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Linhas de Escrita - Tomaz Tadeu PDF
Linhas de Escrita - Tomaz Tadeu PDF
linhas de escrita,
e a vida passa
entre as linhas
(Deleuze e Guattari)
Tomaz Tadeu
Sandra Corazza
Paola Zordan
Linhas de escrita
Copyright © 2004, by Tomaz Tadeu, Sandra Corazza,
Paola Zordan
Capa
Jairo Alvarenga Fonseca
(Sobre desenhos de Franz Kafka)
As vinhetas que abrem os capítulos também são
desenhos de Franz Kafka: © Archiv Klaus Wagenbach)
Revisão
Rosemara Dias
2004
Todos os direitos no Brasil reservados pela Autêntica Editora.
Nenhuma parte desta publicação poderá ser reproduzida, seja por
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Tadeu, Tomaz
T121l Linhas de escrita / Tomaz Tadeu, Sandra Corazza,
Paola Zordan. Belo Horizonte: Autêntica, 2004.
208 p.
ISBN 85-7526-125-8
1.Educação. 2.Filosofia. I.Corazza, Sandra. II.Zordan,
Paola. III.Título.
CDU 37
1
7
Geo-educação: arte e paisagens virtuais
55
Um plano de imanência para o currículo
135
Pesquisar o Acontecimento:
estudo em XII exemplos
Geo-educação: arte e paisagens virtuais
GEO-EDUCAÇÃO:
afectos que potencializam os elementos que estão em
jogo. Tais gozos e escolhas estão implicados em con-
dutas éticas e estéticas, cuja única finalidade é inten-
sificar os perceptos e abrir o corpo a experiências peculia-
GEO-EDUCAÇÃO:
essa eterna linha de fuga, é a única regra para a Filo-
sofia da Diferença, cujo trabalho é mapear os agen-
ciamentos entre forças em devir. Os mapeamentos
geo-filosóficos também adentram-se na ciência a fim
GEO-EDUCAÇÃO:
ponham de imagens, os planos não constituem orga-
nismos ou formas molares; são sempre estruturas mole-
culares mesmo quando estendidas ao infinito sideral,
pois tanto as galáxias como as mínimas partículas na
GEO-EDUCAÇÃO:
sagem é uma composição de mínimas congruências en-
tre povos cujos fluxos divergem, as forças se estranham
e criam imagens anômalas, misturas de saberes e toda a
sorte de distorções na linguagem e nos estilos.
3
Bastaria fazer um panorama dos currículos escolares ao longo dos dois
últimos séculos para constatar a preponderância das ciências. Tanto
a filosofia quanto a arte foram relegadas a segundo plano no projeto
educacional moderno da Ilustração, cunhado pelo espírito positivista e
científico. O plano de referência traçado pela ciência foi instituído
como o conhecimento legítimo, que não apenas se estabelece como
modo de se acercar do mundo material como também vai incidir
sobre os corpos, coletivos e individuais. Sob a lógica da conservação
fechados, organismos ou instituições. Feita com a mul-
tidão, uma educação menor se dá nas permutas entre
as diversas minorias que a constituem. Essa educação
pressupõe saberes ambulantes que possibilitam a ab-
sorção e oferecimento de experiências, exposição de
manejos, mostras de material, variações de matéria. A
educação menor é uma prática desterritorializadora,
algo em vias de se fazer, nunca sobre aquilo que já
está dado, mas sempre com o que está para chegar.
Por isso, envolve um certo mistério, uma complicação
que é seu charme, pois beira o impossível, ao se cons-
tituir junto a um saber que ainda não é, mesmo que,
DE ESCRITA
GEO-EDUCAÇÃO:
senso comum e suas miríades de paradigmas espiritua-
listas, esse projeto preserva as carcaças do que resta da
sociedade disciplinar e de seu ranço enciclopédico. Tal
sociedade cunhou as instituições escolares modernas
2
Deleuze e Guattari apresentam as ciências ambulantes nas proposi-
ções que tratam da epistemologia e da noologia das máquinas de
guerra. Cf. Mil Platôs 5. São Paulo: Ed. 34, 1997, p. 24-62.
clichês, imagens estratificadas, não são as formas-for-
ças-conteúdos que estão em jogo nas imagens e sim sua
serventia ao senso comum. As imagens pop abrem-se
ou não aos devires, de acordo com os modos como são
usadas. As complicações da filosofia popular, inerentes
à problemática da geo-educação, devem-se à maneira
como as imagens funcionam. O que aniquila o devir da
imagem é a produção de um saber consensual, legitima-
do pelos poderes majoritários, que acabam impondo a
imagem como uma matéria, uma disciplina do conheci-
mento. Enquanto a imagem pertencer a um povo, os cli-
chês que a preenchem podem virar matéria para devir,
DE ESCRITA
GEO-EDUCAÇÃO:
do imagens estratificadas, implica a constituição de um
plano de imanência geo-educacional que opera nos dis-
sensos da multidão, na multiplicidade de povos e varie-
dades de matéria.
GEO-EDUCAÇÃO:
mas engendra-se. A medida do desejo é uma estranha
agrimensura do plano, uma análise dos graus intensivos
dos afectos virtuais. Tais afectos se dão na profusão de
matérias que envolvem o desejo, imagens de pensamen-
3
A idéia de uma esquizo-educação é colocada por Sylvio de Sousa
Gadelha Costa, que a pensa sobre as possíveis aberturas no aparelho
educacional molar. O autor salienta que essa outra educação só
pode acontecer se investir contra seus inimigos: os fascistas, os
burocratas, os funcionários da verdade, os técnicos do desejo e as
imagens dogmáticas, como se só pudesse existir explodindo com os
binarismos clássicos e os organogramas estratificados do edifício
educacional. Sylvio Costa descreve o estado da Educação como um
imenso condomínio, no qual são administrados e condicionados os
palácios, cidadelas e comunidades aprendendo e ensi-
nando sua arte. Traçado nas perambulações errantes das
artes ou ciências menores, um plano educacional geo-
filosófico ou esquizo-analítico é composto por multi-
plicidades intensivas que transmutam e invertem aqui-
lo que a Razão e seus juízos reconhecem.
GEO-EDUCAÇÃO:
Sentido trágico
GEO-EDUCAÇÃO:
dada, pronta, atualizada, mas sempre em vias de se
fazer. Criar é produzir a diferença essencial que afir-
ma os simulacros e faz a vontade de verdade virar
vontade de potência. A imagem de pensamento aca-
4
Quando a diferença é a potência primeira, o mesmo e o semelhante
não têm mais por essência senão serem simulados, de modo que a
seleção e o juízo não sejam possíveis frente a um condensado de
coexistências, um simultâneo de acontecimentos. Cf. DELEUZE.
Lógica do sentido, p. 268.
5
Literalmente deus trazido pela máquina, alusão ao efeito cênico
criado por um sistema de roldanas, inventado na tragédia grega, que
fazia surgir o ator que representa um deus suspendido no alto da cena.
seu plano os mais diversificados panteões, multiplici-
dade de deuses menores que atravessam os povos e ful-
guram em suas paisagens. Simulacros como qualquer
outra coisa, os deuses designam nomes para zonas in-
tensas onde os povos alucinam. Cada deus, assim como
qualquer outro tipo de entidade mágica, é um campo
de potências que não precisa ser identificado a qual-
quer crença ou religiosidade, mesmo quando situado
nas malhas culturais em que estas se entrelaçam. Cria-
ções virtuais da multidão, os domínios desses seres in-
corpóreos são inconclusos, permeáveis, suscetíveis a toda
sorte de metamorfoses, conflitos e sincretismos que
DE ESCRITA
GEO-EDUCAÇÃO:
se distinguem como se compõem. Em uma só prática
tais sentidos criam acontecimentos, como a tragédia
grega analisada na primeira obra de Nietzsche, junto à
qual o funcionamento da tragédia é mostrado como o
GEO-EDUCAÇÃO:
não cansam de deslocar as almas de seus órgãos, de modo
que os espíritos não parem nunca de encher e esvaziar os
corpos. Esse tipo de transe prosaico, agenciamento de
desejo banal, cria pequenas linhas de fugas para entocar
Plano monstruoso
30
GEO-EDUCAÇÃO:
exprimem nos sacramentos do corpo: Deus feito car-
ne que se deixa torturar e morre, sacrificando-se por
amor, oferecendo-se numa completa comunhão no mis-
tério eucarístico tomado como vida eterna. Sob os devi-
6
Também profeta, músico, geômetra, arquiteto e médico, exatos atri-
butos de Apolo. As máximas que encimavam o oráculo desse deus,
em Delfos, conhecer a si mesmo e nada em excesso, ajudaram a
imprimir o tom ascético do cristianismo e de toda a cultura alexandri-
na, marcada pela herança filosófica socrática e por crenças pitagóricas,
que marcam até hoje o pensamento ocidental.
7
Talvez fosse melhor dizer vontade fraca para designar o esvazia-
mento da vontade de potência. Nesse caso, nada é um termo que
acompanha a idéia de vazio, nunca a de aniquilamento completo.
Para um pensamento que afirma a positividade do desejo e a pleni-
tude de suas criações, o nada como não-ser ou como indicador de
em força ativa, alegre, implica na afirmação ex nihil de
potências que são a própria vontade transvalorada, li-
vre do niilismo reativo que retira da vontade todo seu
potencial para a ação. Há, nesse processo, uma atração
abissal, uma vontade de cair no buraco, entrar na cova,
deixar-se engolir por cavernas que devoram os que
caem dentro delas. Penetrar no vazio, atravessar a
imensidão do céu e conhecer profundezas obscuras são
práticas mágicas para fortalecer potências. A fim de
superar poderes, magos e xamãs se abrem para afectos
extremos, privações, mutilações e exposições do corpo
que os aproximam do aniquilamento; afectos experi-
DE ESCRITA
GEO-EDUCAÇÃO:
Um plano de pensamento que envolve o sentido
trágico da arte é traçado pela tensão de forças que não
param de se desfazer, modificar a matéria, desafiar a
gravidade, diferenciar, vir de novo mais forte. Pouco
estratégico da geo-educação.
Essa imagem de plano nos dá a observar que toda
LINHAS
GEO-EDUCAÇÃO:
estilos sobre sua prática, a geo-educação pressupõe uma
ética que nunca se separa da Terra e de seus devires.
Essa ética não exclui as paixões dionisíacas, que inten-
sificam a alegria e alimentam a alma do povo, mas tam-
GEOEDUCAÇÃO:
plano da arte e seus devires pelos povos da Terra. A idéia
é que funcione como coro dionisíaco, máquina cantante
da tragédia, limiar entre a multidão e o desenrolar dos
GEOEDUCAÇÃO:
riqueza e abundância, assim como também terras de
ninguém, desertos dos quais não se tira nada. Uma pe-
dagogia do deserto abre-se à escassez e à privação, à su-
GEOEDUCAÇÃO:
no espaço, cujas provas são transpor variadas superfícies,
planos de experiência que o corpo da Terra compõe.
Orientar-se no deserto, no oceano, nas campinas, nas
florestas, selvas e cidades, não é apenas ter mapas, guiar-
8
Obra de Théodore Géricault (1818-1819) exposta no Museu do
Louvre, que retrata a tragédia de traços antropofágicos, conseqüên-
cia das privações sofridas por náufragos à deriva sobre uma superfície
de paus. Com estilo romântico, o quadro inaugura o realismo na
pintura francesa, pois protesta contra o fato real acontecido alguns
anos antes na costa africana, quando o capitão da fragata Medusa,
um nobre, abandona mais de cem pessoas, consideradas da ralé,
sobre uma jangada improvisada.
serem atravessadas. Aprender e ensinar algum tipo de
arte é estar no mesmo barco, remar junto com os mes-
tres e colegas de ofício. Todo mestre é uma espécie de
guia que já experimentou as forças caósmicas e, de al-
guma maneira, as superou, de modo que encontrar um
mestre é ter com quem aprender a enfrentar a morte, a
passar pelo caos. Além de ensinar a posição dos astros,
o traçado de coordenadas topológicas e fornecer mapas
e bússolas, o mestre mostra as belezas, expõe proble-
mas e alerta sobre a possibilidade dos perigos. É aquele
que entrega alguns segredos e truques para que se possa
seguir em frente, sem preocupar-se com o estabeleci-
DE ESCRITA
GEOEDUCAÇÃO:
mento. Antes de enfrentar os mesmos perigos, é brincar
em conjunto, inventar ficções compostas, verter flu-
xos que se compõem em afetos alegres que aliam o
9
Dioniso é um deus humilde, um deus da vegetação, um deus dos
campônios. Com seu êxtase e entusiasmo, o filho de Sêmele era uma séria
ameaça à polis aristocrática, à polis dos Eupátridas, ao status quo vigente,
cujo suporte religioso eram os aristocratas deuses olímpicos. Cf. BRAN-
DÃO. Mitologia grega, v. 2. Petrópolis: Vozes, 2001, p. 117.
de modo que, uma vez nele, o pensamento se esforça
para explicar uma paisagem, situar pontos de vista, mes-
mo que desoladores. É em sua força apolínea que o
pensamento funciona como um crivo, cujos cortes apli-
cam imagens na matéria caótica, estabelecendo territó-
rios, traçando limites e linhas de orientação que criam
os critérios para selecionar as imagens com as quais o
GEOEDUCAÇÃO:
pensamento vai traçar seu plano. Como a realidade é
um efeito das imagens, não encontrar imagens ou não
ter critérios para selecioná-las sustenta, mesmo que pro-
que nos afasta da vida, mas sim aquilo que nos ajuda a
atravessá-la, que nos incentiva a encarar seus perigos, a
morder a cabeça da serpente. Tomar de revés o pensa-
mento antropofágico, não como apologia do regurgito,
mas como possibilidade de cortes, despedaçamento,
prova. Certamente há incorporações, fagocitoses de for-
ças que criam planos imiscuídos num continuum infin-
dável, vertiginoso, expurgado, que a vontade sempre
acaba por romper, abrir, criar mil descontinuidades.
Essa pedagogia do vulnerável, potencializada pela von-
tade, abertura que torna uma força indestrutível, permi-
te um vislumbre do campo limítrofe da geo-educação,
animado por um culto primitivo, tribal, jamais por uma
religião de Estado, em cujas asas os fiéis podem se abri-
gar dos inimigos, dos terrores e de outras tantas coisas
que paralisam.
Seja na própria terra que geme, incendeia, trinca,
se inunda, seja no laminar da pedra, no fio do metal
forjado, a extrema vulnerabilidade dos seres vivos acaba
GEOEDUCAÇÃO:
sendo sentida. A impermanência da vida se mostra na
crença da abundância da Terra, sua capacidade de re-
composição, pois, após tempos de falta de alimento e
GEOEDUCAÇÃO:
nas maneiras de expressar o imperceptível, o indiscer-
nível, informe, incógnito. Lócus esotérico, onde o
ponto de vista não passa de ponto de intersecção, uma
10
ANDRADE, Oswald. Manifesto antropófago. Disponível em <http:/
/www.lumiarte.com/luardeoutono/oswald/manifantropf.html>
Acesso em: 18 jun. 2002.
corpo sem órgãos que dança ao avesso. Dança sem per-
nas e sem braços, uma experimentação com o caos,
uma prova feiticeira, dionisíaca que esquarteja os
cânones sociais, antropomórficos, arborescentes, nu-
méricos.11 Sob um modelo de educação, que é a agri-
mensura do caos, há que se pensar um plan-o indeter-
minado, cujo potencial imensurável perverte a geometria
e faz delirar a astronomia, atividades sob os auspícios
de Saturno, ocupadas em cortar paisagens, seccionar o
espaço, identificar pontos. Embora o plano geo-filosó-
fico prescinda das medições de terra, contagem das po-
pulações, censos territoriais, dados, precisa se ocupar
DE ESCRITA
11
Na Cabala existe uma música dos números e esta música, que reduz
o caos material a seus princípios, explica, por uma espécie de mate-
mática grandiosa, como a natureza se organiza e dirige o nascimento
das formas retiradas do caos. Cf. ARTAUD. Escritos de Antonin Ar-
taud. Porto Alegre: LP&M, 1986, p. 99.
atirar no impensado, é um tipo de rito iniciático que
envolve passagens, mortes, renascimentos, processos ma-
quínicos que se repetem, mas nunca se reproduzem do
mesmo modo. Ritmos da vida, aprendidos nos trânsi-
tos extensos e transes intensos dos corpos; corpos que
se combinam em máquinas que constroem planos de
consistência intempestivos, frenéticos e desatinados.
GEOEDUCAÇÃO:
Antes de dispor de toda uma agrimensura para
servir como referência para guiar a sua prática, a geo-
educação se vale da estética atemporal, plano de per-
GEOEDUCAÇÃO:
BRANDÃO. Mitologia grega, v. 2. Petrópolis: Vozes, 2001.
CORAZZA. Para uma filosofia do inferno na educação. Belo Hori-
zonte: Autêntica, 2002.
seu corpo
para seguir no céu
LINHAS
15
Da afirmação O discurso educacional, o nosso, tem
um tom. Ele é, por excelência, crítico. No começo está
a denúncia. Seu recurso estratégico é o de negar o esta-
do atual do sistema educacional. O sistema é perver-
so. A escola é reprodutora. O currículo é machista, se-
xista, racista. É assim que ele começa. Quando vai se
aproximando do final, ele se torna, em troca, moralista.
Ele diz como fazer para reformar o currículo, a escola,
a educação, o mundo. Sua ontologia é a de um mundo
torto, julgado a partir de uma transcendência qualquer.
Sua ética (ou sua moral?) é a de quem sabe, com toda
certeza, para onde o mundo o da escola, o da educa-
ção, o do currículo, em particular deve caminhar. O
discurso educacional é o Juízo de Deus. É o discurso da
condenação e da negação. É o discurso da indicação do
UM
reto caminho. Negação. Negação da negação. No final,
1
Do sistema O discurso pós-moderno, tal como, an-
tes, o discurso crítico, nos acostumou a desprezar os
sistemas. Os sistemas são, nesse raciocínio, sobretudo,
totalitários e totalizantes. Os sistemas filosóficos, os
sistemas de pensamento, são, sem nenhuma defesa, sus-
peitos. O que fazer, então, com um pensamento como
o de Deleuze que, sobretudo num livro como Mil pla-
tôs, constrói, talvez, o mais completo e complexo siste-
ma filosófico contemporâneo? Um sistema filosófico,
tradicionalmente, envolve dizer de que o mundo é cons-
tituído, o que significa ser no mundo; implica des-
UM
crever como se conhece esse mundo assim concebido;
UM
tanto, não recorremos a um mundo extra-sensível para
UM
mundo das coisas já-feitas. A ontologia deleuziana está
1
63
UM
dois conjuntos (um de cinco laranjas, outro de quinze,
UM
múltiplo. É preciso fazer o múltiplo (MP, v. 1, p. 14).
11
Da diferença Sem multiplicidade (heterogênea) não
haveria criação, invenção, produção do novo e do im-
previsível. A multiplicidade é a matéria-prima, o spa-
tium, contínuo, heterogêneo, intensivo, de onde salta o
que ainda não existia. É da multiplicidade que salta
uma outra coisa que não coincide com qualquer dos
elementos de que ela é formada, que é uma outra coisa,
67
UM
como Adorno ou um pensador que, sem desenvolver
10
70
UM
noção de imanência vem precisamente de uma tradi-
UM
causa material seriam causas internas, enquanto a causa
UM
situa no plano ordinário das coisas, daquilo que per-
UM
preendida, a noção de transcendental, ao contrário da
UM
orientação. Num mundo que remete ao transcendente,
9
Do devir Os antigos, tirando talvez Heráclito, tinham
horror ao devir. Devir, em última análise, significa dei-
xar de ser deixar de ser alguma coisa para se tornar
outra. E para deixar de ser é preciso passar por um está-
gio que eles consideravam inadmissível: não ser. Por-
que o não ser, o que não é, simplesmente não existe.
É impensável. Na ontologia das essências, das formas
ideais, do hilemorfismo, da diferença específica, não
tem lugar para o devir. O devir é, aí, uma dor-de-
cabeça. Já para uma ontologia da multiplicidade, como
a de Deleuze, é tudo o contrário. É o ser da concepção
tradicional que é, aqui, impossível. Não há nada, abso-
lutamente nada, que seja, no sentido de que esteja
definitivamente formado, nem mesmo aquilo que, na
ontologia deleuziana, poderia dar essa impressão, isto
é, as entidades do domínio do atual (o virtual e o atual
coexistem). É que a multiplicidade (intensiva, virtual)
não é apenas feita de forças, vetores, intensidades. Na
medida em que é feita de relações diferenciais, de infi-
DE ESCRITA
UM
Para sair do ponto é preciso deixar-se conduzir pelas
8
82
UM
te do pensamento de Deleuze. Na medida em que, po-
UM
por ruptura, alongar, prolongar, revezar a linha de fuga,
7
Dos agenciamentos Agenciamento é, em portugu-
86
UM
mentos. Um dos exemplos de agencement fornecidos
UM
PLANO DE IMANÊNCIA PARA O CURRÍCULO
sição, do corpo sem órgãos; no outro, eles vão na direção
do atual, da multiplicidade extensiva, dos estratos.
Num caso, eles seguem o curso da variação contínua;
no outro, o da fixação e da paralisia. [...] o problema é
o de fazer bascular o agenciamento mais favorável: fazê-
lo passar, de sua face voltada para os estratos, à outra
face voltada para o plano de consistência ou para o cor-
po sem órgãos (MP, v. 2, p. 90). Como em tudo o
mais, nada é simples na ontologia deleuziana. Nem todo
agenciamento é bom. Nenhum agenciamento é ne-
cessariamente desejável. Há até mesmo agenciamentos
de poder: [...] não há significância sem um agencia-
89
UM
de infantaria, martelo e machado. O estribo impõe, por
UM
sistência e para o domínio dos devires, única zona onde
6
Do Corpo sem Órgãos Nada parece mais esotérico,
talvez, na escrita deleuziana, que essa expressão, toma-
da de empréstimo a Antonin Artaud (claro que não
sem os manjados truques de mão que lhe dão direito, a
Deleuze, de ingresso na corporação dos mágicos). Cor-
po sem Órgãos? Como pode ser uma coisa dessas? Pa-
rece um oximoro. É um oximoro. E é justamente dessa
aparente impossibilidade que Deleuze extrai toda a efi-
93
UM
da vida. O Corpo sem Órgãos está no centro da valori-
UM
PLANO DE IMANÊNCIA PARA O CURRÍCULO
berrava Artaud (1977) ao final de sua malograda peça
radiofônica: Podem me atar, se quiserem, /mas não há
nada mais inútil que um órgão. Quando tiverem feito
para si um corpo sem órgãos, /então vocês o terão livra-
do de todos os seus automatismos /e o terão devolvido à
sua verdadeira liberdade. Então vocês o terão ensinado
a dançar às avessas /como no delírio dos bailes popula-
res /e esse avesso será sua casa verdadeira (ARTAUD,
1986, p. 161-2; tradução ligeiramente modificada).
5
97
UM
creve e quem lê. É a noção central de multiplicidade
UM
dem substituí-lo (MP, v. 1, p. 34). De forma talvez
UM
um mínimo de matéria expressiva, que ela deixa de ser
Isto respira, isto aquece, isto come. Isto caga, isto fode.
Mas que asneira ter dito o isto (DELEUZE E GUATTARI,
1966, p. 7). É o próprio Deleuze quem denuncia o
estilo mais tradicional de seus livros anteriores, embora
já pressentindo aí que uma teoria da multiplicidade exi-
gia uma escrita da multiplicidade: Comecei então a fa-
zer dois livros nesse sentido vagabundo, Diferença e repe-
tição, Lógica do sentido. Não tenho ilusões: ainda estão
cheios de um aparato universitário, são pesados, mas tento
sacudir algo, fazer com que alguma coisa em mim se mexa,
tratar a escrita como um fluxo, não como um código (DE-
LEUZE, 1992, p. 15). Mas é, certamente, em Mil platôs
que a escrita de Deleuze tenta acompanhar o movi-
mento da multiplicidade, como, outra vez, ele mesmo
diz: Em Lógica do sentido tentei uma espécie de com-
posição serial. Mas Mil platôs é mais complexo: é que
platô não é uma metáfora; os platôs são zonas de vari-
ação contínua, são como torres que vigiam ou sobrevo-
UM
am, cada uma, uma região, e que emitem signos umas
UM
4
UM
disparidade, relativamente ao pensamento. Aqui, não
UM
esse esforço de Deleuze para construir uma outra ima-
1
É o que nos diz Michel Tournier, narrando um episódio da ju-
ventude de ambos: Um certo verão, eu o levei a Villers-sur-Mer.
Ele raramente se separava de sua echarpe e de seus sapatos urba-
nos. Mas ele entrou no mar uma vez. Nado com a cabeça fora
dágua para mostrar que não estou no meu elemento natural, di-
zia ele (Tournier, 1999, p. 344).
nos proporem gestos para reproduzir, sabem emitir
signos a serem desenvolvidos no heterogêneo (DELEUZE,
1988, p. 54). A violência do encontro com o heterogêneo
não impede que se entre em ressonância com ele. Muito
pelo contrário. Como diz Deleuze, apaixonar-se é indi-
vidualizar alguém pelos signos que [esse alguém] traz con-
UM
sigo ou emite (DELEUZE, 2003, p. 7). Ou seja, apaixo-
3
Dos deslizamentos e das interpenetrações Um leit-
motiv percorre Mil platôs do começo ao fim: a inse-
parabilidade, a implicação mútua, a transitividade, a
intercambialidade, a comunicabilidade, a mútua trans-
formabilidade, o mútuo travestismo, entre os dois ter-
mos de qualquer dos aparentes dualismos que também
povoam, aos montes, o livro dos platôs. É de Bergson,
113
UM
xa de assinalar sua interpenetrabilidade. Aqui, por
UM
plano de consistência, seus diagramas ou suas máqui-
UM
vamente se distinguem mas são inseparáveis, embara-
UM
sem que haja necessidade de deixar o território, nem de
2
Da política Quando um anarqueonte como Deleuze
encontra um arqueonte como Foucault o que é que
DE ESCRITA
UM
um passo da desestratificação. Mas em cada um des-
UM
partilhávamos a mesma visão da sociedade. Para mim,
UM
te à divisão, à traição (p. 229). Essas são as grandes
1
Do currículo Chegamos, finalmente, ao cerne da ma-
LINHAS
UM
pretação e de subjetivação. Em vez disso: experimen-
UM
da profecia deleuziana, durem um momento a mais,
0
Da casa vazia Se você veio parar nesta casa, você se
131
UM
Oliveira, Lúcia Cláudia Leão e Suely Rolnik.
PESQUISAR
rimentações e as de seus orientandos e alunos com a
dita-cuja Arte Bruta da Pesquisa, Pesquisa da Besteira,
Gaia Pesquisa, Pesquisa da Multiplicidade, Empirista
O
ACONTECIMENTO:
Transcendental, Experimental, Diagnóstica, Em fuga,
Rizomática, Pragmática, Vital, Caótica, Artística, Impen-
sável, Micropesquisa, Esquizopesquisa, Pesquisa a n-1,
Pesquisa-de-mil-nomes, e outros tantos nomes a serem
ESTUDO EM
inventados, sonhados, delirados, mas que dizem, uni-
vocamente, de uma pesquisa educacional inspirada pelo
pensamento deleuziano da diferença.
XII
EXEMPLOS
Todos-os-nomes que dizem de uma pesquisa em
educação, cuja natureza empirista transcendental con-
densa, nas ações correlatas de pensar e de escrever edu-
cação, que lhes são constitutivas, todo o sentido, uma
137
PESQUISAR
experimentação dos conceitos e das imagens do pensa-
mento que animam uma Pesquisa do Acontecimento, cuja
principal pergunta é: mais do que historicizar, como
O
ACONTECIMENTO:
acontecimentalizar a pesquisa da educação, da pedago-
gia, do currículo, da infância?
Por isso, pesquisar o Acontecimento requer ope-
rações que se movimentem: dos corpos e estados de
ESTUDO EM
coisas aos acontecimentos; das misturas às linhas puras;
da profundidade à produção das superfícies; da libido
narcísica à energia dessexualizada; da superfície corpo-
XII
ral da sexualidade à cerebral ou metafísica do pensa-
EXEMPLOS
mento puro; do traçado da castração à fenda do pensa-
mento; do figurativo ao abstrato; da castração ao
pensamento; do esposarei Albertine? de Proust ao
problema da obra de arte por fazer; da árvore e seu ver-
139
EXEMPLO I: Noologia
PESQUISAR
terminar as etapas de seu desenvolvimento ou
selecionar os conteúdos curriculares sob o determi-
nante idade, essa criação singular supõe uma ima-
O
ACONTECIMENTO:
gem do pensamento do currículo, pela qual os alu-
nos são reunidos nas turmas por um novo tipo de
problema, qual seja: como derivar todos os alunos
de perfis puros, ou como imitar perfis originais, imu-
ESTUDO EM
táveis e intactos? Ao analisar essa nova imagem do
pensamento, a Pesquisa Noológica mostra que aquilo
que pretendia ser uma generalidade ou universalida-
XII
de curricular deriva apenas de uma certa imagem do
EXEMPLOS
pensamento específico daquele currículo, que cres-
ceu em torno de um problema particular, ou seja, a
não-idade como critério de organização das tur-
mas, imagens dos alunos e distribuição dos conteú-
141
PESQUISAR
O que é novo no pensamento de um currículo
permanece sempre assim: ainda novo. Cabe ao es-
tudo noológico dos pensamentos curriculares do
O
ACONTECIMENTO:
passado demonstrar aquilo que ainda é novo ne-
les, de modo que eles se vejam libertos de toda
idéia de épocas e, portanto, de imagens magnas,
como as da auto-realização do espírito humano,
ESTUDO EM
libertação dos oprimidos, cidadanização dos indi-
víduos, cotidianização da escola, multiculturali-
zação das minorias etc.
XII
Nessa Pesquisa Noológica, há sempre um momen-
EXEMPLOS
to de absoluta desterritorialização, quando é in-
ventada uma nova imagem do pensamento curri-
cular (quase uma ausência de imagem), que não
pode ser compensada nem pela comunidade ima-
143
PESQUISAR
das peças de um puzzle, a serem encaixadas, em lugares
previamente definidos, mas como pedras de tamanhos
dessemelhantes num muro ainda por cimentar. Por con-
O
ACONTECIMENTO:
seguinte, eles pesquisam os problemas introduzidos por
um Fora, que chega antes de as coisas se assentarem em
acordos e que persiste, subsiste e insiste no meio delas.
Realizam a experiência de pesquisar numa zona ante-
ESTUDO EM
rior ao estabelecimento de um nós, intersubjetivo e
estável, e transformam tal zona não na questão de um
reconhecimento de si mesmos nas coisas do mundo,
XII
mas antes na de um encontro com aquilo que eles não
EXEMPLOS
podem ainda determinar, com aquilo que eles não po-
dem ainda descrever, ou acerca do qual eles não po-
dem ainda concordar, uma vez que não possuem se-
quer as palavras para tanto.
145
PESQUISAR
250; DELEUZE e GUATTARI, 1992, p. 223). As-
sim, a professora defende que um verdadeiro pen-
samento pedagógico é aquele não dirigido contra
O
ACONTECIMENTO:
erros ideacionais ou proposicionais, contra algu-
ma superstição ou ilusão religiosas, contra uma ide-
ologia conservadora etc., mas, sobretudo, aquele
que enfrenta uma besteira anterior e mais inabor-
ESTUDO EM
dável, que suplanta esses problemas clássicos do
erro, da superstição, da ideologia etc.
Analisar a besteira na pedagogia implica ver tal
XII
besteira não como irracionalidade (mesmo que seja
EXEMPLOS
feita à custa de uma certa loucura da pesquisadora
e a envolva numa relação com algo de inumano ou
de intolerável); ao contrário, essa besteira implica
que o pensamento pedagógico não começa por um
147
PESQUISAR
siste naquele triste estado dos pesquisadores e do
campo educacional, em que já não podemos, já não
fazemos, ou já não queremos mais pensar, apenas
O
ACONTECIMENTO:
emitir opiniões.
Para nos libertar do problema da besteira peda-
gógica, é necessário um choque, um efeito de
alienação, conceber novas estratégias de comba-
ESTUDO EM
te contra ela, já que o ato de pensar é insepará-
vel de uma violência que problematiza ou agita
a doxa e apresenta algo de novo para ser pensa-
XII
do. Para que Uhma, como Pedagoga da Besteira,
EXEMPLOS
possa pensar, ela precisa estranhar, radicalmen-
te, aquilo que ela ainda não pode dizer na lin-
guagem comum. Por isso, amiúde, ela utiliza as
palavras e escreve em modos não compreendidos
149
PESQUISAR
professora pesquisa uma sala de aula como não se
esgotando apenas em suas divisões distintivas; ao
O
contrário, a vê como estando sempre em fuga e
ACONTECIMENTO:
podendo ser analisada ou diagramatizada em ter-
mos de linhas de fuga (lignes de fuite). Sob suas
divisões e unidades, uma sala de aula se presentifi-
ca como complicada ou complexa, em modos que
ESTUDO EM
não estão contidos nos seus conflitos mais reco-
nhecidos e que dão origem a problematizações,
para as quais não existe consenso prévio, nenhum
XII
nós pensamos que....
EXEMPLOS
Em uma sala de aula a ser cartografada, Uhma não
vê um espaço completamente segmentado, ou in-
teiramente estratificado, já que toda estratificação
segrega a possibilidade de outras relações compli-
151
PESQUISAR
anterior, original. Eles farão com que a pesquisa se
torne parte de uma fabulação (DELEUZE e GUAT-
TARI, 1992, p. 218, ss.) escolar, ao traçarem percur-
O
ACONTECIMENTO:
sos das minorias, com as quais experimentarão tudo
o que está fora dos estados escolares, todas as espécies
de fugas que escapam a estes estados ou de forças
que estes tentam capturar. Nessa pesquisa, todos
ESTUDO EM
procedem por experimentação, apalpação, injeção,
recuperação, avanço, retirada, vendo os pontos en fuite,
que não são obstáculos a remover, mas em torno dos
XII
quais surgem novos devires e onde ganham formas
EXEMPLOS
novas maneiras de pensar.
PESQUISAR
perguntas de pesquisa, como era entendido por
outras imagens de pesquisa, mas determinar os
dados e as incógnitas do problema, desenvolver o
O
ACONTECIMENTO:
máximo possível estes elementos em vias de deter-
minação e encontrar os casos de solução corres-
pondentes a esse desenvolvimento.
Ao pesquisar a infância contemporânea, por exem-
ESTUDO EM
plo, os pesquisadores escolhem movimentos vir-
tuais absolutos vividos no presente pelos infantis,
os compõem como variações interdependentes,
XII
inventam os personagens conceituais mais produ-
EXEMPLOS
tivos para descrever tais variações, procuram tra-
çar as melhores coordenadas sobre o plano de ima-
nência do pensamento acerca da infância.
O conceito-solução forjado não anula o problema
155
PESQUISAR
nida exclusivamente por problemas, constituída por
Idéias-problemas, por Idéias problemáticas; e pro-
blemáticas não porque sejam carentes de objeto
O
ACONTECIMENTO:
ou de solução, mas porque o seu objeto é inde-
terminado, ou seja, não se trata de um objeto im-
perfeito, mas dele como duma dimensão objeti-
va da realidade, que só é representável sob forma
ESTUDO EM
problemática, embora já atuante na percepção
como foco unificador (cf. DIAS, 1995, p. 79, ss.).
Desse modo, o problemático subsiste nas soluções
XII
porque possui um estatuto positivo, uma idealida-
EXEMPLOS
de objetiva, que o torna irredutível a um estado
de incerteza subjetivo. Isso não encaminha os pes-
quisadores a estabelecer os problemas como dados
ou preexistentes, contradizendo a prática da pes-
157
PESQUISAR
Os problemas de tal pesquisa caracterizam-se, en-
tão, como verdadeiros ou falsos independentemen-
te de toda possibilidade de resolução e de toda for-
O
ACONTECIMENTO:
ma, quer seja lógica, científica, transcendental etc.
É apenas em si mesmos que os problemas encon-
tram o critério de sua verdade ou falsidade (ou
melhor, do seu sentido), segundo a boa ou má re-
ESTUDO EM
partição das suas singularidades e a suficiência ou
insuficiência de tematização decorrente de suas
condições; em suma, segundo a medida da sua
XII
determinação, de maneira que os pesquisadores
EXEMPLOS
podem dizer que um problema completamente de-
terminado é um problema resolvido. Assim, o ver-
dadeiro e o falso concernem primeiramente aos
problemas, antes do que às soluções; por isso, uma
159
PESQUISAR
postos para um novo problema e para um novo
plano. Criticar uma pesquisa assim só pode ser
olhar de outro plano e a partir de outros proble-
O
ACONTECIMENTO:
mas, e aqueles pesquisadores que criticam sem
criar são os que confundem crítica com discus-
são, ou que agitam velhos conceitos inúteis, so-
mente para inibir a criação (cf. DELEUZE e GUAT-
ESTUDO EM
TARI, 1992, p. 41-42).
XII
de energia e de sentido, as pesquisadoras não tratam de
EXEMPLOS
convencer nem de vencer quem quer que seja, mas de
produzir um sentido partilhável, interessante, que for-
neça algo para pensar. Assim, concluir uma pesquisa
não é construir saber ou conhecimento, mas criar, por
161
PESQUISAR
as seguintes orientações: 1) pratica a pesquisa so-
bre o currículo, de modo filosófico, como um jogo
O
afirmativo de novidade e de experimentação con-
ACONTECIMENTO:
ceitual; 2) intui que o currículo que ela pega
para analisar não é uma linguagem, um código
narrativo, ou um sistema proposicional, mas antes
um material expressivo, anterior à boa forma e,
ESTUDO EM
portanto, à matéria e ao conteúdo, o qual ganha
forma por meio de devires de imagens e signos;
3) tem claro que a idéia do devir-currículo a ser
XII
analisado não deriva de um determinismo históri-
EXEMPLOS
co ou contextualista, que os estudos sobre o currí-
culo consistem não numa história, mas na realiza-
ção de uma cartografia das várias imagens
curriculares, para responder à pergunta: que novos
163
familiar e visível, mas algo que ainda não foi visto, que
não se pôde ver, que está a acontecer, algo que os pes-
quisadores precisam tornar imperceptível, de modo a
poder vê-lo. Por isso, eles pesquisam não para reprodu-
zir aquilo que já podem ver, mas para tornar visível aquilo
que não podem ainda ver (cf. DELEUZE, s/d, p. 39, ss.),
porque existe em toda Pesquisa-filosofia uma violência
daquilo que vem antes da formação dos códigos e dos
sujeitos, a qual é condição para que as coisas sejam di-
tas e vistas em novos modos.
Num reino de pesquisas, eivadas de definições, banali-
dades, rotinas, clichês, reprodução mecânica, automatismos,
o desafio dos pesquisadores é extrair uma imagem sin-
gular, um modo múltiplo de pensar e de dizer as coisas
da educação. A grande questão dessa Pesquisa Caosmóti-
PESQUISAR
ca consiste em criar não um plano teológico ou teleológi-
co, mas um plano de composição, que opera por séries e
variações superficiais e introduz pequenas, porém vitais
O
ACONTECIMENTO:
diferenças em todos os seus movimentos.
ESTUDO EM
Assim como o pintor não pinta nunca sobre uma
tela virgem, nem o escritor escreve sobre uma pági-
XII
na em branco, porque tanto a tela como a página
EXEMPLOS
estão cobertas de clichês preestabelecidos, também
os pesquisadores de currículo não pesquisam sobre
um zero, sobre um nada, mas sobre a realidade do
pensamento curricular repleta de clichês, que de-
vem ser eliminados até que encontrem um espaço
165
A Pesquisa-que-põe-algum-Saara-no-cérebro tenta
libertar o pesquisador do asfixiante sentido das possi-
bilidades dadas e das idéias feitas; mesmo nos mais
antigos e conceituados pesquisadores seniores, ela trava
uma luta contra o catatonismo da pesquisa, cujo esfor-
ço é extrair a possibilidade da probabilidade, a multi-
plicidade da unidade, a singularidade da generalidade.
É uma pesquisa que, definitivamente, deixou o domí-
nio da representação para se tornar experimento, ex-
periência, empirismo transcendental, ou ciência do sen-
sível (DELEUZE, 1988, p. 107).
O que significa extrair a pesquisa da representa-
ção e fazer dela uma matéria de experimentação? Pode-
ria ser como extrair da literatura um ser da linguagem,
anterior aos arranjos epistêmicos ou discursivos das pa-
DE ESCRITA
PESQUISAR
to de afectos e perceptos, que são os dois tipos bási-
cos de sensação e que não devem ser confundidos
com os estados subjetivos, nem com a sensibilidade
O
ACONTECIMENTO:
(cf. DELEUZE e GUATTARI, 1992, p. 216, ss.), por-
que estão nas próprias coisas pesquisadas, não nos
pesquisadores. Os afectos vão para além dos pes-
quisadores os quais passam pelos afectos, e não
ESTUDO EM
são os afectos que passam pelos pesquisadores e
são impessoais, inumanos até; os perceptos não são
modos de apresentar a ação pedagógica, por exem-
XII
plo, perante um olho, mas paisagens pedagógicas,
EXEMPLOS
nas quais os pesquisadores-artistas devem se perder
para que possam ver com novos olhos-artistas.
A Pesquisa da Artistagem nada quer com os hábi-
tos, percepção, memória, reconhecimento, acor-
167
PESQUISAR
ção: É um objeto maneirista e não mais essencialista:
torna-se acontecimento (DELEUZE, p. 39).
Se o objeto faz-se objéctil, mudando profunda-
O
ACONTECIMENTO:
mente de estatuto, isso também acontece com o sujei-
to da pesquisa, que se transforma em superjecto. Este
parte de um ramo da inflexão e determina um ponto,
que não é exatamente um ponto, mas um lugar, uma
ESTUDO EM
posição, um sítio, um foco linear, linha saída de linhas.
O lugar ocupado pelo superjecto é chamado ponto de
vista, na medida em que representa variação ou infle-
XII
xão. Ele expressa o perspectivismo do pesquisador, que
EXEMPLOS
não significa uma dependência em face de um sujeito
definido previamente (daí o sub-jecto); ao contrário,
é superjecto aquele que vem ao ponto de vista, ou so-
bretudo aquele que se instala no ponto de vista, que
169
PESQUISAR
ao pré-consciente as multiplicidades escolares
molares, reservando para o inconsciente o outro
O
gênero de multiplicidades moleculares, porque o
ACONTECIMENTO:
que pertence de todo modo ao inconsciente é o
agenciamento das duas, a maneira pela qual as
multiplicidades molares condicionam as molecu-
lares e pela qual estas preparam as molares, ou de-
ESTUDO EM
las escapam, ou a elas voltam.
O grande desafio é manter-se atento a tudo o que
XII
acontece na escola ao mesmo tempo: à maneira pela
EXEMPLOS
qual uma máquina social ou uma massa organizada
tem um inconsciente molecular que não marca uni-
camente sua tendência à decomposição, mas com-
ponentes atuais de seu próprio exercício e de sua pró-
pria organização; à maneira pela qual um indivíduo
171
PESQUISAR
dos dois estados da máquina abstrata como a de
dois estados diferentes de intensidades (DELEU-
ZE e GUATTARI, 1995c, p. 72-73).
O
ACONTECIMENTO:
A orientação geral para desenvolver esse tipo de pes-
quisa pode ser: São os decalques que é preciso re-
ferir aos mapas e não o inverso (DELEUZE e GUAT-
TARI, p. 33); ou então: Religar os decalques ao
ESTUDO EM
mapa, relacionar as raízes ou as árvores a um rizo-
ma (DELEUZE e GUATTARI, 1995a, p. 23-24).
Ressituar os impasses sobre o mapa e por aí abri-
XII
los sobre linhas de fuga possíveis poderia fornecer
EXEMPLOS
os seguintes exemplos: 1) Para estudar um pro-
blema de pesquisa como o do pequeno Hans: mos-
trar como ele tenta constituir um rizoma com a
casa da família, com a linha de fuga do prédio, da
173
PESQUISAR
galho, um novo rizoma pode se formar. Ou, en-
tão, é um elemento microscópico da árvore raiz,
uma radícula, que incita a produção de um rizo-
O
ACONTECIMENTO:
ma (DELEUZE e GUATTARI, 1995a, p. 24).
Por exemplo, os parâmetros e diretrizes curricula-
res procedem por decalques; eles podem, no entan-
to, começar a brotar, a lançar hastes de rizoma, como
ESTUDO EM
num livro de Foucault, de Carroll, de Proust, de
Joyce. Um traço intensivo pode começar a traba-
lhar por sua conta; uma percepção alucinatória, uma
XII
sinestesia, uma mutação perversa, um jogo de ima-
EXEMPLOS
gens podem destacar-se e a hegemonia do signifi-
cante ser, definitivamente, colocada em questão.
Semióticas gestuais, mímicas, lúdicas, etc, reto-
mam sua liberdade na criança e se liberam do de-
175
PESQUISAR
os deslocamentos, as figuras no espaço dependem de
limiares intensivos da desterritorialização nômade, por
conseguinte, de relações diferenciais que fixam, ao mes-
O
ACONTECIMENTO:
mo tempo, as reterritorializações sedentárias e comple-
mentares (DELEUZE e GUATTARI, 1995c, p. 70, ss.).
Todo Pesquisador do Acontecimento vê-se em face do
seguinte enigma: como é possível que alguma coisa de
ESTUDO EM
novo surja na educação? Ora, os estratos agem como bu-
racos negros, com a atividade de formar as matérias do
plano desestratificado, capturar fluxos e intensidades, fi-
XII
xar singularidades, e fazem isso através de duas opera-
EXEMPLOS
ções: por codificação, modos de codificação, e por terri-
torialização. Uma máquina abstrata compõe códigos e
territorialidades, mas ela também os atravessa de pontos
de descodificação e de pontos de desterritorialização, que
177
PESQUISAR
vão descrever, avaliar, pesar os agenciamentos es-
colares, é sempre em função de critérios imanen-
tes, segundo seu teor em possibilidades, em liber-
O
ACONTECIMENTO:
dade, em criatividade (cf. DELEUZE, 1990).
As pesquisadoras ficam atentas para responder à
seguinte questão: quando um enunciado pedagó-
gico ou uma máquina técnica, como a escola, abrem
ESTUDO EM
campos de possibilidades? Ora, em cada agencia-
mento, separam as linhas que o atravessam em duas
direções: 1) linhas que formam contornos, figu-
XII
ras, dentros, estrias, segmentos, blocos; 2) linhas
EXEMPLOS
de variação que atravessam o agenciamento de
devires, metamorfoses, variações, intensidades,
mudanças, novas relações.
Uma escola, um currículo, uma disciplina, uma
179
PESQUISAR
afrouxamento, desses dualismos. Não cabe, na analítica
do poder (ao menos de Foucault), qualquer maniqueís-
mo, porque ela trabalha com as lateralidades e os deslo-
O
ACONTECIMENTO:
camentos parciais, derivando daí a questão da possibili-
dade de saída da normalização, fora de um
reagenciamento social global. Essa analítica passa de
um ideal de revolução física, da transformação de uma
ESTUDO EM
ordem social por outra antecipadamente previsível ou
tangível, para uma idéia de revolução química, da trans-
formação da rede de poder pelo imponderável, que cons-
XII
tituem os afloramentos inesperados dos campos de luta
EXEMPLOS
na configuração do seu jogo (cf. BRANCO, 1997).
Como é possível, para a pesquisadora, detectar, aí,
um devir? Primeiramente, ela deve ficar atenta para a
distinção entre diferenciação e alternativas, já que o devir
181
PESQUISAR
nese implica alguma coisa que violenta o pensamento,
que o tira de seu natural estupor, de suas possibilidades
apenas abstratas (DELEUZE, 1987, p. 96).
O
ACONTECIMENTO:
Trata-se de descrever a diferenciação no pensa-
mento, deslocado por algum constrangimento de seu
caminho previsível, de um modo que o pensamento fica,
por isso, tomado por questões diferenciais ao próprio
ESTUDO EM
ato de pensar. Nesse momento, capta-se a criação, isto
é, o que vem à existência, pela criação, qual seja: uma
nova intelecção e uma nova valoração, que operam como
XII
uma desaprendizagem, como uma deseducação, como
EXEMPLOS
uma saída dos roteiros ideais das pedagogias, didáticas,
metodologias. A pesquisa, aqui, debruça-se sobre o pen-
samento a-pedagógico, a-didático, a-metodológico; so-
bre o pensamento como movimento da alma, variação
183
PESQUISAR
sem jamais as esgotar. Ele não é pensado pelas ca-
tegorias da unidade, da identidade, na medida em
que elas não se aplicam a qualquer ontogênese, isto
O
ACONTECIMENTO:
é, não se aplicam ao devir do aluno, como ser que se
desdobra e se defasa ao individuar-se.
Assim, nessa Pesquisa do Impessoal, é privilegiada a
análise dos acontecimentos em detrimento das sub-
ESTUDO EM
jetividades (eu/tu) e das objetividades (ele), desde
que não há subjetividades e objetividades que não
sejam operadas pelo Acontecimento, enquanto flu-
XII
xo de criação pré-individual. Reportar um aluno a
EXEMPLOS
acontecimentos leva-nos a pensar nos processos de
individuação que se desdobram e os excedem, sem-
pre desproporcionais à unidade, e nos conduz a
uma realidade que não pode ser percebida enquanto
185
PESQUISAR
e meio por uma via impessoal, e vê-se bem por
que, numa pesquisa assim realizada, há muito pou-
co de memória, já que a seleção de um trajeto de-
O
ACONTECIMENTO:
pende mesmo é de uma cartografia, feita com ma-
pas, caminhos, planos de viagem e de encontros.
Mas, não é suficiente cartografar esses trajetos sem
mostrar os devires, sem mostrar como a singulari-
ESTUDO EM
dade extensiva é afectada por gradientes de inten-
sidade, por afectos. Aqui, o pesquisador pensa um
aluno que está pesquisando enquanto graus de
XII
potência ou diferenças intensivas, em que não há
EXEMPLOS
ainda subjetividade, pessoalidade, nem humani-
dade, na medida em que ele pode ser definido pe-
los afectos e intensidades de que é capaz, e se apre-
senta, neste plano de vida pré-subjetivo, como
187
PESQUISAR
nitivo apreende as singularidades de sentido e de
acontecimento, independentemente das coordena-
das espaço-temporais (estudar, tornar, chegar, en-
O
ACONTECIMENTO:
contrar etc.), enuncia o tempo do acontecimento
puro ou o devir. Os nomes próprios designam in-
dividuações por hecceidades, já que nomear um
aluno (ou uma professora, uma briga, um assalto,
ESTUDO EM
uma doença) é sempre recolher na linguagem os
traços individuantes que se encarnam no designa-
do. Os artigos e os pronomes indefinidos introdu-
XII
zem hecceidades (Era uma vez... Uma criança brin-
EXEMPLOS
ca...) e encontram sua individuação no
agenciamento do qual eles fazem parte.
Essa Pesquisa dos Signos, capazes de fomentar o
impessoal, isto é, de manter a agitação, a nuvem e
189
PESQUISAR
me, no coletivo a singularidade se dilui, que é re-
gressão, o que, para Simondon (2003), é pura
superstição: obtusa epistemologicamente e equí-
O
ACONTECIMENTO:
voca desde o ponto de vista da ética, alimentada
por aqueles que acreditam que o indivíduo é um
ponto de partida imediato. Se, ao contrário, ad-
mite-se que o indivíduo provém de seu oposto, isto
ESTUDO EM
é, do universal indiferenciado, o problema do co-
letivo toma outro caráter, qual seja, de que a vida
do grupo é o momento de uma ulterior e mais com-
XII
plexa individuação. Longe de ser regressiva, a
EXEMPLOS
singularidade alcança seu apogeu no atuar conjun-
tamente, na pluralidade de vozes. O coletivo não
prejudica a individuação, não atenua a individua-
ção, mas a persegue, aumenta desmesuradamente
191
PESQUISAR
tem a ver com ruidosos ou mais silenciosos (mas, nem
por isso, menos atuantes) eventos, atualidades, senso co-
mum ou bom senso do pensamento dogmático da edu-
O
ACONTECIMENTO:
cação. Aliás, esses elementos são totalmente inaptos para
captar acontecimentos, ou só os capturam quando já se
transformaram em fenômenos atuais.
É que os acontecimentos não são os fatos educa-
ESTUDO EM
cionais, como dados históricos ou vividos; e, embora os
acontecimentos não existam fora das suas efetuações,
também não se esgotam nelas, nem se encontram ape-
XII
nas no seu existir atual: O acontecimento é imaterial,
EXEMPLOS
incorporal, invivível (DELEUZE e GUATTARI, 1992, p.
202). A substituição da questão ontológica o que é...?
(essência) pelas questões o que é que se passou?, ou o
que é que se vai passar? (e: onde e quando?; em que
193
PESQUISAR
co-dimensões ou partes do presente: a parte histórica
ou do ser desse presente e a sua parte virtual ou não-
histórica de devir.
O
ACONTECIMENTO:
Por esse motivo, os acontecimentos cartografados
pela Pesquisa do Devir nunca se confundem com os da-
dos: os acontecimentos encontram-se em produção, são
alguma coisa a produzir, a construir na sua consistência
ESTUDO EM
específica, e só uma pesquisa dessas está apta para tal
construção, porque só ela detém a capacidade de criar
conceitos, visto ser uma pesquisa de ordem filosófica.
XII
Pesquisar a parte virtual ou não-histórica do Aconteci-
EXEMPLOS
mento implica, portanto, tratar os conceitos como acon-
tecimentos e não como noções gerais, como singularida-
des e não como universais, não para determinar o que
uma coisa é (essência), mas pelas circunstâncias de uma
195
PESQUISAR
um desamparo radical dos princípios imutáveis, do co-
nhecimento formal da verdade, de referenciais sobre
como se orientar na pesquisa, de critérios a priori, coor-
O
ACONTECIMENTO:
denadas e diretrizes, de qualquer regulação prévia ou
posterior, que forneça à sua ação algum norte garanti-
do, como instância autolegitimadora. Ao agir, na in-
certeza e na obscuridade, voltada para a problematicida-
ESTUDO EM
de, essa pesquisadora pensa a partir daí, exerce o
pensamento como operação inventiva na ordem dos pro-
blemas e conceitos: o seu pensamento é criação, sendo
XII
que a grande questão, para ela, não é a da verdade, mas a
EXEMPLOS
da produção do sentido, ou do sentido como produção.
O segredo do empirismo de tal pesquisa, que con-
figura o predomínio do conceito-acontecimento sobre
a ontologia, a insurreição do E contra o É, das conjun-
197
der o sentido.
Para essa pesquisa, tudo são acontecimentos, mes-
mo as coisas, as pessoas, os sujeitos. Acontecimento que
não designa os acidentes das coisas, os estados de ser,
nem os fatos, ações exercidas e paixões sofridas pelos
corpos, nem suas modificações corporais. Porque um
acontecimento, o puro Acontecimento, é uma poten-
cialidade inexistente fora das suas atualizações e toda-
via não limitável por elas, transbordante delas. Incor-
poral sem ser vago, o Acontecimento é um modo de
individuação por intensidades, que já não é de uma
coisa, de uma pessoa, de um sujeito, mas de uma hora,
região, clima, rio, luz, vento. Mesmo porque as coisas,
as pessoas, os sujeitos são cada um deles individualida-
de de acontecimentos, seres individuados por linhas
PESQUISAR
acontecimentais. Um acontecimento não se liga a um
sujeito mas a outros acontecimentos, formando linhas,
e o sujeito se constitui aí, entre as linhas, por aconte-
O
ACONTECIMENTO:
cimentos. Um acontecimento pode ser coletivo ou par-
ticular, perceptível ou microscópico, mas é sempre im-
pessoal, assubjetivo; são os seres que a pesquisa pensa
em função dos acontecimentos e das suas linhas, a par-
ESTUDO EM
tir deles, como derivadas. Eu, tu, a gente: nada são, se
não acontecimentos impessoais, ou subpessoais, cada
um com sua duração própria variável, individuações não
XII
subjetivas, mas intensivas: afectos, paixões, sensações.
EXEMPLOS
Assim, sujeito e objeto não constituem a relação
fundamental do pensamento dessa pesquisa, e pensar
não é um fio estendido entre um sujeito e um objeto,
nem uma revolução de um em torno do outro (DE-
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PESQUISAR
infinita com a qual se dissipa toda forma que nele se
esboça (DELEUZE e GUATTARI, 1992, p. 153). Enten-
de que o caos é um vazio que não é um nada, mas um
O
ACONTECIMENTO:
virtual, contendo todas as partículas possíveis e extra-
indo todas as formas possíveis que surgem para, de ime-
diato, desaparecerem, sem consistência nem referência.
Fundo virtual imanente sempre presente, coextensivo à
ESTUDO EM
realidade dada, onde todas as consistências atuais se pre-
carizam e se desfazem, o caos é feito de movimentos in-
finitos em dissipação absoluta, não de ausência de deter-
XII
minações, mas da sua evanescência. Por isso, não possui
EXEMPLOS
apenas uma existência física, mas também mental: a in-
finita rapidez com que as idéias se sucedem, fogem, mal
aparecem, testemunhando uma fenda interior, intrace-
rebral, dificuldade imensa de pensar inscrita no mais
201
PESQUISAR
cional. O único equivalente concebível seria talvez es-
tar no mesmo barco. Embarcou-se: pessoas remam jun-
tas, que não supõem que se amam, que se batem, que
O
ACONTECIMENTO:
se comem. Remar juntos é partilhar, partilhar alguma
coisa, fora de qualquer lei, de qualquer contrato, de
qualquer instituição. Uma deriva, um movimento de
deriva, ou de desterritorialização. Então, juntos, ma-
ESTUDO EM
quinamos a nova estilística da nova pesquisa, sem nos
preocupar com problemas de interpretação, apenas com
problemas de maquinação; procuramos detectar com
XII
qual força exterior atual o texto da pesquisa faz pas-
EXEMPLOS
sar alguma coisa, uma corrente de energia (DELEUZE,
p. 62); verificamos com quais vetores e eixos, de acordo
com cada caso, o pensamento da pesquisa é orientado
para contemplações, ou para reflexões etc., dando a cada
203
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
PESQUISAR
___. Qué es um dispositivo? In: BALBIER, E.; DELEUZE, G.;
DREYFUS, H. L. et al. Michel Foucault, filósofo. Barcelona: Gedi-
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___. A dobra: Leibniz e o barroco. Campinas: Papirus 1991.
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___. A propósito de Simondon. In: Cadernos de Subjetividade O
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ALLIEZ, Éric. (org.). Gilles Deleuze: uma vida filosófica. São Paulo:
Ed. 34, 2000. p. 21-38.
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