicos e especialistas para assessorar
cracia não leva a nada, (...) a insinuação de que em termos
naquilo em que não se é competente nem auto-suficiente.
autoritários as coisas andavam melhor, porque se decidia rápido
ou tudo já estava decidido. Todavia, é natural que assim se
comece. (...) Democracia é uma planta tão essencial quanto
frágil. É extremamente mais fácil matá-Ia do que trazê-Ia ao
amadurecimento. Por isso mesmo, ~ essencial evitar que os
26. "Dificilmente se alcança a autodeterminação sem a auto-sustentação", diz Pedra
Demo, em Participação é conquista, 1988, p. 44. processos participativos degenerem em sessões repetitivas (...],

294 295
pouco produtivas (...). por inabilidade na condução do processo CONCLUSÕES GERAIS
ou por incompetência técnica ou política".27

A participação popular pode facilitar o devir de uma nova


práxis da comunicação. A participação e a comunicação repre-
sentam uma necessidade rso processo de constituição de uma
cultura democrática, de ampliação dos direitos de cidadania e da • Quando falamos de envolvimento popular na comunica-
conquista da hegemonia, na construção de uma sociedade que ção, é necessário precisarmos de que participação estamos
veja o ser humano como fOlrça motivadora, propulsora e recep- tratando, pois essa expressão, usada indiscriminadamente, já se
tora dos benefícios do deselnvolvimento histórico. desgastou. Na realidade, cada experiência desenvolve um tipo
de participação: umas desenvolvem sua prática nas instâncias
mais elementares, enquanto outras promovem a intervenção das
bases em processos mais avançados.

• Correlacionando as experiências descritas e os fundamentos


teóricos expostos, percebemos que a participação na elaboração
de mensagens, na produção de programas, no planejamento e na
gestão da comunicação está bastante democratizada ao âmbito
das equipes que, em geral, têm o veículo em suas mãos.

• A participação da comunidade é mais ampla apenas no


nível das mensagens, por meio de entrevistas, depoimentos,
avisos, cartas e sugestões.

• Porém, já existem experiências mais avançadas, como a


da Rádio Enriquillo, na República Dominicana, e a do cassete-
fórum, no Uruguai, nas quais a população se envolve na
produção de programas.
• A participação da comunidade no planejamento dos meios
era incrementada nas rádios mineiras bolivianas e na Rádio Livre
Paulicéia, de Piracicaba. Nas primeiras, ele, em suas grandes
linhas, era decidido em assembléias, que delegavam aos coorde-
nadores seu detalhamento e sua execução.

• De uma maneira geral, salvo algumas exceções, os planos


não são suficientemente elaborados, faltando-Ihes rigor técnico,
predominando a topicidade e não se contemplando o médio e
o longo prazo, no que se refere tanto a uma emissora em si
quanto à programação e aos meios de comunicação de massa
27. DEMO, Pedra. Participação é conquuista, 1988, p. 72-73. nos âmbitos local, regional e nacional.

296 297
• No nível da gestão dos meios - conteúdos e formatos de cultura é algo dinâmico, segmentos da população, aqui e acolá,
programas, administração, financiamento =, excetuando mais mesmo sem tradição nesse sentido, vão alterando certos padrões.
uma vez as rádios mineiras bolivianas e a Rádio Paulicéia, as Afinal, trata-se de algo que deve ser construido, conquistado.
decisões ficavam circunscritas às equipes. Nem havia, na maioria
• A experiência da Rádio Enriquillo, além de evidenciar as
dos casos, canais abertos para favorecer a partilha desse poder,
possibilidades de um quefazer participativo no rádio, deixou
ocorrendo, quando muito, consultas ou pesquisas. Nas rádios
patente o potencial dos grandes veículos massivos na comuni-
revolucionárias e guerrilheiras da Nicarágua, de Cuba, de EI
cação popular. É um erro tático desprezá-Ios só por serem
Salvador e da República Dominicana, por causa do contexto de
manipuladores É
e estarem a serviço das classes dominantes.
guerra, as deliberações cabiam às lideranças e eram bastante
preciso reconhecer e equacionar devidamente seu poderio. Por
autoritárias, subordinadas que estavam às estratégias político-mi-
um lado, nem tudo o que vem deles é necessariamente contra
litares de frentes, partidos ou facções. Verificamos também uma
os interesses das classes subalternas. Por outro, estas, median-
tendência ao verticalismo nas rádios livres. Mas a Rádio Globo
de Cricíúma (Se) e a Rádio Livre Pau/ícéia inovaram neste sentido: te os segmentos organizados, podem valer-se deles para trans-
na primeira, se dava uma intensa participação popular na pro- mitir uma programação em condições de competir pela
gramação; na segunda, a comunidade envolvia-se, além disso, audiência, ou seja, conservando seu caráter massivo sem
até no funcionamento da emissora. macular propósitos éticos e educativos.

• Apesar das diferenças e das limitações de muitas experiên-


• Podemos depreender ainda que, onde se abriram canais
de participação, estes foram aproveitados, embora nem sem- cias, todas elas são válidas. É tentando que se aprende a fazer
pre num grau que correspondesse plenamente às expectati- uma comunicação popular participativa cada vez melhor, com
vas. Na Rádio Enriqui//o e no cassete-fórum, os coordenadores poder e competência. O envolvimento ampliado da base em todo
tinham que estar preparados para, às vezes, assumir o papel o processo, por si mesma ou por meio de representantes dele-
de protagonistas nas partes da programação que deviam ser gados, é, no âmbito dos movimentos, uma necessidade e uma
produzidas pelas bases. meta no trabalho de sedimentação de um novo tecido social, de
uma cultura democrática e de uma sociedade aberta .
• Isso confirma que o aprendizado do processo participativo
• Acham alguns que a participação cogestionária e autoges-
é lento. Além do mais, quando o espaço é cedido de cima para
tionária na comunicação popular é algo sem sentido, fora de
baixo, tende a ser de mais difícil assimilação. As causas estão nas
moda ou utópico. Para eles, as características de sua produção,
raízes culturais e históricas das sociedades latino-americanas,
por exemplo, exigem que ela seja confiada a técnicos. Argumen-
que, por um lado, geraram uma certa apatia e um sentimento
tam que não é possível pôr uma massa de gente a elaborar um
de inferioridade diante dos "que sabem" e, por outro, uma
jornal impresso ou um programa radiofônico e que, a par disso,
tendência a delegar o poder, uma espécie de consenso e cumpli-
o "povo" é incapaz de fazê-Io, redige mal, fala errado e, mesmo,
cidade em relação a ideologias conservadoras e práticas autori-
não quer saber de microfones diante de si... Mas, é justamente
tárias. Além disso, muitas lideranças adotavam posturas cen-
para isso que ele se vale de mecanismos de representação,
tralizadoras, seja reproduzindo o que assimilaram da experiência
instâncias de deliberação e equipes de execução, além de se
pessoal seja agindo por suas convicções políticas vanguardistas.
Assim, a comunicação participativa passa pela questão da cultu- poder capacitá-Io para um envolvimento crescente.

ra, pelas necessidades e pelas oportunidades vividas. E, como a

298 299
I
I

• Comunicação popular, sem sentido? Então, deve-se antes chegar. É no dia-a-dia, dentro de uma realidade de carência de
instruir "o povo", para só depois emancipá-Io? Não. "Ele que se consciência política e de recursos financeiros e técnicos, que se
emancipe primeiro e instruir-se-á a si proprio",' Isso pode come- exercita a comunicação popular participativa, na medida do
çar aqui e agora, pelo que está mais próximo: vinculando-se à possível. E é a partir daí, também, que podemos alçar vôos mais
associação de moradores, ao jornal e ao sistema de alto-falantes longos, ocupando espaços nos grandes meios e, ao mesmo
da comunidade, a comitês de combate à fome e à miséria, às tempo, propugnando pelo acesso às tecnologias avançadas.
atividades das igrejas ... A educação e a democratização serão • Nesse contexto, há muito, quase tudo por fazer, sendo
decorrência do processo. válidas todas as experiências. Se o momento atual não favorece
• Comunicação popular, fora de moda? Nunca se falou tanto uma participação nas esferas decisórias mais amplas da política,
da necessidade de participação, de cada um fazer alguma coisa da cultura e da economia, o mesmo pode não estar se verificando
para mudar a realidade, como agora. E, se é verdade que os em nível de organizações autônomas da sociedade civil. Esta não
instrumentos massivos chegaram hoje a um grau de desenvolvi- se acha parada, estagnada em suas contradições. Pelo contrário,
mento sem igual, também os meios comunitários locais e regio- busca reordenar-se incessantemente, num motocontínuo. Existe
nais vêm ganhando espaços em muitos países. Os grandes muita gente trabalhando para colocar o homem como centro
veículos são importantes, mas não permitem dar vazão a todas das estratégias políticas que visam à sua emancipação. Os in-
as necessidades, não Ihes sendo até mesmo possível tratar, por crédulos não acreditam nessa possibilidade, dogmatizando que
exemplo, das questões que dizem respeito bem de perto à vida tudo não passa de um jogo de interesses políticos. É certo que
das pessoas, no local de moradia, de trabalho, de estudo e de se manipulam e se "usam" os movimentos populares, com fins
recreação. Estamos na era do laser, do computador, das fibras eleitorais, por exemplo, mas isto não é uma regra geral. Há um
óticas, dos satélites, da Internet, mas a tecnologia sofisticada não vasto contingente de pessoas se dedicando de corpo e alma a
chegou a todos. Os mineiros bolivianos já tinham suas emissoras essa causa, não raro sem vinculação a partidos, mas, mesmo que
de rádio no início dos anos cinqüenta, enquanto que entre nós, ela exista, não deixando de assumir com seriedade seu papel com
em plena década de noventa, a maioria das comunidades não relação às bases. O que às vezes acontece é que estas até
tem sequer um jornalzinho ou sistema de alto-falantes para estimulam elementos de seus quadros a se candidatarem a
transmitir suas mensagens. cargos políticos, para representá-Ias no parlamento.

• Comunicação popular, utópica? Por tudo o que já disse- • O individualismo acentuado está abrindo caminho a um
mos, é certo que ela não é pura quimera ou fantasia. Ela é, sim, sentimento de solidariedade. Veja-se, a título de exemplo, o
uma utopia no sentido original da expressão grega, formada de engajamento dos brasileiros na Ação da Cidadania Contra a
u (não) e topos (lugar), significando algo que ainda não tem Fome e a Miséria e pela Vida, em 1993, doando toneladas de
lugar, mas pode vir a tê-Io. Sua realização deve fazer parte já da alimentos e criando comitês por todo o território nacional. De
estratégia de curto prazo, pondo-se os pés no chão do cotidiano repente, toda uma população marcada pela indiferença tomou
despretensioso, sem perder de vista o horizonte aonde se quer contato com as condições de pobreza absoluta de trinta e dois
milhões de pessoas, entreviu sua responsabilidade com relação
a esse contexto e aderiu a um processo de reação.

• É assim com os movimentos populares, que há mais tempo


1. BAKUNIN. Conceito de liberdade, 1975, p. 141. se colocam em função da mobilização e organização da socieda-

300 301
de civil, na busca do alargamento da cidadania. Nesse âmbito, a colocam aqui: "a que leva a uma sociedade de desemprego e a
comunicação popular surge como uma necessidade e se realiza que leva a uma sociedade do tempo liberado". A segunda
articulada às praticas sociais. Ela contribui com maior ou menor baseia-se no "princípio do 'trabalhar menos para todos trabalha-
intensidade para a democracia, dependendo dos instrumentos, rem e ter mais atividade por conta própria '. Dito de outra
das formas e da metodologia que utiliza. As dificuldades são de maneira, o trabalho socialmente útil, distribuído entre todos os
toda ordem, como já mencionamos. Além disso, nem todas as que desejam trabalhar, deixa de ser a ocupação exclusiva ou
lideranças assumem esse tipo de proposta e outras são incom- principal de cada um: a ocupação principal pode ser uma
petentes para coordenar atividades participativas eficientes. atividade ou um conjunto de atividades auto de term inadas,
• Em nossa opinião, vale a pena insistir. As experiências levadas a efeito não por dinheiro, mas em razão do interesse,
mostram que a comunicação popular participativa dá seu aporte do prazer ou da vantagem que ne Ia se possam encon trar".3
à edificação de uma cultura e uma educação democrática. Ela Assim, levando à redução do tempo de produção na esfera da
ajuda a conhecer, resgatar e valorizar as raízes do povo. Altera necessidade (salário, sobrevivência)". o desenvolvimento tecno-
as dimensões do comportamento cotidiano. Socializa o direito lógico estará ampliando o tempo de produção na esfera da
de expressão e os conhecimentos técnicos. Desmistifica os meios. autonomia (liberdade). O homem poderá explorar melhor suas
Promove a criação coletiva. Difunde conteúdos diretamente potencialidades intelectuais, artísticas e filosóficas, dedicando-se
relacionados à vida local. Dá voz, pela própria voz, a quem era àquilo de que mais gosta - escrever poesias, pintar, ensinar,
considerado "sem voz". Como no conjunto da sociedade, uma praticar esporte, participar de atividades comunitárias e ... aper-
prática assim caracterizada ainda não predomina nessa área. feiçoar sua comunicação.
Mas ela pode vir a configurar-se. Com a expansão dos instrumen- • Se o homem e a mulher, respeitando as individualidades e
tos massivos, existe uma tendência de crescimento das rádios e o pluralismo, exercerem o direito e o dever de participar ativa-
tevês comunitárias, que certamente hão de proporcionar meca- mente da construção da sociedade, coletivamente, como sujeitos
nismos de participação mais eficientes. livres da história, estarão ajudando a transformá-Ia em um
espaço e um habitat digno de sua espécie .
• Outro fator que pode contribuir para o incremento da
participação popular é a dilatação do tempo livre, em razão do
acelerado desenvolvimento do mundo e do conseqüente aumen-
to da produtividade. Com a evolução tecnológica no modo de
produção capitalista, "a quantidade de trabalho necessário à
reprodução não dessa sociedade e de suas relações de domina-
ção, mas de uma sociedade viável, que disponha de tudo o que
é necessário e útil à vida, (...) está em rápida diminuição. Ela
poderia ocupar apenas duas horas por dia ou quinze horas por
semana ou ainda quinze semanas por ano ou ainda dez anos
numa vida".2 Duas opções, ambas de significação candente, se
3. Id., ib., p. 12.

4. Em alguns países, está se discutindo a diminuição do número de horas de trabalho.


Na França, um acordo já reduziu de 38 para 32 horas a jornada semanal na Electricité
2. GORZ, André. Adeus ao proletariado: para além do socialismo, 1982, p. 91. de France - Gaz de France (EDF-GDF).Cf. Folha de S. Paulo, 21.01.1997.

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