Você está na página 1de 205

traço linhas,

linhas de escrita,
e a vida passa
entre as linhas

(Deleuze e Guattari)
Tomaz Tadeu

Sandra Corazza

Paola Zordan

Linhas de escrita
Copyright © 2004, by Tomaz Tadeu, Sandra Corazza,
Paola Zordan
Capa
Jairo Alvarenga Fonseca
(Sobre desenhos de Franz Kafka)
As vinhetas que abrem os capítulos também são
desenhos de Franz Kafka: © Archiv Klaus Wagenbach)

Revisão
Rosemara Dias

2004
Todos os direitos no Brasil reservados pela Autêntica Editora.
Nenhuma parte desta publicação poderá ser reproduzida, seja por
meios mecânicos, eletrônicos, seja via cópia xerográfica sem a
autorização prévia da editora.

Autêntica Editora
Belo Horizonte
Rua São Bartolomeu, 160 – Nova Floresta – 31140-290 – Belo
Horizonte – MG Tel: (55 31) 3423 3022 – TELEVENDAS:
0800 2831322 – www.autenticaeditora.com.br
e-mail: autentica@autenticaeditora.com.br

São Paulo
Rua Visconde de Ouro Preto, 227 – Consolação
01.303.600 – São Paulo/SP - Tel.: (55 11) 3151 2272

Tadeu, Tomaz
T121l Linhas de escrita / Tomaz Tadeu, Sandra Corazza,
Paola Zordan. – Belo Horizonte: Autêntica, 2004.
208 p.
ISBN 85-7526-125-8
1.Educação. 2.Filosofia. I.Corazza, Sandra. II.Zordan,
Paola. III.Título.
CDU 37
1
7
Geo-educação: arte e paisagens virtuais

55
Um plano de imanência para o currículo

135
Pesquisar o Acontecimento:
estudo em XII exemplos
Geo-educação: arte e paisagens virtuais

Geo-educação: educar na Terra, educar da Terra,


educar para a Terra, junto a seus devires e seus povos.
Não se trata de pensar uma educação para os filhos dos
homens, mas sim de pensar uma educação para todos
os filhos e frutos da Terra. Géia, Gaia, não apenas como
ecossistema vivo ou planeta dentro do sistema solar, mas
Terra como comunhão de forças em um só corpo.
Corpo da Terra, do qual fazemos parte, nós, seres
que movimentam esse imenso agenciamento cha-
mado Educação, que dão aulas, movem máquinas e
burocracias e escrevem trabalhos acadêmicos. Mais
do que nosso “lar”, chão por onde perambulamos
em consonância com a volição dos astros vizinhos, a
Terra é o lugar onde passamos uma vida, uma pai-
sagem onde encontramos vários tipos de vida. Aliás,
não conhecemos nada da vida, a não ser perscrutando
esse vasto corpo e sua imensidão de superfícies, mil e
tantos platôs em constante desterritorialização, junto aos
quais se desenrolam multiplicidades de existências, or-
gânicas e inorgânicas, voláteis e densas. Essas multipli-
cidades existenciais exprimem-se nas variações desses
platôs e nos infinitos acontecimentos que criam e recri-
am as paisagens apresentadas pela Terra. As paisagens
existenciais são traçadas numa profusão de forças que
se compõem entre si, estabelecendo uma variedade de
performances, jogos e regras que não cabe enumerar. A
melhor composição de uma paisagem, mesmo a peque-
na e “insignificante” paisagem a nosso alcance, o mun-
dinho restrito que cabe nos poucos pontos de vista que
DE ESCRITA

cada um ocupa, é o propósito da geo-educação.


A geo-educação aparece como arte de compor pai-
sagens existenciais, por menores que sejam. A tarefa é
LINHAS

pequena, mas seu alcance pode ser infinito, visto que


as composições mais potentes e vitalícias contagiam e
se espalham no pulsar dos corpos e seus incertos cora-
ções. Potencializar as forças que compõem a vida, nossa
8

própria vida e daqueles que amamos, obviamente não


é prerrogativa de professores, educadores ou profissi-
onais da Educação. Parte da idéia grega, adotada por
Nietzsche e trazida até nós pelos estudos de Foucault,
que trata de fazer da vida uma obra de arte, ou seja,
extrair da própria existência uma virtuose. Isso não quer
dizer dominar “virtuosismos”, ser um artista publica-
mente reconhecido, um “ás” em alguma coisa. Essa
arte não tem nada a ver com aprimoramento e anseios
individuais ou realizações subjetivas; muito pelo con-
trário, é, antes de tudo, impessoal, de modo que tem a
ver com a qualidade dos instantes e a singularidade de
cada perspectiva. Educar para uma existência artista
implica o sacrifício dos posicionamentos autocentra-
dos em prol da paisagem, tanto em sua extensão con-
creta como nas intensidades que a atravessam.
Criar virtuoses numa paisagem existencial é gozar
dos blocos de sensações que a compõem, escolhendo

GEO-EDUCAÇÃO:
afectos que potencializam os elementos que estão em
jogo. Tais gozos e escolhas estão implicados em con-
dutas éticas e estéticas, cuja única finalidade é inten-
sificar os perceptos e abrir o corpo a experiências peculia-

ARTE E PAISAGENS VIRTUAIS


res da matéria e do pensamento. Pensada junto ao plano
de imanência geo-filosófico – o pensamento esquizo-
analítico de Deleuze e Guattari – a geo-educação é uma
prática artística, embora não restrita ao plano de com-
posição da arte. Mesmo que parta de uma perspectiva
que privilegie as artes e tenha como solo a disciplina
quase marginal legada ao que os currículos oficiais cha-
mam Educação Artística, a geo-educação extrapola os
9

espaços escolares. Não há, mesmo na mais acirrada cul-


tura acadêmica, um local absoluto para a aprendiza-
gem de uma arte, um espaço único que seja legítimo.
Expropriada, possuída, a arte é um transe sem dono;
não possui nada, mas pode tudo. As artes fiam as tessi-
turas culturais, os traços mutáveis que definem a vida
de um povo e seu devir sobre a superfície da Terra.
Manifestação de práticas, expressão de uma composi-
ção divergente daquela ordenada pela Natureza, a arte
cria modos de vida, mostra os afectos de grandes e pe-
quenas multidões e expressa os devires da Terra.
Dimensões moleculares

Quando falamos Terra, a tendência é pensar na


grande massa esférica, suas múltiplas camadas, oceanos
e continentes, enfim, na dimensão de um planeta. Sem
dúvida, a Terra é nosso ponto de referência no cosmos,
visto que nos situamos sobre sua pele ou casca planetá-
ria e sob sua atmosfera de gases, lócus essencial para
todos os tipos de vida que a povoam. No entanto, mes-
mo que o desenvolvimento tecnológico tenha diminuí-
do as distâncias entre os seus vastos territórios, a Terra
só pode ser apreendida pela captura de perspectivas e
DE ESCRITA

horizontes singulares, individuados. As sensações que


aprendemos com a Terra, nas perspectivas que temos
LINHAS

da Terra, mesmo que alcem vôo em pensamentos que


se estendam às suas vastidões, são sempre ínfimas, par-
ciais, particulares. Para complicar ainda mais, as pai-
sagens capturadas são também instáveis, dissociam-se
10

de si mesmas conforme as forças que as atravessam.


Os pontos individuados, que determinam as relações
topológicas intrínsecas às perspectivas, também são in-
constantes, mutáveis, suscetíveis a uma série de afec-
tos que os desloca, fazendo com que se tornem outro
ponto, outro topos, outra individuação. Não há um
ponto de referência; nem mesmo a Terra pode ser um
ponto de referência, pois nem mesmo a Terra que to-
mamos como chão e sustentáculo pára. Qualquer refe-
rência é apenas um artifício para possibilitar o estudo, a
explicação das complicadas forças que colocam as pai-
sagens em devir.
Tais forças são complicadas porque não há como
situá-las em uma dimensão, capturá-las na perspecti-
va molar da paisagem percebida pela aparelhagem ce-
rebral. O movimento do devir é imperceptível e mo-
lecular, acontece no tempo ínfimo em que as partículas
mínimas de matéria (que a física quântica presume
serem pura energia) se deslocam. Esse deslocamento,

GEO-EDUCAÇÃO:
essa eterna linha de fuga, é a única regra para a Filo-
sofia da Diferença, cujo trabalho é mapear os agen-
ciamentos entre forças em devir. Os mapeamentos
geo-filosóficos também adentram-se na ciência a fim

ARTE E PAISAGENS VIRTUAIS


de explicar o comportamento imperceptível das par-
tículas no interior da matéria. Além do desenvolvi-
mento da tecnologia, dominar o funcionamento mo-
lecular possibilita uma perspectiva panorâmica das
estruturas maquínicas que compõem as múltiplas di-
mensões caósmicas. A própria Terra, os sistemas este-
lares e as galáxias podem ser pensados como molécu-
las. Bandos de elementos químicos, as moléculas são
11

agrupamentos maiores ou menores de corpúsculos atô-


micos que agem e reagem aos movimentos das partí-
culas subatômicas. Essas partículas, além de apresen-
tarem uma natureza psicótica, pois não se definem
nem como substância nem como onda, são compos-
tas, por sua vez, por partículas ainda menores. Não
entro aqui no plano quântico, embora tenha que con-
siderar as microdimensões, possivelmente entronizá-
veis ao infinito, junto às quais a matéria é pensada.

O molecular tem a capacidade de fazer comu-


nicar o elementar e o cósmico: precisamente
porque ele opera uma dissolução da forma que
coloca em relação as longitudes e latitudes as
mais diversas, as velocidades e lentidões as mais
variadas, e que assegura um continuum esten-
dendo a variação muito além dos limites formais.
(DELEUZE e GUATTARI, 1997, p. 112)

Para Deleuze e Guattari, o molecular é o próprio


ritmo do cosmos, a onda infinita que faz tudo pulsar.
Por tratar dessa força imperceptível, indiscernível e im-
pessoal, muitas vezes a filosofia de Deleuze é acusada
de “esotérica” ou “hermética”. Entretanto, ao longo de
DE ESCRITA

toda sua obra, Deleuze mostra as mais diversas imagens


de pensamento que as ciências, as artes e a filosofia cri-
aram para explicar a vida e o que nela está envolvido.
LINHAS

Traçar um plano é, de alguma maneira, traduzir as sen-


sações e as forças de seus devires em imagens de pensa-
mento. Tais imagens são abstrações formais, códigos
criados para exprimir o indizível das forças, junto aos
12

quais o plano é colocado em funcionamento. Para a


Educação, o que interessa são os modos de codificação,
pelos quais conseguimos aprender as forças intrínsecas
à matéria. A matéria, composta por trocas imperceptí-
veis de energia, quando não recortada por imagens de
pensamento, torna-se força caótica, completamente in-
discernível, impossível de abarcar, letal para o intelec-
to, fora do racional. No entanto, é papel da Razão con-
duzir as forças para a imagem, para seu número de
expressão, forma ou palavra que, ao explicar o caos por
meio de uma ciência ou de uma arte, introduzem as
forças da matéria em algum tipo de ordem. O proble-
ma é que esse ordenamento não compreende uma or-
ganização ou organismo e sim estruturas abertas, séries
de imagens que permutam seus códigos, composições
entre elementos aleatórios, similares ou distintos, en-
volvidos numa espécie de lógica criadora de superfícies,
ou melhor, de planos de consistência. Mesmo que dis-

GEO-EDUCAÇÃO:
ponham de imagens, os planos não constituem orga-
nismos ou formas molares; são sempre estruturas mole-
culares mesmo quando estendidas ao infinito sideral,
pois tanto as galáxias como as mínimas partículas na

ARTE E PAISAGENS VIRTUAIS


interioridade da matéria fazem parte de um imensurá-
vel corpo sem órgãos, onde caos e cosmos se compõem.

Uma educação menor

Pensar sob dimensões moleculares não é se refe-


rir ao invisível, microscópico. Moleculares são agru-
13

pamentos, arranjos entre elementos que tanto podem


divergir como convergir, mas que permutam suas par-
tículas e contagiam moléculas vizinhas. Moleculares
são as linhas de fuga, as linhas “menores”, que esca-
pam às imagens homogêneas que, porventura, venham
habitar um plano. Disjunções do próprio plano, as
linhas de fuga operam desterritorializações e abrem
vias para a passagem dos devires. Quando Deleuze e
Guattari analisam Kafka como “literatura menor”, pen-
sam o menor como aquele que está abaixo da palavra
de ordem, como aquilo que escapa à Lei, ao Signifi-
cante e ao Édipo.
O menor é o que está do lado de fora. Não é ne-
cessariamente excluído, mas localizado fora das ima-
gens das quais se valem as maiorias. Tais imagens são
dogmatismos constituídos em linhas molares, de pa-
drões segmentares traçados de um ponto ao outro, que
evitam um terceiro termo e temem a mobilidade dos
elementos. Esse tipo de linha opera como máquina bi-
nária, comprometida com o estabelecimento de valores
que se opõem entre si para afirmar uma imagem como
verdade. Tal imagem, implicada numa máquina de cap-
tura estatal, constrói uma paisagem existencial molar
que identifica uma nação. Um aparelho binário, seg-
DE ESCRITA

mentado, comporta multiplicidades, forças molecula-


res que desmentem sua organização molar e afirmam a
LINHAS

efervescência e a ebulição que acontecem na interiori-


dade das linhas traçadas por suas cartografias. Deleuze
afirma que a principal característica de uma sociedade
são suas linhas de fuga e demonstra isso, em seu livro
sobre Foucault, tratando as linhas de um território como
14

traços diagramáticos maleáveis, que se dobram e se des-


dobram, fazendo com que o fora passe para o lado de
dentro e vice-versa. O fora é o molecular dentro da pró-
pria paisagem, o movimento que não se percebe no ho-
rizonte, puro ser da sensação. A sensação acontece na
singularidade da paisagem, nas intensidades molecula-
res junto às quais as paisagens se compõem.
Uma nação-estado extrapola a pátria natal porque
é feita sobre paisagens que presumem povos, mas os
povos antes pertencem às paisagens do que às nações. A
paisagem subsiste ao povo; ela cria os povos e produz
suas multidões. Mesmo decalcada na imagem molar de
uma nação, a paisagem é um bloco de sensações, um
agrupamento molecular e o devir de um povo. Não um
conjunto de cidadãos, mas a expressão de um povo in-
definido, anterior à sociedade e suas organizações, “sem
mitos nem modelos, nem histórias ‘majoritárias’, ainda
por inventar” (RAJCHMAN, 2002, p. 37), por vir. A pai-

GEO-EDUCAÇÃO:
sagem é uma composição de mínimas congruências en-
tre povos cujos fluxos divergem, as forças se estranham
e criam imagens anômalas, misturas de saberes e toda a
sorte de distorções na linguagem e nos estilos.

ARTE E PAISAGENS VIRTUAIS


Ao invés de estabelecer imagens dogmáticas ou
procurar paisagens estereotipadas para criticar, uma
educação menor lida com o paroxismo das imagens e a
incongruência dos devires da multidão. O molecular, a
minoria, o “menor” implicam suscetibilidades e varia-
ções inerentes ao funcionamento maquínico de todo
território. O menor se exprime na multidão e funciona
como força subterrânea, cheia de fluxos contraditórios e
15

divergentes, que proliferam e desafiam a imposição de


um só dogma, de uma só imagem para a verdade, de
uma ciência magna1 funcionando dentro de regimentos

3
Bastaria fazer um panorama dos currículos escolares ao longo dos dois
últimos séculos para constatar a preponderância das ciências. Tanto
a filosofia quanto a arte foram relegadas a segundo plano no projeto
educacional moderno da Ilustração, cunhado pelo espírito positivista e
científico. O plano de referência traçado pela ciência foi instituído
como o conhecimento legítimo, que não apenas se estabelece como
modo de se acercar do mundo material como também vai incidir
sobre os corpos, coletivos e individuais. Sob a lógica da conservação
fechados, organismos ou instituições. Feita com a mul-
tidão, uma educação menor se dá nas permutas entre
as diversas minorias que a constituem. Essa educação
pressupõe saberes ambulantes que possibilitam a ab-
sorção e oferecimento de experiências, exposição de
manejos, mostras de material, variações de matéria. A
educação menor é uma prática desterritorializadora,
algo em vias de se fazer, nunca sobre aquilo que já
está dado, mas sempre com o que está para chegar.
Por isso, envolve um certo mistério, uma complicação
que é seu charme, pois beira o impossível, ao se cons-
tituir junto a um saber que ainda não é, mesmo que,
DE ESCRITA

para entrar em uma imagem do pensamento, de al-


gum jeito já tenha sido.
LINHAS

Imagens de pensamento pop

A geo-educação se faz junto ao pensamento mi-


16

cropolítico que coloca os problemas das minorias, con-


siderando as explicações e complicações do devir da
multidão. A multiplicidade de devires na multidão são
as forças geo-políticas moleculares que constituem a
pop’filosofia deleuziana. Uma filosofia que se ocupa com
as imagens de pensamento dos povos faz perguntar como
foi possível o projeto educacional moderno sobreviver até
o século XXI ignorando saberes marginais que rondam

de indivíduos e espécies, a vida, pensada a partir de concepção de


bio-poder, passa a ser a moeda máxima da própria Ciência, seja esta
Natural, Exata ou Humana.
as multidões. Como evita pensar a antropofagia que
envolve os acontecimentos de aprender e ensinar, a edu-
cação moderna parece não levar a sério movimentos como
o dadaísmo, a pop-art e permanece quase alheia ao hip-
pie, ao punk, ao dark, aos panteísmos, às bruxarias e
tudo mais que possa desestabilizar a soberania do cogi-
to. Sem desestabilizar as crenças que fundamentam o

GEO-EDUCAÇÃO:
senso comum e suas miríades de paradigmas espiritua-
listas, esse projeto preserva as carcaças do que resta da
sociedade disciplinar e de seu ranço enciclopédico. Tal
sociedade cunhou as instituições escolares modernas

ARTE E PAISAGENS VIRTUAIS


sobre imagens dogmáticas de pensamento e erradicou
as prestidigitações das ciências sem métodos, os saberes
nômades que se afirmam em imagens de pensamento
vagas, confusas e distorcidas. Essas imagens pertencem
às “ciências ambulantes”,2 confundidas com artes vaga-
bundas, cujos resultados são tidos como obscuros e du-
vidosos, mesmo quando incorporados aos territórios e
estampados na paisagem cotidiana.
17

O perigo das imagens de pensamento não se deve


ao fato de serem encontradas “na boca do povo” ou de
servirem como estandartes para suas crenças. Não é a na-
tureza das imagens nem seus graus de incidências sobre
os territórios que estereotipam os devires, transformando
blocos de sensação em clichês representacionais, mas
sim o tipo de uso a que se prestam. O problema dos

2
Deleuze e Guattari apresentam as ciências ambulantes nas proposi-
ções que tratam da epistemologia e da noologia das máquinas de
guerra. Cf. Mil Platôs 5. São Paulo: Ed. 34, 1997, p. 24-62.
clichês, imagens estratificadas, não são as formas-for-
ças-conteúdos que estão em jogo nas imagens e sim sua
serventia ao senso comum. As imagens pop abrem-se
ou não aos devires, de acordo com os modos como são
usadas. As complicações da filosofia popular, inerentes
à problemática da geo-educação, devem-se à maneira
como as imagens funcionam. O que aniquila o devir da
imagem é a produção de um saber consensual, legitima-
do pelos poderes majoritários, que acabam impondo a
imagem como uma matéria, uma disciplina do conheci-
mento. Enquanto a imagem pertencer a um povo, os cli-
chês que a preenchem podem virar matéria para devir,
DE ESCRITA

pois, mesmo quando o consenso mais estratificado vira


popular, surgem margens para desterritorializações.
LINHAS

Sobre zonas marginais é que podemos situar a


pedagogia do conceito, idéia que incita o campo educacio-
nal a partir de uma breve passagem no início de O que é
filosofia?, na qual Deleuze e Guattari situam as três ida-
18

des das imagens de pensamento: a enciclopédica, a mer-


cadológica e a pedagógica, esta em vias de ser feita. As
imagens de pensamento corporificam a intensidade dos
conceitos no traçado do plano de imanência, expressam
o que se pensa, mostram o que se cria. Quase no final
de suas vidas, Deleuze e Guattari lamentam a vergonha
de assistir uma idéia de conceito tomada pelo mercado
para servir como estratagema vendável. Ao explicar a fi-
losofia como criação de conceitos, a dupla trava lutas
contra o marketing e o enciclopedismo que compro-
metem o criar e impedem o pensar. O plano geo-
político cartografado por Deleuze faz insurgir uma
pedagogia do conceito “contra um novo treino infor-
macional-comunicacional do pensamento e da imagem
que, como ele temia, estava a ocupar o lugar do velho
ideal enciclopédico” (RAJCHMAN, p. 32), idade do con-
ceito que estancou o nomadismo das ciências e perse-
guiu a sabedoria popular, sincrética e ambulante. Tal
pedagogia, uma prática que trabalha desterritorializan-

GEO-EDUCAÇÃO:
do imagens estratificadas, implica a constituição de um
plano de imanência geo-educacional que opera nos dis-
sensos da multidão, na multiplicidade de povos e varie-
dades de matéria.

ARTE E PAISAGENS VIRTUAIS


Funcionamento esquizo e
propagação rizomática

Ao contrário do Estado, que precisa reterritoriali-


zar os saberes em compartimentos que sustentem seus
organismos disciplinares, “todo pensamento já é uma
19

tribo” (DELEUZE e GUATTARI, p. 47), uma multiplici-


dade de potências virtuais, intensas, que animam os
povos e que criam modos de vida heterogêneos e singu-
lares. A perspectiva tribal, privilegiada pela esquizo-
análise, não reconhece organismos, não vê células isola-
das, somente conjuntos que subsistem em tecidos ou
colônias. Mesmo que um organismo se forme, jamais
consegue ser uma organização fechada, pois sua sobre-
vivência depende de suas ligações com os fluxos dester-
ritorializadores da Terra. Na medida em que os orga-
nismos são mantidos nas conexões com o habitat –
ataque e alimentação, defesa, fuga e proteção –, uma
auto-sustentação é impossível. Frente ao potencial des-
territorializador dos próprios organismos e suas organi-
zações, os termos da esquizo-análise se dão a partir de
multiplicidades de elementos, de corpos que se com-
põem e criam afectos entre si, numa profusão de fluxos
que se encontram e divergem. As multiplicidades com-
põem superfícies de passagem que, antes de criar órgãos
esparsos, seguem a vaga do sentido. A superfície, planô-
metro, é o corpo sem órgãos, CsO, e suas linhas de va-
riações, que efetivam divisões territoriais e zonas dester-
ritorializantes. A imagem de um corpo sem órgãos cria
projeções, mapas, dispositivos, aparelhos, máquinas que
DE ESCRITA

estruturam o topos para a passagem do desejo. A manei-


ra pela qual o desejo corre em uma vida se expressa nos
tipos de plano que um CsO compõe. Todas as ligações
LINHAS

que constroem um CsO são agenciamentos, práticas mi-


cropolíticas que dão consistência a tipos de vida.
Corpo de desejo, a superfície plena funciona nas
disjunções esquizóides de fluxos que se espalham, se
20

bifurcam, avançam em linhas de devir. O caráter es-


quizo do desejo é a força intrínseca que o movimenta.
Na positividade dessa força, nesses fluxos esquizofrê-
nicos, descentrados e divergentes, os planos são traça-
dos, as paisagens são compostas e as máquinas desejan-
tes, criadas. As superfícies procedem como rizomas, tal
qual a grama que cobre a terra bruta ou uma rede ma-
quínica que imanta de virtualidades a casca planetária,
atualizando imagens maquínicas no estado de coisas a
que são imanentes. Mapear o desejo é seguir as linhas
do devir e sobrevoar o plano, alçar vôo para obter uma
visão panorâmica das vias e dos territórios produzidos
pelas máquinas que sua força criou. A cartografia das
máquinas desejantes mostra que o desejo percorre linhas
que estão sempre em vias de se fazer, projetando-se em
espaços lisos ainda não territorializados, aparelhados. No
entanto, os fluxos desejantes também projetam máqui-
nas, capturam e estriam os espaços. O desejo não se mede,

GEO-EDUCAÇÃO:
mas engendra-se. A medida do desejo é uma estranha
agrimensura do plano, uma análise dos graus intensivos
dos afectos virtuais. Tais afectos se dão na profusão de
matérias que envolvem o desejo, imagens de pensamen-

ARTE E PAISAGENS VIRTUAIS


to que o complicam. Mesmo enredado, o desejo apre-
senta uma natureza excêntrica, pois corre para fora e ati-
ra-se no indeterminado. Essa tendência do desejo ao caos,
ao informado, não é exatamente um instinto de morte e
sim a afirmação de sua vontade de potência, a força de
vida que lhe é intrínseca. Na vaga deixada pela ausência
de imagens experimentadas no caos, espaço liso de ma-
téria in-formada, o desejo se determina. Ao crivar o caos
com sua linha maquínica, o desejo institui seus territórios,
21

cria suas superfícies de devir e compõe as paisagens que


expressam seus afectos.
O fato do desejo não possuir uma imagem de
pensamento estabelecida faz com que os corpos sem
órgãos que ele fabrica estejam sempre sob ou sobre os
códigos, nunca dentro daquilo que designam, mani-
festam ou significam as proposições. Matéria do senti-
do, o desejo funciona como a expressão inapreensível
das proposições. Inapreensíveis, os fluxos descodifica-
dos do desejo são revoluções moleculares, acontecimen-
tos. Os potenciais micropolíticos do desejo são aquilo
que não pode ser convertido, traduzido, transformado
em moeda ou representação, mesmo quando a tendência
seja reterritorializar, mesmo quando o desejo produz es-
tados de coisas ou tenta se estratificar na paisagem. Isso
porque a potência do desejo sempre dissolve a paisagem
para recriar a perspectiva de acordo com seus afectos. Ape-
sar de não pararmos de nos “reterritorializar num ponto
de vista, num domínio, segundo um número de relações
constantes” (DELEUZE e GUATTARI, p. 40), há nesse nú-
mero variações, séries divergentes, progressões que des-
territorializam os domínios perspectivados.
A geo-educação e sua política de superfícies funci-
DE ESCRITA

onam junto às esquizofrenias do desejo, aos seus reveza-


mentos de tendências e sínteses disjuntivas. Fora do
LINHAS

modelo arborescente de conhecimento, a geo-educação


confunde ordens, altera classificações, transmuta propri-
edades e apropriações, criando metamorfoses nas ima-
gens de pensamento. É uma educação esquizo, que, an-
22

tes de destruir as torres do edifício da Razão,3 segue as


trilhas dos bruxos, mestres de efeitos especiais, prestidi-
gitadores, andarilhos, artífices, aqueles que entram nos

3
A idéia de uma esquizo-educação é colocada por Sylvio de Sousa
Gadelha Costa, que a pensa sobre as possíveis aberturas no aparelho
educacional molar. O autor salienta que essa outra educação só
pode acontecer se investir contra seus inimigos: os fascistas, os
burocratas, os funcionários da verdade, os técnicos do desejo e as
imagens dogmáticas, como se só pudesse existir explodindo com os
binarismos clássicos e os organogramas estratificados do edifício
educacional. Sylvio Costa descreve o estado da Educação como um
imenso “condomínio”, no qual são administrados e condicionados os
palácios, cidadelas e comunidades aprendendo e ensi-
nando sua arte. Traçado nas perambulações errantes das
artes ou ciências menores, um plano educacional geo-
filosófico ou esquizo-analítico é composto por multi-
plicidades intensivas que transmutam e invertem aqui-
lo que a Razão e seus juízos reconhecem.

GEO-EDUCAÇÃO:
Sentido trágico

ARTE E PAISAGENS VIRTUAIS


Escapar do Julgamento de Deus não é estar aquém
ou além da Lei Suprema ou Verdade Divina. “Ilusões

corpos e os saberes, de modo a moldá-los numa lógica em que


“civilizar, humanizar, esclarecer, são objetos conquistados pela via
do conhecimento”. Ao invés de se engajar à civilização e à promoção
de valores “superiores”, a Educação precisaria criar linhas de fuga
que abram o “condomínio” a inúmeros devires. O problema da
esquizo-educação é colocado na medida em que o funcionamento
23

maquínico do educacional resiste às desterritorializações, manifes-


ta na dificuldade em se experimentar transformações, na insupor-
tável falta de estabilidade quando se vive sem coordenadas e dire-
ções, “sem imagens definidas, representações claras, objetivas e
duradouras”. Por outro lado, perder a capacidade de viver a dife-
rença é perder a possibilidade de inventar, de criar, de engendrar o
novo. Quando Sylvio Costa separa “uma sala de aula, com todos os
códigos, significações, práticas e marcações espaço-temporais que a
habitam”, da vida do lado de fora “em toda a sua exuberância, comple-
xidade, fugacidade e estranheza”, deixa escapar todo o potencial mi-
cropolítico que anima os edifícios construídos no campo educacional.
Cf. COSTA. Esquizo ou da educação: Deleuze educador virtual. In:
LINS; COSTA e VERAS (Orgs.). Nietzsche e Deleuze: intensidade e
paixão. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 2000.
que foram esquecidas como tais” (MACHADO , 2002,
p. 101), as verdades se afirmam sobre imagens de
pensamento dogmáticas que formam o pano de fun-
do para os panoramas da Razão. Para acabar com o
Juízo da Razão Soberana é necessário problemati-
zar as verdades em que esse se firma, perseguindo
as linhas de fuga de suas convenções, contratos, ins-
tituições. Seguir sempre linhas menores que per-
mitem que as imagens de pensamento sejam toma-
das como miragens voláteis, paisagens transitórias,
efeitos de pontos de vista que implicam desloca-
mentos incessantes.
DE ESCRITA

O móbil se deslocando eternamente é o sentido,


sempre outro, diferente da proposição que se apreende;
LINHAS

perpetuum mobile que se arrasta na amplitude de um


movimento excêntrico, “um devir subversivo das pro-
fundidades, hábil a esquivar o igual, o limite, o Mesmo
ou o Semelhante: sempre mais e menos ao mesmo tem-
24

po, mas nunca igual” (DELEUZE, 2000, p. 264). A dis-


similabilidade é a essência do simulacro, plena imagem
sem semelhanças, em que qualquer semelhança é pro-
duto de sua diferença interna complicada no caos. Esse
desvio essencial é o que Deleuze chama caráter demo-
níaco da existência estética absoluta, vida do corpo ple-
no, sem órgãos, trágico. Nem falsa e nem verdadeira, a
força abissal do simulacro em que a Filosofia da Dife-
rença se debruça não é simplesmente uma “falsa cópia”
que “põe em questão as próprias noções de cópia...e de
modelo” (DELEUZE, 2000, p. 161). Paisagem de som-
bras, os simulacros são as transgressões da arte com seu
mundo de fantasmas,4 ídolos crepusculares, subterrâ-
neos e sobrevôos. Sem chão ou fundamentos, o simula-
cro abisma as continuidades das superfícies e afirma as
potências do falso, desmembrando os modelos e as có-
pias, tornando-os diferentes de si mesmos.
A diferença é potencialidade virtual, nunca está

GEO-EDUCAÇÃO:
dada, pronta, atualizada, mas sempre em vias de se
fazer. Criar é produzir a diferença essencial que afir-
ma os simulacros e faz a vontade de verdade virar
vontade de potência. A imagem de pensamento aca-

ARTE E PAISAGENS VIRTUAIS


bada, fechada em suas normas e leis pode, então, se
metamorfosear num plano informe, aberto e susce-
tível ao acontecimento. Afirmar os efeitos da arte e
seu sentido trágico, expresso na diferença intrínseca
entre as forças que potencializam suas criações, é o
projeto de mudança de valores pensado por Nietzs-
che. Proclamar a morte de Deus é aniquilar o valor
absoluto das crenças submetidas a uma idéia de
Verdade. Deus ex machina,5 algo que surge como arti-
25

fício dramático para expor os embates entre as forças


díspares da existência. No lugar do Deus Dogma ins-
tituído pela civilização, a geo-educação faz pulular no

4
Quando a diferença é a potência primeira, “o mesmo e o semelhante
não têm mais por essência senão serem simulados”, de modo que a
seleção e o juízo não sejam possíveis frente a “um condensado de
coexistências, um simultâneo de acontecimentos”. Cf. DELEUZE.
Lógica do sentido, p. 268.
5
Literalmente “deus trazido pela máquina”, alusão ao efeito cênico
criado por um sistema de roldanas, inventado na tragédia grega, que
fazia surgir o ator que representa um deus suspendido no alto da cena.
seu plano os mais diversificados panteões, multiplici-
dade de deuses menores que atravessam os povos e ful-
guram em suas paisagens. Simulacros como qualquer
outra coisa, os deuses designam nomes para zonas in-
tensas onde os povos alucinam. Cada deus, assim como
qualquer outro tipo de entidade mágica, é um campo
de potências que não precisa ser identificado a qual-
quer crença ou religiosidade, mesmo quando situado
nas malhas culturais em que estas se entrelaçam. Cria-
ções virtuais da multidão, os domínios desses seres in-
corpóreos são inconclusos, permeáveis, suscetíveis a toda
sorte de metamorfoses, conflitos e sincretismos que
DE ESCRITA

constituem a matéria dilacerada e aberta produzida pela


máquina trágica. Assinaturas de superfícies maquíni-
LINHAS

cas mais ou menos determinadas por certos jogos de


forças, os deuses só vivem na medida em que não se
constituem como prontos. Não são ídolos ou imagens,
mas matérias de devir, blocos de sensação que povoam
planos de composição, máquinas artísticas que engen-
26

dram as diferenças e o retorno das potências que os cam-


pos de intensidades apresentam.
A arte compõe a paisagem trágica da vida. Em o
O nascimento da tragédia (NIETZSCHE, 1992), Nietzs-
che mostra que o sentido da arte oscila entre o gosto
por regozijos e belas formas, cânones que determinam
regras específicas para se obter harmonia ou resultados
precisos e entre a suscetibilidade a experiências rítmi-
cas, ditirâmbicas, que expressam as paixões do corpo e
as sensações impressas na paisagem. Esses dois lados do
sentido tomaram de deuses gregos os nomes para suas
forças: Apolo, deus celeste e solar, dominador de ser-
pentes, aquele que engendra as Belas Artes, a Música
Orfeônica e a Medicina; e Dioniso, deus telúrico do
vinho, da percussão, das danças e das aglomerações. Os
termos “apolíneo” e “dionisíaco” figuram o embate de
forças intrínsecas à arte, sentidos paradoxais que tanto

GEO-EDUCAÇÃO:
se distinguem como se compõem. Em uma só prática
tais sentidos criam acontecimentos, como a tragédia
grega analisada na primeira obra de Nietzsche, junto à
qual o funcionamento da tragédia é mostrado como o

ARTE E PAISAGENS VIRTUAIS


encontro entre as construções apolíneas, ocupadas com a
aparência, as medições e a ordem das transposições entre
os elementos formais: as catarses dionisíacas, criadoras
de afectos que dão margem às transfigurações e toda a
sorte de dissolução das referências experimentada jun-
to à estranheza selvagem das forças. Dois tipos de tran-
se, sonho e embriaguez, dão vazão ao sentido trágico da
arte. Longe de uma prática mística, o transe é um esta-
do de passagem que envolve a criação de um corpo sem
27

órgãos, topos para o tráfego de intensidades. Provoca-


se o transe com artifícios, que são as matérias mesmas
das artes, onde o transe não passa de efeito.
Efeito da arte, na medida em que se deixa atraves-
sar pela estranheza de um elemento extrínseco que o
leva a experimentar o caos, o transe implica numa espé-
cie de afirmação da morte. Trata-se da configuração do
niilismo produtivo que provoca a ultrapassagem de li-
miares e cujo propósito é aumentar a vontade de po-
tência. Sem essa passagem, prova de caos, a transvalora-
ção não tem como se efetivar. Deleuze demonstra isso
na sua imagem do encontro com o fora, choque que im-
pele o pensamento e o obriga a criar. Pitônico, teratoló-
gico, os paradoxos do sentido trágico da arte, sens bête,
subsistem nos territórios fronteiriços, praias e bordas
abissais onde domínios diferentes se encontram e criam
zonas indiscerníveis, nas quais elementos distintos se
abraçam para criar a singularidade de uma paisagem.
Palco onde se desenrola uma vida, a paisagem é determi-
nada por recortes, seleções de pontos de vista, distâncias,
definições da incidência de luz, sons, acelerações, dispo-
sição de figuras: imagens de sonho, espetaculares, apre-
sentadas segundo um princípio apolíneo de criação. Po-
DE ESCRITA

rém, menos do que um espaço de espetáculo, a paisagem


é matéria vulgar que nos induz às paixões, afectos des-
medidos e incertos produzidos por fluxos dionisíacos,
LINHAS

velocidades e ritmos que retumbam em largas margens


de indefinição, sem nenhuma imagem formada. Nessa
matéria rechaçada, efeito do transe embriagado, é que
se insurgem os problemas do campo educacional: im-
28

pulsividade animalesca, descargas escatológicas, susce-


tibilidade de humores, dissonância nos tempos de apren-
dizagem, encontro de corpos, misturas de matérias,
deglutições, gritarias, risadas, aglomerações, modos des-
mesurados e desmantelamentos.
O transe, prática envolvida na liberação de devires
estranhos, avizinha a arte da loucura. Paradoxalmente,
também concentra as potências curadoras desencadea-
das pelas artes dos deuses que manifestam. Mais do
que manifestar a vontade dos deuses e imprimir suas
intensidades, o transe desorganiza as ordens dos orga-
nismos e das estratificações. Entrar em transe é partir
para outro plano, mudar de paisagem, viajar. Trata-se
de uma abertura a variações microfísicas que propiciam
a passagem dos devires e incitam sensações moleculares
imperceptíveis aos estados de vigília. Não restrito ao
xamanismo, ao uso de drogas e rituais religiosos, entrar
em transe é um acontecimento difundido também em
práticas comuns, processos esquizóides do cotidiano que

GEO-EDUCAÇÃO:
não cansam de deslocar as almas de seus órgãos, de modo
que os espíritos não parem nunca de encher e esvaziar os
corpos. Esse tipo de transe prosaico, agenciamento de
desejo banal, cria pequenas linhas de fugas para entocar

ARTE E PAISAGENS VIRTUAIS


suas forças em nichos alucinatórios, vãos e dobras, mi-
núsculos subterrâneos que escondem a matéria sobre a
qual se delira. O desejo lança mão de camuflagens por-
que não quer ser facilmente encontrado, posto em evi-
dência, colocado em lugares de onde não conseguirá mais
sair e buscar territórios selvagens que o alimentarão quando
as forças estiverem exauridas. Capturado, organizado,
fechado, o desejo se extingue, quase sempre acompa-
29

nhado por atrozes destruições dos organismos.


Entretanto, a força do desejo, positividade plena,
é inexterminável. Os destroços desejantes são indestru-
tíveis e se acoplam a novos elementos, constituindo agen-
ciamentos compostos por forças heteróclitas. O desejo
faz corpos até mesmo com fragmentos díspares, peças
que não se agrupam, matérias que não se colam, linhas
que se diluem em massas informes. Antes de burlar a
Ordem, o desejo escapa de suas determinações nas fu-
gas trágicas pelas quais se dispõe. Em consonância com
a natureza do desejo, a geo-educação segue a linha es-
quizo-analítica, que não comporta nem um Partido,
uma Igreja ou uma Vanguarda, “nenhum método, ne-
nhuma doutrina, nenhuma escola” (RAJCHMAN, p. 36).
O projeto geo-educacional segue o devir louco e ilimita-
do dos “anômalos, outsiders, clandestinos”, forças infer-
nais que “vivem sobre as bordas de uma multiplicidade,
puxando linhas-entre possibilidades contemporâneas de
pensar a Educação, tramando névoas, feitiços, angústias
para o pensamento que se estabelecera e sossegara” (CO-
RAZZA, 2002, p. 54). As práticas geo-educacionais são
aquelas que seguem vias por onde as potências do dese-
jo se fortalecem, mesmo que para isso tenham que
experimentar aniquilações, mergulhos no caos, dissolu-
DE ESCRITA

ções das imagens junto às quais suas forças desejantes se


compunham. Tais passagens niilistas são o sentido trá-
gico da vontade, potencial que impele o desejo a criar
LINHAS

toda uma arte e a inventar novos modos de vida.

Plano monstruoso
30

Para Nietzsche, afastar a Natureza devoradora e


brutal da civilização, exílio de poderes titânicos do mun-
do olimpiano, é um equívoco de interpretação, o qual
suas colocações sobre a tragédia grega tratam de rever-
ter (NIETZSCHE, op.cit.). Seu louvor a Dioniso, deus
olímpico cujas forças carregam potenciais selvagens pa-
recidos com os dos exilados Titãs, é uma afronta à cultura
alexandrina. Socrática, livresca e erudita, essa cultura ins-
tituiu o solo epistemológico do Ocidente, privilegiando os
aspectos apolíneos do pensamento e de suas criações. O
dionisíaco, sufocado, subsiste nas práticas populares, nas
festas, nas danças e delírios do sexo, nos jogos de azar,
espetáculos ambulantes, cultivo de vinhedos, triturações,
fermentações, bebidas que induzem ao transe. Apesar
da ênfase apolínea, o Ocidente foi contaminado por
devires dionisíacos que se valem das paixões de Cristo
e das sublimações antropofágicas de seu culto, que se

GEO-EDUCAÇÃO:
exprimem nos sacramentos do corpo: Deus feito car-
ne que se deixa torturar e morre, sacrificando-se por
amor, oferecendo-se numa completa comunhão no mis-
tério eucarístico tomado como vida eterna. Sob os devi-

ARTE E PAISAGENS VIRTUAIS


res trágicos de Jesus, a Igreja impõe uma força apolínea
paradoxalmente desmesurada que faz de seu Deus um
matador de serpentes,6 imagem que esposa o plano edu-
cacional instituindo os dogmas do pensamento cristão.
Numa espécie de combate contra a sufocação titâ-
nica é que Nietzsche faz sua crítica aos valores e suas
proposições de superação do niilismo ressentido, essa
melancolia de Saturno deposto no Tártaro. Superar a
tristeza da “vontade de nada”7 niilista e transformá-la
31

6
Também profeta, músico, geômetra, arquiteto e médico, exatos atri-
butos de Apolo. As máximas que encimavam o oráculo desse deus,
em Delfos, “conhecer a si mesmo” e “nada em excesso”, ajudaram a
imprimir o tom ascético do cristianismo e de toda a cultura alexandri-
na, marcada pela herança filosófica socrática e por crenças pitagóricas,
que marcam até hoje o pensamento ocidental.
7
Talvez fosse melhor dizer “vontade fraca” para designar o esvazia-
mento da vontade de potência. Nesse caso, “nada” é um termo que
acompanha a idéia de vazio, nunca a de aniquilamento completo.
Para um pensamento que afirma a positividade do desejo e a pleni-
tude de suas criações, o “nada” como “não-ser” ou como indicador de
em força ativa, alegre, implica na afirmação ex nihil de
potências que são a própria vontade transvalorada, li-
vre do niilismo reativo que retira da vontade todo seu
potencial para a ação. Há, nesse processo, uma atração
abissal, uma vontade de cair no buraco, entrar na cova,
deixar-se engolir por cavernas que devoram os que
caem dentro delas. Penetrar no vazio, atravessar a
imensidão do céu e conhecer profundezas obscuras são
práticas mágicas para fortalecer potências. A fim de
superar poderes, magos e xamãs se abrem para afectos
extremos, privações, mutilações e exposições do corpo
que os aproximam do aniquilamento; afectos experi-
DE ESCRITA

mentados por mortes e renascimentos dentro da pró-


pria vida (VITEBSKY, 2001). Com Zaratustra, o ím-
LINHAS

pio, “amigo dos malvados” (NIETZSCHE, 1998, p. 91),


aprende-se a abrigar devires sinistros para aumentar a
coragem. Vencer os temores implica acercar-se de tudo
o que é terrível, obtendo confiança suficiente para aca-
riciar os monstros (NIETZSCHE, 1998, p. 190). Correr
32

riscos, mudar de um plano para outro, viajar para outros


mundos, abrir tumbas secretas para desenterrar tesouros

alguma negação não pode existir. No entanto, o Nada, nihil, é um


conceito necessário para explicar a ausência de uma gênese e liberar
o pensamento da lógica “causa-consequência” legada pelos aristotéli-
cos. Como conceber o nada junto à afirmação do eterno retorno,
movimento ex nihil que arrasta tudo e que não compreende nem um
fim e nem um começo? No entanto, esse todo de coisas infinito
envolve escassez de elementos, ausências, vácuos, vagas, buracos-
negros e outros conceitos que cabem nas proposições dos falsos pro-
blemas colocados pelo Nada.
são passagens que alimentam a vontade vulnerabilizan-
do sua potência. Louco, perseguido, refugiado no fundo
do mar, desmembrado, cozido, devorado, renascido do
próprio coração, o deus dançante de Nietzsche é multi-
plicidade intensa, metamorfose de Dioniso, deus duas
vezes nascido e suas mil alegrias.

GEO-EDUCAÇÃO:
Um plano de pensamento que envolve o sentido
trágico da arte é traçado pela tensão de forças que não
param de se desfazer, modificar a matéria, desafiar a
gravidade, diferenciar, vir de novo mais forte. Pouco

ARTE E PAISAGENS VIRTUAIS


importa que a arte copie imagens, siga modelos; o que
faz uma arte é a singularidade das sensações que subsis-
tem na criação errante dos estilos, efeitos que mostram
os jogos do pensamento. Antes de fixar um modelo (o
que combinaria mais com um projeto arborescente), o
traçado de um plano de imanência é orientado por um
estilo, agenciamento para as matérias recortadas do caos.
A geo-educação traça um plano pictórico, não mais feito
por traços, mas por blocos, massas de luz e de sombra
33

que se misturam, linhas que se esfumaçam, zonas defi-


nidas por limiares imprecisos. Tudo o que se consegue
extrair de estrutura são pontos com mais ou menos in-
tensidade de luz, mais ou menos densidades. Ao pictó-
rico, sobrepõem-se formas grotescas cujas linhas com-
binam retângulos e ovais, serpentinatas que comportam
acúmulos de decoração: motivos da vegetação como ra-
mos, folhas, flores, frutas, gavinhas, animais, faunos, nin-
fas, sátiros, sereias, conchas, curvaturas e cartilagens dis-
solvidas. É um plano maneirista que combina o grotesco
com o pictórico apresentando variedades de dobras,
bainhas, lamelas irregulares e serpenteados inconstan-
tes, mas não dispostos simetricamente tal qual no estilo
clássico. Dionisíaco é um plano onde os equilíbrios e as
compensações contrabalanceadas do apolíneo compor-
tam nítidas distorções, aberturas, variações. Esse estilo
protobarroco, inspirado nas mínimas virtuoses de artis-
tas que copiam uns aos outros passando de atelier em
atelier, de cidade em cidade, coloca as riquezas da terra,
as histórias de seu povo, com pequenos monstros e se-
res mágicos, nos espaços “menos importantes” das edi-
ficações. Aprender a ocupar esse tipo de espaço menor,
diluir os cantos e criar cosmos dentro de tocas, é o devir
DE ESCRITA

estratégico da geo-educação.
Essa imagem de plano nos dá a observar que toda
LINHAS

a minuciosidade dos elementos e desenvolvimento dos


estilos ocorre nos monumentos erguidos em estruturas
acopladas ao Estado, edificações que afirmam e regula-
rizam os usos do poder. Considerando a estrutura da
34

Educação, calcada na assepsia e no poder disciplinar,


projeto sem gosto e sem nenhuma preocupação com o
jogo de estilos, a geo-educação almeja pequenas inter-
ferências nas interioridades desse edifício. A começar
por espalhar uma complexidade de elementos, por suas
linhas e ângulos em tensão, atenuar cantos, definir pla-
nos lisos, decorá-los, detalhar com dourado os elemen-
tos tridimensionais. Também abusar das portas camu-
fladas em paredes, das passagens secretas e dos quartos
intermediários. A geo-educação assume os devires barro-
cos como a logística de seu plano maquínico, que se dis-
tribui num continuum recortado, hiperbólico, elíptico,
hachurado e esparso. A estratégia é transmutar o re-
tângulo asséptico, as formas regulares, o julgamento
das maneiras, as matérias provadas e toda essa escassez
de elementos sobre os quais se calca o edifício educa-
cional moderno.
Além de colocar gosto em seus espaços e compor

GEO-EDUCAÇÃO:
estilos sobre sua prática, a geo-educação pressupõe uma
ética que nunca se separa da Terra e de seus devires.
Essa ética não exclui as paixões dionisíacas, que inten-
sificam a alegria e alimentam a alma do povo, mas tam-

ARTE E PAISAGENS VIRTUAIS


bém se alia a potências monstruosas, dilaceradoras e
devorantes, forças da natureza selvagem que os fluxos
instáveis da Terra colocam em jogo. Por isso o plano da
geo-educação tem atmosferas cataclísmicas, caóticas, nas
quais as passagens desterritorializadoras aumentam o
gosto, ativam o desejo, criam um outro modo de vida
no planeta, mais complexo, aberto a variações, estilos,
devires artísticos. Rizomático, esse ethos popular é um
estilo onde as divisões, compartimentalizações e linea-
35

ridades se esvaecem. Corpo infinito, brincadeira de


Dioniso. Bêbado, liso, devir-infernal, desorientado, ex-
cêntrico, segue o movimento progressivo do eterno re-
torno, náusea da serpente entocada na boca, que só vira
alegria depois do uivo do cão e da intuição de Zaratus-
tra: – Morde! (NIETZSCHE, p. 195).
Depois da “temporada no infernal” (T ERRÉ ,
1994, p. 42-51), do engasgo da cobra, da dor do ve-
neno, da desolação da morte, volta-se a crer no mun-
do. Passar pelos mais monstruosos espíritos, encon-
trar assombrações e aprender com elas é uma prática
xamânica disseminada na religiosidade tribal e no pró-
prio cristianismo. A geo-educação, pensada sobre os
devires da Terra, segue suas forças de morte e renasci-
mento, que envolvem a escuta de um uivo no silêncio
da noite, o enfrentamento de perigos, descidas abis-
sais que são experiências de superação. O regresso de
volta do país dos mortos torna a força melhor, mais
forte, curada, alegre e eterna. O que interessa para a
geo-educação nessas descidas é o desenvolvimento de
habilidades mercuriais: capacidade de sobrevôo, pos-
sibilidades de idas e vindas, ingressos e regressos no
mundo profundo, mergulhos no caos, entradas em
DE ESCRITA

devires moleculares que colocam em jogo forças de


mínimas particularidades da matéria. Determinação
LINHAS

de forças indeterminadas, embate marcial entre as per-


cepções do espaço e as maneiras como as forças se ar-
ranjam, a geo-educação traz à superfície a miscigena-
ção de afecções submetidas entre os corpos.
Tempestades, tufões, maremotos, terremotos, erosões,
36

erupções, toda a instabilidade da Terra. A monstruo-


sidade desse plano acontece por sua largura revirada,
bainhas, serpenteamentos, mínimos espiralares nos
quais a pele das coisas se dá. Máquinas que se movem
por revezamentos de forças, paradoxos do desejo que
propagam devires-loucos, que caçoam da vulnerabili-
dade dos corpos e disseminam um corpo imenso. Com-
posto de sensações, o corpo é suscetível a todo tipo de
contágio, ao atravessamento de alguma paixão, que o
refoga vivo em picadinhos para que renasça recom-
posto, feito obra de arte.
Pedagogia dionisíaca

O que está em jogo na geo-educação são os agenci-


amentos dos espaços, maneiras de trabalhar com as ma-
térias, expressão de gostos e devires. A geo-educação nada
mais é do que uma prática que cria agenciamentos para o
campo educacional, agenciamentos que se dão junto ao

GEOEDUCAÇÃO:
plano da arte e seus devires pelos povos da Terra. A idéia
é que funcione como coro dionisíaco, máquina cantante
da tragédia, limiar entre a multidão e o desenrolar dos

ARTE E PAISAGENS VIRTUAIS


acontecimentos. Tais devires colocam em funcionamen-
to máquinas que determinam modos de escavar a Terra,
guerrear, nitrir, rosnar, latir, gritar e cantar, valendo-se
de potências forjadas com forças que saem dos subterrâ-
neos e moldam as superfícies. Esse “processo de desterri-
torialização que constitui e estende o próprio território”
(DELEUZE e GUATTARI, p. 40) é próprio do modelo hi-
dráulico e das ciências ambulantes que Deleuze e Guat-
tari colocam como axiomas da máquina de guerra. A
37

formação errante desenvolvida pelas artes, ofícios de vida,


inspira o plano geo-educacional e a gênese de um ethos
diferente daquele estabelecido para a educação pela
sociedade disciplinar, na medida em que parte de dis-
positivos anteriores à racionalidade das Luzes.
A geo-educação comporta uma pedagogia do es-
paço liso, indeterminado, que se encontra fora das ima-
gens de pensamento das quais a educação costuma dis-
por. Esse espaço, ainda não sobrecodificado, implica o
devir excêntrico e divergente do plano das artes e seus com-
postos de sensações. Tal plano pressupõe uma prática
pedagógica desterritorializadora, que se dá junto ao que
fervilha entre os povos e as paisagens onde se desenro-
lam as existências. Entretanto, é necessário levar em conta
que as paisagens pertencem muito mais aos viajantes
do que aos povos que as compõem. As paisagens são
estrangeiras. Uma paisagem nunca é a mesma; o mun-
do real que dá a ver faz parte do mesmo simulador
maquínico de experiências em jogo nas paisagens. A
realidade experimentada é essa zona flutuante, indefi-
nida que, mesmo nas mínimas variações, é sempre di-
ferente. Os que habitam uma paisagem pertencem a
ela, de modo que tendem a se alienar dos potenciais de
DE ESCRITA

diferença vividos intensamente por aqueles que apenas


passam pela paisagem. O real não é a paisagem, mas o
plano material de onde se desprendem as virtualidades,
LINHAS

as quais, em processos moleculares de pensamento, efe-


tivam dobras, hipérboles e espirais nas molecularidades
da matéria. A pedagogia esquizo-analítica é uma práti-
ca que se ocupa em ver “como funcionam” agenciamen-
38

tos maquínicos da realidade, sendo que essa é a própria


máquina. O real se constitui nos agenciamentos entre
processos, experiências, modos de condução, maneiras
de agir, estilos, elementos de uma paisagem que reper-
cutem na vida, no corpo e na Terra.
Essa pedagogia toma as questões esquizo-analíticas
(como estamos compondo nossa vida, que tipos de cor-
pos compõem nosso corpo, que multidões nos atraves-
sam), com o intuito de desfrutar do potencial de dife-
rença desses agenciamentos, intensificar as paisagens,
desterritorializar, desmanchar os estratos que engessam
e aprisionam os fluxos desejantes. Isso implica uma car-
tografia dos planos de consistência geo-políticos esten-
didos sobre a Terra. Composta por uma variedade de
povos, especificidades, a Terra é a superfície plena, he-
terogênea, sobre a qual se desenrola a vida, uma super-
fície de decisão política, definições e centralizações de
poder sobre territórios, zonas especiais, potenciais de

GEOEDUCAÇÃO:
riqueza e abundância, assim como também terras de
ninguém, desertos dos quais não se tira nada. Uma pe-
dagogia do deserto abre-se à escassez e à privação, à su-

ARTE E PAISAGENS VIRTUAIS


peração de limites e táticas de sobrevivência. Ensina como
se munir com provisões, a conhecer estrelas e posições
astrais, a usar a bússola, dispor mapas. Mas também é
uma pedagogia xamânica, que prepara o corpo para o
pior: exposição a abalos e tempestades, falta de água, ca-
lores e frios, superação das próprias potências resistindo
à dureza do organismo e ultrapassando linhas mortais de
desterritorialização. Superar a carne, transpor o organis-
mo: tesouro inestimável das zonas de ninguém, espaço
39

liso, oceânico, sem propriedades, para onde correm os


loucos, os visionários, os artistas e os ladrões.
Pensar é deixar-se perder pelo deserto, uma aven-
tura no espaço liso, selvagem, potencialmente letal.
Sem uma relativa lisura, sem um espaço aberto que dê
margem para as criações, o pensamento – expansão
turbilhonar acelerada sobre um espaço liso, não sub-
misso à gravidade que rege os corpos – não acontece.
Devido a essas potências desterritorializadoras, De-
leuze traz imagens apavorantes para as aventuras do
pensamento: rajadas, abalos, choques, encontro com
movimentos inesperados, forças radicais, velocidades ver-
tiginosas, curvas dilacerantes. O pensamento acontece
no preciso momento desse combate de forças, mistura
de corpos e efeitos de superfície que os sobrevoam, des-
prendimentos espiralados da matéria que se virtualizam,
abraçando o caos impensado. Para a esquizo-análise, os
monstros não são engendrados pelo “sono da Razão”, idéia
difundida pelo quadro de Goya, mas criados na vigília,
na luta unilateral com o indeterminado (DELEUZE e
GUATTARI, 1996, p. 117). Para salvar o pastor, Zaratus-
tra teve de escutar o uivo do cão na lua cheia “na mais
silenciosa meia-noite, quando também os cães acredi-
DE ESCRITA

tam em fantasmas” (NIETZSCHE, p. 194).


Linha de fuga, o refúgio no deserto ou em ilhas
LINHAS

perdidas no meio do oceano imenso, pensar é a louca


corrida da superação, não uma batalha, uma guerrilha
ou uma briga a se comprar. A estratégia esquizo-ana-
lítica pressupõe um “experimentador” aberto a ajudar
40

na formulação dos problemas e suas soluções, jamais


um “guerreiro”, um matador de dragões metalizado,
“armado com alguma teoria prévia” (TADEU, CORAZZA
e ZORDAN, 2004, p. 135), que hasteia os estandartes
dogmáticos de uma moral ou de uma religião. A prá- A T E N -
tica geo-educativa é experimentação transcendental, ÇÃO: VE-
não um “deixar fazer”, mas um contaminar-se do im- RIFICAR
A PÁGI-
pensado, do que ainda não foi provado e que pode ser
NA NO
completamente improvável; caosmos do qual se extrai FINAL
alguma determinação, mesmo que paradoxalmente in-
determinada. Não há qualquer regra geo-educacional.
Partir das linhas de fuga implica a impossibilidade de se
estabelecer idéias transcendentes, normas de conduta,
parâmetros, modelos estáticos. O que encontramos numa
educação sobre a Terra é o mapeamento de suas linhas,
das riquezas e perigos de seus territórios, dos tipos de
paisagens e populações. Educar é aprender e ensinar uma
ética e uma estética de movimentação, ocupação e culto
dos espaços. Geo-educação: uma prática de se orientar

GEOEDUCAÇÃO:
no espaço, cujas provas são transpor variadas superfícies,
planos de experiência que o corpo da Terra compõe.
Orientar-se no deserto, no oceano, nas campinas, nas
florestas, selvas e cidades, não é apenas ter mapas, guiar-

ARTE E PAISAGENS VIRTUAIS


se pelos ventos, pelos astros, pela sinalização imposta pela
civilização e suas estradas, mas seguir as trilhas mais fe-
chadas, os caminhos mais difíceis, perto de rios torren-
ciais, tempestades oceânicas, lava vulcânica, geleiras. Dei-
xar-se acompanhar pelos afectos transversais, pelos devires
das pequenas multidões desterritorializadoras, a quem
somos impelidos a pensar.
Pensar em bando, construir um pensamento com
41

alguém, como Deleuze fez com Guattari, é entrar numa


Jangada de Medusa,8 partilhar da mesma prancha para
enfrentar os perigos e as calamidades das superfícies a

8
Obra de Théodore Géricault (1818-1819) exposta no Museu do
Louvre, que retrata a tragédia de traços antropofágicos, conseqüên-
cia das privações sofridas por náufragos à deriva sobre uma superfície
de paus. Com estilo romântico, o quadro inaugura o realismo na
pintura francesa, pois protesta contra o fato real acontecido alguns
anos antes na costa africana, quando o capitão da fragata Medusa,
um nobre, abandona mais de cem pessoas, consideradas da ralé,
sobre uma jangada improvisada.
serem atravessadas. Aprender e ensinar algum tipo de
arte é estar no mesmo barco, remar junto com os mes-
tres e colegas de ofício. Todo mestre é uma espécie de
guia que já experimentou as forças caósmicas e, de al-
guma maneira, as superou, de modo que encontrar um
mestre é ter com quem aprender a enfrentar a morte, a
passar pelo caos. Além de ensinar a posição dos astros,
o traçado de coordenadas topológicas e fornecer mapas
e bússolas, o mestre mostra as belezas, expõe proble-
mas e alerta sobre a possibilidade dos perigos. É aquele
que entrega alguns segredos e truques para que se possa
seguir em frente, sem preocupar-se com o estabeleci-
DE ESCRITA

mento de uma verdade, mas incitando a abertura de


passagens que levam para outros campos, superfícies
que serão experimentadas pelo aprendiz. Quem impõe
LINHAS

uma única perspectiva de verdade é o Professor Juízo


de Deus, aquele que precisa manter o controle da ma-
téria, que não entrega seus segredos e protege a si mes-
mo e seus alunos do caos. Ressentido com as forças ca-
42

óticas, as quais toma como ameaça e contra as quais se


arma, deixa seus alunos irem embora sozinhos, mesmo
sabendo dos riscos que correm. Não está junto porque
não sabe se ligar, não se conecta com a Terra e seu po-
tencial caósmico. Vale-se do senso comum e das idéias
dogmáticas para impor seu saber; portanto, esse pro-
fessor não está aberto ao pensamento. Fechado a expe-
rimentações que possam sair de seu controle ou que
possam perverter a sua disciplina, pode ter pânico de
invenções e ignorar completamente as forças que estão
em jogo na matéria que acredita estar ensinando. Por
meio do mestre, uma perspectiva é vislumbrada; junto
do mestre, se aprende. Não se trata de repartir uma
mesma perspectiva de verdade, mas de se precipitar junto
com o mestre para um certo tipo de plano, operar com
os mesmos conceitos, participar de um jogo onde todos
os participantes aumentam sua potência. Experimen-
tar o mesmo corpo sem órgãos, devorar os mesmos au-
tores, sugar o sangue que vive na força de um pensa-

GEOEDUCAÇÃO:
mento. Antes de enfrentar os mesmos perigos, é brincar
em conjunto, inventar ficções compostas, verter flu-
xos que se compõem em afetos alegres que aliam o

ARTE E PAISAGENS VIRTUAIS


riso aos mais desastrosos processos de aprendizagem.
Não se trata de negar o horror das passagens desola-
doras, dos desesperos que abatem mestres e neófitos
em suas buscas, mas de afirmar a produção de uma
alegria “que não é o mascaramento da dor, nem resig-
nação, mas a expressão de uma resistência ao próprio
sofrimento” (MACHADO, 2002, p. 25).
Educação para o encontro com o cristo nietzs-
chiano, avesso ao cristianismo e à moral, que trazia a
43

mensagem, a boa-nova que pregava a “supressão da idéia


de pecado, a ausência de todo ressentimento e de todo
o espírito de vingança, a recusa de toda guerra mesmo
conseqüente, a revelação de um reino de Deus aqui
embaixo como estado de coração e, sobretudo, a aceita-
ção da morte como prova de sua doutrina” (DELEUZE,
1976, p. 129). Este é Cristo-Dioniso, deus do eterno
retorno, sacrificado para afirmar a infinitude da vida e
sua vontade de potência feita de carne, matéria da terra,
superfície de desejos. Comer o pão como corpo e beber o
vinho como sangue é pura devoração, devir canibal. Cristo
serve de alimento, é o próprio combustível de vida, não
a vida orgânica, mas aquela que está fora do organismo,
que não se encontra nas organizações. Potência de de-
sejo que corre na penetração dos corpos, o verdadeiro
cristo é, para Nietzsche, a mistura, o deus que dança, o
gozo e êxtase que desconhece a idéia de “eu”, qualquer
tipo de designação, critérios, seleções, mesuras, classes.9
A alegria pura de estar vivo e celebrando é a graça do
dionisíaco, que não esconde a loucura criadora que é o
potencial curador de toda e qualquer arte.
Diluir as imagens na embriaguez, experimentar
DE ESCRITA

“a terrível destruição do abismo, que nada mais é do


que a experimentação da desmesura, do excesso, da
transgressão” (DIAS. In: LINS; NETO e VERAS (ORGS.),
LINHAS

2000, p. 14), é um artifício que impele ao pensamen-


to. A estratégia desse engenho, qualquer que seja seu
dispositivo de experimento, vinho, alpinismo ou sexo,
é sempre colocar em fuga as linhas maquínicas do dese-
44

jo, assolar segmentos assombrados por dogmas inven-


tando devires estranhos, satíricos, para suas imagens.
Entrar no transe in-forme nem que seja se embriagando
com água, como sugeriu Deleuze, para que possa acon-
tecer um pensamento sem imagens. Porém, é impossível
pensar dentro das indeterminações moleculares do caos,

9
“Dioniso é um deus humilde, um deus da vegetação, um deus dos
campônios. Com seu êxtase e entusiasmo, o filho de Sêmele era uma séria
ameaça à polis aristocrática, à polis dos Eupátridas, ao status quo vigente,
cujo suporte religioso eram os aristocratas deuses olímpicos”. Cf. BRAN-
DÃO. Mitologia grega, v. 2. Petrópolis: Vozes, 2001, p. 117.
de modo que, uma vez nele, o pensamento se esforça
para explicar uma paisagem, situar pontos de vista, mes-
mo que desoladores. É em sua força apolínea que o
pensamento funciona como um crivo, cujos cortes apli-
cam imagens na matéria caótica, estabelecendo territó-
rios, traçando limites e linhas de orientação que criam
os critérios para selecionar as imagens com as quais o

GEOEDUCAÇÃO:
pensamento vai traçar seu plano. Como a realidade é
um efeito das imagens, não encontrar imagens ou não
ter critérios para selecioná-las sustenta, mesmo que pro-

ARTE E PAISAGENS VIRTUAIS


visoriamente, uma sensação irreal que obriga o pensa-
mento a criar sob novas determinações, que só podem
ser retiradas daquilo que o pensamento dispõe. Um
pensamento sem imagens só pode se compor com par-
tículas imperceptíveis extraídas do caos. Essas partí-
culas moleculares situam uma realidade de puras
sensações, plano de consistência estético aberto aos dis-
positivos insondáveis que levam ao caos, ao fora que
nos força a criar. Percorrer os limiares é o devir da arte
45

cujo sentido é a insurreição dionisíaca, a transvaloração


da própria matéria, carne feito espírito. Transmutada,
a força sempre retorna mais forte, igual ao que era an-
tes, contudo diferente, posto que imortal. É por isso
que, em Lógica do sentido, Deleuze afirma o simulacro
como dispositivo dionisíaco, cujo vetor excêntrico pro-
duz as forças do eterno retorno (DELEUZE, 2000). Sen-
tido que sobrevoa os corpos com suas cargas vitalícias,
suas fusões orgiásticas, sede e fome da vida que não tem
fim. É o infinito que se abre, a serpente que, ao invés
de engolir a própria cauda, tem a cabeça liberada na
mordida. Dioniso é Iacos, o grande grito, reação ativa
que decepa a serpente e cospe sua cabeça, ação que su-
pera a náusea e libera um riso inumano no pastor aju-
dado por Zaratustra.
Uma pedagogia dionisíaca pressupõe a superação
do niilismo, do enjôo provocado pela própria existên-
cia. Trata-se de enxotar os medos e os maus presságios,
convulsionar-se para não mais opor “o conhecimento à
vida, para julgar a vida, para fazer dela algo culpado,
responsável e errado” (DELEUZE, p. 29). Isso implica dei-
xar de acreditar que a vontade, o desejo, os corpos se-
jam coisas ruins e sim compreender que tudo o que
DE ESCRITA

passa por eles é a pura expressão da vida. Estudar a


perspectiva dos afetos, compor seus blocos de sensa-
LINHAS

ções, criar perceptos, conceitos, estender o pensamento


num plano, eis a tarefa. A vida não deixa de ser brutal,
não se vive sem sacrifícios, caçadas, fome, devoração. O
conhecimento não pode ser aquilo que nos protege e
46

que nos afasta da vida, mas sim aquilo que nos ajuda a
atravessá-la, que nos incentiva a encarar seus perigos, a
morder a cabeça da serpente. Tomar de revés o pensa-
mento antropofágico, não como apologia do regurgito,
mas como possibilidade de cortes, despedaçamento,
prova. Certamente há incorporações, fagocitoses de for-
ças que criam planos imiscuídos num continuum infin-
dável, vertiginoso, expurgado, que a vontade sempre
acaba por romper, abrir, criar mil descontinuidades.
Essa pedagogia do vulnerável, potencializada pela von-
tade, abertura que torna uma força indestrutível, permi-
te um vislumbre do campo limítrofe da geo-educação,
animado por um culto primitivo, tribal, jamais por uma
religião de Estado, em cujas asas os fiéis podem se abri-
gar dos inimigos, dos terrores e de outras tantas coisas
que paralisam.
Seja na própria terra que geme, incendeia, trinca,
se inunda, seja no laminar da pedra, no fio do metal
forjado, a extrema vulnerabilidade dos seres vivos acaba

GEOEDUCAÇÃO:
sendo sentida. A impermanência da vida se mostra na
crença da abundância da Terra, sua capacidade de re-
composição, pois, após tempos de falta de alimento e

ARTE E PAISAGENS VIRTUAIS


escassez, as riquezas eram refeitas. A criação é concebi-
da junto a seres que morrem e renascem, e cuja epifania
é sair de dentro das profundezas ainda com mais for-
ças. Géia, a Terra, é entregue a sua filha Réia, a Mãe
Natureza, esposa de Saturno que ensinou o segredo do
vinho a Dioniso (KERÉNYI, p. 51-52), o deus renasci-
do. Somente depois do esmagamento, da trituração e
da fermentação em recipientes obscuros, consegue-se o
vinho, mágica beberagem que induz às gargalhadas, à
47

descontração e ao transe. O sentido trágico compreende


uma atração pelo horrível que beira o cômico e que faz
com que a vulnerabilidade dos organismos e das organi-
zações seja levada menos a sério. Não se trata de rir da
desgraça, mas de extrair a graça e o regozijo mesmo nas
aprendizagens mais dolorosas, na passagem por territó-
rios estéreis, no corpo-a-corpo com o abismo e a inten-
sa precipitação de paisagens que o pensamento dispõe.
Criar, refazer é tornar a Terra mais leve gozando dos
devires de suas paisagens, brincadeira gaiata de deus sem-
pre menino e suas risadas no tempo do eterno retorno.
Ovo caósmico: ponto zero

Pensamento que não dispõe de imagem alguma: o


impossível do pensamento. Pensamento cuja única ima-
gem possível é a disposição impossível da matéria caóti-
ca, impensável. As imagens se precipitam no pensa-
mento, definem seus territórios, as cores de seu povo,
as luzes das paisagens, a nebulosidade de suas superfí-
cies, que configuram um plano de atualização do virtual.
Contudo, subsiste no pensamento o pulsar da vida, das
forças intrínsecas, anteriores à forma, sem imagens, sem
memória, apenas potências intensas, moleculares, par-
DE ESCRITA

tículas incorpóreas em devir. Esse pensamento só pode


acontecer sobre proposições velozes e caóticas, não mais
LINHAS

a partir de um conhecimento estável do mundo, legiti-


mado por tradições ou pela permanência de uma ver-
dade. Seu sentido é a-histórico, inatual (inactuel), po-
tencializa a disjunção do recém-sintetizado, essa força
que em O anti-Édipo é tratada como esquiza (PELBART.
48

In: LINS; NETO; VERAS. (orgs.), 2000, p. 72), desejo


divergente, sempre em fuga, escapando de determina-
ções. Ao operar com uma espécie de topologia da von-
tade, situada nas margens desterritorializadoras dos
planos de pensamento, a geo-educação põe-se num
ponto vazio, ainda indeterminado, da linha de fuga
do desejo, instante zero da criação, que Deleuze e
Guattari chamaram corpo sem órgãos pleno, ovo ca-
ósmico, puro potencial.
O ovo ainda não fecundado já é multiplicidade, pois
mesmo as potências virtuais trazem suas determinações;
“só não há determinismos onde há mistério”, escreveu
Oswald de Andrade no Manifesto antropófago10. Mas
uma perspectiva molecular que minimiza a paisagem
mostra que nem mesmo um ponto pode ser determi-
nado, tamanha a complexidade de elementos em jogo
na imensidão inimaginável comportada em sua super-
fície. Toda a problemática desse pensamento consiste

GEOEDUCAÇÃO:
nas maneiras de expressar o imperceptível, o indiscer-
nível, informe, incógnito. Lócus esotérico, onde o
ponto de vista não passa de ponto de intersecção, uma

ARTE E PAISAGENS VIRTUAIS


interioridade bifurcada cujas molecularidades não com-
portam pontos, mas fractais divididos ao infinito, pas-
sado e futuro juntos num mesmo instante, Aion, sen-
tido extemporâneo, eterno, sempre em devir. Tempo
de criança que brinca, lança dados, tira cartas, dá a vida.
Vida que é multiplicidade, que acontece no interior
dos espaços, nos agenciamentos territoriais, nas com-
posições de paisagens, nas imagens de pensamento, no
que vem pela frente e no que ficou para trás. Vida que
49

também se encontra exatamente onde ela escapa, nas si-


tuações limites, na aniquilação do corpo, nos escoamen-
tos do desejo, na morte, na impassibilidade do acaso que
se desenvolve na largura e reviravoltas do plano.
Movimento excêntrico, aquele que sai do centro,
que carrega para fora, é o devir que acaba com o Juízo de
Deus, mostrando que o lado de dentro é o fora revirado,

10
ANDRADE, Oswald. Manifesto antropófago. Disponível em <http:/
/www.lumiarte.com/luardeoutono/oswald/manifantropf.html>
Acesso em: 18 jun. 2002.
corpo sem órgãos que dança ao avesso. Dança sem per-
nas e sem braços, uma experimentação com o caos,
uma prova feiticeira, dionisíaca que esquarteja os
cânones sociais, antropomórficos, arborescentes, nu-
méricos.11 Sob um modelo de educação, que é a agri-
mensura do caos, há que se pensar um plan-o indeter-
minado, cujo potencial imensurável perverte a geometria
e faz delirar a astronomia, atividades sob os auspícios
de Saturno, ocupadas em cortar paisagens, seccionar o
espaço, identificar pontos. Embora o plano geo-filosó-
fico prescinda das medições de terra, contagem das po-
pulações, censos territoriais, dados, precisa se ocupar
DE ESCRITA

com algumas imagens estruturadas para operar seus pro-


blemas. Tais imagens funcionam como mapas, mos-
trando a aglomeração de riquezas, a distribuição das
LINHAS

fortunas, a lapidação das terras, a redução e ampliação


de territórios, a compartimentalização do desejo e as
ameaças de fome, guerra e miséria. Preparar cultivos,
planejar o uso da terra, prever os humores de suas esta-
50

ções, canalizar águas, mapear os veios vitais, as possibili-


dades de poços e de fontes: agrimensuras e técnicas que
ajudam a transpor a morte, vir com mais força, passar
pelo outro lado do culto, a face louca da cultura. Arte
que segue o sentido inexplorado do eterno retorno, as
rotas nunca antes traçadas do devir. Correr o risco, se

11
“Na Cabala existe uma música dos números e esta música, que reduz
o caos material a seus princípios, explica, por uma espécie de mate-
mática grandiosa, como a natureza se organiza e dirige o nascimento
das formas retiradas do caos”. Cf. ARTAUD. Escritos de Antonin Ar-
taud. Porto Alegre: LP&M, 1986, p. 99.
atirar no impensado, é um tipo de rito iniciático que
envolve passagens, mortes, renascimentos, processos ma-
quínicos que se repetem, mas nunca se reproduzem do
mesmo modo. Ritmos da vida, aprendidos nos trânsi-
tos extensos e transes intensos dos corpos; corpos que
se combinam em máquinas que constroem planos de
consistência intempestivos, frenéticos e desatinados.

GEOEDUCAÇÃO:
Antes de dispor de toda uma agrimensura para
servir como referência para guiar a sua prática, a geo-
educação se vale da estética atemporal, plano de per-

ARTE E PAISAGENS VIRTUAIS


ceptos e afectos que envolve incontáveis forças e outras
inúmeras matérias de expressão. Matérias não crono-
lógicas, não mensuráveis, apenas intensas, virtuais, po-
tências para criação. Sob uma perspectiva esquizo-ana-
lítica, criar, potencializar o desejo, é não adoecer,
sucumbir ao caos, sufocar de medo, evitar se deixar
estrangular, picotar, cozinhar, comer, incorporar-se.
“O pensamento é a invenção dessa Saúde, a criação de
51

novas possibilidades de vida” (TERRÉ, p. 51), renasci-


mentos e metamorfoses dionisíacas, criação de novos
valores pensada por Nietzsche. Aprende-se a criar mer-
gulhando no turbilhão caótico e extraindo dessa ex-
periência forças para reinventar as imagens do plano,
rir das pretensões de verdade com que as imagens se
investem. Ensina-se a criar fugindo de ordens, desman-
telando organismos e pervertendo organizações. Com
Deleuze, a transvaloração implica pensar o impensável
esposando o caos, sem a “necessidade de sair de agencia-
mentos territoriais” (TADEU, CORAZZA, ZORDAN, 2004,
p. 55) para prová-lo.
ATENÇÃO: VERIFICAR A PÁGINA NO FINAL
Prática de vida que se aprende fazendo, a geo-
educação já existe, sempre existiu, é imanente aos devi-
res da Terra. Mesmo que ainda esteja sempre em vias
de se fazer, que talvez nunca seja feita, a geo-educação
é um modo de orientar-se sobre os caóides, transpor
planos de imanência filosóficos, lógicos, científicos e
estéticos. Os últimos, planos fotográficos, pitorescos,
grotescos, musicais, dramáticos, retóricos, cinéticos, es-
culturais, afectivos, que dão consistência aos perceptos
criados no plano de composição das artes. Experimen-
tação de paisagens, o devir desse plano prova as varie-
dades das sensações, as indefinições intensivas que dão
DE ESCRITA

singularidades a estados de coisas contaminados pela


arte, virtuose da matéria. Plano de imanência efetiva-
do, não o virtuosismo da Grande Obra, mas a virtude
LINHAS

humilde do corpo perfurado do artífice, atravessado por


blocos de sensação e danças viscerais que colocam em
prova a resistência da matéria. Acometido pelos furores
passionais do pensamento, o artífice afirma o desejo no
52

manejar das criações, na matéria curvada e forjada de


acordo com uma vontade. Multiplicidades maquínicas
ao invés da Criação divinizada, a vida criada, nomeada,
ordenada. Trata-se do caos oceânico, “Grande Onda”
(TERRÉ, p. 46), sempre em vias de se fazer, nunca pron-
ta. Potencialidade do ovo, mistério indeterminado dos
instantes prolongados ao infinito, sem imagem forma-
da, nome, número ou qualquer designação, apenas be-
leza trágica, a graça de um devir.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ANDRADE, Oswald. Manifesto antropófago. Disponível em <http:/


/www.lumiarte.com/luardeoutono/oswald/manifantropf.html>
Acesso em: 18 jun. 2002.
ARTAUD. Escritos de Antonin Artaud. Porto Alegre: LP&M,
1986.

GEOEDUCAÇÃO:
BRANDÃO. Mitologia grega, v. 2. Petrópolis: Vozes, 2001.
CORAZZA. Para uma filosofia do inferno na educação. Belo Hori-
zonte: Autêntica, 2002.

ARTE E PAISAGENS VIRTUAIS


COSTA. Esquizo ou da educação: Deleuze educador virtual. In:
LINS; COSTA e VERAS (Orgs.). Nietzsche e Deleuze: intensidade
e paixão. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 2000.
DELEUZE E GUATTARI. Mil platôs 4. São Paulo: Ed. 34, 1997.
DELEUZE E GUATTARI. Mil Platôs 5. São Paulo: Ed. 34, 1997.
DELEUZE e GUATTARI. O anti-Édipo: capitalismo e esquizo-
frenia. Lisboa: Assírio e Alvim, 1996.
DELEUZE. Lógica do sentido. São Paulo: Perspectiva, 2000.
53

DELEUZE. Nietzsche e a filosofia. Rio de Janeiro: Editora Rio,


1976.
DIAS. Arte e vida no pensamento de Nietzsche. In: LINS; NETO;
VERAS (Orgs). Nietzsche e Deleuze: intensidade e paixão. Rio de
Janeiro: Relume-Dumará, 2000.
KERÉNYI. Dioniso: imagem arquetípica da vida indestrutível. São
Paulo: Odysseus, 2002.
MACHADO. Nietzsche e a verdade. Rio de Janeiro: Graal, 2002.
NIETZSCHE. Assim falou Zaratustra. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 1998.
NIETZSCHE. O nascimento da tragédia ou helenismo e pessimismo.
São Paulo: Companhia das Letras, 1992.
PELBART. Deleuze, um pensador intempestivo. In: LINS; NETO;
VERAS. (Orgs). Nietzsche e Deleuze: intensidade e paixão. Rio de
Janeiro: Relume-Dumará, 2000.
RAJCHMAN. As ligações de Deleuze, Lisboa: Temas e Debates,
2002.
TADEU, CORAZZA, ZORDAN. Pesquisar o acontecimento:
estudo em XII exemplos. In: Linhas de Escrita. BeloHorizonte: Au-
têntica, 2004.
TADEU, CORAZZA, ZORDAN. Um plano de imanência para o
currículo. In: Linhas de Escrita. Belo Horizonte, Autêntica 2004.
TERRÉ. Ojos rojos: tientos sobre algunas fórmulas deleuzianas.
Archipiélago. Madrid, n. 17, jun. 1994.
DE ESCRITA

VITEBSKY. O xamã: viagens da alma, transe, êxtase e cura desde a


Sibéria até o Amazonas. Evergreen/Taschen, 2001.
LINHAS
54
Um plano de imanência para o currículo

Mas elas lhe acenavam; folhas eram coisas vivas; árvores


eram coisas vivas. E as folhas, por estarem ligadas por
milhões de fibras com seu próprio corpo, ali no banco, fazi-
am-no mexer-se; quando o galho balançava, ele fazia a
mesma coisa.
Virginia Woolf, Mrs. Dalloway
Queria uma obra nova, que apreendesse certos
pontos orgânicos da vida.
Uma obra
na qual se sentisse todo o sistema nervoso.
Acesa como um braseiro,
com vibrações,
consonâncias,
que convidasse
o homem
a sair
com
DE ESCRITA

seu corpo
para seguir no céu
LINHAS

essa nova, insólita e radiante epifania...


Antonin Artaud
56

15
Da afirmação – O discurso educacional, o nosso, tem
um tom. Ele é, por excelência, crítico. No começo está
a denúncia. Seu recurso estratégico é o de negar o esta-
do atual do sistema educacional. O “sistema” é perver-
so. A escola é reprodutora. O currículo é machista, se-
xista, racista. É assim que ele começa. Quando vai se
aproximando do final, ele se torna, em troca, moralista.
Ele diz como fazer para reformar o currículo, a escola,
a educação, o mundo. Sua ontologia é a de um mundo
torto, julgado a partir de uma transcendência qualquer.
Sua ética (ou sua moral?) é a de quem sabe, com toda
certeza, para onde o mundo – o da escola, o da educa-
ção, o do currículo, em particular – deve caminhar. O
discurso educacional é o Juízo de Deus. É o discurso da
condenação e da negação. É o discurso da indicação do

UM
reto caminho. Negação. Negação da negação. No final,

PLANO DE IMANÊNCIA PARA O CURRÍCULO


a solução, dialética, claro, tirada da manga do mágico
crítico. O último parágrafo é revelador. A sentença fi-
nal. Depois da condenação, a inevitável saída moral.
Nada menos imoralista (Nietzsche, Nietzsche, onde es-
tás?) do que o discurso educacional, o nosso. O discur-
so educacional é o domínio da palavra-de-ordem. O
tom do discurso educacional é o do grito. O crítico edu-
cacional tem a garganta permanentemente irritada. O
discurso educacional também tem a persistente mania
de falar em nome do outro. A indignidade de falar em
nome do outro (Michel, Michel, onde estás, quando
mais precisamos de ti?). A escrita educacional é o Tri-
57

bunal da Razão. (E, aqui, já ficamos com receio de es-


tar introduzindo, nós mesmos, um novo Tribunal. Não
nos deixem, por favor.) Chamar o discurso educacional
de “pós-crítico” não muda nada disso. Crítico, ainda
que “pós”, é o que ele continua. Direitos, leis e julga-
mentos. Foi aqui, nesse “anexato” ponto da curva, no
meio desse caminho, que dois de nós, um odd couple,
resolvemos tomar um desvio, um atalho, um jardim que
se bifurca, pra ver no que ia dar. Só pelo agridoce pra-
zer da experimentação, do inesperado e do imprevisí-
vel. Já estávamos pra lá de cheios do mesmo e da mesmice.
Não arriscávamos, pois, nada, absolutamente nada, já
que a única coisa que íamos deixar pra trás era o tédio e
o aborrecimento do discurso crítico. O que vinha pela
frente era uma questão de apostar para ver. Diante da
bifurcação, olhamos para um lado, olhamos para o ou-
tro, hesitantes, talvez, mas, finalmente, decididos. To-
mamos, afinal, a trilha que conduzia ao pensamento da
diferença. Mal passado o forcado, cruzamos com um
distinto e elegante senhor, outrora talvez um dândi,
portando chapéu e bengala, um sorriso que parecia irô-
nico, mas que era, na verdade, de puro gozo da vida.
Foi aqui que nos perdemos para sempre, pois novas
DE ESCRITA

bifurcações iam surgindo à medida que já nos sentía-


mos seguros. Foi seguindo a linha de fuga sugerida por
slogans como os seguintes que iniciamos nossa imóvel
LINHAS

viagem, na aventura cruzada do pensamento da dife-


rença e do pensamento do currículo: “Faça rizoma e
não raiz, nunca plante! Não seja uno nem múltiplo,
seja multiplicidades! Faça a linha e nunca o ponto. Seja
58

rápido, mesmo parado! Nunca suscite um General em


você! Nunca idéias justas, justo uma idéia. Tenha idéi-
as curtas” (MP, v. 1, p. 36, com supressões). Era sem
nostalgia, mas também sem remorso, que deixávamos
para trás o pensamento crítico.

1
Do sistema – O discurso pós-moderno, tal como, an-
tes, o discurso crítico, nos acostumou a desprezar os
sistemas. Os sistemas são, nesse raciocínio, sobretudo,
totalitários e totalizantes. Os sistemas filosóficos, os
sistemas de pensamento, são, sem nenhuma defesa, sus-
peitos. O que fazer, então, com um pensamento como
o de Deleuze que, sobretudo num livro como Mil pla-
tôs, constrói, talvez, o mais completo e complexo siste-
ma filosófico contemporâneo? Um sistema filosófico,
tradicionalmente, envolve dizer de que o mundo é cons-
tituído, o que significa “ser” no mundo; implica des-

UM
crever como se conhece esse mundo assim concebido;

PLANO DE IMANÊNCIA PARA O CURRÍCULO


supõe o desenvolvimento de algum princípio de como
se comportar nesse mundo; embora de forma menos
óbvia, um sistema filosófico exige o traçado de algum
plano de intervenção social no mundo. Uma ontologia.
Uma epistemologia. Uma ética. Uma política. Trata-
se, claramente, de um sistema como nenhum outro na
história do pensamento. Porque o sistema deleuziano
é, ele próprio, um ente do sistema deleuziano, isto é,
uma multiplicidade. Um pensamento, como o caracte-
rizou Éric Alliez, ele próprio, virtual. Não se fecha nun-
ca, permanentemente aberto a novos acréscimos, a no-
59

vas adjunções, a novos elementos. Não é um sistema


total, mas um sistema nunca totalizável. Um sistema
assim é difícil de ser descrito, de ser apreendido. Foi jus-
tamente para poder, de alguma forma, descrevê-lo que
Deleuze (sem esquecer Guattari, claro) inventou uma
escrita própria, uma escrita, também ela, deslizante, ina-
preensível, impossível de ser fixada. Não poderíamos, para
nossos próprios propósitos, os do ofício de curriculista
que é o nosso, tentar, ainda que sob o risco de cair na
mera interpretação, uma descrição sumária desse siste-
ma? Só assim, talvez, pudéssemos começar a cruzar os
dois pensamentos: o deleuziano e o curricular.
13
Da ontologia – Como é o mundo visto por Deleuze?
De que elementos é constituído? Como ele se forma?
Sabemos como são os entes, as “criaturas”, do mundo
tal como descrito pelo pensamento filosófico tradicio-
nal. Os “indivíduos” desse mundo são, desde já e para
sempre, inteiramente, completamente formados. Olha-
mos para o mundo e vemos “coisas”, “estados”, “matéria
formada”. O mundo da ontologia tradicional é o mun-
do da extensão, do espaço, de partes exteriores entre si.
Um mundo completamente estático. Até pode haver
DE ESCRITA

transformação, metamorfose, devir, mas são sempre


processos secundários relativamente aos seres formados
que daí resultam. Uma tal ontologia exige um esque-
LINHAS

ma que “organize” essa diversidade de coisas, de seres,


de estados. Ela pede algum princípio que reúna o apa-
rentemente diverso e diferente em classes, categorias,
tipos, mais gerais, mais universais, mais abrangentes.
60

Conhecemos algumas das soluções a esse problema. A


solução, comumente associada a Platão, remete esse
mundo vário e terreno das aparências a um outro mun-
do, transcendente, situado para além desse, um mundo
unificado em torno de essências que condensariam, em
uma forma ideal, justamente o “essencial” que se es-
conde na diversidade. A “idéia” de mesa, por exemplo,
abstraída de todos os acidentes de sua encarnação terre-
na, seria única e imutável, em oposição à variedade e à
variabilidade de suas contrapartes reais. Um mundo de
sensíveis, da sensação e da aparência, que se opõe a um
mundo de inteligíveis, da inteligência e da essência.
Tem uma outra solução, que poderíamos chamar, tal-
vez, de aristotélica, a qual provavelmente se ajusta mais
ao nosso modo “normal” de pensar. Novamente, parti-
mos da diversidade do mundo empírico, do mundo das
coisas entre as quais nos movemos. Desta vez, entre-

UM
tanto, não recorremos a um mundo extra-sensível para

PLANO DE IMANÊNCIA PARA O CURRÍCULO


colocar ordem no nosso. Limitamo-nos a uma opera-
ção intelectual: olhamos para o mundo sensível, para o
mundo do vário e do diverso, comparamos as coisas entre
si e delas extraímos, abstraímos, diferenças e semelhan-
ças. Aquelas coisas que, abstraídas de seus acidentes,
de suas aparentes diferenças, ainda se mostrarem sufi-
cientemente semelhantes para serem reunidas num único
conjunto, se expressariam por meio de um “conceito”
que representaria o essencial daquele conjunto aparen-
temente vário, sua essência. Um gênero, uma espécie, é
uma reunião desse tipo, uma reunião puramente inte-
lectual, abstrata, uma operação de generalização e de
61

universalização. Numa ontologia assim, conhecer (ou


pensar?) praticamente se reduz à elaboração de tipo-
logias, de classificações, de taxonomias. Trata-se de
um pensamento concentrado na identidade: o quê,
no diverso, no diferente, permanece igual, idêntico?
A ontologia de Deleuze é toda uma outra coisa. Pra
começar, Deleuze não está preocupado com o verda-
deiro e o falso, critérios que só fazem sentido numa
ontologia calcada na noção de representação, de um
pensamento que refletiria o mundo fielmente (a ver-
dade) ou não (a falsidade). Deleuze está preocupado
com outro critério: o do “do Interessante, do Notável
ou do Importante” (DELEUZE E GUATTARI, 1997, p.
108). E o “notável”, para Deleuze, não é o mundo das
coisas já formadas, já constituídas, mas o mundo da-
queles elementos que estão na origem das coisas já-fei-
tas. Há um mundo “subterrâneo”, um mundo “invisí-
vel”, mas não transcendental, feito de elementos cuja
natureza não é a mesma das coisas e dos indivíduos já
formados e constituídos. Esses elementos são forças,
vetores, intensidades, diferenças de potencial, diferen-
ças de energia. Não é um outro mundo, é o mesmo:
trata-se tão-somente de tentar ressaltar o que a ontolo-
DE ESCRITA

gia da identidade e da semelhança, a ontologia do con-


ceito, do gênero e da espécie, não apenas não ressalta,
mas sequer reconhece. Trata-se de colocar em foco aque-
LINHAS

la outra metade do mesmo mundo que é feita, essenci-


almente, de movimentos, de devires e de transforma-
ções. O que importa aqui não são os pontos “mortos”,
os pontos de parada, os objetos que se posicionam, de
62

forma simultânea, no espaço e na extensão – o final de


linha do infinito movimento das forças das quais as
coisas já-feitas não são mais do que a expressão. O que
importa é o movimento mesmo, o fluxo, a corrente, a
torrente de vida que, microscopicamente, molecular-
mente, mas de forma não menos real, não menos con-
creta, percorre e atravessa aquela outra metade que es-
tamos acostumados a ver como o mundo “real”. Não há
nenhuma correspondência ou semelhança entre os ele-
mentos dessas duas metades simplesmente porque suas
naturezas são de ordem diferente: de um lado, forças,
vetores, intensidades, diferenciais em movimento; de
outro, coisas, estados, indivíduos já formados. De um
lado, devires; de outro, “seres”. Poderíamos, aqui, já in-
troduzir uma distinção que é central em Deleuze: a
distinção entre virtual e atual. E poderíamos traduzir o
que dissemos até agora em termos dessa nomenclatura.
A ontologia tradicional está interessada no atual, no

UM
mundo das coisas já-feitas. A ontologia deleuziana está

PLANO DE IMANÊNCIA PARA O CURRÍCULO


interessada no que se passa entre o virtual e o atual,
entre as duas metades de um mesmo mundo: o dos
fluxos e movimentos da primeira metade que se atuali-
zam, que se diferenciam, nas espécies e nas partes da
segunda. Deleuze tem muito pouco interesse nas “coi-
sas” e isso resume toda sua ontologia: “É verdade que
eu passei meu tempo escrevendo sobre essa noção de
acontecimento: é que eu não acredito nas coisas” (DE-
LEUZE, 1992, p. 199). É apenas um resumo. Mas já é
um começo e é daqui que vamos partir.

1
63

Da multiplicidade – A ontologia deleuziana não é nada


sem a noção de multiplicidade. Ela é tão central à sua
ontologia quanto a noção de “essência” (ou a noção de
Uno-múltiplo, que é o correlato dessa última) à onto-
logia tradicional. “A filosofia é a teoria das multiplici-
dades”, escreveu Deleuze (1998, p. 173) em um de
seus últimos textos. O termo provavelmente fez sua pri-
meira aparição em Bergsonismo e a última em O que é
a filosofia (DELANDA, 2002, p. 181). Ele recebe as mais
diversas formulações, mas, de Bergsonismo e Diferença e
repetição a Mil platôs, duas referências são constantes.
De um lado, ele é remontado ao conceito matemático
de “manifold ” (tradução para o inglês da palavra alemã
“Mannigfaltigkeit”) desenvolvido por George B. Rie-
mann (1826-1866). De outro, ao de “duração”, am-
plamente desenvolvido por Henri Bergson (1859-1941)
ao longo de toda sua obra. Mais importante do que
caracterizar a noção de “multiplicidade”, seja talvez com-
preender para que ela serve. Sumariamente, pode-se
dizer que serve para duas coisas: 1. colocar no centro da
ontologia os processos de movimento e de devir, em vez
das noções estáticas de essência e de “ser” já-e-para-sem-
pre constituído; 2. permitir pensar a diversidade e a
DE ESCRITA

variedade do mundo sem recorrer às noções tradicio-


nais de uno e de múltiplo. Em suma: não acontece muita
coisa de interessante ou de novo num mundo feito de
LINHAS

essências; não dá pra fazer muita coisa interessante ou


nova num mundo feito de essências, a não ser, partindo
das coisas, classificá-las de acordo com a essência que
expressam ou, partindo das essências, perguntar-se como
64

elas se “individualizam” nas coisas. Nada divertido! Já


num mundo feito de multiplicidades, é um formiga-
mento só, um torvelinho criativo em cada esquina. Des-
de Bergsonismo, em correspondência com a distinção que
Bergson faz entre grandeza extensiva e intensidade (este
último é o nome que Bergson prefere à denominação
tradicional: “grandeza intensiva”), Deleuze distingue
dois tipos de multiplicidade: de um lado, a multiplici-
dade intensiva; de outro, a multiplicidade extensiva. A
multiplicidade extensiva é aquela à qual estamos “acos-
tumados”, correspondendo ao mundo da extensão, do
espaço, das “coisas” compostas de matéria e forma, na
ontologia tradicional. Esta multiplicidade é numérica,
espacial, quantitativa, descontínua, discreta, homogênea,
cardinal, métrica, euclidiana, feita de partes exteriores
umas às outras, composta de pontos posicionais. Ela
pode ser dividida sem que as partes que resultam dessa
divisão mudem de natureza. Para dar uma ilustração
simples, se dividimos um conjunto de 20 laranjas em

UM
dois conjuntos (um de cinco laranjas, outro de quinze,

PLANO DE IMANÊNCIA PARA O CURRÍCULO


por exemplo), obteremos em cada conjunto as mesmas
laranjas de antes. Já a multiplicidade intensiva é que
constitui a novidade tipicamente deleuziana: a multi-
plicidade intensiva é feita de forças, de vetores, de rela-
ções diferenciais. Ela é não-numérica, espaciotempo-
ral, qualitativa, contínua, heterogênea, ordinal,
não-métrica, riemanniana, feita de partes que se fun-
dem, se interpenetram, composta de linhas de força.
Por ser feita de elementos contínuos e heterogêneos, ao
ser dividida, ficamos, necessariamente, com “conjun-
tos” cujos elementos são de natureza diferente dos ele-
65

mentos originais. Ou, nos termos negativos e mais sin-


téticos utilizados por Deleuze: uma multiplicidade
intensiva é aquela que não se divide sem que mude de
natureza. Isso é bem mais difícil de ser pensado. Em
primeiro lugar, essa divisão não é uma divisão no senti-
do usual de “corte”, que é possível justamente no do-
mínio da multiplicidade numérica. É melhor pensar
na divisão, neste caso, como um desdobramento, como
uma diferenciação, o que já implica a passagem de uma
multiplicidade intensiva para uma multiplicidade ex-
tensiva. É dessa “mudança de natureza” que se trata.
Ao se desdobrar, ao se desenvolver, ao se ex-plicar, ao
se desenrolar, que é a maneira como uma multiplicida-
de intensiva se divide, ela se transforma em multiplici-
dade extensiva, ela se espacializa, ela se atualiza: seus
elementos virtuais (forças, vetores, intensidades) dão lu-
gar a elementos atuais (as “coisas” do mundo da exten-
são, do espaço, tais como as concebemos). Dividir sig-
nifica, aqui, mudar de dimensão (MP, v. 4, p. 33).
Assim, por exemplo, podemos conceber um embrião
como uma multiplicidade intensiva, como um campo
de forças, de intensidades, de relações diferenciais, de
elementos indiferenciados, como um campo formado
de elementos contínuos (não podem ser concebidos
DE ESCRITA

como exteriores uns aos outros, como separados espaci-


almente) e heterogêneos (uma força, por exemplo, não
é equivalente à outra). Ao se dividir, o que significa
LINHAS

“desenvolver-se”, “desdobrar-se”, “diferenciar-se”, dá


origem a um indivíduo “formado”, “extendido” no es-
paço. Em suma, ao conceber dois tipos de multiplici-
dades (as intensivas e as extensivas), Deleuze não subs-
66

titui o dualismo entre o “Uno” e o “múltiplo” da


ontologia tradicional por outro, na medida em que as
duas multiplicidades não pertencem a dois mundos se-
parados, incomunicáveis, opostos, mas pertencem a um
só e mesmo mundo. Há, entre as duas espécies de mul-
tiplicidade, uma “continuidade” tal que uma multipli-
cidade extensiva nada mais é que a expressão espacial
de uma multiplicidade intensiva. Entre as duas multi-
plicidades não há hierarquia (a melhor e a pior), nem
precedência cronológica, mas apenas uma assimetria:
entre o naturante e o naturado, entre o estado mais
livre, de maiores possibilidades, para o estado mais
fechado, de possibilidades finalizadas, da indetermi-
nação para a determinação. Finalmente, a noção de
multiplicidade não está feita para ser contemplada,
nem para servir de instrumento de análise do “mundo”.
Deleuze é, sobretudo, um pragmático. Experimentar é
sua constante palavra de ordem. “Não basta dizer ‘Viva o

UM
múltiplo’. É preciso fazer o múltiplo” (MP, v. 1, p. 14).

PLANO DE IMANÊNCIA PARA O CURRÍCULO


Mas aí já entramos no terreno da conduta e da política.
E disso trataremos em outra seção.

11
Da diferença – Sem multiplicidade (heterogênea) não
haveria criação, invenção, produção do novo e do im-
previsível. A multiplicidade é a “matéria-prima”, o spa-
tium, contínuo, heterogêneo, intensivo, de onde salta o
que ainda não existia. É da multiplicidade que salta
uma outra coisa que não coincide com qualquer dos
elementos de que ela é formada, que é uma outra coisa,
67

que é diferente de qualquer dos elementos que a com-


põe. É esse diferenciar-se de si mesma que está no cen-
tro do processo de produção do novo. Sem diferencia-
ção, não existe criação. Mas para que isso que salta salte
sem o auxílio de uma intervenção externa, sem um ele-
mento transcendental qualquer (um deus, um demiur-
go, uma forma preexistente), para que haja diferencia-
ção sem que haja um “diferenciador” externo, é preciso
conceber algo que “comande” esse processo, por assim
dizer, de “dentro”, de forma imanente. É justamente
isso que, na rude e simplificada descrição aqui feita,
Deleuze chama de “diferença”. (Além de outras
precisões, seria preciso dizer que a diferença age dupla-
mente: no interior da multiplicidade e em direção ao
seu exterior, naquilo que Deleuze resume, em Diferen-
ça e repetição, por meio da fórmula diferen(t/c)iação).
Por outro lado, é preciso que o processo de diferencia-
ção que está no cerne do processo de criação se renove
constantemente, que comece sempre de novo. É preci-
so que o processo (e não a “coisa” criada, não o seu resul-
tado, não o seu produto) se repita incessantemente. É
preciso voltar, retornar (Nietzsche) sempre ao início do
processo; é preciso que a diferença continue, renovada-
mente, sua ação produtora e produtiva. O ciclo da di-
DE ESCRITA

ferença deve retomar incessantemente, incansavelmen-


te, seu trabalho, seu movimento. Em outras palavras, é
preciso que ele se repita sem parar, é preciso que haja
LINHAS

repetição. Sem o retorno, a repetição da primavera (consi-


derada como processo), não há nova floração (diferencia-
ção), não é acionado aquilo (a “diferença”) que faz com
surja essa nova floração. Sem repetição, não há diferença.
68

O que parece um paradoxo é, na verdade, um liame in-


dissolúvel. É que a repetição não é, aqui, a repetição da
mesma “coisa”, a repetição do já-feito, do já-formado.
A repetição não é, aqui, cópia, duplicação, reprodu-
ção do mesmo. Não é morte, cessação do movimento.
A repetição, nesse vínculo indissolúvel com a diferen-
ça, está, ao contrário, na “origem” mesma da renovação,
do fluxo, da vida. Repetição e diferença: é a dupla que,
juntamente com a noção de multiplicidade, caracteriza,
de maneira singular, o pensamento de Deleuze no con-
texto do pensamento filosófico contemporâneo. A noção
de diferença, entretanto, sobrepassa o território deleuziano,
para definir um movimento mais amplo da reflexão filo-
sófica desses tempos, caracterizado justamente como “fi-
losofia da diferença” ou como “pensamento da diferen-
ça”. Sua genealogia recua até Nietzsche, passa por
Heidegger, para incluir, entre os contemporâneos, de
maneira mais evidente, o pensamento de Jacques Der-
rida, não deixando de fora até mesmo um “dialético”

UM
como Adorno ou um pensador que, sem desenvolver

PLANO DE IMANÊNCIA PARA O CURRÍCULO


explicitamente um pensamento da diferença, foi, sem
dúvida, alguém que o colocou em prática: Foucault.
Entre outras coisas, e para além de suas diferenças, que
estão longe de ser negligenciáveis, esses pensamentos
da diferença partilham de dois paradoxos. Em primei-
ro lugar, embora rejeitem a negação e a contradição,
eles se desenvolvem, em boa parte, explícita ou impli-
citamente, em oposição (como negação, portanto) ao
pensamento dialético de Hegel. Em segundo lugar, é
difícil (impossível?) dizer em que consiste a noção de
diferença sem dar-lhe uma definição. E uma definição
69

é a operação identitária por excelência (uma definição


diz “o que é”, uma definição supõe uma essência, supõe
diferenciá-la, mas como espécie no interior de um gê-
nero) – aquela que, obviamente, o pensamento da di-
ferença quer justamente evitar. É por isso que Derrida,
que foi quem talvez mais se esforçou por exprimir essa
dificuldade, essa impossibilidade, diz que “a diferença
não é” (DERRIDA, s.d., p. 58). No que toca a Deleuze,
no livro em que ele mais desenvolveu a noção de dife-
rença, Diferença e repetição, essa dificuldade é contor-
nada pelo recurso a uma variedade de estratégias não
propriamente para definir a noção de diferença, mas,
digamos, para se aproximar dessa noção por meio dela
mesma: do cálculo diferencial às fórmulas poéticas, pas-
sando pela literatura e pela própria filosofia, a diferença
é – continuamente, variadamente, variacionalmente, di-
ferencialmente – bordejada, roçada, marginada, mas
nunca representada, nomeada, definida, plenamente
atingida. Por outro lado, a expressão “pensamento da
diferença” ou “filosofia da diferença” é bastante proble-
mática, na medida em que homogeneiza pensamentos
que, para além de seu comum questionamento do pen-
samento identitário e da palavra “diferença”, divergem
em uma variedade de aspectos. Para ficarmos na compa-
DE ESCRITA

ração mais evidente e para citar apenas um aspecto dessa


comparação, a “diferença” de Derrida, por exemplo, se
apóia, de forma central, numa variedade da teoria lin-
LINHAS

güística ou de uma teoria do signo que é sumariamente


questionada por Deleuze.

10
70

Da imanência – A noção de imanência é inseparável,


em Deleuze, de outras noções que formam o cerne de
sua “ontologia”: multiplicidade, diferença, expressão,
entre outras. As referências centrais são, aqui, Spinoza,
com a concepção, em sua Ética, de um “mundo” ao
qual Deus é imanente e não uma entidade que lhe é
exterior, separada, transcendental, e Bergson, com sua
ênfase na produção do novo e do imprevisível a partir
de elementos que não saem da esfera deste mundo (du-
ração, elã vital, intensidade). Mas os substantivos ima-
nência, transcendência, e os adjetivos correspondentes,
imanente, transcendente/transcendental, têm, no pen-
samento filosófico, uma história que não permite que
se lhes atribua qualquer sentido unívoco. É, em parte,
devido a essa equivocidade que Deleuze pode afirmar o
princípio da imanência, ao mesmo tempo em que se
declara praticante de um “empirismo transcendental”
(a chave do aparente paradoxo está no fato de que a

UM
noção de imanência vem precisamente de uma tradi-

PLANO DE IMANÊNCIA PARA O CURRÍCULO


ção, a spinozista, que opõe causa imanente e causa tran-
sitiva), enquanto o adjetivo “transcendental” vem da tra-
dição kantiana que se liga não à oposição imanente/
transcendente ou imanência/transcendência, mas que
se refere simplesmente, fora de qualquer relação de opo-
sição, às condições a priori do ato de conhecer. Assim,
por exemplo, em Kant, as noções de tempo e espaço
são transcendentais, na medida em que constituem as
condições prévias e independentes da experiência em-
pírica de qualquer outro tipo de conhecimento. Dada a
importância, em Deleuze, tanto da noção de “imanên-
71

cia” quanto de “empirismo transcendental”, vale a pena


percorrer, ainda que brevemente, a trajetória desses di-
versos termos. Para começar, as noções de imanência e
imanente são inseparáveis da noção de causa. A siste-
matização do conceito de causa, por sua vez, nos reme-
te a Aristóteles, que concebia quatro espécies de causa:
material, formal, eficiente ou motriz, final. Sua con-
cepção de causa, entretanto, difere consideravelmente
da noção moderna de causa. Tal como a entendemos,
sob a influência da física moderna, “causa” se refere a
um fator que é considerado como estando na origem da
transformação de um outro, visto, então, como “efeito”.
A causa é, aqui, muito mais uma relação entre eventos
ou ações do que uma relação entre coisas. Assim, acen-
der um fogo é causa de haver calor. Como tal, a causa é
sempre exterior relativamente ao efeito que ela desen-
cadeia. Para Aristóteles e para a escolástica medieval,
entretanto, a noção de causa tem um sentido mais am-
plo. Uma coisa é causa de outra coisa se tem algum
papel na sua origem ou formação. Assim, Aristóteles
pode dizer que a matéria de que é feito um objeto, na
medida em que contribui para fazer com que esse ob-
jeto seja o que é, é causa desse objeto. De maneira si-
milar, a forma de um objeto pode ser considerada como
DE ESCRITA

sua causa, já que sem a forma o objeto não seria o que


é. Esses dois exemplos correspondem, respectivamen-
te, a dois dos tipos de causa mencionados por Aristóte-
LINHAS

les: causa material e causa formal. O terceiro tipo de


causa, na classificação aristotélica, aproxima-se mais da
concepção moderna. A causa eficiente ou motriz é aquilo
que faz com que uma coisa mude de posição ou, mais
72

geralmente, que algo que antes não existia passe a exis-


tir ou que algo existente sofra algum tipo de transfor-
mação. Finalmente, a “causa final” refere-se à finalida-
de ou justificativa de alguma coisa ou algum ato. Assim,
a saúde é a causa (o motivo) do exercício físico: faço
exercício por causa da saúde. Vemos que, contrariamen-
te ao que implica a noção moderna de causa, na pers-
pectiva aristotélica, um mesmo objeto pode ter mais de
uma causa, embora de tipos diferentes. Assim, esta es-
cultura que tenho à minha frente tem a madeira como
causa material, a forma que a distingue de outros peda-
ços de madeira como causa formal, o escultor como causa
eficiente ou motriz, o prazer (ou a necessidade de ga-
nhar dinheiro) do escultor como causa final. No exem-
plo do exercício e da saúde, a saúde é causa final do
exercício, mas o exercício é causa eficiente ou motriz
da saúde. A divisão aristotélica dos diversos tipos de
causas já implica uma distinção entre causas externas e
causas internas ou imanentes. Assim, a causa formal e a

UM
causa material seriam causas internas, enquanto a causa

PLANO DE IMANÊNCIA PARA O CURRÍCULO


eficiente seria, por definição, o tipo por excelência de
causa externa. É essa divisão, por sua vez, que está na
origem da noção de causa imanente, amplamente utili-
zada pela escolástica e reaproveitada, de maneira notá-
vel, por Spinoza, na formulação de sua doutrina da subs-
tância única. Na tipologia escolástica, “causa imanente”
opõe-se à “causa transitiva”. Causa imanente é aí defi-
nida como aquela que é inseparável de seu efeito; causa
transitiva é aquela em que o efeito está dela separado.
É justamente essa inseparabilidade que está implicada
na origem latina de “imanente”: do verbo immanere = in
73

+ manere, “ficar em”, “permanecer em”, “residir em”. Por-


tanto, “imanente” é aquilo que não se separa, que não
sai, que continua onde estava. A oposição de “imanente”
a “transitiva” permite contemplar a possibilidade de que
até mesmo uma causa eficiente, contrariamente ao que
poderíamos deduzir da formulação aristotélica, possa ser
considerada imanente. Assim, por exemplo, o intelecto
é causa eficiente e, ao mesmo tempo, imanente dos con-
ceitos que ele elabora. Na formulação spinoziana, Deus
é causa eficiente e, ao mesmo tempo, imanente das coi-
sas do mundo. As idéias de “imanente” e de “ima-
nência” estão, pois, estreitamente ligadas à idéia de
causa. “Imanente” qualifica uma causa e “imanência” é
uma qualidade que se atribui a uma causa. Dizer que
“A é imanente a B” é uma maneira abreviada de dizer
que “A é causa imanente de B”. A imanência é, pois,
uma relação entre dois termos: uma causa, A; um efei-
to, B. Não se poderia, assim, falar simplesmente da “ima-
nência de A”. “Imanência de A” relativamente a quê?
Ou, mais precisamente, relativamente a qual efeito? De-
corre da própria definição de “imanente” que a ima-
nência, tal como a relação de igualdade, é uma relação
comutativa. Isto é, se A (causa) é imanente a B (efei-
to), então B (efeito) é também imanente a A. Em ou-
DE ESCRITA

tras palavras, é óbvio que se A não se separa de B, então


B também não se separa de A. A noção de “imanente”,
LINHAS

na medida em que está associada à de causa e apenas


nessa medida, opõe-se, pois, à de “transitiva” e não à de
“transcendente”. Num campo semântico um tanto dis-
tinto, entretanto, é na oposição imanente-transcendente
que a noção de “imanente” adquire seu sentido. Eti-
74

mologicamente, “transcendente” tem origem no verbo


latino transcendere, que significa “ir além”, “transpor”,
num movimento ascendente, como indica sua compo-
sição: trans + ascendere. De forma geral, aplica-se o ad-
jetivo “transcendente” a tudo aquilo que estaria situado
em um plano que se imagina como estando acima do
plano ordinário das coisas, como sendo superior ao pla-
no desta realidade. Assim, no esquema platônico, o in-
teligível (o plano das idéias ou das formas) é considera-
do transcendente relativamente ao sensível (o plano das
coisas). Na perspectiva da teologia escolástica, tudo o
que diz respeito a Deus é visto como transcendente re-
lativamente ao plano das criaturas. Nesse contexto, a
transcendência, substantivo, é o estado próprio daquilo
que é transcendente. Nessa oposição, imanente é, pois,
o plano no qual se está, o plano desta realidade. A ima-
nência, conseqüentemente, é o estado daquilo que se

UM
situa no plano ordinário das coisas, daquilo que per-

PLANO DE IMANÊNCIA PARA O CURRÍCULO


tence a esta realidade. Para retomar os exemplos anteri-
ores, no esquema platônico, o sensível seria o imanente
e o plano das coisas sensíveis constituiria o plano da
imanência. Para a teologia escolástica, o imanente é a
qualidade própria das criaturas e a imanência seria o
seu estado. A oposição imanente-transcendente não é
meramente descritiva. Isto é, ela não descreve simples-
mente dois planos de existência. Ela tem também uma
conotação valorativa. Ao aceitar a oposição, está-se im-
plicitamente aceitando a existência desses dois planos.
Afirmar a imanência, ao contrário, significa rejeitar a
existência de um plano transcendente (e não transcen-
75

dental). Essas duas posições não são propriamente si-


métricas. Quem afirma a transcendência não nega a
imanência: apenas supõe a existência de um plano su-
perior àquele em que nos situamos. Quem afirma a
imanência, em contraste, nega a transcendência. Na
discussão teológica, por outro lado, a questão não se
resume simplesmente a tomar partido em favor da trans-
cendência. Trata-se, em vez disso, de determinar como
Deus se situa relativamente à oposição transcendente-
imanente. É Deus transcendente ou imanente a este
mundo? As diferentes respostas a essas questões, desde
a escolha pela pura transcendência ou pela pura ima-
nência, passando por tentativas de conciliação entre as
duas, irão definir as diferentes doutrinas teológicas, que
vão, respectivamente, desde o deísmo até ao panteísmo.
Comparando-se as duas oposições, imanente-transitiva
e imanente-transcendente, deve-se observar que há uma
distinção entre os seus respectivos pontos de referência.
Na relação imanente-transitiva, considerada como re-
lação entre causa e efeito, o ponto de referência é sem-
pre o efeito. Isto é, a causa é imanente relativamente ao
efeito em questão. O ponto de referência é, aqui, vari-
ável, pois, dada uma causa, é preciso saber a qual efeito
DE ESCRITA

ela é imanente. Falamos, aqui, da imanência da causa


relativamente ao efeito. Já na relação imanente-trans-
LINHAS

cendente, não se trata de efeito e causa, mas de dois


planos distintos: um deles, o de imanência, é sempre
este plano, o plano desta realidade, enquanto o outro é
sempre o plano que está além desta realidade. Falamos,
aqui, da imanência de um plano relativamente ao outro
76

ou, contrariamente, da transcendência de um relativa-


mente ao outro. Já o termo “transcendental” tem, no
contexto da teologia escolástica, ainda um outro senti-
do. Trata-se, aqui, não de um adjetivo, mas de um subs-
tantivo e geralmente empregado no plural: os transcen-
dentais. Os transcendentais seriam aquelas qualidades
que podem ser afirmadas de todos os entes, indepen-
dentemente de sua natureza. Na linguagem aristotéli-
ca, os transcendentais estariam para além (daí o “trans”
da palavra) das dez categorias, percorrendo a extensão
inteira dos gêneros. Assim, seriam transcendentais a XXX
XXX própria qualidade de Ser, bem como os atributos de
Bom, Verdadeiro e Uno. Pode-se dizer de todos os entes
– ainda que de forma diferenciada, pois essas qualida-
des não se aplicam, segundo a teologia medieval, ao cri-
ador e às criaturas exatamente da mesma forma – que
são igualmente bons, verdadeiros e unos. Assim com-

UM
preendida, a noção de “transcendental”, ao contrário da

PLANO DE IMANÊNCIA PARA O CURRÍCULO


de “transcendente”, não faz, dessa forma, parte de ne-
nhuma oposição. Os transcendentais são simplesmente
uma categoria especial de atributos. Pode-se considerar
“transcendental”, aqui, como sinônimo de mais geral
ou de universal. É esse sentido de “transcendental”, de
“mais geral” ou “mais abrangente”, que provavelmente
está na origem do emprego do conceito de “transcen-
dental” na filosofia crítica de Kant. Talvez se possa fa-
zer, aqui, uma distinção entre os adjetivos “transcen-
dente” e “transcendental”. Enquanto o primeiro está
vinculado à oposição transcendente-imanente, o segun-
do simplesmente qualifica aquilo que é um “transcen-
77

dental” (os transcendentais são transcendentais). Se acei-


tamos essa distinção, “transcendente” não é
propriamente sinônimo de “transcendental”, na medi-
da em que as duas palavras remetem a campos semânti-
cos distintos. Finalmente, como já mencionado, em
Kant aparecem os dois termos: transcendental e trans-
cendente; o primeiro como adjetivo e o segundo como
substantivo, de uma forma que dificilmente se pode
ver qualquer relação entre os dois. Enquanto “transcen-
dental” se aplica às condições a priori de todo tipo de
conhecimento, não conservando, assim, nada do sentido
teológico de “transcendental” (e é isso que, precisamen-
te, permite que Deleuze caracterize seu “método” como
“empirismo transcendental”), “transcendentes” são aque-
les objetos que estão além do entendimento, que não
podem ser mesmo humanamente conhecidos, aproxi-
mando-se, assim, da noção de “transcendentais” (o Ser,
o Bom, o Verdadeiro, o Uno), de origem aristotélica.
Para voltar a Deleuze, uma filosofia que não recorre a
qualquer tipo de essência, mas, em vez disso, que re-
corre à noção de multiplicidade, só podia ser uma filo-
sofia da imanência. Há invenção, há criação, há produ-
ção, há transformação, há devir. Mas nesses “atos de
DE ESCRITA

passagem” não intervém nenhum fator que seja exteri-


or àquilo que passa por essas metamorfoses. Aquilo que
LINHAS

devém, aquilo a partir do qual o que devém devém e o XXXX


que faz com que o devém devenha pertencem, todos, a
um só e mesmo plano. O mundo da imanência é um
mundo achatado, sem hierarquias, sem uma dimensão
extra (as “n” dimensões disso aqui embaixo, mais uma,
78

a lá de cima). No mundo da imanência se olha para o


lado, para os lados, nunca para cima. Conceber o mun-
do de forma imanente é uma grande aventura. Não há
nenhum recurso externo ao qual recorrer. É por isso
que Deleuze fala da necessidade de se traçar um plano
de imanência. Não se trata de um plano feito de obje-
tivos, finalidades, propósitos, que funcionem como uma
outra espécie de transcendência. É um plano, geomé-
trico, um corte na multiplicidade, um plano que corta
um espaço multidimensional, mas não um corte que saia
da multiplicidade. Um plano fixo, o que quer dizer a
mesma coisa que imanente, pois um plano de imanên-
cia não é parte de uma seqüência de esferas hierarqui-
zadas, não há um extraplano: é só ele mesmo, fixado
aqui. Um plano de imanência não organiza, não serve
para organizar, não é um plano de organização. Um
plano de imanência é para se orientar, é um plano de

UM
orientação. Num mundo que remete ao transcendente,

PLANO DE IMANÊNCIA PARA O CURRÍCULO


é fácil. O transcendente é quem dá as coordenadas. Mas
num mundo imanente, feito de multiplicidades, de mo-
vimentos e de velocidades, de fluxos e de intensidades,
estamos entregues à nossa própria sorte. É por isso que
precisamos de um plano de imanência. Para pensar, para
se comportar, para experimentar, para intervir. Temos
que nos virar sozinhos. Isto é, com a ajuda de um plano
de imanência que, por ser imanente, precisa ser traçado.
Todo mundo precisa de um plano de imanência. Não
pra sempre. Nem um que seja único. Pois aí já viraria
transcendental, estratificado. Mas não dá pra viver sem
um. No pensamento, na vida, na política. A necessidade
79

de traçar um plano de imanência é uma conseqüência


da necessidade de ter que se virar sozinho.

9
Do devir – Os antigos, tirando talvez Heráclito, tinham
horror ao devir. Devir, em última análise, significa “dei-
xar de ser” – deixar de ser alguma coisa para se tornar
outra. E para deixar de ser é preciso passar por um está-
gio que eles consideravam inadmissível: não ser. Por-
que o “não ser”, o que não é, simplesmente não existe.
É impensável. Na ontologia das essências, das formas
ideais, do hilemorfismo, da diferença específica, não
tem lugar para o devir. O devir é, aí, uma dor-de-
cabeça. Já para uma ontologia da multiplicidade, como
a de Deleuze, é tudo o contrário. É o ser da concepção
tradicional que é, aqui, impossível. Não há nada, abso-
lutamente nada, que “seja”, no sentido de que esteja
definitivamente formado, nem mesmo aquilo que, na
ontologia deleuziana, poderia dar essa impressão, isto
é, as entidades do domínio do atual (o virtual e o atual
coexistem). É que a multiplicidade (intensiva, virtual)
não é apenas feita de forças, vetores, intensidades. Na
medida em que é feita de relações diferenciais, de infi-
DE ESCRITA

nitesimais, uma multiplicidade está aberta a toda espé-


cie de combinações, de misturas, de adjunções. É uma
LINHAS

grande sopa pré-biótica de onde tudo pode surgir. A


multiplicidade não é apenas virtual, ela é também mi-
croscópica, molecular. O molecular, o microscópico, a
unidade infinitesimal, é aquilo que ainda não se estra-
tificou, que ainda não se solidificou, que ainda não se
80

cristalizou, que ainda está aberto a todo tipo de possi-


bilidades: o mundo do in-formado. Ele se opõe ao molar
(um agregado de moléculas), ele se opõe àquilo que se
grudou, se colou, se estratificou, às unidades macros-
cópicas que constituem o mundo do já formado. O mo-
lecular é gel, é fluido, é gasoso. O molar é sólido, é
rochoso, é maciço. É, pois, no terreno das multiplici-
dades intensivas que todo devir é possível. Estamos fa-
lando do devir não como a operação de “deixar de ser
uma coisa para ser outra”, mas da operação de “deixar o
estado de ser uma coisa para voltar para o estado de ainda
não ser uma”. O devir, mesmo que acabe terminando
no atual, no espacial, na extensão, no molar, só pode
começar no virtual, no espaciotemporal, na intensão, no
molecular, e sempre tentando regressar a esse estado.
Temos aí uma primeira pista de conduta. Para devir, é
preciso remontar ao virtual, à multiplicidade intensiva.

UM
Para sair do ponto é preciso deixar-se conduzir pelas

PLANO DE IMANÊNCIA PARA O CURRÍCULO


linhas fluidas e gasosas da multiplicidade. Não é dor-
mindo no ponto que se faz um devir. Para fazer a mul-
tiplicidade, é preciso perder o ponto. É por isso que,
para Deleuze, o devir é sempre um devir-minoritário.
Não porque o minoritário seja o justo, o bom, o corre-
to. Não há lugar, aqui, para idéias justas, nem para o
politicamente correto. “Justo uma idéia”, o que signifi-
ca que o elogio do devir-minoritário não se faz pela via
moral, mas pela via ontológica. O devir-minoritário é
desejável simplesmente porque é o minoritário que, cor-
rendo por fora, ainda é multiplicidade intensiva, ainda
é molecular, ainda é pura fluidez e flexibilidade. É o
81

devir-minoritário que é uma multiplicidade intensiva.


É dali que pode surgir o novo e o imprevisível. Mas
tão-somente na medida em que permanecer minoritá-
rio. Não há devir-majoritário, mas uma minoria pode
facilmente se tornar uma maioria e perder sua capaci-
dade de devir-minoritário. Como sempre, na ontologia
deleuziana não há pólos fixos. E não há nenhum outro
conceito que exprima mais a centralidade da passagem,
do trânsito, da transitoriedade, na ontologia deleuzia-
na, que o de devir. O devir é o princípio de conduta
que é a conseqüência lógica da ontologia deleuziana.
“Há uma figura universal da consciência minoritária,
como devir de todo o mundo, e é esse devir que é cria-
ção. [...] Essa figura é precisamente a variação contí-
nua, como uma amplitude que não cessa de transpor,
por excesso e por falta, o limiar representativo do pa-
drão majoritário. [...] É a variação contínua que cons-
titui o devir minoritário de todo o mundo” (MP, v. 2,
p. 53). O devir vai sempre na direção inversa da ten-
dência à estratificação, aos processos molares, à maté-
ria-já-formada, às maiorias: “[...] não entramos num
devir-Homem, uma vez que o homem se apresenta
como uma forma de expressão dominante que pretende
DE ESCRITA

impor-se a toda matéria, ao passo que mulher, animal


ou molécula têm sempre um componente de fuga que se
furta à sua própria formalização. [...] O devir está sem-
LINHAS

pre ‘entre’ ou ‘no meio’[...]” (DELEUZE, 1997, p. 11).

8
82

Da conduta ou da vida não-fascista – A univocidade


do ser: o princípio ontológico, que Deleuze deriva de
Duns Scotus, e que é, juntamente com o de imanência,
fundamental para o desenvolvimento da noção de “di-
ferença em si”. Declarar-se a favor da univocidade sig-
nifica romper com todo privilégio concedido às quali-
dades de um ser superior ao qual as qualidades dos
seres inferiores estariam ligadas apenas por algum prin-
cípio de analogia ou de proporcionalidade. Sem uni-
vocidade, não há imanência. Sem as duas, não há a
“diferença em si”. É pela univocidade que a ontologia
deleuziana se aplica tanto ao reino animado quanto ao
inanimado, tanto ao reino animal e vegetal quanto ao
mineral, tanto ao “propriamente” animal quanto ao hu-
mano. Mas é um privilégio do humano escolher como se
conduzir no mundo, escolher como intervir no mundo.
A ética e a política são privilégios do humano. E é para
uma ética e para uma política que se dirige grande par-

UM
te do pensamento de Deleuze. Na medida em que, po-

PLANO DE IMANÊNCIA PARA O CURRÍCULO


liticamente, a ontologia de Deleuze leva-o à descrença
nas unidades sociais molares (instituições, estado, par-
tido), boa parte de sua política está concentrada não no
indivíduo (do contrário, ele não colocaria tanta ênfase
nos agenciamentos), mas em formas de conduta pesso-
al (com todas as cautelas colocadas nesse adjetivo, dada,
por outro lado, a ênfase de Deleuze na “impessoalida-
de” e na “despersonalização”). Será, talvez, estranho, num
campo como o da educação, que se concentrou, sobre-
tudo, na crítica sociológica da escola, numa análise soci-
al da educação (o que, fundamentalmente, significa
descrever como a educação é, deixando sempre implíci-
83

ta a questão do que ela “deve ser” – o “dever ser” era, aí,


simplesmente um resultado da remoção dos elementos
espúrios que a tornavam capitalista, machista, sexista...),
falar em conduta, em ética, em como se conduzir. Mais
escandaloso ainda será falar em conduta individual, em
conduta pessoal. Mas sempre ressaltando que esse “in-
dividual” e esse “pessoal” remetem, por outro lado, a um
campo transcendental impessoal, é impossível deixar de
observar, em um livro como Mil platôs, por exemplo, os
constantes apelos a se levar um determinado tipo de
vida. É que a ontologia e o pensamento não se separam,
aqui, da conduta, da vida. Em Mil platôs, temos, logo
no início, um slogan que ressoa por todo o livro: “É
preciso fazer o múltiplo”. O pensamento de Deleuze
é para a vida, é para levar para a vida, é para a vida que
se leva, é para levar uma vida. É por isso que há aí
tantos imperativos ou tantos infinitivos que funcio-
nam como imperativos. (O platô 3, “Geologia da mo-
ral”, que traz, já no título, uma palavra que remete à
conduta, abandona os imperativos para mostrar uma
conduta exemplar, um exemplo de “boa” conduta: a do
excêntrico Professor Challenger. Ser, fazer, como o Pro-
fessor Challenger, poderia ser uma máxima deleuzia-
DE ESCRITA

na. Sua malsucedida conferência termina, curiosamen-


te, por uma bem-sucedida operação de construção de
LINHAS

um Corpo sem Órgãos!). Esses imperativos não são,


entretanto, os de um juízo moral que separa o bem do
mal, nem tampouco critérios de uma razão crítica que
separa as proposições verdadeiras das falsas. Trata-se,
sempre, em todas as variantes, de um apelo à imanên-
84

cia, de um apelo a se prestar atenção à multiplicidade,


de um apelo a fazer o caminho de volta ao meio fluido
do virtual. Liquifazer-se. Desmanchar-se. Desinte-
grar-se. Gelificar-se. Voltar ao estado de intensidade
zero que caracteriza o campo absolutamente aberto
de todas as possibilidades, o campo em que podemos,
ainda, ser qualquer coisa. Tornar-se um corpo sem
órgãos. Construir para si um corpo sem órgãos. É essa,
no fundo, a única “regra” de conduta da ética deleu-
ziana. Virar um corpo absolutamente desterritoriali-
zado, descodificado, desorganizado, des-hierarquizado.
Poderíamos fazer uma coleção, sobretudo em Mil pla-
tôs, dos inúmeros slogans que se reduzem sempre a
isso: remontar ao virtual, entregar-se à multiplicidade,
deixar-se levar pela multiplicidade, contra-atualizar-se,
contra-efetuar-se, envolver-se num processo de varia-
ção contínua. Por exemplo. “Seguir sempre o rizoma

UM
por ruptura, alongar, prolongar, revezar a linha de fuga,

PLANO DE IMANÊNCIA PARA O CURRÍCULO


fazê-la variar” (MP, v. 1, p. 20). “Conjugar os fluxos
desterritorializados” (MP, v. 1, p. 20). “Partir do meio,
pelo meio, entrar e sair, não começar nem terminar”
(MP, v. 1, p. 37). “Ninguém faz amor com amor sem
constituir para si, sozinho, com outro ou com outros,
um corpo sem órgãos” (MP, v. 1, p. 43). “Estar na
periferia, manter-se ligado por uma mão ou um pé...”
(MP, v. 1, p. 47). “O que quer dizer amar alguém? É
sempre apreendê-lo numa massa, extraí-lo de um gru-
po [...]; e depois buscar suas próprias matilhas, as mul-
tiplicidades que ele encerra e que são talvez de nature-
za completamente diversa. Ligá-las às minhas, fazê-las
85

penetrar nas minhas e penetrar as suas” (MP, v. 1, p.


49). Devir-minoritário, gaguejar na própria língua,
construir para si um corpo sem órgãos: tudo se resume
a fazer a multiplicidade. “Gaguejar é fácil, mas ser gago
da própria linguagem é uma outra coisa, que coloca em
variação todos os elementos lingüísticos, e mesmo os
elementos não-lingüísticos [...]. É aí que o estilo cria a
língua” (MP, v. 2, p. 42). “Desestratificar, se abrir para
uma nova função, diagramática. [...] Fazer da consciên-
cia uma experimentação de vida, e da paixão um cam-
po de intensidades contínuas, uma emissão de signos-
partículas. Fazer o corpo sem órgãos da consciência e
do amor. [...] Dessubjetivar a consciência e a paixão.
[...] Ser gago de linguagem, estrangeiro em sua pró-
pria língua” (MP, v. 2, p. 90). “Experimente ao in-
vés de significar e interpretar! Encontre você mesmo
seus lugares, suas territorialidades, seu regime, sua li-
nha de fuga!” (MP, v. 2, p. 96). “Trata-se de criar um
corpo sem órgãos ali onde as intensidades passem e fa-
çam com que não haja mais nem eu nem outro” (MP,
v. 3, p. 18). “Desfazer o organismo nunca foi matar-se,
mas abrir o corpo a conexões que supõem todo um agen-
ciamento, circuitos, conjunções, superposições e limia-
DE ESCRITA

res, passagens e distribuições de intensidade” (MP, v. 3,


p. 22). Agenciamentos. É disso que, antes de chegar à
política, precisamos tratar.
LINHAS

7
Dos agenciamentos – “Agenciamento” é, em portugu-
86

ês, um neologismo cunhado, muito apropriadamente,


pelos tradutores de Mil platôs para traduzir a palavra
francesa “agencement”. Nessa passagem, ocorre, de for-
ma infeliz, mas compreensível, como é comum na cri-
ação de palavras eruditas a partir de uma outra língua,
que aquilo que era, na língua original, uma palavra or-
dinária, “concreta”, do uso cotidiano da língua (“metá-
fora” é, originalmente, em grego, apenas “meio de trans-
porte”, no sentido mais ordinário do termo; “aporia” é,
na mesma língua, um simples “beco sem saída”; “subs-
tância”, em seu sentido filosófico, é a tradução usual do
grego “ousia”, designando, no uso cotidiano, um “bem
de raiz”, como um terreno ou uma casa), vira um termo
esotérico, misterioso, abstrato. Segundo o dicionário
Petit Robert, “agencement” é “ação, maneira de agencer;
arranjo resultante de uma combinação”. “Agencer”, por
sua vez, quer dizer “arranjar, combinando elementos,
organizar um conjunto por uma combinação de ele-

UM
mentos”. Um dos exemplos de “agencement” fornecidos

PLANO DE IMANÊNCIA PARA O CURRÍCULO


pelo Petit Robert não podia ser mais ordinário, concre-
to e cotidiano: o do arranjo de um apartamento. No
léxico de Deleuze e Guattari, sobretudo no de Mil pla-
tôs, “agenciamento” não passa mesmo disso: o arranjo, a
combinação de elementos heterogêneos, díspares, fa-
zendo surgir algo novo, que não se pode resumir a ne-
nhum dos elementos isolados que o compõem. E o que
é isso senão uma multiplicidade? Agenciamento pode-
ria ser entendido, então, simplesmente como um outro
nome para “multiplicidade”, com o acréscimo, talvez,
de uma dose maior de atividade, de intervenção, de nos-
sa parte. Os agenciamentos seriam, pois, a resposta ao
87

constante apelo deleuziano para se “fazer multiplicida-


de”. Agenciar: fazer multiplicidade. É o pragmatismo
de Deleuze no seu mais alto grau. Combinar. Conju-
gar. Misturar. Mesclar. Ajuntar. Reunir. Agrupar.
Amontoar. Somar. Enxamear. Conectar. Ligar. Com-
por. Articular. As composições, as combinações, os
agenciamentos se distinguem dos processos de organi-
zação, de estratificação, de solidificação, mas mantêm
relações de parentesco com os planos de imanência, com
os planos de consistência, com os corpos sem órgãos.
Mas isso de fazer agenciamentos talvez não seja assim
tão simples. Deleuze e Guattari falam de “agenciamen-
tos” ao longo de todo o livro que mais estamos seguin-
do aqui, Mil platôs. Eles tentam até mesmo “defini-lo”
algumas vezes: “Um agenciamento é precisamente este
crescimento das dimensões numa multiplicidade que
muda necessariamente de natureza à medida que ela
aumenta suas conexões” (MP, v. 1, p. 17); “Denomi-
naremos agenciamento todo conjunto de singularidades
e de traços extraídos do fluxo – selecionados, organiza-
dos, estratificados – de maneira a convergir (consistên-
cia) artificialmente e naturalmente” (MP, v. 5, p. 88).
Mas como ocorre com tantos outros conceitos, uma de-
DE ESCRITA

finição quase nunca coincide com a outra. Ou há sem-


pre uma complicação adicional que nos obriga a repen-
sar o que pensávamos haver compreendido. Uma
LINHAS

primeira complicação: de que elementos, precisamen-


te, é feito um agenciamento? De “coisas”, no sentido
ontológico clássico, isto é, de matéria já formada (na
terminologia deleuziana), ou de fluxos, intensidades,
88

linhas? Em outras palavras, os agenciamentos se pas-


sam no domínio do atual ou no domínio do virtual?
Ou, na terminologia equivalente e mais utilizada em
Mil platôs, no nível dos estratos ou no nível dos planos
de consistência, das máquinas abstratas e dos corpos
sem órgãos? Ou, ainda, no interior de multiplicidades
extensivas ou no interior de multiplicidades intensivas?
Provavelmente, nem uma coisa nem outra. Talvez seja
melhor pensar nos agenciamentos como uma tentativa
de contra-efetuação, de contra-atualização, de contra-
diferenciação. E aí já não importa tanto saber de quais
elementos um agenciamento é formado, mas se ele, ao
se formar, vai na contracorrente da estabilização, da
solidificação, da estratificação. Importa saber se ele li-
bera os fluxos, as intensidades, as correntes de energia
que são a matéria-prima das multiplicidades intensivas
ou se, ao contrário, ele as prende, as captura, as conge-
la. Num caso, os agenciamentos vão na direção do vir-
tual, da multiplicidade intensiva, do plano de compo-

UM
PLANO DE IMANÊNCIA PARA O CURRÍCULO
sição, do corpo sem órgãos; no outro, eles vão na direção
do atual, da multiplicidade extensiva, dos estratos.
Num caso, eles seguem o curso da variação contínua;
no outro, o da fixação e da paralisia. “[...] o problema é
o de fazer bascular o agenciamento mais favorável: fazê-
lo passar, de sua face voltada para os estratos, à outra
face voltada para o plano de consistência ou para o cor-
po sem órgãos” (MP, v. 2, p. 90). Como em tudo o
mais, nada é simples na ontologia deleuziana. Nem todo
agenciamento é “bom”. Nenhum agenciamento é ne-
cessariamente desejável. Há até mesmo agenciamentos
de poder: “[...] não há significância sem um agencia-
89

mento despótico, não há subjetivação sem um agencia-


mento autoritário, não há mixagem dos dois sem agen-
ciamentos de poder [...]” (MP, v. 3, p. 49). São
justamente aqueles que puxam para “baixo”, indo na
direção dos estratos. Esses estancam o fluxo. Se você
entrar num desses, você está perdido. Em Mil platôs,
Deleuze e Guattari dão, em variados contextos, muitos
exemplos de agenciamentos. Como sempre, os concei-
tos deleuzianos apenas parecem demasiadamente abs-
tratos; eles se referem, na verdade, a situações e casos
muito concretos. Podemos começar com o exemplo mais
citado, aquele que aparece logo no primeiro platô: o agen-
ciamento da vespa e da orquídea. Deleuze e Guattari
não utilizam, aqui, o termo “agenciamento”. Eles falam
de “rizoma”, mas é a mesma coisa: “A vespa e a orquídea
fazem rizoma em sua heterogeneidade” (MP, v. 1, p. 18).
A descrição do agenciamento “vespa-orquídea”, nessa
passagem do platô 1, é ilustrativa da precedência que
Deleuze concede, em sua ontologia, aos elementos ex-
tra-subjetivos, aos elementos impessoais, aos elementos
pré-individuais, em suma, às multiplicidades intensi-
vas e aos agenciamentos. O agenciamento é, constituti-
vamente, sempre primeiro relativamente aos elementos
DE ESCRITA

de que é formado. Poder-se-ia dizer que não são os


elementos que formam o agenciamento, mas que é o
LINHAS

agenciamento que forma os elementos que nele entram.


Nada sai de um agenciamento do jeito que entrou. O
agenciamento faz devir. No caso da vespa e da orquí-
dea: “A orquídea se desterritorializa, formando uma
imagem, um decalque de vespa; mas a vespa se reterri-
90

torializa sobre esta imagem. A vespa se desterritoriali-


za, no entanto, tornando-se ela mesma uma peça no
aparelho de reprodução da orquídea; mas ela reterrito-
rializa a orquídea, transportando o pólen” (MP, v. 1,
p. 18). Outro exemplo notável é o que se refere a agen-
ciamentos em que entra a tecnologia. Neste caso, espe-
cífico, Deleuze e Guattari estão falando de armas e fer-
ramentas: “O primado muito geral do agenciamento
maquínico e coletivo sobre o elemento técnico vale em
toda parte, tanto para a ferramenta como para as armas.
As armas e as ferramentas são conseqüências, nada além
de conseqüências” (MP, v. 5, p. 77). O exemplo mere-
ce ser citado mais longamente: “Por toda parte é o
agenciamento que constitui o sistema de armas. A lança
e a espada só existiram desde a idade do bronze graças a
um agenciamento homem-cavalo, que prolonga o pu-
nho e o venábulo, e que desqualifica as primeiras armas

UM
de infantaria, martelo e machado. O estribo impõe, por

PLANO DE IMANÊNCIA PARA O CURRÍCULO


sua vez, uma nova figura do agenciamento-cavalo, con-
duzindo a um novo tipo de lança e novas armas [...].
Ora, a situação é exatamente a mesma para a ferramen-
ta: também nesse caso tudo depende de uma organiza-
ção do trabalho, e de agenciamentos variáveis entre ho-
mem, animal e coisa” (MP, v. 5, p 78). Mas, no fundo,
os agenciamentos talvez só dêem “cola”, só ganhem con-
sistência, só formem um plano de consistência, quando
colocam em jogo não as “coisas” extendidas do domínio
do atual, coisas tais como a vespa e a orquídea, o estribo
e o pé do cavaleiro, mas as relações entre seus respecti-
vos afectos e respectivas variações de velocidade, quan-
91

do fazem interagir os fluxos e as correntes “invisíveis”


das multiplicidades intensivas que pairam sobre o campo
do atual como uma abertura para estratégias de contra-
efetuação e de contra-atualização. É aí que se produ-
zem processos de individuação que não vêm de essên-
cias, nem remetem a essências, mas que secretam sua
própria essência, irredutível a qualquer elemento trans-
cendental: hecceidades, acontecimentos. Singulares.
Únicos. Cada um deles não pertence a nenhuma espé-
cie, cada um deles é sua própria espécie: “Ele [o cavalo
do pequeno Hans] não é o membro de uma espécie,
mas um elemento ou um indivíduo num agenciamento
maquínico: cavalo de tração-diligência-rua. Ele é defi-
nido por uma lista de afectos, ativos e passivos, em fun-
ção desse agenciamento individuado do qual ele faz
parte [...]. Esses afectos circulam e transformam-se no
seio do agenciamento: o que ‘pode’ um cavalo (MP,
v. 4, p. 43)”. São esses agenciamentos que produzem
verdadeiras fulgurações, surpreendentes instantâneos na
monotonia cinza daquela metade-do-mundo da maté-
ria-já-formada: “Uma estação, um inverno, um verão,
uma hora, uma data têm uma individualidade perfeita,
à qual não falta nada, embora ela não se confunda com
DE ESCRITA

a individualidade de uma coisa ou de um sujeito. São


hecceidades, no sentido de que tudo aí é relação de
LINHAS

movimento e repouso entre moléculas ou partículas,


poder de afetar e ser afetado” (MP, v. 4, p. 43). É aqui
que formigam os devires. Mas, de novo, cuidado! Isso
ainda não nos garante nada. Ainda há a possibilidade
de se entrar num agenciamento fascista, de se fazer um
92

agenciamento despótico. O fascista em nós também


agencia, o fascista em nós é, também ele, o resultado de
um agenciamento. É preciso convocar Spinoza para es-
tabelecer algum critério, imanente, por supuesto, para
distinguir os agenciamentos desejáveis dos indesejáveis,
os agenciamentos “bons” dos agenciamentos “ruins”. A
questão toda está em determinar, nos ensina o Spinoza
da Ética (III, P2, Escólio), “o que pode um corpo, [...]
o que o corpo pode fazer e o que não pode”. No caso,
perguntaríamos, pois: o que pode um agenciamento?
Ele aumenta ou diminui nossa potência de agir?
Tornamo-nos mais fortes ou mais fracos? Ele nos em-
purra em direção aos estratos, aos mecanismos de fixa-
ção e de paralisação, de solidificação e de espacializa-
ção, de repetição do mesmo e do idêntico ou, ao
contrário, ele nos puxa para a zona das multiplicidades
virtuais e das variações contínuas, para o plano de con-

UM
sistência e para o domínio dos devires, única zona onde

PLANO DE IMANÊNCIA PARA O CURRÍCULO


tudo o que conta é a invenção, a criação e a construção?

6
Do Corpo sem Órgãos – Nada parece mais esotérico,
talvez, na escrita deleuziana, que essa expressão, toma-
da de empréstimo a Antonin Artaud (claro que não
sem os manjados truques de mão que lhe dão direito, a
Deleuze, de ingresso na corporação dos mágicos). Cor-
po sem Órgãos? Como pode ser uma coisa dessas? Pa-
rece um oximoro. É um oximoro. E é justamente dessa
aparente impossibilidade que Deleuze extrai toda a efi-
93

cácia de seu passe de mágica. É ao privá-lo daquelas


que parecem ser suas partes essenciais que se obtém o
máximo do corpo. Por outro lado, nada é menos esoté-
rico que um corpo, ainda que sem órgãos. Aqui, de
novo, Deleuze aposta é no concreto. Mil platôs pode ser
lido, se quiserem, como um tratado esotérico, tantas
são as palavras “estranhas” aí introduzidas ou retoma-
das. Mas bem sensíveis, bem concretas, bem palpáveis,
bem materiais é o que elas todas são: rizoma, território,
máquina (ainda que) abstrata, máquina de guerra, ri-
tornelo, linha de fuga, estratos. Tudo é muito prático
na pragmática de Deleuze. E a tarefa de construção de
um Corpo sem Órgãos está no centro dessa pragmáti-
ca: “A esquizo-análise não tem outro objeto prático: qual é
o seu corpo sem órgãos? quais são suas próprias linhas,
qual mapa você está fazendo e remanejando, qual linha
abstrata você traçará, e a que preço, para você e para os
outros? [...] Você racha? Você rachará? Você se dester-
ritorializa?” (MP, v. 3, p. 77, grifos no original). O
Corpo sem Órgãos é, pois, a desterritorialização abso-
luta. A despossessão, a despersonalização, a des-subje-
tivação absoluta. Nenhuma organização. Nenhuma
hierarquia. Nenhuma estrutura. Pura multiplicidade:
“Um corpo sem órgãos não é um corpo vazio e despro-
DE ESCRITA

vido de órgãos, mas um corpo sobre o qual o que serve


de órgãos [...] se distribui segundo movimentos de
LINHAS

multidões, segundo movimentos brownóides, sob for-


ma de multiplicidades moleculares” (MP, v. 1, p. 43).
Começar do zero. Embora seja um campo de pura in-
tensidade, ela é, aqui, zerada, para poder se tornar qual-
quer outra coisa. É aqui que tudo é ainda possível. É
94

aqui que tudo deveria permanecer sempre possível. É


aqui que se começa. É aqui que se deve terminar. O
Corpo sem Órgãos é, nesse sentido, um ideal. De con-
duta. De política. É no Corpo sem Órgãos que a pro-
dutividade do desejo alcança o seu pico. “Um corpo
glorioso”, adjetiva-o Deleuze (1998), no livro (Lógica
do sentido), em que provavelmente utiliza a expressão
pela primeira vez, “um organismo sem partes que faz
tudo por insuflação, inspiração, evaporação, transmissão
fluídica” (p. 91). Assinalada por Deleuze em nota de ro-
dapé, nessa mesma passagem, é de Artaud a qualificação:
“Nada de boca, de língua, de dentes, de laringe, de esô-
fago, de estômago, de ventre, de ânus. Eu reconstrui-
rei o homem que sou” (p. 91). E Deleuze acrescenta,
entre parênteses: “O corpo sem órgãos é feito só de
osso e de sangue” (p. 91). O Corpo sem Órgãos coin-
cide com a potência máxima, com a vitalidade máxima

UM
da vida. O Corpo sem Órgãos está no centro da valori-

PLANO DE IMANÊNCIA PARA O CURRÍCULO


zação que Deleuze faz de uma “vida não orgânica” – “a
prodigiosa idéia de uma Vida não orgânica” (MP, v. 5,
p. 94). O que significa não uma vida sem vida, mas a
vida de um Corpo sem Órgãos, uma vida virada não
para os processos de estratificação, de territorialização e
de organização, mas uma vida voltada para os processos
de consistência, de desterritorialização e de desorgani-
zação. Corpos sem Órgãos são corpos “atravessados pela
intensa vitalidade que desafia os órgãos e desfaz a orga-
nização” (DELEUZE, 1997, p. 149). O Corpo sem Ór-
gãos é a “anarquia coroada” de Deleuze, a des-organi-
zação produtiva, afirmativa. Fazer para si um Corpo
95

sem Órgãos implica, antes de mais nada, desfazer-se


como matéria pronta, como multiplicidade numérica,
para se abrir, a cada vez, de forma sempre renovada,
para os riscos e os prazeres do ainda-por-se-fazer, do
incessante devir, do eterno retorno, para se refazer, en-
fim, como multiplicidade intensiva. Quando se fala de
“Corpo sem Órgãos” não se trata, nunca, de matéria e de
forma, mas de composição de velocidades e de afectos:
“O corpo não é questão de objetos parciais, mas de velo-
cidades diferenciais” (MP, v. 3, p. 36). A noção de “Cor-
po sem Órgãos” coloca em questão a idéia de “formação”
que está no centro de quase todas as “filosofias” da
educação (e do currículo!), que por sua vez é central
para a idéia mais ampla de “desenvolvimento huma-
no”. Talvez fosse melhor, para uma filosofia da edu-
cação e do currículo que levasse a sério a idéia de “Cor-
po sem Órgãos”, falar não em “formação, mas em
“de-formação”. É nessa “de-formação”, aliás, que a
pintura das Figuras de Bacon cruza com o teatro da
crueldade de Artaud: “[...] Bacon encontra Artaud em
muitos pontos: a Figura é precisamente o corpo sem
órgãos (desfazer o organismo em proveito do corpo, o
rosto em favor da cabeça); o corpo sem órgãos é carne e
DE ESCRITA

nervo [...]” (DELEUZE, 2002, p. 48). Educar poderia


ser isto: “de-formar”. Em vez de parâmetros curricula-
res, distribuir (des-organizadamente, por favor) kits
LINHAS

com “instruções” sobre “como construir seu corpo sem


órgãos”. O “Corpo sem Órgãos” tem tudo a ver com
aquelas noções que, em Deleuze, expressam, igual-
mente, a idéia de multiplicidade: plano de consistên-
96

cia, plano de imanência, devir, máquina de guerra.


Essas noções funcionam, muitas vezes, em Deleuze,
de forma equivalente: “[...] a reconstrução do corpo
como Corpo sem órgãos, o anorganismo do corpo, é
inseparável de um devir-mulher ou da produção de
uma mulher molecular” (MP, v. 4, p. 69); “O plano
de consistência é o corpo sem órgãos” (MP, v. 4, p.
60). Entre os apelos para se “fazer o múltiplo” e as
instruções sobre “como construir para si um corpo sem
órgãos” só existe uma diferença de grau de abstração.
Construir para si um corpo sem órgãos é fazer o múlti-
plo. (Mas existem, é claro, muitas outras maneiras de
fazê-lo). Um “Corpo sem Órgãos”, por outro lado, não
tem nada a ver com os estratos, as territorialidades, os
aparelhos de Estado, com o Juízo, com os tribunais de
qualquer natureza (DELEUZE, 1997, p. 150). O Juízo
organiza o corpo. O Juízo fixa o corpo. O Juízo finali-
za o corpo. O corpo como obra acabada. O que tem
que se acabar é justamente com o Juízo de Deus, como

UM
PLANO DE IMANÊNCIA PARA O CURRÍCULO
berrava Artaud (1977) ao final de sua “malograda” peça
radiofônica: “Podem me atar, se quiserem, /mas não há
nada mais inútil que um órgão. Quando tiverem feito
para si um corpo sem órgãos, /então vocês o terão livra-
do de todos os seus automatismos /e o terão devolvido à
sua verdadeira liberdade. Então vocês o terão ensinado
a dançar às avessas /como no delírio dos bailes popula-
res /e esse avesso será sua casa verdadeira” (ARTAUD,
1986, p. 161-2; tradução ligeiramente modificada).

5
97

Do estilo – Tradicionalmente, há uma oposição entre a


estilística e a retórica. Enquanto a segunda se concen-
tra nas “alterações” que se podem fazer no curso “nor-
mal” da língua para obter efeitos práticos (na oratória
jurídica, por exemplo), a primeira se preocupa com as
variações a que se pode submeter a língua para se obter
efeitos estéticos (na poesia, principalmente, e na litera-
tura em geral). Convencer, numa; provocar sentimen-
tos estéticos, na outra. O estilo é, assim, já na concep-
ção tradicional, uma ciência das “variações” tendo em
vista objetivos estéticos. Variar a língua é torná-la mais
“bela” para fazê-la comover. No centro da estilística está
justamente o estudo dos tropos (ou figuras de lingua-
gem) que, etimologicamente, pode-se traduzir com
uma certa liberdade, como “desvio”. A estilística ocu-
pa-se do estudo dos tropos de palavras, que seriam os
tropos propriamente ditos (a metáfora, a metonímia,
por exemplo), mas também dos tropos, num sentido
mais amplo, de construção ou sintaxe (a elipse, a ali-
teração, por exemplo) e dos tropos de pensamento (a
antítese, o eufemismo, a hipérbole, por exemplo). Es-
tamos falando, talvez, de um outro sentido de estilo,
entretanto, quando dizemos que alguém “tem estilo”
ou que alguém “tem um estilo”. Aqui, estamos nos re-
DE ESCRITA

ferindo à maneira peculiar, particular, pessoal, pela qual


alguém utiliza a língua para obter os efeitos desejados
LINHAS

(em geral, de ordem estética). Deleuze se preocupou


muito com a questão do estilo. E, embora tenha revira-
do essas duas acepções tradicionais de “estilo” para seus
próprios propósitos, ele conserva algo de ambas. Ao
definir o estilo como o processo pelo qual se submete a
98

língua a um processo de variação contínua, ele radicali-


za a noção de “tropos” entendida como desvio da se-
mântica, da sintaxe e da lógica “normais” da língua,
sem se afastar totalmente, entretanto, da concepção tra-
dicional de estilo. Por outro lado, a noção de estilo, por
estar associada à de variação contínua e, portanto, à de
multiplicidade, afasta-se totalmente de qualquer asso-
ciação com a noção tradicional de estética, relacionada
à obtenção do belo para efeitos de contemplação e frui-
ção pessoal. O estilo não tem nada a ver, aqui, com be-
letrismo. Escrever com estilo não é a mesma coisa que
escrever “bonitinho”. O estilo, na concepção deleuzia-
na, está mais para desagradar que para agradar. Escre-
ve-se, e escreve-se com estilo, para devir. O estilo está,
em Deleuze, muito mais ligado à política do que à es-
tética. Ele serve para submeter a língua a um processo
de variação contínua com vistas a transformar quem es-

UM
creve e quem lê. É a noção central de multiplicidade

PLANO DE IMANÊNCIA PARA O CURRÍCULO


(expressa aqui por meio de um de seus aspectos, o de
“variação contínua”) que liga, inseparavelmente, estilo,
pensamento, política e... vida. É por isso que o estilo
não é uma prerrogativa dos que escrevem literatura,
embora Deleuze admire aqueles que, na literatura, es-
crevam com um estilo que faça as palavras ressoarem
com as multiplicidades, que faça com que a escrita seja
uma multiplicidade. A filosofia, concebida simplesmen-
te como pensar, como criação de conceitos, tem neces-
sariamente um estilo. É porque o “estilo em filosofia
acompanha o movimento dos conceitos” que “os gran-
des filósofos são também grandes estilistas” (DELEUZE,
99

1992, p. 175; cf. p. 203). Como isso se aplica a De-


leuze, como filósofo, como estilista? Podemos come-
çar, talvez, por distinguir entre, de um lado, aquilo que
Deleuze disse sobre estilo e, de outro, o estilo que o
próprio Deleuze praticou. Sobre a primeira questão,
vários dos diversos livros de Deleuze estendem-se lon-
gamente sobre a noção de estilo. Proust e os signos tem
um capítulo inteiro, o 9, sobre estilo. A dobra é, em
grande parte, um livro sobre um estilo particular, o
barroco. Em Mil platôs, além de referências esparsas,
há determinados platôs que desenvolvem longamente a
noção de estilo. É o que ocorre, por exemplo, no platô 4,
no platô 10 e no platô 11. Vejamos, pois, com o auxílio
sobretudo desses platôs, mas também de referências re-
tiradas de outros livros, o que constitui um estilo para
Deleuze, para que serve o estilo na escrita e quais são as
conexões entre estilo, de um lado, e pensamento, políti-
ca e vida, de outro. De uma maneira bem geral, pode-se
dizer que o estilo, para Deleuze, consiste em submeter
constantemente a língua com que se escreve a uma ten-
são tal, a uma variação contínua tal, que ela acompanhe
sempre o contínuo movimento das multiplicidades com
as quais ela se conjuga. O estilo é, antes de tudo, aquilo
DE ESCRITA

que faz a língua fluir em ressonância com o fluxo da


vida. Quais são os aspectos “formais” de um tal estilo?
LINHAS

Embora encare o estilo como uma forma de experimen-


tação, Deleuze recusa aquelas espécies de experimenta-
ção que lançam mão de recursos que se poderia chamar,
talvez, de “extralinguísticos”, como a manipulação da xxxx
100

disposição tipográfica de um texto, por exemplo. De-


leuze não está totalmente isento desse tipo de prática.
Como assinala Tom Conley (1999, p. 252), “Mil pla-
tôs adere a um estrutura do tipo ‘emblema’, na qual
imagens inscritivas são colocadas abaixo dos títulos dos
capítulos, em diálogo com títulos-rébus (sobrescritos) e
enigmas (subscritos que, enganadoramente, tomam a
forma de um argumento ou de uma discussão no espa-
ço abaixo da imagem)”. Mas esses experimentos são
certamente modestos se comparados com os realizados
por Derrida, por exemplo, em livros como Glass. O cer-
to é que essa não é a via tomada por Deleuze, e ele o
declara explicitamente numa passagem em que não está
falando de estilo e sim de método; mas, aqui, o méto-
do é claramente o estilo: “Para o múltiplo, é necessá-
rio um método que o faça efetivamente; nenhuma as-
túcia tipográfica, nenhuma habilidade lexical, mistura
ou criação de palavras, nenhuma audácia sintática po-

UM
dem substituí-lo” (MP, v. 1, p. 34). De forma talvez

PLANO DE IMANÊNCIA PARA O CURRÍCULO


paradoxal, o estilo que convém ao múltiplo é, ao con-
trário, o da sobriedade, o da minimalidade, o da sutile-
za. Reduzir-se a si e a escrita a uma linha abstrata: não
é apenas uma questão de estilo ou de “estética”, mas de
vida, de ética e de política. “Que a escrita seja como a
linha do desenho-poema chinês, era o sonho de Kérou-
ac, ou já o de Virginia Woolf. Ela diz que é preciso
‘saturar cada átomo’ e, para isso, eliminar, eliminar tudo
o que é semelhança e analogia, mas também ‘tudo co-
locar’, eliminar tudo o que excede o momento, mas co-
locar tudo o que ele inclui [...]” (MP, v. 4, p. 73-4). A
101

citação de Virginia Woolf é suficientemente impor-


tante para ser retomada, com mais detalhes, em O que é
a filosofia: “Como tornar um momento do mundo du-
rável ou fazê-lo existir por si? Virginia Woolf dá uma
resposta que vale para a pintura ou a música tanto quan-
to para a escrita: ‘Saturar cada átomo’, ‘Eliminar tudo o
que é resto, morte e superfluidade’, tudo o que gruda
em nossas percepções correntes e vividas, tudo o que ali-
menta o romancista medíocre, só guardar a saturação que
nos dá um percepto’, [...], ‘Colocar aí tudo e contudo
saturar’” (DELEUZE e GUATTARI, 1997, p. 223). Mas o
estilo, para Deleuze, consiste, sobretudo, em torcer a
língua para fazê-la ressoar com o múltiplo, para voltar-
se para o lado do plano de consistência, do virtual, da
multiplicidade intensiva, do Corpo sem Órgãos. E para,
contrariamente, dar as costas aos estratos e a tudo aqui-
lo que faz da língua palavra-de-ordem. É justamente
porque a língua, no seu curso natural, é palavra-de-
ordem que ela precisa ser torcida. É porque a língua é
palavra-de-ordem que é preciso fazer gaguejá-la. É por-
que a língua é palavra-de-ordem que é preciso fazê-la
entrar em um devir-minoritário. E é por tudo isso que
o estilo é, fundamentalmente, uma questão de política.
O primeiro dos dois platôs lingüísticos (o quatro e o
DE ESCRITA

cinco), de Mil platôs, começa, de forma decepcionante


(oh!, Gilles, oh!, Félix), como qualquer bom tratado
LINHAS

estruturalista sobre a linguagem, ainda que temperado


pela pragmática de Austin, enfatizando o aspecto im-
positivo da língua. Para um filósofo que coloca as li-
nhas de fuga antes do poder, é um mal começo. Não
nos deve tampouco passar despercebido que o platô 4,
102

logo na primeira frase, invoca precisamente a palavra da


professora como o exemplo supremo da língua-como-
palavra-de-ordem: “A professora não se questiona quan-
do interroga um aluno, assim como não se questiona
quando ensina uma regra de gramática ou de cálculo.
Ela ‘ensigna’, dá ordens, comanda” (MP, v. 2, p. 11).
E mais adiante, uma frase que resume a noção de lin-
guagem desenvolvida nesse início de platô: “A lingua-
gem não é mesmo feita para que se acredite nela, mas
para obedecer e fazer obedecer” (MP, v. 2, p. 12).
Mas não nos apressemos. A surpresa estava reservada
para o final do platô. Aqui a linha de fuga retoma sua
precedência: “Mas se considerarmos o outro aspecto da
palavra de ordem, a fuga e não a morte, é evidente que
as variáveis entram então em um novo estado, que é o
da variação contínua” (MP, v. 2, p. 56). É quando se
faz a língua gaguejar, quando ela entra num devir-mi-
noritário, quando ela pega o máximo de conteúdo com

UM
um mínimo de matéria expressiva, que ela deixa de ser

PLANO DE IMANÊNCIA PARA O CURRÍCULO


palavra de ordem para seguir o caminho da linha de
fuga. E é para isso que serve um estilo. De novo, sem
estilo não há política, sem estilo não se faz política.
Sem estilo, ficamos sujeitos à face da língua voltada
para a palavra de ordem. “Assiste-se”, aqui, “a uma trans-
formação de substâncias e a uma dissolução das formas,
passagem ao limite ou fuga dos contornos, em benefí-
cio das forças fluidas, dos fluxos, do ar, da matéria, que
fazem com que um corpo ou uma palavra não se dete-
nham em qualquer ponto preciso. Potência incorpórea
dessa matéria imensa, potência material dessa língua.
103

Uma matéria mais imediata, mais fluida e ardente do


que os corpos e as palavras. [...] Os gestos e as coisas, as
vozes e os sons, são envolvidos na mesma ‘ópera’, arre-
batados nos efeitos cambiantes de gagueira, de vibrato,
de trêmulo e de transbordamento” (MP, v. 2, p. 57).
Isso anuncia, duplamente, um manifesto estilístico e
um manifesto político: “Existem senhas sob as palavras
de ordem. Palavras que seriam como que passagens,
componentes de passagem, enquanto as palavras de or-
dem marcam paradas, composições estratificadas, or-
ganizadas. A mesma coisa, a mesma palavra, tem sem
dúvida essa dupla natureza: é preciso extrair uma da
outra – transformar as composições de ordem em com-
ponentes de passagem” (MP, v. 2, p. 58-9). Que alívio
reencontrar, aqui, no final desse platô, o Deleuze que
afirma, uma e outra vez, que as linhas de fuga são pri-
meiras relativamente ao poder. Mas, qual é a prática de
estilo do próprio Deleuze, que tanto amou o estilo de
gente como Virginia Woolf, Kleist, Hölderlin, Beckett,
Kafka? A escrita de Deleuze gagueja? A escrita de De-
leuze entra em devires-minoritários? A escrita de De-
leuze tende para a linha abstrata da caligrafia chinesa?
Se há um livro que se aproxima, na prática, daquilo
que Deleuze fala sobre o estilo, é certamente Mil pla-
DE ESCRITA

tôs, assinalando uma verdadeira ruptura com o estilo


acadêmico e mais tradicional de seus livros anteriores. É
LINHAS

verdade que o Anti-Édipo já prenuncia essa mudança de


estilo. Impossível não ver uma radical mudança de esti-
lo num livro que começa assim: “Isto funciona por toda
parte: umas vezes sem parar, outras descontinuamente.
104

Isto respira, isto aquece, isto come. Isto caga, isto fode.
Mas que asneira ter dito o isto” (DELEUZE E GUATTARI,
1966, p. 7). É o próprio Deleuze quem “denuncia” o
estilo mais tradicional de seus livros anteriores, embora
já pressentindo aí que uma teoria da multiplicidade exi-
gia uma escrita da multiplicidade: “Comecei então a fa-
zer dois livros nesse sentido vagabundo, Diferença e repe-
tição, Lógica do sentido. Não tenho ilusões: ainda estão
cheios de um aparato universitário, são pesados, mas tento
sacudir algo, fazer com que alguma coisa em mim se mexa,
tratar a escrita como um fluxo, não como um código” (DE-
LEUZE, 1992, p. 15). Mas é, certamente, em Mil platôs
que a escrita de Deleuze tenta acompanhar o movi-
mento da multiplicidade, como, outra vez, ele mesmo
diz: “Em Lógica do sentido tentei uma espécie de com-
posição serial. Mas Mil platôs é mais complexo: é que
‘platô’ não é uma metáfora; os platôs são zonas de vari-
ação contínua, são como torres que vigiam ou sobrevo-

UM
am, cada uma, uma região, e que emitem signos umas

PLANO DE IMANÊNCIA PARA O CURRÍCULO


às outras. É uma composição indiana ou genovesa. Pa-
rece-me que é aí que nos aproximamos mais de um
estilo, isto é, de uma politonalidade”. É justamente essa
multiplicidade sonora, em outro local traduzida em
multiplicidade visual, expressa em termos de cromatis-
mo (“Por uma lingüística cromática, que dê ao prag-
matismo suas intensidades e valores” (MP, v. 2, p.
41), que caracteriza o estilo de Mil platôs, mas talvez
fosse melhor dizer “os estilos de Mil platôs”. Deleuze
e Guattari submetem a escrita de Mil platôs a essa
variação contínua que eles dizem definir o estilo: “Tal-
105

vez seja, aliás, uma característica das línguas secretas,


das gírias, dos jargões, das linguagens profissionais, das
fórmulas repetidas em jogos infantis, dos gritos dos ven-
dedores, a de valerem menos por suas invenções lexicais
ou por suas figuras de retórica do que pela maneira pela
qual operam variações contínuas nos elementos da lín-
gua. São línguas cromáticas, próximas a uma notação
musical. Uma língua secreta não tem apenas uma cifra
ou um código escondido que funciona ainda por meio
de constante e forma um subsistema; ela coloca em estado
de variação o sistema das variáveis da língua pública” (MP,
v. 2, p. 41, grifos no original). E Mil platôs é isso: a
criação de uma língua secreta que nunca está onde pen-
samos que deveria estar, que nunca diz o que pensamos
que deveria dizer. Em Mil platôs somos jogados pra lá e
pra cá não apenas entre os diversos platôs, mas no interi-
or mesmo de cada um deles. Não é apenas que, pratica-
mente, cada platô tem um estilo diferente (que vai da
alucinante paródia do platô 3, “A geologia da moral”,
passando pelo estilo mais contido, mais convencional,
dos platôs lingüísticos, 4 e 5, “Postulados da lingüística”
e “Sobre alguns regimes de signo”, até o estilo “manifesto”
do platô 1, “Rizoma”, e o estilo “crítica” do platô 2, “Um só
ou vários lobos”), mas somos constantemente desestabi-
DE ESCRITA

lizados pelas diferentes perspectivas que cada conceito,


cada noção, cada idéia assume, de um platô para outro.
Não é secundário ao estilo praticado em Mil platôs, a
LINHAS

utilização do léxico e da sintaxe dos mais diferentes cam-


pos do conhecimento: da literatura à ciência, da mate-
mática às ciências biológicas, da filosofia à lingüística.
Os estilos de Mil platôs praticam, sem dúvida, a multi-
106

plicidade que pregam. Ou melhor, eles seguem o phyllum


da multiplicidade que descrevem, tal como o marcenei-
ro segue, na madeira, a direção na qual ela a conduz.
Podemos decifrar, agora, talvez, qual é o método para
“fazer o múltiplo”, apenas sugerido no primeiro platô. O
método é a escrita, é o estilo. Não há outro método. O
pensamento da multiplicidade não é, definitivamente,
uma ciência social. O pensamento da multiplicidade não
busca relações entre variáveis, não busca as relações de
causa e efeito que levam de um atual a outro atual. O
pensamento da multiplicidade busca subir do atual ao
virtual. E só há uma maneira de fazer isso: é por meio de
uma escrita, de um estilo, que simplesmente siga a sen-
da, o sulco, da multiplicidade. Agora, como, precisa-
mente, chegar a isso, é uma questão de arte. De experi-
mentação. Não há nenhuma fórmula que possa
substitui-la.

UM
4

PLANO DE IMANÊNCIA PARA O CURRÍCULO


Do pensar e do aprender – Deleuze não tem muita
paciência com as palavras “conhecimento”, “saber”, “co-
nhecer”. Elas quase não aparecem na sua obra, a não ser
para serem descartadas. Esses termos talvez estejam
demasiadamente comprometidos com a noção de re-
presentação que ele tanto detesta. Em contraste, “pen-
sar” e “pensamento” são peças essenciais do puzzle de-
leuziano. Para quem trabalha com educação e com
currículo, o grande risco consiste em confundi-las com
o tratamento psicológico que se dá aí à questão do pen-
samento. Evidentemente, o “pensar” de Deleuze, assim
107

como o seu “aprender”, não remetem a qualquer noção


psicológica. São termos estritamente filosóficos. Como
sabemos, o desenvolvimento do que, para Deleuze, sig-
nifica “pensar” está no centro de Diferença e repetição. No
capítulo 3, “A imagem do pensamento”, Deleuze se de-
dica a desmontar o que ele chama de “imagem dogmáti-
ca do pensamento”, aquela que se apóia na noção de re-
presentação. De acordo com essa imagem, pensar se
resume a uma operação de reconhecimento. Há algo lá
fora do qual faço uma imagem no meu pensamento, algo
que represento em meu pensamento. Toda a questão se
resume, nessa espécie de “pensar”, em determinar se há
correspondência ou adequação entre esses dois entes:
aquilo que é representado e a sua representação. A ver-
dade corresponde à resposta afirmativa; a falsidade, à
resposta negativa. Pensar é, pois, uma questão de ver-
dade ou de falsidade. O que Deleuze questiona nessa
“imagem do pensamento” é o fato de que o “fora” com
que o pensamento parece estar envolvido, aquilo que
seria o seu “outro”, não é, absolutamente, nenhum
“fora”, mas é o próprio “pensamento” como reflexo do
suposto fora. Essa imagem do pensamento está estrei-
tamente ligada à noção de essência, à pergunta “o que
é?”, àquela metade do mundo feita de matéria já for-
DE ESCRITA

mada. O pensamento, nessa visão, se resumiria a uma


operação tipológica, taxonômica, a uma operação de clas-
LINHAS

sificação. Vejo uma coisa e exclamo: “ah, é isso!”. “[...]


é uma mesa, é uma maçã, é o pedaço de cera, bom-dia
Teeteto” (DELEUZE, 1988, p. 224). No pensamento
como representação, não há disparidade, nem diferen-
108

ça, nem heterogeneidade. O suposto lado de fora do


pensamento é, no final das contas, o seu lado de den-
tro. No pensamento como representação, o que conta é
a identidade, a coincidência, a homogeneidade. “Isto é
aquilo” – mas isto já era aquilo! O pensamento como
representação é uma simples confirmação. No pensamento
como representação, o mundo não se move, nada se cria,
não há invenção. Nada difere, nem devém. Não há dife-
rença nem devir. É pura identidade. A essa imagem dog-
mática do pensamento, Deleuze contrapõe uma outra,
aquela que ele começa a desenvolver no capítulo 4 de Di-
ferença e repetição. É a tentativa de Deleuze de desligar a
imagem do pensamento da essência e da identidade, para
concebê-la em conexão com as noções de diferença e
multiplicidade. É, de novo, a mesma questão do “fora”
do pensamento. Mas, aqui, o fora não está limitado a
se disfarçar de “fora”, mas é o próprio fora, em toda sua
estranheza, em toda sua heterogeneidade, em toda sua

UM
disparidade, relativamente ao pensamento. Aqui, não

PLANO DE IMANÊNCIA PARA O CURRÍCULO


há mais correspondência, nem adequação. Aqui, há
apenas encontro, e encontro supõe diferença, divergên-
cia, dissonância. É mais um choque, na verdade, do
que um encontro. Ou um encontro, mas violento, um
encontro que tira o pensamento de seus gonzos. Não
há mais lugar para um simples reconhecimento de ma-
téria já formada, mas para o surgimento do novo e do
imprevisível. O pensamento é, neste caso, não mais a
solução que surge do harmonioso casamento entre o
pensamento e seu suposto fora, mas o imprevisto surgi-
mento de um problema que o surpreende, que o coloca
109

em um estado de perplexidade. Essa imagem do pen-


samento é inseparável do construtivismo de Deleuze,
da filosofia concebida como atividade de criação de con-
ceitos e da ontologia de Deleuze, do mundo concebido
como feito de multiplicidades e não de essências. O
pensamento é uma multiplicidade, o pensamento não
representa a multiplicidade. Por outro lado, o pensa-
mento faz multiplicidades, isto é, conceitos. Por isso
pensar é criar conceitos. Um conceito, tal como o pen-
samento, não representa coisa alguma. E o que põe tudo
isso em movimento é aquilo que Deleuze chama de
“atrator”, um “precursor sombrio”, alguma coisa que põe
a multiplicidade a formigar. É por isso que pensar é
sempre uma violência. Há algo que vem de fora, um
“signo”, na terminologia que Deleuze utiliza em Proust
e os signos, que tira o pensamento do sério. “Há sempre
a violência de um signo que nos força a procurar, que
nos rouba a paz. A verdade não é descoberta por afini-
dade, nem com boa vontade, ela se trai por signos invo-
luntários” (DELEUZE, 2003, p. 14-5). “Signo” não tem,
aqui, qualquer ressonância lingüística, não é aquilo que
está no lugar de alguma outra coisa. “Signo” é, aqui,
qualquer coisa que, de fora, nos afeta, nos atinge, que
faz com que algo, em nós, se mexa. Utilizando a pala-
DE ESCRITA

vra “sinal” em vez de “signos” (mas se trata da mesma


coisa), Deleuze dá, em Diálogos, uma esclarecedora des-
LINHAS

crição do que é, para ele, um “signo”: “Chama-se sinal


o que desencadeia um afecto, o que vem efetuar um
poder de ser afetado: a teia se agita, o crânio se dobra,
um pouco de pele se desnuda. Nada a não ser signos,
110

como estrelas em uma noite negra imensa” (DELEUZE e


PARNET, 1998, p. 74). Há, em Deleuze, essa constante
associação entre pensamento e violência. “[...] a verdade
nunca é o produto de uma boa vontade prévia, mas o
resultado de uma violência sobre pensamento” (DELEU-
ZE, 2003, p. 15). “A verdade depende de um encon-
tro com alguma coisa que nos força a pensar [...]”
(DELEUZE, 2003, p. 15); “O que nos violenta é mais rico
do que os frutos de nossa boa vontade ou de nosso traba-
lho aplicado; e mais importante do que o pensamento é
‘aquilo que faz pensar’” (DELEUZE, 2003, p. 29); “Sem
algo que force a pensar, sem algo que violente o
pensamento, este nada significa” (DELEUZE, 2003, p.
89). Mas não se trata de uma violência ligada à destrui-
ção, mas de uma violência que se limita a perturbar a
paz do estabelecido, do seguro, do estático. Virar do avesso.
Obrigar a pensar diferente. Torcer o pensamento. É essa
toda a violência. E agora vem o mais interessante de todo

UM
esse esforço de Deleuze para construir uma outra ima-

PLANO DE IMANÊNCIA PARA O CURRÍCULO


gem do pensamento, um pensamento sem imagem. O
mais interessante é que pensar não está, em Deleuze,
associado ao ensinar, mas, ao contrário, ao aprender.
Constituiria um contra-senso, pois, pensar-se em uma
pedagogia para “ensinar a pensar”. Mas isso tampouco
significa colocar-se ao lado dos que repetem a litania
do “ninguém ensina ninguém”, que remete, quase sem-
pre, a alguma noção de diálogo que suprime justamen-
te a violência que põe o pensamento para dançar. Apren-
der é, em Deleuze, o exato correlato do pensar. Há, em
um primeiro momento, um encontro violento com o
111

fora, com esse signo que, do exterior, nos faz rodopiar.


E, depois, num segundo momento, uma ressonância,
um “entrar em sintonia” da multiplicidade que é o meu
pensamento com essa outra multiplicidade que vem de
fora e que emite um signo que sou obrigado a decifrar.
“Aprender é, de início, considerar uma matéria, um
objeto, um ser, como se emitissem signos a serem deci-
frados, interpretados. Não existe aprendiz que não seja
‘egiptólogo’ de alguma coisa. Alguém só se torna mar-
ceneiro tornando-se sensível aos signos da madeira, e
médico tornando-se sensível aos signos da doença” (DE-
LEUZE, 2003, p. 4). Deleuze reconhece, contrariamente
às certezas da psicologia, que aprender sempre contém
algo de mistério, mas que, não obstante, ao menos isso
ele sabe, é num encontro intempestivo e sem finalidade
com o heterogêneo de uma multiplicidade intensiva que
se aprende: “Nunca se sabe como uma pessoa aprende;
mas, de qualquer forma que aprenda, é sempre por in-
termédio de signos, perdendo tempo, e não pela assimi-
lação de conteúdos objetivos” (DELEUZE, 2003, p. 21).
Talvez porque, como relata seu amigo Michel Tour-
nier (1999), ele tivesse com as ondas uma relação de
estranheza1, Deleuze adorava dar o exemplo do apren-
der a nadar como constituindo justamente esse en-
DE ESCRITA

contro com o heterogêneo: “O movimento do nada-


dor não se assemelha ao movimento da onda; e,
LINHAS

precisamente, os movimentos do professor de nata-


ção, movimentos que reproduzimos na areia, nada
são em relação aos movimentos da onda, movimen-
tos que só aprendemos a prever quando os aprende-
mos praticamente como signos. Eis por que é tão
112

difícil dizer como é que alguém aprende: há uma


familiaridade prática, inata ou adquirida, como os
signos, que faz de toda a educação algo de amoroso,
mas também de mortal. Os nossos únicos mestres são
aqueles que nos dizem ‘faça comigo’ e que, em vez de

1
É o que nos diz Michel Tournier, narrando um episódio da ju-
ventude de ambos: “Um certo verão, eu o levei a Villers-sur-Mer.
Ele raramente se separava de sua echarpe e de seus sapatos urba-
nos. Mas ele entrou no mar uma vez. ‘Nado com a cabeça fora
d’água para mostrar que não estou no meu elemento natural’, di-
zia ele” (Tournier, 1999, p. 344).
nos proporem gestos para reproduzir, sabem emitir
signos a serem desenvolvidos no heterogêneo” (DELEUZE,
1988, p. 54). A violência do encontro com o heterogêneo
não impede que se entre em ressonância com ele. Muito
pelo contrário. Como diz Deleuze, “apaixonar-se é indi-
vidualizar alguém pelos signos que [esse alguém] traz con-

UM
sigo ou emite” (DELEUZE, 2003, p. 7). Ou seja, apaixo-

PLANO DE IMANÊNCIA PARA O CURRÍCULO


nar-se é aprender. Mas, talvez pudéssemos inverter a
fórmula e dizer também que aprender é apaixonar-se.

3
Dos deslizamentos e das interpenetrações – Um leit-
motiv percorre Mil platôs do começo ao fim: a inse-
parabilidade, a implicação mútua, a transitividade, a
intercambialidade, a comunicabilidade, a mútua trans-
formabilidade, o mútuo travestismo, entre os dois ter-
mos de qualquer dos aparentes dualismos que também
povoam, aos montes, o livro dos platôs. É de Bergson,
113

sobretudo o de Matéria e memória, que Deleuze prova-


velmente vampiriza esse contínuo movimento, esse in-
cansável transformismo, essa circulação perpétua entre
os dois pólos de um suposto binarismo. Esse movimento
de sanfona está no cerne mesmo da noção bergsoniana
de duração: entre memória e percepção, entre intensão
e extensão, entre virtual e atual não há mais que uma
diferença de tensão: no estado contraído, estamos na
primeira extremidade; no estado distendido, estamos
na outra. É por isso que se trata sempre de uma multi-
plicidade e não do canônico dualismo “Uno-múltiplo”.
Não é, nunca, uma coisa e outra, uma coisa ou outra,
mas sempre uma coisa em outra. Até mesmo as “duas”
espécies de multiplicidades se resumem, no final das
contas, a uma única. Em Mil platôs, quer se trate de
rizomas e árvores (no platô 1), quer se trate de Apare-
lho de Estado e Máquina de Guerra (nos últimos pla-
tôs), nunca estamos seguros de que, num piscar de
olhos, um dos termos da suposta polaridade não possa
se transformar no outro. Eis aqui uma passagem típi-
ca, no platô 2, que se repetirá, sob outras formas, sob
outros disfarces, ao longo de todo o livro: “Não se trata,
no entanto, de opor os dois tipos de multiplicidades,
as máquinas molares e moleculares, segundo um dua-
DE ESCRITA

lismo que não seria melhor que o do Uno e do múlti-


plo. Existem unicamente multiplicidades de multipli-
LINHAS

cidades que formam um mesmo agenciamento, que se


exercem no mesmo agenciamento: as matilhas nas mas-
sas e inversamente. As árvores têm linhas rizomáticas,
mas o rizoma tem pontos de arborescência. [...] Como
114

é que linhas de desterritorialização seriam assinaláveis


fora de circuitos de territorialidade? Como supor que o
fluir abrupto do minúsculo riacho de uma intensidade
nova se faça fora das grandes extensões e em relação
com grandes transformações nestas extensões? [...] O
devir-animal, o devir-molecular, o devir-inumano pas-
sam por uma extensão molar, uma hiper-concentração
humana, ou as preparam” (MP, v. 1, p. 48). São evi-
dentes as implicações éticas e políticas desse deslizamento
constante entre os dois termos extremos de uma mesma
multiplicidade. Não há pontos. Não há posições privi-
legiadas ou justas. Justo uma linha. Que percorre um
mesmo continuum. Um passo pra lá e iremos para um
ponto. Um passo pra cá e iremos para o outro. Mas
nunca estamos parados em um ponto. Em certas passa-
gens, Deleuze expressa essa noção de uma forma geral,
como um princípio geral, mas, para cada um dos inú-
meros dualismos que percorrem Mil platôs, ele não dei-

UM
xa de assinalar sua interpenetrabilidade. Aqui, por

PLANO DE IMANÊNCIA PARA O CURRÍCULO


exemplo, Deleuze, falando de árvores e rizomas, deno-
mina-o de “princípio de ruptura a-significante”: “[...]
contra os cortes demasiado significantes que separam
as estruturas, ou que atravessam uma estrutura. [...]
Todo rizoma compreende linhas de segmentaridade
segundo as quais ele é estratificado, territorializado,
organizado, significado, atribuído, etc.; mas compre-
ende também linhas de desterritorialização pelas quais
foge sem parar. Há ruptura no rizoma cada vez que
linhas segmentares explodem numa linha de fuga, mas
a linha de fuga faz parte do rizoma. Estas linhas não
115

param de se remeter umas às outras. É por isto que não


se pode contar com um dualismo ou uma dicotomia,
nem mesmo sob a forma rudimentar do bom e do mau.
Faz-se uma ruptura, traça-se uma linha de fuga, mas
corre-se sempre o risco de reencontrar nela organiza-
ções que reestratificam o conjunto, formações que dão
novamente o poder a um significante, atribuições que
reconstituem um sujeito [...]. Os grupos e os indivíduos
contêm microfascismos sempre à espera de cristaliza-
ções. [...] Como é possível que os movimentos de des-
territorialização e os processos de reterritorialização não
fossem relativos, não estivessem em perpétua ramificação,
presos uns aos outros?” (MP, v. 1, p. 18). Para cada
um dos dualismos que compõem Mil platôs, somos sur-
preendidos, a cada vez, com o mesmo movimento. Ve-
jamos alguns casos. Ainda sobre árvores e rizomas:
“Existem nós de arborescências nos rizomas, empuxos
rizomáticos nas raízes. Bem mais, existem formações
despóticas, de imanência e de canalização, próprias aos
rizomas. Há deformações anárquicas no sistema trans-
cendente das árvores; raízes aéreas e hastes subterrâne-
as” (MP, v. 1, p. 31). Territorialidade e desterritoriali-
zação: “As territorialidades são, pois, atravessadas, de
um lado a outro, por linhas de fuga que dão prova da
DE ESCRITA

presença, nelas, de movimentos de desterritorialização


e reterritorialização. De certo modo, elas vêm em se-
LINHAS

gundo lugar. Elas próprias nada seriam sem esses mo-


vimentos que as depositam” (MP, v. 1, p. 71). Obser-
vamos, aqui, como em outros lugares, que, embora
transformáveis entre si, não há, na ontologia e na polí-
116

tica deleuzianas, uma simetria valorativa entre dois


quaisquer desses pares. Como vemos, a política – so-
bretudo a política – deleuziana apóia-se fortemente na
precedência das linhas de fuga sobre os movimentos
contrários, como os de estratificação. Mas a isso volta-
remos mais adiante. Estratificação e linhas de fuga: “[...]
os epistratos e os paraestratos não param de se mexer,
deslizar, se deslocar, mudar, uns levados por linhas de
fuga e movimentos de desterritorialização, outros por
processos de descodificação ou deriva, uns com os ou-
tros se comunicando no cruzamento dos meios” (MP, v.
1, p. 71). Palavras de ordem e senhas: “Existem senhas
sob as palavras de ordem. [...] A mesma coisa, a mesma
palavra, tem sem dúvida essa dupla natureza: é preciso
extrair uma da outra – transformar as composições de
ordem em componentes de passagem” (MP, v. 2, p.
58-9). Máquinas abstratas e estratos: “Não podemos,
entretanto, nos contentar com um dualismo entre o

UM
plano de consistência, seus diagramas ou suas máqui-

PLANO DE IMANÊNCIA PARA O CURRÍCULO


nas abstratas e, por outro lado, os estratos, seus progra-
mas e seus agenciamentos. [...] Há, portanto, como que
um duplo movimento: um, através do qual as máqui-
nas abstratas trabalham os estratos, e não cessam de fa-
zer aí fugir algo: o outro, através do qual elas são efeti-
vamente estratificadas, capturadas pelos estratos” (MP,
v. 2, p. 103). Buraco negro e muro branco: “[...] eles [o
muro branco e o buraco negro] estão sempre juntos,
mas sob os dois modos nos quais ora os buracos negros
se repartem e se multiplicam no muro branco, ora, ao
contrário, o muro, reduzido à sua crista ou ao seu fio
117

de horizonte, se precipita em direção a um buraco ne-


gro que os aglutina todos” (MP, v. 3, p. 54). As coisas
se complicam bastante quando, em vez de dois termos,
temos três; quando, por exemplo, no platô 8, “Três
novelas...”, Deleuze e Guattari falam de três espécies
de linhas: as linhas de segmentaridade dura ou molar,
as linhas de segmentação maleável ou molecular e as
linhas de fuga. O número três já é uma complicação,
mas, tal como ocorre nos binários, também aqui cada
um dos termos do ternário pode facilmente se transfor-
mar no outro: “É certo que as duas linhas [as de seg-
mentação molar e as de segmentação molecular] não
param de interferir, de reagir uma sobre a outra, e de
introduzir cada uma noutra uma corrente de maleabi-
lidade ou mesmo um ponto de rigidez. [...] [há] uma
terceira linha, uma espécie de linha de fuga, igualmente
real [...]: linha que não mais admite qualquer segmen-
to e que é, antes, como que a explosão das duas séries
segmentares. [...] Entretanto, as três linhas não param
de se misturar. [...] Elas se transformam e podem mes-
mo penetrar uma na outra” (MP, v. 3, p. 68-70, p.
77). Mas eis aqui uma passagem ainda mais esclarece-
dora: “[...] há a imanência mútua das linhas. Tampouco
é fácil desenredá-las. Nenhuma tem transcendência, cada
DE ESCRITA

uma trabalha nas outras. Imanência por toda parte. As


linhas de fuga são imanentes ao campo social. A seg-
LINHAS

mentaridade maleável não pára de desfazer as concre-


ções da dura, mas ela reconstitui em seu nível tudo aqui-
lo que desfaz: micro-Édipos, microformações de po-
der, microfascismos. A linha de fuga faz explodir as
118

duas séries segmentares, mas é capaz do pior: de rico-


chetear no muro, de recair em um buraco negro, de
tomar o caminho da grande regressão, e de refazer os
segmentos mais duros ao acaso de seus desvios” (MP, v.
3, p. 79-80, grifos no original). Mas observemos, para
terminar, mais alguns exemplos da operação de “desli-
zamento” entre binários. Centralização e segmentarida-
de: “Não há oposição entre central e segmentário. O siste-
ma político moderno é um todo global, unificado e unifi-
cante, mas porque implica um conjunto de subsistemas
justapostos, imbricados, ordenados, de modo que a análi-
se das decisões revela toda espécie de compartimentações
e de processos parciais que não se prolongam uns nos
outros sem defasagens ou deslocamentos” (MP, v. 3, p.
85). A mesma operação se repete num dos lados dessa
última divisão, o da segmentaridade: “Mas tampouco
basta opor duas segmentaridades, uma flexível e primi-
tiva, a outra moderna e endurecida, pois as duas efeti-

UM
vamente se distinguem mas são inseparáveis, embara-

PLANO DE IMANÊNCIA PARA O CURRÍCULO


lhadas uma com a outra, uma na outra. As sociedades
primitivas têm núcleos de dureza, de arborificação, que
tanto antecipam o Estado quanto o conjuram. Inversa-
mente, nossas sociedades continuam banhando num te-
cido flexível sem o qual os segmentos duros não vingari-
am. [...] Toda sociedade, mas também todo indivíduo,
são pois atravessados pelas duas segmentaridades ao mes-
mo tempo: uma molar e outra molecular. Se elas se dis-
tinguem, é porque não têm os mesmos termos, nem as
mesmas correlações, nem a mesma natureza, nem o
mesmo tipo de multiplicidade. Mas, se são insepará-
119

veis, é porque coexistem, passam uma para a outra, se-


gundo diferentes figuras como nos primitivos ou em
nós – mas sempre uma pressupondo a outra” (MP, v.
3, p. 90, grifo no original). Ou ainda, insistindo na
linha de continuidade: “E o sistema duro não detém o
outro: o fluxo continua sob a linha, perpetuamente
mutante, enquanto a linha totaliza” (MP, v. 3, p. 101).
O poder, considerado como “segmentaridade dura”, é
questão de que trataremos em outra seção, mas já po-
demos ir nos adiantando: “Cada centro de poder é igual-
mente molecular, exercendo-se sobre um tecido mi-
crológico onde ele só existe enquanto difuso, disperso,
desacelerado, miniaturizado, incessantemente desloca-
do, agindo por segmentações finas, operando no deta-
lhe e no detalhe do detalhe. A análise das ‘disciplinas’
ou micropoderes [...] atesta estes ‘focos de instabilida-
de’ onde se afrontam reagrupamentos e acumulações,
mas também escapadas e fugas, e onde se produzem
inversões” (MP, v. 3, p. 105-6). Nem mesmo as linhas
de fuga, o foco talvez da “rebeldia” na política deleuzi-
ana, escapam à possibilidade de se transformar no seu
inverso: “Por mais que se queira apresentar tais linhas
como uma espécie de mutação, de criação, traçando-se
não na imaginação mas no próprio tecido da realidade
DE ESCRITA

social, por mais que se queira lhes dar o movimento da


flecha e a velocidade de um absoluto – seria muito sim-
LINHAS

ples acreditar que elas não temem nem afrontam outro


risco senão o de se fazer recuperar apesar de tudo, de se
fazer colmatar, atar, reatar, reterritorializar. [...] é que
elas mesmas têm seus próprios perigos, que não se con-
120

fundem com os precedentes. [...] Era já essa reversão da


linha de fuga em linha de destruição que animava to-
dos os focos moleculares e os fazia interagir numa má-
quina de guerra, em vez de ressoar num aparelho de Es-
tado. Uma máquina de guerra que não tinha mais objeto a
não ser a guerra, e que aceitava abolir seus próprios corre-
ligionários antes do que deter a destruição. Os perigos
todos das outras linhas são irrelevantes comparados a esse
perigo” (MP, v. 3, p. 111, p. 115, grifos no original).
(Neste momento, neste país, isto soa como uma profecia
realizada, mas só quem presta atenção aos movimentos
moleculares que são próprios das multiplicidades tem
direito a exigir o título de profeta). Ainda, uma vez
mais, a constante passagem entre territorialidade e des-
territorialização: “[...] é preciso constatar que o territó-
rio não pára de ser percorrido por movimentos de des-
territorialização relativa, inclusive no mesmo lugar, onde
se passa do intra-agenciamento a interagenciamentos,

UM
sem que haja necessidade de deixar o território, nem de

PLANO DE IMANÊNCIA PARA O CURRÍCULO


sair dos agenciamentos para esposar o Caos. Um terri-
tório está sempre em vias de desterritorialização, ao
menos potencial, em vias de passar a outros agencia-
mentos, mesmo que o outro agenciamento opere uma
reterritorialização [...]. É uma série de desengates” (MP,
v. 4, p. 137). Um dos elementos sempre trabalha em
sentido contrário, mas também sempre no outro: “E
não se deve esquecer que é no plano de consistência
que os estratos endurecem e se organizam, e que é nos
estratos que o plano de consistência trabalha e se cons-
trói, ambos peça por peça, passo a passo, de operação
em operação” (MP, v. 4, p. 152). São esses movimen-
121

tos de passagem que caracterizam a própria vida, ou


seja, a multiplicidade em si: “E é verdade que a vida é
ambos ao mesmo tempo: um sistema de estratificação
particularmente complexo, e um conjunto de consis-
tência que conturba as ordens, as formas e as substân-
cias” (MP, v. 4, p. 150). É a mesma transmutabilidade
que se passa entre o aparelho de Estado e a máquina de
guerra, nos últimos platôs, naquele em que o livro se
torna mais explicitamente, mais diretamente, político:
“Será possível que no momento em que já não existe,
vencida pelo Estado, a máquina de guerra testemunhe
ao máximo sua irrefutabilidade, enxameie em máquinas
de pensar, de amar, de morrer, de criar, que dispõem
de forças vivas ou revolucionárias suscetíveis de colocar
em questão o Estado triunfante? É no mesmo movi-
mento que a máquina de guerra já está ultrapassada,
condenada, apropriada, e que ela toma novas formas, se
metamorfoseia, afirmando sua irredutibilidade, sua ex-
terioridade [...]?” (MP, v. 5, p. 18). CQD.

2
Da política – “Quando um anarqueonte como Deleuze
encontra um arqueonte como Foucault o que é que
DE ESCRITA

eles conversam?” É a provocante pergunta que se faz


Jean-Claude Dumoncel (1999, p. 9), no início de seu
livro Le pendule du Docteur Deleuze. Um arqueonte é
LINHAS

alguém que governa, enquanto que um anarqueonte é


alguém que não governa. É claro que Dumoncel não
está querendo com isso dizer que Foucault é a favor do
poder e Deleuze não, mas que os dois têm visões prati-
122

camente opostas sobre a questão do poder. E foi exata-


mente essa diferença que Deleuze não se cansou de re-
petir uma e outra vez. De certa forma, essa diferença é
paralela à preferência de Deleuze pelo termo “desejo”
(que Foucault odiava) e à de Foucault pelo termo “pra-
zer” (que Deleuze detestava). Ser arqueonte ou anar-
queonte, pois, não significa, neste caso, ser a favor ou
contra o poder, mas simplesmente conceder prioridade
ou não, na análise do campo social, ao poder. Vimos,
na seção “Dos deslizamentos”, como, para Deleuze,
nenhum dos pólos, em uma dualidade, tal como, por
exemplo, na dualidade poder/não-poder, pode contar
com um resultado garantido. Um rizoma, por exem-
plo, pode facilmente se arborificar, assim como uma ár-
vore pode, dadas as circunstâncias adequadas, formar ri-
zomas. Um indivíduo, um grupo, pode percorrer todo o
ciclo “territorialização – desterritorialização – reterrito-
rialização – desterritorialização”. A estratificação está a

UM
um passo da desestratificação. Mas em cada um des-

PLANO DE IMANÊNCIA PARA O CURRÍCULO


ses casos e em todos os processos semelhantes,
abundantemente descritos em Mil platôs, há claramen-
te uma tomada de posição em favor daqueles processos
que apontam para a multiplicidade intensiva, para o
plano de consistência, para o Corpo sem Órgãos, para o
campo virtual das forças diferenciais onde tudo ainda é
possível, onde os processos de estratificação, de territo-
rialização, de codificação, de atualização, de diferenci-
ação ainda não tomaram conta, ainda não estancaram a
imprevisibilidade. Num mundo dinâmico, como o des-
crito pela ontologia das multiplicidades intensivas de
Deleuze, tudo é possível, inclusive a queda em direção
123

à estratificação, em direção aos espaços estriados do po-


der, em direção ao buraco negro de uma vida fascista.
Mas o que vem primeiro é sempre o movimento selva-
gem, rebelde, anárquico, imprevisível, que caracteriza
as multiplicidades intensivas; o que vem primeiro é sem-
pre o fluxo, a corrrente, a linha de fuga que percorre,
subterraneamente, virtualmente, a matéria da vida. São
os movimentos contrários que, de certa forma, consti-
tuem a reação. Os fluxos não correm para se opor à
estratificação. É a estratificação que ocorre para conter
os fluxos. É da natureza dos fluxos correrem. É da na-
tureza do poder tentar estancá-los. Mas eram os fluxos
que estavam lá antes. A teoria de poder de Deleuze, se
é que se pode dizer que Deleuze tinha uma, estava toda
baseada numa hidráulica. É que, talvez, as multiplici-
dades intensivas, aquelas que não podem se dividir sem
que mudem de natureza, têm tudo a ver com os flui-
dos, com o líquidos, com os gases. E foi na comparação
de sua visão do poder com a de Foucault que Deleuze
mais insistentemente utilizou essas imagens hidráuli-
cas. “Linha de fuga” é, talvez, a mais forte, e a mais
utilizada, dessas imagens. Deleuze aproveita-se, aqui,
do fato de que “fuite” tem o duplo sentido de fuga e de
vazamento. Talvez fosse melhor, para manter a ambi-
DE ESCRITA

güidade em português, traduzir “ligne de fuite” por “li-


nha de escapamento”. Provavelmente, a formulação mais
LINHAS

elaborada da diferença que Deleuze dizia ter com Fou-


cault sobre a questão do poder esteja numa nota de
rodapé do platô 3: “Nossas únicas diferenças em rela-
ção a Foucault referir-se-iam aos seguintes pontos: 1º)
124

os agenciamentos não nos parecem, antes de tudo, de


poder, mas de desejo, sendo o desejo sempre agencia-
do, e o poder, uma dimensão estratificada do agencia-
mento; 2º) o diagrama ou a máquina abstrata têm li-
nhas de fuga que são primeiras, e que não são, em um
agenciamento, fenômenos de resistência ou de réplica,
mas picos de criação e desterritorialização” (MP, v. 2,
p. 99). Ainda mais esclarecedora dessa importante di-
ferença de enfoque é a resposta que Deleuze deu numa
entrevista à revista inglesa History of the present (1986, p.
20). À pergunta da revista, “Você parece ter uma visão
muito mais fluida do social que Foucault. As pessoas
têm enfatizado o uso que Foucault faz de metáforas
arquiteturais, de forma diametralmente oposta à sua
[de Deleuze] ‘fluidez’”, Deleuze responde: “Concordo
inteiramente com você. Lembro-me de ter falado sobre
isso quando Foucault publicou o primeiro volume de
História da Sexualidade. Dei-me conta então de que não

UM
partilhávamos a mesma visão da sociedade. Para mim,

PLANO DE IMANÊNCIA PARA O CURRÍCULO


uma sociedade é algo que não pára nunca de escapar.
Assim, quando você diz que eu sou mais ‘fluido’, você
está totalmente correto: não há palavra melhor. A soci-
edade é algo que vaza, financeiramente, ideologicamen-
te – há pontos de vazamento em toda parte. Michel se
admirava do fato de que, apesar de todos os seus pode-
res, de toda a dissimulação e hipocrisia dos poderes,
nós ainda conseguimos resistir. Eu, ao contrário, admi-
ro-me do fato de que tudo está vazando e o governo
consegue estancar o vazamento. Em um certo sentido,
Michel e eu nos dirigimos ao mesmo problema de la-
125

dos opostos. Você está perfeitamente correto em dizer


que para mim a sociedade é fluida. Ela é verdadeira-
mente fluida – ou melhor, ela é um gás. Para Michel
ela é uma arquitetura” (cf. DELEUZE, 1992, p. 191, p.
212; DELEUZE, 1996, p. 19, p. 21; DELEUZE e PAR-
NET, 1998, p. 49, p. 158; MP, v. 3, p. 79, p. 96). É por
ser uma política dos fluxos que a política de Deleuze é
sempre uma política molecular, é sempre uma micro-
política. O aparelho de Estado existe, as instituições
existem, as classes existem, mas esses são apenas os as-
pectos molares de uma sociedade, o resultado de proces-
sos de fluxos que se estancaram, de partículas moleculares
que se estratificaram. São as linhas de fuga que são um
problema para o poder e não o contrário: “[...] os cen-
tros de poder se definem por aquilo que lhes escapa,
pela sua impotência, muito mais do que por sua zona
de potência” (MP, v. 3, p. 96). O novo e o imprevisí-
vel, entretanto, do qual dependem a renovação da soci-
edade e também da vida, não vêm daí, evidentemente,
embora no interior mesmo desses estratos possam es-
tar borbulhando imperceptíveis e sutis movimentos
moleculares que podem acabar por miná-los, por assim
dizer, a partir de seu próprio interior. O que Deleuze
diz, em mais de um local, sobre a questão da revolução
DE ESCRITA

é revelador de sua política. Para Deleuze, uma revolu-


ção nunca fracassa, porque é sempre um ato único, um
LINHAS

fulgor, um movimento imprevisível no campo virtual


de uma sociedade. No dia seguinte, já não se trata mais
da revolução, pelo menos não da mesma, porque uma
outra começa a se gestar em outro local, com outras
pessoas. A revolução dura apenas até o instante em que
126

estala. Em uma conversa com Toni Negri, Deleuze


(1992, p. 211) diz: “Diz-se que as revoluções têm um
mau futuro. Mas não param de misturar duas coisas, o
futuro das revoluções na história e o devir revolucioná-
rio das pessoas. Nem sequer são as mesmas pessoas nos
dois casos. A única oportunidade dos homens está no
devir revolucionário, o único que pode conjurar a ver-
gonha ou responder ao intolerável.” Ou ainda, muito
mais enfaticamente em O que é a filosofia: “Tudo seria
vão porque o sofrimento é eterno, e as revoluções não
sobrevivem à sua vitória? Mas o sucesso de uma revolu-
ção só reside nela mesma, precisamente nas vibrações,
nos enlaces, nas aberturas que deu aos homens no mo-
mento em que se fazia, e que compõem em si um mo-
numento sempre em devir [...]. A vitória de uma revo-
lução é imanente, e consiste nos novos liames que
instaura entre os homens, mesmo se estes não duram
mais que sua matéria em fusão e dão lugar rapidamen-

UM
te à divisão, à traição” (p. 229). Essas são as grandes

PLANO DE IMANÊNCIA PARA O CURRÍCULO


linhas da política deleuziana, assim resumida por ele pró-
prio: “Mil platôs indica muitas direções, sendo estas as
três principais: primeiro, uma sociedade nos parece de-
finir-se menos por suas contradições que por suas li-
nhas de fuga, ela foge por todos os lados, e é muito
interessante tentar acompanhar em tal ou qual momento
as linhas de fuga que se delineiam. [...] Há uma outra
direção em Mil platôs, que já não consiste apenas em
considerar as linhas de fuga mais do que as contradições,
porém as minorias de preferência às classes. Enfim, uma
terceira direção, que consiste em buscar um estatuto
127

para as ‘máquinas de guerra’, que não seriam definidas


de modo algum pela guerra, mas por uma certa manei-
ra de ocupar, de preencher o espaço-tempo, ou de in-
ventar novos espaços-tempos: os movimentos revoluci-
onários, [...] mas também os movimentos artísticos são
máquinas de guerra” (DELEUZE, 1992, p. 212). Mil
platôs é todo um programa de política, é todo um pro-
grama ético. A questão toda está em, pessoal e coletiva-
mente, evitar os processos de estratificação e seguir o ca-
minho das linhas de fuga. Esta é a política: “Os principais
estratos que aprisionam o homem são o organismo, mas
também a significância e a interpretação, a subjetivação e
a sujeição. [...] Ora, a esse respeito, o problema é o de
fazer bascular o agenciamento mais favorável: fazê-lo
passar, de sua face voltada para os estratos, à outra face
voltada para o plano de consistência ou para o corpo sem
órgãos. [...] Fazer da consciência uma experimentação
de vida, e da paixão um campo de intensidades contínu-
as, uma emissão de signos-partículas. Fazer o corpo sem
órgãos da consciência e do amor. [...] Dessubjetivar a
consciência e a paixão. [...] Ser gago de linguagem,
estrangeiro em sua própria língua” (MP, v. 2, p. 90).
Levar uma vida não-fascista.
DE ESCRITA

1
Do currículo – Chegamos, finalmente, ao cerne da ma-
LINHAS

téria, à penúltima casa. Àquilo que nos interessa, como


curriculistas militantes que somos. Mas chegados a este
ponto, já não há muito mais a dizer. Tudo parece, ago-
ra, tão claro. Ou, talvez, não. Por isso, de uma maneira
128

ou de outra, sejamos sóbrios, aqui. Modestos. Mini-


malistas. Dizer o máximo com o mínimo. Com um
traço só: como um calígrafo chinês. Fazer como Virgi-
nia Woolf. Saturar, mas concentradamente, eliptica-
mente. Se possível, se formos capazes, com a elegância
dos gestos comedidos, mas precisos, na medida, apenas
na medida. Sem excessos, sem gritos, sem palavras-de-
ordem, sem o fascismo daqueles para quem o outrem
não é a “expressão de um mundo possível” (Deleuze,
1998, p. 318), mas o objeto de um mundo a ser im-
posto. Falar baixinho. Sussurrar. Imperceptivelmente.
Indiscernivelmente. Impessoalmente. Dizer apenas, por
exemplo: encarar o currículo, sua teoria, como uma mul-
tiplicidade. Prestar atenção às correntes subterrâneas,
aos movimentos moleculares que aí se passam, aos flu-
xos que aí brotam, que aí correm, que aí jorram. Não
fazer do currículo uma máquina abstrata dirigida à for-
mação de sujeitos. Aos processos de significação, inter-

UM
pretação e de subjetivação. Em vez disso: experimen-

PLANO DE IMANÊNCIA PARA O CURRÍCULO


tar. Agenciar, compor, promover encontros que
produzam o máximo de potência. Não ensinar. Nem
ensinar a pensar. Nem dialogar ou comunicar. Só pen-
sar e só aprender. Escrever sobre currículo, ou escrever
no currículo, ou escrever o currículo, sempre com esti-
lo. O que significa escrever seguindo a linha da bruxa,
dos devires minoritários, das linhas de fuga. Uma escri-
ta que seja um agenciamento com a multiplicidade in-
tensiva de que se compõe aquela metade do mundo
que é puro movimento, puro devir, puro fluir. Não es-
crever sobre, mas escrever junto. Fazer como o esqui-
zofrênico de Mrs. Dalloway: sentir-se ligado, por mil
129

filamentos, com o movimento geral da vida. Mexer-se


em ritmo com ele. Entrar em conjunção, como faz o
nadador ou o surfista com as ondas do mar, com a
multiplicidade e o fluir do mundo. Ir junto. Não teo-
rizar um currículo nem praticar um currículo que seja
o Juízo de Deus. O Juízo de Deus é a palavra-de-or-
dem suprema. Aquela que pára tudo, que congela tudo,
que submete tudo a um critério transcendente. No lu-
gar do Juízo de Deus, a imanência. Decidir, em cada
caso, de acordo com as linhas de afecto e de velocidade
que constituem as coordenadas daquele agenciamento
ali, daquele encontro de corpos ali, daquela composição
ali. Nenhuma regra abstrata. Nenhuma regra univer-
sal. Nenhuma moral. Apenas uma etologia: não se per-
guntar quais regras devem ser aplicadas, mas, antes,
quais são os afectos e as velocidades envolvidas. O Juízo
de Deus exige severidade e imparcialidade. A imanên-
cia, ao contrário, exige empatia e parcialidade. Dizer
que “cada caso é um caso” pode ser um clichê, mas
pode ser também uma boa e popular definição de ima-
nência. Nada de idéias justas, justo uma idéia, De-
leuze, correndo o risco de escandalizar, não se cansa
de repetir. O que significa colocar o pensamento acima
do Juízo de Deus. Pensar não em um currículo voltado
DE ESCRITA

para a subjetivação, para a formação de sujeitos, mas


em um currículo voltado para a deformação, para a
criação de um Corpo sem Órgãos. Nada desses obje-
LINHAS

tivos molares de que estão cheios tanto os documentos


oficiais dos governos de quaisquer matizes quanto os
programas das esquerdas fascistas ou fascistizantes
(nisso eles pouco se distinguem, o que talvez explique
130

por que uma coisa tão facilmente se “transforma” na


outra). Formar o cidadão. Desenvolver a consciência
crítica. Afirmar as identidades todas. Nada desses or-
ganismos todos que puxam para os processos de estra-
tificação e de reterritorialização. As instituições. As
organizações. O aparelho de estado. O Partido que
sempre acaba virando Partidão. Escolas de formação
de fanáticos. Praticar, em vez disso, uma micropolíti-
ca. Não permitir que nossas máquinas de guerra se
coloquem a serviço do aparelho de estado. Viver e pra-
ticar a política do molecular. Dissolver essas molari-
dades todas, verdadeiros ritos de iniciação para uma
vida fascista. Existe aí, talvez, talvez, uma chance, ainda
que mínima, de que as máquinas de guerra não se
transformem tão facilmente, tão rapidamente, tão es-
tupidamente, tão surpreendentemente, tão desaver-
gonhadamente em aparelhos de estado. Existe aí, tal-
vez, talvez, a chance de que as revoluções, ao contrário

UM
da profecia deleuziana, durem um momento a mais,

PLANO DE IMANÊNCIA PARA O CURRÍCULO


apenas um momento a mais; não aspiramos a muito
mais do que isso, do que aquele instante de sua fulgu-
ração. E aí um currículo poderá ser a desterritoriali-
zação absoluta, poderá deixar de ser estratificado, para
virar um plano de consistência, um plano de imanên-
cia. E nós, nós teremos, então, talvez, talvez, a chance
de viver uma vida não-fascista. Não se pode desejar
muito mais do que isto.

0
Da casa vazia – Se você veio parar nesta casa, você se
131

danou. É a casa vazia. Ela só existe para abrigar o que


ficou de fora nas outras: máquina abstrata, aconteci-
mento, ritornelo, construtivismo, expressionismo, do-

NOTA SOBRE AS EPÍGRAFES


A epígrafe de Mrs. Dalloway é retirada de Virginia Woolf, 1996, p. 20-
21. A epígrafe de Artaud é um trecho de sua carta de protesto a Wladi-
mir Porché pela censura à sua peça radiofônica Pour en finir avec le juge-
ment de Dieu. Reproduzida por Paule Thévenin no “Dossier de Pour en
finir avec le jugement de dieu”, no volume 13 das Obras Completas de
Artaud, Paris: Gallimard, 1974, p. 130-132 (cf. WILLER, 1986, p. 145-
162).
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ARTAUD, Antonin. Para acabar com o julgamento de Deus. In:


WILLER, Cláudio (Org.). Escritos de Antonin Artaud. 2. ed. Porto
Alegre: LPM, 1986, p. 145-162. Tradução de Cláudio Willer.
CONLEY, Tom. From multiplicities to folds: on style and form
in Deleuze. In: BUCHANAN, Ian (Org.). A Deleuzian Century.
Durham: Duke University Press, 1999, p. 249-266.
CUNNINGHAM, Michael. As horas. São Paulo: Cia. das Letras,
1996. Tradução de Beth Vieira.
DELANDA, Manuel. Intensive Science & Virtual Philosophy. Lon-
dres: Continuum, 2002.
DE ESCRITA

GILLES, Deleuze. Diferença e repetição. Rio: Graal, 1988. Tradu-


ção de Luiz Orlandi e Roberto Machado
LINHAS

______. Lógica do sentido. 4. ed. São Paulo: Perspectiva, 1998. Tra-


dução de Luiz Roberto Salinas Fortes.
______. Conversações. Rio: Editora 34, 1992. Tradução de Peter
Pál Pelbart.
132

______. Desejo e prazer. In: Cadernos de subjetividade, jun. 1996,


p. 13-25. Tradução de Luiz B. L. Orlandi.
______. Crítica e clínica. Rio: Editora 34, 1997. Tradução de Peter
Pál Pelbart.
______. O atual e o virtual. In: DELEUZE, Gilles; PARNET,
Claire. Diálogos. São Paulo: Escuta, 1998, p. 173-179. Tradução
de Eloisa Araújo Ribeiro.
______. Logique de la sensation. Paris: Seuil, 2002.
______. Proust e os signos. 2. ed. Rio: Forense Universitária, 2003.
Tradução de Antonio Carlos Piquet e Roberto Machado.
DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. O anti-Édipo. Capitalis-
mo e esquizofrenia. Lisboa: Assírio e Alvim, 1966.
______. Mil platôs – capitalismo e esquizofrenia. v. I. Rio: Editora
34, 1995. Tradução de Aurélio Guerra Neto.
______. Mil platôs – capitalismo e esquizofrenia. v. II. Rio: Editora
34, 1995. Tradução de Ana Lúcia de Oliveira e Lúcia Cláudia Leão.
______. Mil platôs – capitalismo e esquizofrenia. v. III. Rio: Edi-
tora 34, 1996. Tradução de Aurélio Guerra Neto, Ana Lúcia de

UM
Oliveira, Lúcia Cláudia Leão e Suely Rolnik.

PLANO DE IMANÊNCIA PARA O CURRÍCULO


______. Mil platôs – capitalismo e esquizofrenia. v. IV. Rio: Edi-
tora 34, 1997. Tradução de Suely Rolnik.
______. Mil platôs – capitalismo e esquizofrenia. v. V. Rio: Edito-
ra 34, 1997. Tradução de Peter Pál Pelbart e Janice Caiafa.
______. O que é a filosofia? 2. ed. Rio: Editora 34, 1997. Tradução
de Bento Prado Jr. e Alberto Alonso Muñoz.
DELEUZE, Gilles ; PARNET, Claire. Diálogos. São Paulo: Es-
cuta, 1998. Tradução de Eloisa Araújo Ribeiro.
DERRIDA, Jacques. A diferença. In: DERRIDA, Jacques. Mar-
gens da filosofia. Porto: Rés, s.d., p. 27-69.
133

DUMONCEL, Jean-Claude. Le pendule du Docteur Deleuze. Une


introduction à l’Anti-Œdipe. Paris: EPEL, 1999.
TOURNIER, Michel. Célébrations. Paris: Mercure de France,
1999, p. 340-344.
WILLER, Cláudio (Org.). Escritos de Antonin Artaud. 2. ed. Porto
Alegre: LPM, 1986.
WOOLF, Virginia. Mrs. Dalloway. Londres: Penguim, 1996.

Texto apresentado como Trabalho Encomendado no GT de Cur-


rículo, 26ª Reunião Anual da ANPEd – Associação Nacional de
Pós-Graduação e Pesquisa em Educação, Poços de Caldas, 5 a 8
de outubro de 2003.
Pesquisar o Acontecimento: estudo em
XII exemplos

Naquele final do terceiro ano do século XXI,


Uhma Mvlier já não agüentava mais... Com a serenida-
de totalmente perdida, a professora-pesquisadora via
cair por terra tudo o que já tinha pensado e escrito so-
bre pesquisa em educação: nada funcionava mais, tinha
perdido toda a fecundidade. Mas não se tratava apenas
disso; a catástrofe maior residia em que a pesquisadora
não sabia bem em que ponto estava; havia tantas coisas
em jogo, tantas distinções entre tipos de pesquisa que
não paravam de proliferar, tantos ajustes de contas a
fazer com imagens antigas do pensamento da pesquisa,
pois ninguém é em nada inocente quando a deriva-pes-
quisadora acontece.
Uhma só mantinha alguns pontos fixos por co-
modidade da linguagem de professora; o resto era crise,
recessão, medo, pânico, angústia, embora soubesse
que não podia permanecer nessa condição, pois ti-
nha de orientar as pesquisas de estudantes de Iniciação
Científica, Mestrado e Doutorado, mais turmas de Gra-
duação e de Pós-Graduação. Como ela se viraria? Para
onde se viraria? Qual viração viria daí? Chorar, não adian-
tava, era coisa lamurienta, queixosa, mortificadora, cheia
de afectos tristes, que ela detestava acima de tudo; por ou-
tro lado, fazer de conta que nada estava acontecendo com
o seu pensamento que vinha pensando a educação, a pe-
dagogia, o currículo, a infância e suas respectivas pesqui-
sas, era simplesmente dar uma de avestruz que, mais dia
menos dia, ia ter de tirar a cabeça do buraco para ver que
DE ESCRITA

também a estavam vendo. Talvez fosse interessante pen-


sar em termos de multiplicidades, pensar que se um códi-
LINHAS

go de pesquisa funcionava ou não era porque ela, uma das


codificadoras, fazia parte de uma multidão, de uma mati-
lha pesquisante, mesmo que esta habitasse uma associação
nacional, um programa de pós, linha de pesquisa, grupo
de currículo, poça d’água, ninho de passarinho, tubo de
136

ensaio, líquido amniótico, intestino de boi, até um dedal.


Não se tratava de imprecisão no seu pensar, disso
Uhma Mvlier tinha certeza, mas de ecos, ressonâncias,
reverberações de um mesmo núcleo do pensamento que
pensava uma novidadeira pesquisa e que, por isto, dei-
xava de ser núcleo e acometia a pesquisa por muitas
bordas, superficializava-se e temperava a lidação pes-
quisadora, tornando-a diáfana, volátil, fluida, leve, lé-
pida, porque já perdera toda perspicácia.
Então, sofrendo as dores de uma diferente pes-
quisa em educação que se anunciava ao fazer-se, a
professora-pesquisadora – por não ter nada mais a ver,
a espernear – resolveu agir de um modo filosófico, para
ver se tudo melhorava, e passou a escrever as suas expe-

PESQUISAR
rimentações e as de seus orientandos e alunos com a
dita-cuja Arte Bruta da Pesquisa, Pesquisa da Besteira,
Gaia Pesquisa, Pesquisa da Multiplicidade, Empirista

O
ACONTECIMENTO:
Transcendental, Experimental, Diagnóstica, Em fuga,
Rizomática, Pragmática, Vital, Caótica, Artística, Impen-
sável, Micropesquisa, Esquizopesquisa, Pesquisa a n-1,
Pesquisa-de-mil-nomes, e outros tantos nomes a serem

ESTUDO EM
inventados, sonhados, delirados, mas que dizem, uni-
vocamente, de uma pesquisa educacional inspirada pelo
pensamento deleuziano da diferença.

XII
EXEMPLOS
Todos-os-nomes que dizem de uma pesquisa em
educação, cuja natureza empirista transcendental con-
densa, nas ações correlatas de pensar e de escrever edu-
cação, que lhes são constitutivas, todo o sentido, uma
137

vez que resulta de uma absorção dos sentidos outrora


atribuídos às representações feitas por outras pesquisas.
Uma pesquisa, portanto, que é despojada de qualquer
significação, já que não se forma a não ser no processo
de anulação dos referentes, dos doadores de sentido
anteriores; cujos movimentos são expressivos, nunca
miméticos, seja em relação ao “sujeito” seja ao “objeto”,
já que ela não consiste num ato subjetivo decorrente de
condições empíricas negativas, como a ignorância do
sujeito pesquisante, nem trata de ultrapassar obstácu-
los contingentes de desconhecimento acerca de algum
fenômeno educacional, como se pesquisar fosse uma
passagem do não-saber ao saber; uma pesquisa, cuja
energia provém do processo de desmontagem de todos
os modelos já incorporados: à medida que são feitos vão
sendo eliminados os movimentos expressivos da pes-
quisa, e a energia pesquisadora, antes reservada à repre-
sentação, pode então ser canalizada para o movimento
puro da pesquisa; enquanto o sentido de pesquisar não
transcende o movimento da própria pesquisa e a profes-
sora-pesquisadora não pesquisa fora do plano de consis-
tência da pesquisa, nem fora da sua própria ação, de ma-
neira que só a pesquisa lhe dá o sentido do seu pesquisar
e ela não encontra jamais O sentido da pesquisa que faz.
DE ESCRITA

Essa Pesquisa Empirista Transcendental utiliza-se


de múltiplas linguagens – tais como pintura, música,
LINHAS

literatura, ciência, cinema, poesia, imagens, figuras,


emoções, gestos, corpos, séries de silêncio e de repouso,
movimentos divergentes etc. –, que garantem a consis-
tência da coexistência do heteróclito; põe essas lingua-
138

gens em relação com o que está sendo pesquisado; o que


está sendo pesquisado transforma-se assim numa unida-
de virtual, ou seja, numa unidade impossível, numa uni-
dade monstruosa, porque esvaziada dos elementos re-
presentativos ou emocionais, desde que é criado um vazio
na consciência atual; a partir dessa unidade virtual, en-
gendram-se vários movimentos da pesquisa que, em-
bora heterogêneos, se afectam uns aos outros.
O que uma pesquisa dessas nunca pesquisa são
estados de coisas, proposições, objetos, sujeitos, maté-
rias, corpos e representações. Se pesquisasse tudo isso,
seria um outro modo de pesquisar que estaria muito
distante da filosofia da diferença, já que, para esta
filosofia, pensar, assim como “pesquisar”, é um aconte-
cimento fazendo-se, em choque com o já feito, uma

PESQUISAR
experimentação dos conceitos e das imagens do pensa-
mento que animam uma Pesquisa do Acontecimento, cuja
principal pergunta é: mais do que historicizar, como

O
ACONTECIMENTO:
acontecimentalizar a pesquisa da educação, da pedago-
gia, do currículo, da infância?
Por isso, pesquisar o Acontecimento requer ope-
rações que se movimentem: dos corpos e estados de

ESTUDO EM
coisas aos acontecimentos; das misturas às linhas puras;
da profundidade à produção das superfícies; da libido
narcísica à energia dessexualizada; da superfície corpo-

XII
ral da sexualidade à cerebral ou metafísica do pensa-

EXEMPLOS
mento puro; do traçado da castração à fenda do pensa-
mento; do figurativo ao abstrato; da castração ao
pensamento; do “esposarei Albertine?” de Proust ao
problema da obra de arte por fazer; da árvore e seu ver-
139

de ao verdejar; dos alimentos ao comer; dos corpos e


seus sexos a um acasalar-se; das ações e paixões dos cor-
pos às verdades eternas; dos ruídos/qualidades/ações/
paixões dos corpos em profundidade à instância das al-
turas/voz/palavra; do visível ao invisível; dos sintomas à
parte inefetuável do acontecimento puro; das ações co-
tidianas ao atributo noemático/acontecimento puro
correspondente; da causa dos sintomas à quase-causa
da obra; da regressão psíquica à afirmação do processo
de dessexualização/investimento especulativo; do tabu-
leiro físico ao diagrama lógico; da superfície sensível à
placa ultra-sensível; da boca ao cérebro; do infra-sentido
(ou subsentido) da profundidade, do pré-sentido (Un-
tersinn), da voz da altura ao não-senso, que se torna
sentido, que toma um sentido na superfície; do ordena-
mento terciário da linguagem (mundo, ego, Deus) à
organização secundária (verbo ou representação verbal),
e, depois, até a ordem primária (conjunto das superfíci-
es); do cosmo ao campo acósmico; do pessoal ao im-
pessoal; do indivíduo ao pré-individual; do sentido
ao não-senso... para potencializar as forças que ficam
entre esses movimentos (cf. DELEUZE, 1998).
DE ESCRITA

EXEMPLO I: Noologia

Ao pesquisar as imagens do pensamento curricular,


LINHAS

por exemplo, Uhma Mvlier cria condições para com-


bater as ilusões desse pensamento, por meio de es-
tudos noológicos, que afirmam que os seus concei-
tos não são encontrados num céu preexistente, mas
140

que, ao contrário, respondem a problemas que, longe


de serem definitivos, são constantemente reformu-
lados ou dissolvidos por novas perspectivas curricu-
lares, podendo-se dizer que os problemas persistem
sempre nas soluções que lhes são atribuídas. Essa
Pesquisa Noológica não tenta identificar o plano de
imanência de todos os pensamentos curriculares em
geral; antes, procura, em cada pensamento, não ape-
nas determinar a sua imagem peculiar, como tam-
bém afastar o nevoeiro de generalidade ou de uni-
versalidade que o rodeia e restabelecer o momento
de originalidade das suas criações.
Assim, se os professores de uma determinada esco-
la criam o conceito “Perfis dos alunos”, para resol-
ver o problema de não mais agrupar os alunos, de-

PESQUISAR
terminar as etapas de seu desenvolvimento ou
selecionar os conteúdos curriculares sob o determi-
nante “idade”, essa criação singular supõe uma ima-

O
ACONTECIMENTO:
gem do pensamento do currículo, pela qual os alu-
nos são reunidos nas turmas por um novo tipo de
problema, qual seja: como derivar todos os alunos
de perfis puros, ou como imitar perfis originais, imu-

ESTUDO EM
táveis e intactos? Ao analisar essa nova imagem do
pensamento, a Pesquisa Noológica mostra que aquilo
que pretendia ser uma generalidade ou universalida-

XII
de curricular deriva apenas de uma certa imagem do

EXEMPLOS
pensamento específico daquele currículo, que cres-
ceu em torno de um problema particular, ou seja, a
“não-idade” como critério de organização das tur-
mas, imagens dos alunos e distribuição dos conteú-
141

dos – para levar os alunos a disputarem entre si o


título de “Rei/ Rainha do Perfil”.
Tal pesquisa encaminha à seguinte questão: o que
implicaria iniciar um pensamento do currículo de
forma não dogmática, ou com uma imagem que
não segregasse nenhuma ilusão de transcendên-
cia? O que significaria pensar um currículo sem a
necessidade de qualquer doxa? Pois, um pensamen-
to do currículo, antes de estabelecer um método
ou de procurar uma verdade, é sempre orientado –
embora não logicamente determinado – por uma
imagem que o abastece de suposições pragmáticas
ou o ajuda a determinar os modos do seu discurso.
É por isso que um certo pensamento do currículo
opera sempre fora da intuição dos seus problemas,
por meio de um drama característico, ou da in-
venção de personagens conceituais.
Tratar-se-ia de começar a pensar um currículo sem
pressupostos, de abdicar das presunções do senso
comum, de jogar fora as bússolas representacio-
nais, fenomenológicas, dialéticas, e transformar
todas as opiniões curriculares nas idiossincrasias
de um estilo de pensar-criar o currículo de outros
modos. De aprender que se é livre nessa pesquisa-
DE ESCRITA

criação, não quando toda a gente concorda ou joga


com as mesmas regras, mas, pelo contrário, quan-
LINHAS

do as regras e os jogadores não são dados de ante-


mão e emergem a par dos novos conceitos criados
e dos novos problemas que são colocados.
O objetivo de uma noologia do currículo consiste,
142

portanto, em indicar novas formas não dogmáti-


cas de pensar o currículo. Como? A noologia cur-
ricular – ou o estudo das imagens do pensamento
curricular – toma o lugar da história do currículo.
O pensamento curricular não é uma narrativa his-
tórica, dividida em épocas, nem ainda em círcu-
los, sejam eles dialéticos ou hermenêuticos, nem
nos confronta com um Destino Ocidental ou com
uma História Universal; tampouco é uma longa
discussão, em que uma das partes triunfa sobre a
outra com o melhor argumento, ou uma longa con-
versação que converte novas idéias em acordos, de
modo que aquilo que é novo ou singular se trans-
forma, imediatamente ou mais tarde, naquilo que
é consensualmente aceito.

PESQUISAR
O que é novo no pensamento de um currículo
permanece sempre assim: ainda novo. Cabe ao es-
tudo noológico dos pensamentos curriculares do

O
ACONTECIMENTO:
passado demonstrar aquilo que ainda é novo ne-
les, de modo que eles se vejam libertos de toda
idéia de épocas e, portanto, de imagens magnas,
como as da auto-realização do espírito humano,

ESTUDO EM
libertação dos oprimidos, cidadanização dos indi-
víduos, cotidianização da escola, multiculturali-
zação das minorias etc.

XII
Nessa Pesquisa Noológica, há sempre um momen-

EXEMPLOS
to de absoluta desterritorialização, quando é in-
ventada uma nova imagem do pensamento curri-
cular (quase uma ausência de imagem), que não
pode ser compensada nem pela comunidade ima-
143

ginada de uma dada nação (pensamento de um


currículo nacional), e exige assim a invenção de
outros e novos territórios. Não existe, aí, um im-
pério da verdade curricular, nem a necessidade de
postular qualquer verdade; dessa forma, Uhma Mvli-
er, para poder pensar filosoficamente um currículo,
deve reconhecer que houve muitos tipos de verdades
no pensamento do currículo e muitas maneiras de as
proclamar, mas, agora, ela precisa mostrar como o
novo pensamento do currículo e aqueles curriculistas
e professoras que o pensam são levados a fazer coisas
diferentes e quais são essas coisas.
A prioridade da noologia em relação à história do
currículo, às narrativas cotidianas do currículo, e
aos diferentes tipos de relações com a verdade que
elas estabelecem, altera também os tipos de rela-
ções do currículo com a arte, a ciência, a filosofia.
Pode-se, portanto, em cada estudo que for feito,
extrair a sua imagem de pensamento, advinda des-
sas relações e que se reflete no currículo particular,
ou no seu meio, de uma maneira original. Pode-se
responder, então: qual a imagem de pensamento
do currículo dos Governos Lula-FHC?; da Escola
Cidadã do município de Porto Alegre?; do currí-
DE ESCRITA

culo da CUT?; do currículo de Educação Infantil


do MST?; do currículo do Curso de Pedagogia da
UFRGS?
LINHAS

Uma Pesquisa Noológica, ou Pesquisa do Acontecimen-


to, também pode ser chamada Pesquisa Experimental. Em
144

que consiste esse experimentalismo? Primeiramente,


que os professores-pesquisadores abandonem de vez sua
volúpia de fazer pesquisas demasiado piedosas, messi-
ânicas, redentoras, salvacionistas; em segundo lugar, que
tais pesquisas suponham uma pura imanência, sem ele-
mentos primários ou transcendentes, que não sejam ima-
nentes a algo de anterior, tanto subjetivo quanto objetivo.
O propósito desse experimentalismo não consiste em re-
descobrir o eterno ou o universal, mas em encontrar as
condições sob as quais algo de novo é produzido.
Os professores pesquisam a sociedade, a cultura, a
escola, a didática, o currículo, a pedagogia, a própria
infância, mais como experimentos (que verdadeiramente
são) do que como leis, contratos, significações, signifi-
cantes, significados, cujas relações não se dão como as

PESQUISAR
das peças de um puzzle, a serem encaixadas, em lugares
previamente definidos, mas como pedras de tamanhos
dessemelhantes num muro ainda por cimentar. Por con-

O
ACONTECIMENTO:
seguinte, eles pesquisam os problemas introduzidos por
um Fora, que chega antes de as coisas se assentarem em
acordos e que persiste, subsiste e insiste no meio delas.
Realizam a experiência de pesquisar numa zona ante-

ESTUDO EM
rior ao estabelecimento de um “nós”, intersubjetivo e
estável, e transformam tal zona não na questão de um
reconhecimento de si mesmos nas coisas do mundo,

XII
mas antes na de um encontro com aquilo que eles não

EXEMPLOS
podem ainda determinar, com aquilo que eles não po-
dem ainda “descrever”, ou acerca do qual eles não po-
dem ainda concordar, uma vez que não possuem se-
quer as palavras para tanto.
145

Essa pesquisa aponta para que os professores en-


carem a Arte bruta de pesquisadores outsiders, que lhes
permitem entrar em relações externas com outras pes-
quisas feitas em outros domínios, já que existem dife-
rentes pedaços conceituais nesse tipo de pesquisa, sen-
do cada um deles introduzido, inicialmente, por uma
relação com um problema particular, e depois reintro-
duzido em novos problemas, vistos de novas perspecti-
vas. Há diversos encontros com problemas que surgem
nas artes, nas ciências, na própria filosofia, ou com acon-
tecimentos que problematizam o modo como eles condu-
zem a pedagogia ou educam para a sociedade tecnológica,
para o novo mercado de trabalho, introduzindo novas
questões, que pedem para serem repensadas ou rein-
ventadas.
Pesquisa Rizomática, que faz os professores em-
barcarem numa viagem conceitual, para a qual não existe
nenhum mapa prévio, e na qual eles são forçados a dei-
xar para trás as pesquisas habituais, sem nunca ter cer-
teza sobre o lugar onde irão aportar. Pode ser essa pes-
quisa a expressão de sua luta contra uma pesquisa
midiática, informacional, comunicacional, opiniática da
imagem do pensamento educacional dominante; e que,
à medida que se desenvolve, torna-se mais complexa
DE ESCRITA

nos seus alcances, procede por variação contínua dos


conceitos e dos problemas e espalha-se como um rizo-
LINHAS

ma, no qual há intensos períodos de invenção.

EXEMPLO II: Besteira


146

Pesquisar uma determinada imagem do pensamen-


to pedagógico supõe que ela seja entendida pela
relação com o seu negativo, ou por aquilo contra o
qual se dirige, seja o erro, a superstição, a ideolo-
gia etc. Só que, aqui, Uhma Mvlier entende que
uma imagem pedagógica se liberta dos seus pres-
supostos dogmáticos (do tipo: Criança-Aprendiz,
Professora-que-cometeu-suicídio-de-classe, Conheci-
mento-que-se-constrói, Ninguém-ensina-ninguém-
todos-aprendem-em-comunhão), somente na me-
dida em que tal imagem não tenha por negativo
um erro que deva ser corrigido, ou uma superstição,
ou ideologia, que devam ser superadas, mas, an-
tes, uma besteira (bêtise), ou estupidez, que deve
ser exposta ou atacada (cf. DELEUZE, 1988, p. 247-

PESQUISAR
250; DELEUZE e GUATTARI, 1992, p. 223). As-
sim, a professora defende que um verdadeiro pen-
samento pedagógico é aquele não dirigido contra

O
ACONTECIMENTO:
erros ideacionais ou proposicionais, contra algu-
ma superstição ou ilusão religiosas, contra uma ide-
ologia conservadora etc., mas, sobretudo, aquele
que enfrenta uma besteira anterior e mais inabor-

ESTUDO EM
dável, que suplanta esses problemas clássicos do
erro, da superstição, da ideologia etc.
Analisar a besteira na pedagogia implica ver tal

XII
besteira não como irracionalidade (mesmo que seja

EXEMPLOS
feita à custa de uma certa loucura da pesquisadora
e a envolva numa relação com algo de inumano ou
de intolerável); ao contrário, essa besteira implica
que o pensamento pedagógico não começa por um
147

desejo natural de saber-fazer, ou por um acordo


com uma luz natural do entendimento humano,
mas pelo encontro com alguma coisa que não se
coaduna com os modos habituais de ver e de pensar
o ato pedagógico, que abala o pensamento correla-
tivo, e apresenta algo de novo para fazer e pensar.
Se existe alguma coisa de bestial num pensamen-
to pedagógico sem imagem dogmática é porque
ele não depende da boa fé do conhecimento e deve
lidar com o choque de algo para o qual não existe
nenhum saber anterior, nenhum fazer assegura-
do, nenhum método perfeito. Disso deriva, por
conseguinte, que a professora tem de lidar com a
resistência aos modos habituais de pensar que um
tal choque provoca nela. Tornar problemático o que
antes não era, problematizar, é o que conduz a Pe-
dagoga da Besteira ao exterior da doxa, ao fora da
opinião, sem que isso lhe conceda, necessariamen-
te, as garantias de um conhecimento superior, já
que pensar em termos de problematização é uma
atividade terrivelmente perigosa.
Atacar, por meio da pesquisa, uma besteira peda-
gógica não é o mesmo que corrigir um erro, afastar
uma superstição ou criticar uma ideologia; não é
DE ESCRITA

uma desmistificação; e não supõe ciência mais ele-


vada. O objetivo da operação pesquisante da bes-
LINHAS

teira é o de dar nova visibilidade a novas forças,


formulando os problemas que estas forças colocam
e incitando uma atividade experimental da pesqui-
sadora em torno delas, porque o oposto da besteira
não é a inteligência, mas antes o próprio pensar.
148

Com a besteira enquanto “negativo” do pensamento


pedagógico sem imagem dogmática, a professora
pode pensar em que implicaria depositar a con-
fiança dos professores não em qualquer transcen-
dência, mas no mundo de que o pensamento pe-
dagógico deriva, e no qual ele se torna efetivo; além
de o que significaria atacar a besteira, ou estupi-
dez, também na vida de todos os professores e na
de seus alunos.
Assim, pesquisar contra a besteira pedagógica não
é usar uma inteligência cognitiva, mas exercitar a
perigosíssima atividade do próprio pensamento, o
qual adquire, então, um novo adversário; e o seu
objetivo é combatê-lo, já que este adversário con-

PESQUISAR
siste naquele triste estado dos pesquisadores e do
campo educacional, em que já não podemos, já não
fazemos, ou já não queremos mais pensar, apenas

O
ACONTECIMENTO:
emitir opiniões.
Para nos libertar do problema da besteira peda-
gógica, é necessário um choque, um efeito de
alienação, conceber novas estratégias de comba-

ESTUDO EM
te contra ela, já que o ato de pensar é insepará-
vel de uma violência que problematiza ou agita
a doxa e apresenta algo de novo para ser pensa-

XII
do. Para que Uhma, como Pedagoga da Besteira,

EXEMPLOS
possa pensar, ela precisa estranhar, radicalmen-
te, aquilo que ela ainda não pode dizer na lin-
guagem comum. Por isso, amiúde, ela utiliza as
palavras e escreve em modos não compreendidos
149

por seus antepassados e contemporâneos, e não


começa a pensar nunca com um desejo de verda-
de natural ou com uma inspiração divina, mas
com uma crueldade – exigida pelo ato de pensar
contra a besteira, este novo inimigo nas margens
de sentido, que são dadas pelos afectos e pelos
perceptos, irredutíveis à cognição.

A pesquisadora também pode nomear a Pesquisa da


Besteira, que vem experimentando, como uma Pesquisa
en Fuite, pois ela supõe que a sociedade, a cultura, a mí-
dia, a pedagogia, a infância, o currículo estão sempre en
fuite e podem ser entendidos na forma como lidam com
suas fuites. Ela sabe que toda determinação cria, ao
mesmo tempo, zonas de indeterminação, no que res-
peita às individualizações como pessoas, sexos ou gêne-
ros, classes ou estratos, até como membros da espécie
humana; e que é, a partir dessas zonas, que composi-
ções originais poderão surgir – justamente aquelas que
permitem os encontros a serem “descritos” no trabalho
de pesquisa.
Uma análise assim (também ela en fuite) intro-
duz a questão das minorias e das zonas de indetermi-
DE ESCRITA

nação, em primeiro lugar, e procura os processos mais


amplos que desterritorializam ou descodificam as re-
lações com nós mesmos e com os outros. Por isso, afir-
LINHAS

mar algo, a partir dessa pesquisa, não é nunca declarar


ou assumir, nem denunciar ou prescrever, mas sim
soltar o ar fresco das outras possibilidades, combater a
besteira e os clichês, potencializar aquilo que aumenta
150

as forças da afirmação, não da negação, não do luto e


da ausência, não das ironias cansadas e tristes, mas do
humor e da vida.
Pesquisa em Fuga, como uma grande máquina de
maquinar ligações, não assentada no sacrifício ou na
privação, mas maquinando contra o melancólico mo-
delo da página em branco ou da tela vazia, que propõe
uma visão em que a página ou a tela está sempre já co-
berta por demasiados clichês, demasiadas probabilida-
des, devendo todas ser afastadas até que a professora
encontre algo de vital, fazendo da novidade e da origi-
nalidade uma grande arte da experimentação.
EXEMPLO III: Em fuga

Como usuária pragmática da Pesquisa em Fuga, a

PESQUISAR
professora pesquisa uma sala de aula como não se
esgotando apenas em suas divisões distintivas; ao

O
contrário, a vê como estando sempre em fuga e

ACONTECIMENTO:
podendo ser analisada ou diagramatizada em ter-
mos de linhas de fuga (lignes de fuite). Sob suas
divisões e unidades, uma sala de aula se presentifi-
ca como complicada ou complexa, em modos que

ESTUDO EM
não estão contidos nos seus conflitos mais reco-
nhecidos e que dão origem a problematizações,
para as quais não existe consenso prévio, nenhum

XII
“nós pensamos que...”.

EXEMPLOS
Em uma sala de aula a ser cartografada, Uhma não
vê um espaço completamente segmentado, ou in-
teiramente estratificado, já que toda estratificação
segrega a possibilidade de outras relações compli-
151

cantes, capazes de se combinarem, num plano vago,


liso e não segmentado, que permite entre-espaços,
disparidades, devires. Por isso, a pesquisadora dis-
tingue entre multiplicidades segmentadas e não-
segmentadas, ainda que ambas devam ser encon-
tradas no mesmo espaço escolar. O que se lhe afigura
mais importante é que as segmentações disciplina-
res da sala de aula (tais como o espaço e o tempo,
regras, normas, leis) possuem linhas de fuga, devi-
res, toda uma micropolítica, que compõe, claro, uma
individualização normalizante, mas que também
inventa outras maneiras singulares de funcionar.
Ela traça, então, uma geometria das horizontais e
das verticais, no seio da qual pode cartografar ou
localizar todo movimento, e também das minorias
e devires escolares que funcionam como diagonais
ou transversais e que sugerem outros movimen-
tos. Para Uhma, fazer esse diagrama consiste em
expor as linhas diagonais e as possibilidades por
elas inauguradas, elaborando uma carte que não é
um calque – um mapa que não é um decalque – de
algo de anterior, mas que serve para indicar as zo-
nas de indistinção, a partir das quais surgem os
devires, caso já não estejam presentes de forma im-
DE ESCRITA

perceptível no próprio ato de cartografar.


Em outras palavras: a professora sabe que nunca
LINHAS

poderá desenhar, nos movimentos expressivos da


pesquisa, um espaço escolar, como a sala de aula,
completamente com coordenadas cartesianas, já
que esse espaço envolve muitos infra-espaços, que
152

introduzem distâncias e proximidades não quan-


tificáveis. Por isso, ela não traçará apenas linhas
que vão de um ponto fixo a outro, mas, também,
linhas que se encontram em pontos situados na
intersecção de muitas linhas emaranhadas.
Os orientandos e alunos da professora pesquisa-
rão, assim, um currículo, uma sala de aula ou uma
escola, como uma “totalidade aberta” (no sentido
bergsoniano), por imaginarem que, debaixo das
suas histórias e divisões oficiais, existem outras
potências, que são atualizadas por outros tipos
de encontro e de invenção: minorias, diferenças
moleculares, devires, processos de descodificação e
de desterritorialização etc. Eles libertarão a imagina-
ção da pesquisa de toda representação de algo dado,

PESQUISAR
anterior, original. Eles farão com que a pesquisa se
torne parte de uma “fabulação” (DELEUZE e GUAT-
TARI, 1992, p. 218, ss.) escolar, ao traçarem percur-

O
ACONTECIMENTO:
sos das minorias, com as quais experimentarão tudo
o que está fora dos estados escolares, todas as espécies
de fugas que escapam a estes estados ou de forças
que estes tentam capturar. Nessa pesquisa, todos

ESTUDO EM
procedem por experimentação, apalpação, injeção,
recuperação, avanço, retirada, vendo os pontos en fuite,
que não são obstáculos a remover, mas em torno dos

XII
quais surgem novos devires e onde ganham formas

EXEMPLOS
novas maneiras de pensar.

A estética de uma Pesquisa en Fuite tem a forma


não de um juízo, mas antes de uma experimentação e
153

de uma criação que desafiam todos os juízos. Talvez, o


seu segredo resida aí: em fazer existir as coisas, os cor-
pos, os estados e, também, as linhas de fuga, e nunca
em julgar. Formular os problemas de pesquisa e resol-
ver conceitos em entendimentos não-filosóficos cons-
titui, em si mesma, a principal atividade dessa Pesquisa-
filosofia. Pesquisar, como uma atividade filosófica,
implica produzir conceitos e não aplicar conceitos pré-
vios ou extraídos de outros domínios (como acontece
com a pedagogia quando se alia à psicologia ou à socio-
logia), exige a fabricação de conceitos em ressonância e
em interferência com as artes, as ciências, a filosofia, o
que implica que o pesquisador não seja aquele guerrei-
ro armado com alguma teoria prévia e sim um experi-
mentador que ajuda a formular novos problemas, ou
que sugere novos conceitos.
Há mesmo um lado pragmático da Pesquisa em
Fuga que é contra a teoria, na medida em que os pes-
quisadores só podem realmente pesquisar onde aquilo
que deve ser pesquisado não foi já dado; e embora uma
pesquisa dessas possa despojar-se de muitos usos co-
muns nas artes ou na crítica, ela sempre resiste a ser
erigida em nova teoria, a qual bastaria então aplicar.
DE ESCRITA

Porque a Pesquisa-filosofia não é uma teoria; é uma arte


de mergulhar na zona peculiar do impensado, que de-
sestabiliza as idéias feitas, na qual tanto a arte como o
LINHAS

pensamento da pesquisa adquirem vida e descobrem as


suas ressonâncias mútuas.
Os conceitos produzidos a partir dessa pesquisa
supõem, ou ajudam a resolver, a própria imagem do
154

pensamento educacional. A estética da Pesquisa-filo-


sofia está, portanto, envolvida numa luta intrapesquisa
e adota o procedimento singular de recorrer, especial-
mente, à filosofia para mostrar à educação o modo de
fugir da imagem dogmática do pensamento, sob a qual
ela própria vinha operando.

EXEMPLO IV: Problema

Para fugir da imagem dogmática do pensamento


da pesquisa educacional, os pesquisadores têm
clareza de que pesquisar é criar e criar é proble-
matizar. Para essa Pesquisa Problematizadora ou
Crítica, problematizar não significa responder a

PESQUISAR
“perguntas de pesquisa”, como era entendido por
outras imagens de pesquisa, mas determinar os
dados e as incógnitas do problema, desenvolver o

O
ACONTECIMENTO:
máximo possível estes elementos em vias de deter-
minação e encontrar os casos de solução corres-
pondentes a esse desenvolvimento.
Ao pesquisar a infância contemporânea, por exem-

ESTUDO EM
plo, os pesquisadores escolhem movimentos vir-
tuais absolutos vividos no presente pelos infantis,
os compõem como variações interdependentes,

XII
inventam os personagens conceituais mais produ-

EXEMPLOS
tivos para descrever tais variações, procuram tra-
çar as melhores coordenadas sobre o plano de ima-
nência do pensamento acerca da infância.
O conceito-solução forjado não anula o problema
155

infância-roubada, por exemplo, mas faz parte desse


problema, ou melhor, é o próprio problema na com-
pleta expressão das suas condições, ou levado até a
sua última determinação. Tal problema é resolvido
à medida que se determina, e a sua determinação é
a gênese da sua solução; uma solução que não tem
sentido, independentemente do problema a deter-
minar, nas suas condições e incógnitas, enquanto
estas também não têm sentido independentemente
das soluções determináveis como conceitos.
Essa pesquisa atua criticamente não por promo-
ver o jogo contraditório das opiniões, mas por
sua problematicidade, ou crise permanente. O pro-
blema da Pesquisa Crítica não é uma interrogação
formulada por uma proposição, que possui outra
proposição correspondente que lhe serve de res-
posta, a qual se supõe que lhe seja preexistente de
direito, mesmo se não foi enunciada ainda de fato,
ou se essa resposta não foi ainda encontrada.
Também “o problema de pesquisa” não é uma “hi-
pótese” (do tipo: a infância nunca existiu), tal como
as outras pesquisas representacionais supunham,
fosse positivista, fenomenológica ou dialética; e não
pode ser hipotético, porque o problema não é afe-
DE ESCRITA

tado por um coeficiente de incerteza a ser supera-


do no final, nas conclusões, nos resultados, mas
LINHAS

persiste na solução e por meio dela.


O problemático não pode ser confundido com o
hipotético, já que determinar as condições de um
problema nada tem a ver com algum caráter in-
156

tervalar negativo, com simples limitações de fato.


O problema fim-de-infância, neste exemplo, des-
fruta de uma absoluta positividade de direito, de
uma afirmatividade não-subjetiva, de uma natu-
reza própria, em tudo diferente de suas soluções,
que o torna ineliminável por estas. O problemáti-
co não remete para qualquer psicologia do conhe-
cimento ou epistemologia, mas designa a objetivi-
dade da Idéia e a realidade do virtual; é uma
dimensão “objetiva” não atual, o horizonte ima-
nente dos próprios seres, coisas, acontecimentos.
“Problematicidade” pode ser outro nome para o
plano de imanência da realidade pesquisada, se
remetida à sua estrutura caósmica.
A natureza objetiva da instância-problema é defi-

PESQUISAR
nida exclusivamente por problemas, constituída por
Idéias-problemas, por Idéias problemáticas; e pro-
blemáticas não porque sejam carentes de objeto

O
ACONTECIMENTO:
ou de solução, mas porque o seu “objeto” é inde-
terminado, ou seja, não se trata de um objeto im-
perfeito, mas dele como duma dimensão “objeti-
va” da realidade, que só é representável sob forma

ESTUDO EM
problemática, embora já atuante na percepção
como foco unificador (cf. DIAS, 1995, p. 79, ss.).
Desse modo, o problemático subsiste nas soluções

XII
porque possui um estatuto positivo, uma idealida-

EXEMPLOS
de “objetiva”, que o torna irredutível a um estado
de incerteza subjetivo. Isso não encaminha os pes-
quisadores a estabelecer os problemas como dados
ou preexistentes, contradizendo a prática da pes-
157

quisa como problematizante, criadora de proble-


mas. O plano problemático ou complicado da rea-
lidade pesquisada, esse horizonte virtual absoluto,
é o que, a cada vez, a Pesquisa Problematizadora
tem de recortar, retraçar, restabelecer de acordo com
uma nova imagem do pensamento, isto é, segundo
novas determinações, cujas condições devem ser,
também a cada vez, criadas sobre esse horizonte.
Problematizar, desse modo, corresponde a desen-
volver a problematicidade imanente envolvida nos
seres e nos seus acidentes, construindo as condi-
ções particulares a cada domínio (arte, ciência,
filosofia) dessa determinação explicativa. A pro-
blematização da Pesquisa Crítica é o processo de
determinar as condições de consistência do plano
problemático imanente, tomado na sua pura vir-
tualidade, fora de todas as determinações atuais.
O movimento do pensamento da pesquisa vai sem-
pre do problemático, como estrutura “objetiva” da
realidade, para os problemas como criação do es-
pírito, circuito que é percorrido virtualmente, como
movimento não de referência mas de consistência,
de modo que o pensamento é estritamente extra-
proposicional, ou não encontra na forma das pro-
DE ESCRITA

posições uma solução possível.


Os problemas designam, assim, estados não-subje-
LINHAS

tivos, objetividades ideais, de um modo que não se


pode pensá-los em termos das categorias lógicas do
verdadeiro e do falso. A análise lógica de outro pen-
samento da pesquisa distinguia problemas verda-
158

deiros de pseudoproblemas, só que ela definia os


problemas pela sua resolubilidade, ou seja, extrin-
secamente, pela possibilidade que cada problema
tinha de receber uma solução na forma de proposi-
ções verificáveis, na sua adequação às coisas ou a
estados de coisas, que lhes serviam de referentes.
Já o que interessa à Pesquisa Problematizadora não
é a verdade dos problemas dependente de sua re-
solubilidade, mas é essa resolubilidade relativa ao
processo de autodeterminação dos problemas. As
soluções são engendradas ao mesmo tempo em que
os problemas de pesquisa são determinados por
suas condições, e são essas condições e o modo de
determinação dos problemas que definem formas
específicas de resolubilidade.

PESQUISAR
Os problemas de tal pesquisa caracterizam-se, en-
tão, como verdadeiros ou falsos independentemen-
te de toda possibilidade de resolução e de toda for-

O
ACONTECIMENTO:
ma, quer seja lógica, científica, transcendental etc.
É apenas em si mesmos que os problemas encon-
tram o critério de sua verdade ou falsidade (ou
melhor, do seu sentido), segundo a boa ou má re-

ESTUDO EM
partição das suas singularidades e a suficiência ou
insuficiência de tematização decorrente de suas
condições; em suma, segundo a medida da sua

XII
determinação, de maneira que os pesquisadores

EXEMPLOS
podem dizer que um problema completamente de-
terminado é um problema resolvido. Assim, o ver-
dadeiro e o falso concernem primeiramente aos
problemas, antes do que às soluções; por isso, uma
159

“solução tem sempre a verdade que merece de acor-


do com o problema a que ela corresponde; e o pro-
blema tem sempre a solução que merece de acordo
com sua própria verdade ou falsidade, isto é, de
acordo com seu sentido” (DELEUZE, 1988, p. 260).
Os problemas práticos ou especulativos construí-
dos pela Pesquisa Problematizadora não são som-
bra de soluções preexistentes, mas as suas soluções
decorrem necessariamente das condições comple-
tas sob as quais os problemas foram determina-
dos como problemas, dos meios e dos termos de
que os pesquisadores dispõem para formulá-los.
Tanto é assim que as noções de sem-sentido, de
falsos sentidos, de contra-sensos devem ser referi-
das aos próprios problemas.
A verdade de um problema de pesquisa não pree-
xiste a ele, não é uma verdade a ser descoberta,
mas é objeto de uma criação, produto do sentido-
acontecimento, quer dizer, “reformulação dos da-
dos dos problemas, invenção de novas condições,
suscitação de novos modos de ver, de sentir e de
pensar. [...] A verdade depende sempre do senti-
do, não o inverso, e o sentido de uma coisa é a sua
novidade, a sua singularidade, o seu interesse, a
DE ESCRITA

sua possibilidade de novas percepções, afecções ou


ideações” (DIAS, 1995, p. 85).
LINHAS

O mais elevado poder do pensamento dessa pes-


quisa é a criação, não a faculdade da verdade, dig-
na do paradigma lógico-cognitivo ou racionalis-
ta, mas a do novo, a da criação de sentido, própria
160

da filosofia. Desse modo, os “resultados” e os con-


ceitos criados por ela são sempre verdadeiros, se-
gundo a verdade que eles conseguem produzir,
introduzir no mundo, atravessar, passar. Eles são
sempre, portanto, “resultados” indiscutíveis, não-
criticáveis, já que a sua rejeição em favor de ou-
tros resultados-conceitos tem sempre por condi-
ção outros problemas de pesquisa e outras imagens
do pensamento. Não há “resultados” ou concei-
tos melhores ou piores, apenas aqueles mais apro-
priados aos problemas daquela pesquisa, reativá-
veis ou não de acordo com novas necessidades de
criação; e a crítica de uma pesquisa limita-se a
assinalar a sua não pertinência, ou a insuficiência
de sua composição, quando os conceitos são trans-

PESQUISAR
postos para um novo problema e para um novo
plano. Criticar uma pesquisa assim só pode ser
olhar de outro plano e a partir de outros proble-

O
ACONTECIMENTO:
mas, e aqueles pesquisadores que criticam sem
criar são os que confundem crítica com discus-
são, ou que agitam velhos conceitos inúteis, so-
mente para inibir a criação (cf. DELEUZE e GUAT-

ESTUDO EM
TARI, 1992, p. 41-42).

Nessa Pesquisa Estilística, definida por suas linhas

XII
de energia e de sentido, as pesquisadoras não tratam de

EXEMPLOS
convencer nem de vencer quem quer que seja, mas de
produzir um sentido partilhável, interessante, que for-
neça algo para pensar. Assim, concluir uma pesquisa
não é construir saber ou conhecimento, mas criar, por
161

meio de conceitos, novas possibilidades de pensamento


e de existência, longe das coações lógicas e epistemoló-
gicas: criação do novo, do notável, do importante, e
nunca descoberta.
Pesquisar com estilo, ou criar um estilo em pes-
quisa, não é simplesmente adotar ou importar figuras
sociais, políticas, epistemológicas de outros campos
(como a Professora-construtivista da Epistemologia Ge-
nética, o Aluno-cidadão dos PCNs dos Governos FHC-
Lula, o Professor Desejante da Psicanálise-Educação),
mas o estilo é uma questão de vergar e transformar a
linguagem da pesquisa, de modo a criar os personagens
conceituais e o jogo para as idéias singulares, em rela-
ção às quais não existem palavras ou histórias preexis-
tentes, mas que, entretanto, impressionam com uma
obscura necessidade.
As pesquisadoras, nesse caso, utilizam de modo
peculiar os conceitos, podem compô-los em séries ou
platôs, encorajar os seus usos conceituais, ao mesmo
tempo que frustrar as aplicações, imprimir suavidade
díspar à sua escrita e usar todo humor e riso disponí-
veis. Isso porque a escrita da pesquisa expressa uma con-
dição em que as escritoras são tomadas em agenciamen-
DE ESCRITA

tos coletivos minoritários, que as levam a dar a palavra


àqueles que não a possuem (cf. DELEUZE e GUATTARi,
1992, p. 141, ss.), encontrando-se com estes em um
LINHAS

devir, sem o qual não haveria escritura da pesquisa.


As pesquisadoras-escritoras são corpos prenhes de
devires, e as suas escritas menores funcionam como ex-
pressão desses devires, desses encontros. Há, por outro
162

lado, aquelas pesquisadoras que almejam ser majoritá-


rias, mas o problema daquelas que realizam e escrevem
uma Pesquisa Estética é como viver os devires-minoritá-
rios de uma mulher, de um animal, de um índio, de
uma criança, o que não significa imitá-los, mas tornar-
se tudo isso. Elas escrevem de modo filosófico, ou seja,
como ficção científica, ou história policial, com concei-
tos no lugar de personagens, os quais intervêm para re-
solver problemas específicos e se alterarem a si mesmos,
à medida que novas questões emergem e novos dramas
tomam forma.
EXEMPLO V: Gaia

Para realizar essa Gaia Pesquisa, Uhma Mvlier adota

PESQUISAR
as seguintes orientações: 1) pratica a pesquisa so-
bre o currículo, de modo filosófico, como um jogo

O
afirmativo de novidade e de experimentação con-

ACONTECIMENTO:
ceitual; 2) intui que “o” currículo que ela “pega”
para analisar não é uma linguagem, um código
narrativo, ou um sistema proposicional, mas antes
um material expressivo, anterior à “boa forma” e,

ESTUDO EM
portanto, à matéria e ao conteúdo, o qual ganha
“forma” por meio de devires de imagens e signos;
3) tem claro que a idéia do devir-currículo a ser

XII
analisado não deriva de um determinismo históri-

EXEMPLOS
co ou contextualista, que os estudos sobre o currí-
culo consistem não numa história, mas na realiza-
ção de uma cartografia das várias imagens
curriculares, para responder à pergunta: que novos
163

regimes de signos e imagens acerca do currículo


podem ainda ser inventados? 4) tem presente que
o “eu” e o “nós-pesquisador” não vêm antes de um
devir-pesquisa, mas constituem, pelo contrário,
parte da sua experimentação; que uma “vontade
de pesquisa” não segue nenhum senso comum, não
obedece a normas ou juízos intersubjetivos esta-
belecidos, não se reduz a definições sociológicas
ou a exigências institucionais e não pode ser diri-
gida por qualquer vanguarda ou mentor: essa é sua
força; 5) a professora pesquisa como quem se deixa
arrastar e transformar-se por um devir-currículo, ou
inventa maneiras de ver, dizer e escrever coisas
novas sobre o currículo através dele e se deixa in-
ventar pelo próprio processo de pesquisar.

Se existe uma “vontade de pesquisa”, ela não per-


tence a um agenciamento conhecido ou identificável,
mas, antes, vê novos caminhos, que interferem e resso-
am uns com os outros, graças a um material de expres-
são ainda informe ou incodificado. Nessa pesquisa edu-
cacional, ao modo filosófico, as “questões”, o
“problema”, o “objeto”, o “sujeito” não estão aí, nunca
são dados, devem ser inventados de novo, ainda estão
DE ESCRITA

por vir, porque essa pesquisa surge numa condição par-


ticular: a condição em que algo de novo pode surgir.
LINHAS

Uma vontade de pesquisa relaciona-se sempre com


a emergência de algo de novo e de singular que precede
o pesquisador e que exige que ele e os outros se inven-
tem enquanto povo-pesquisador. Esse novo não é algo
164

familiar e visível, mas algo que ainda não foi visto, que
não se pôde ver, que está a acontecer, algo que os pes-
quisadores precisam tornar imperceptível, de modo a
poder vê-lo. Por isso, eles pesquisam não para reprodu-
zir aquilo que já podem ver, mas para tornar visível aquilo
que não podem ainda ver (cf. DELEUZE, s/d, p. 39, ss.),
porque existe em toda Pesquisa-filosofia uma violência
daquilo que vem antes da formação dos códigos e dos
sujeitos, a qual é condição para que as coisas sejam di-
tas e vistas em novos modos.
Num reino de pesquisas, eivadas de definições, banali-
dades, rotinas, clichês, reprodução mecânica, automatismos,
o desafio dos pesquisadores é extrair uma imagem sin-
gular, um modo múltiplo de pensar e de dizer as coisas
da educação. A grande questão dessa Pesquisa Caosmóti-

PESQUISAR
ca consiste em criar não um plano teológico ou teleológi-
co, mas um plano de composição, que opera por séries e
variações superficiais e introduz pequenas, porém vitais

O
ACONTECIMENTO:
diferenças em todos os seus movimentos.

EXEMPLO VI: Saara

ESTUDO EM
Assim como o pintor não pinta nunca sobre uma
tela virgem, nem o escritor escreve sobre uma pági-

XII
na em branco, porque tanto a tela como a página

EXEMPLOS
estão cobertas de clichês preestabelecidos, também
os pesquisadores de currículo não pesquisam sobre
um zero, sobre um nada, mas sobre a realidade do
pensamento curricular repleta de clichês, que de-
vem ser eliminados até que encontrem um espaço
165

vital de possibilidades (vida enquanto poder não-


orgânico), que não é um vazio intocável, mas o que
Deleuze chama um deserto, “Saara” (cf. DELEUZE, s/
d, p. 56): povoado de nômades, ou de uma espécie
nômade de acaso e distribuição espacial – o tipo de
acaso cheio de possibilidades, as quais não podem
ser abolidas por qualquer lançamento de dados.

A Pesquisa-que-põe-algum-Saara-no-cérebro tenta
libertar o pesquisador do asfixiante sentido das possi-
bilidades dadas e das idéias feitas; mesmo nos mais
antigos e conceituados pesquisadores seniores, ela trava
uma luta contra o catatonismo da pesquisa, cujo esfor-
ço é extrair a possibilidade da probabilidade, a multi-
plicidade da unidade, a singularidade da generalidade.
É uma pesquisa que, definitivamente, deixou o domí-
nio da representação para se tornar experimento, “ex-
periência, empirismo transcendental, ou ciência do sen-
sível” (DELEUZE, 1988, p. 107).
O que significa extrair a pesquisa da representa-
ção e fazer dela uma matéria de experimentação? Pode-
ria ser como extrair da literatura um ser da linguagem,
anterior aos arranjos epistêmicos ou discursivos das pa-
DE ESCRITA

lavras e das imagens, atingindo o murmúrio anônimo


do discurso, a partir do qual as epistemes surgem, ou no
LINHAS

qual elas se afundam (cf. ALMEIDA, 2003). Extrair a pes-


quisa educacional da representação é descobrir nela algo
de louco e de impessoal, anterior ao eu-penso, ao nós-
julgamos; é extraí-la da relação entre sujeito e objeto,
suposta na concepção de representação; é libertá-la da
166

subordinação a um senso comum, a conceitos ou dis-


cursos prévios; é proceder a iluminações que tornam
visível o que ainda não pode ser visto ou pensado, ou
perspectivas múltiplas que coexistem; é esquecer ativa-
mente o que já está aí e experimentar afirmativamente
aquilo que ainda está por vir.

EXEMPLO VII: Arte

A expressão de uma Pesquisa Artística, não deter-


minada pela representação, alegoria, simbolismo,
iconografia, realiza-se através de imagens e signos
que fazem dela uma experimentação estética. As-
sim, operada como obra de arte, ela é um compósi-

PESQUISAR
to de afectos e perceptos, que são os dois tipos bási-
cos de sensação e que não devem ser confundidos
com os estados subjetivos, nem com a sensibilidade

O
ACONTECIMENTO:
(cf. DELEUZE e GUATTARI, 1992, p. 216, ss.), por-
que estão nas próprias coisas pesquisadas, não nos
pesquisadores. Os afectos vão para além dos pes-
quisadores – os quais passam pelos afectos, e não

ESTUDO EM
são os afectos que passam pelos pesquisadores – e
são impessoais, inumanos até; os perceptos não são
modos de apresentar a ação pedagógica, por exem-

XII
plo, perante um olho, mas paisagens pedagógicas,

EXEMPLOS
nas quais os pesquisadores-artistas devem se perder
para que possam ver com novos olhos-artistas.
A Pesquisa da Artistagem nada quer com os hábi-
tos, percepção, memória, reconhecimento, acor-
167

dos; ao contrário, ela obriga os pesquisadores a ver


e a sentir a educação em modos imprevistos, sen-
do uma estranha construção habitada por eles, atra-
vés da transmutação ou da auto-experimentação.
Composta por sensações pré-lingüísticas e pré-
subjetivas, tal Pesquisa Anorganizada clama pela
mobilidade, não existe para salvar ou aperfeiçoar
os pesquisadores, nem para os amaldiçoar ou cor-
romper, mas para complicar as “coisas” da educa-
ção e, nos pesquisadores, para criar sistemas óticos
mais complexos e não mais subservientes perante
os efeitos debilitadores dos clichês e das opiniões.
Ela rearma o sistema nervoso e revitaliza o cére-
bro, libertando os pesquisadores, na mente e no
corpo, do peso das identidades fundamentadas e
das formas habituais de fazer pesquisa.
No empirismo dessa Pesquisa Diagnóstica, os “re-
sultados” não são mais uma matéria de previsão, mas
uma questão de diagnóstico e de experimentação
com o desconhecido. O jogo de seu pensamento
não pertence ao cálculo das probabilidades, mas ao
mundo do acaso e da indeterminação. A conversão
empírica do pesquisador expressa-se pelo dizer “sim”
ao que é estranho e singular na sua existência: “Será
DE ESCRITA

o bastante para fazer os loucos rirem [...] – todo o


problema consiste em acreditar num mundo que os
LINHAS

inclua” (RAJCHMAN, 2002, p. 150).

O “objeto” da nova pesquisa em educação já não


se define por uma forma essencial, mas atinge uma fun-
168

cionalidade pura e passa, então, a ser chamado “objéc-


til” (cf. DELEUZE, 1991, p. 37, ss.). Diferencia-se do
“objeto”, que comporta uma idéia de padrão, mantém
uma feição de essência e impõe uma lei de constância.
Com novo estatuto, esse objeto-projétil ocupa lugar em
um contínuo por variação, não é mais reportado a um
molde espacial, isto é, a uma relação forma-matéria,
mas a uma modulação temporal que implica tanto a
inserção da matéria em uma variação contínua como
um desenvolvimento contínuo da forma. Enquanto o
objeto está impregnado da idéia de molde, como modu-
lação de maneira definitiva, o objéctil “modela-se”,
modulando de maneira contínua e perpetuamente va-
riável, não só temporal mas qualitativamente, visto que
os sons, as cores são flexíveis e tomados nessa modula-

PESQUISAR
ção: “É um objeto maneirista e não mais essencialista:
torna-se acontecimento” (DELEUZE, p. 39).
Se o objeto faz-se objéctil, mudando profunda-

O
ACONTECIMENTO:
mente de estatuto, isso também acontece com o “sujei-
to” da pesquisa, que se transforma em “superjecto”. Este
parte de um ramo da inflexão e determina um ponto,
que não é exatamente um ponto, mas um lugar, uma

ESTUDO EM
posição, um sítio, um foco linear, linha saída de linhas.
O lugar ocupado pelo superjecto é chamado “ponto de
vista”, na medida em que representa variação ou infle-

XII
xão. Ele expressa o perspectivismo do pesquisador, que

EXEMPLOS
não significa uma dependência em face de um sujeito
definido previamente (daí o “sub-jecto”); ao contrário,
é superjecto aquele que vem ao ponto de vista, ou so-
bretudo aquele que se instala no ponto de vista, que
169

ocupa este ponto metafísico.


Todo ponto de vista é um ponto de vista sobre
uma variação, e não há simplesmente uma variação em
razão da variedade dos pontos de vista (embora haja tal
variação), mas, em primeiro lugar, porque não é o pon-
to de vista que varia com o sujeito; ao contrário, é o
ponto de vista que é a condição sob a qual um eventual
superjecto apreende uma variação.
O perspectivismo dessa pesquisa é certamente um
relativismo, mas não o relativismo comum, já que se
trata não de uma variação da verdade de acordo com
um sujeito, mas da condição sob a qual a verdade de
uma variação aparece ao superjecto; ele é também um
pluralismo, mas, como tal, implica a distância e não a
descontinuidade (não há vazio entre dois pontos de vis-
ta). O ponto de vista sobre uma variação vem substituir
o centro de uma figura ou de uma configuração.
É o objéctil de pesquisa que descreve um conjun-
to de curvas; ele é como uma desdobra, que não é o
contrário das dobras, como tampouco o invariante é o
contrário da variação: é um invariante de transforma-
ção, designado por um signo ambíguo. O objéctil está
envolvido na variação, assim como a variação está envol-
DE ESCRITA

vida no ponto de vista; ele não existe fora da variação,


como a variação não existe fora do ponto de vista.
Assim, o Pesquisador Superjecto pesquisa em um
LINHAS

mundo infinito, que perdeu todo o centro, que foi subs-


tituído pelo ponto de vista, que repudia as noções tá-
teis, em proveito de uma arquitetura da visão, que só
tem objécteis existentes através das suas metamorfoses:
170

mundo, para sempre perspectivado como verdade da re-


latividade, não mais como relatividade do verdadeiro.
O ponto de vista, em cada Pesquisa Perspectivista,
é potência de ordenar os casos, condição da manifesta-
ção do verdadeiro. Há necessidade de assinalar o ponto
de vista, sem o qual não se pode encontrar a verdade,
isto é, seriar a variação ou determinar os casos. A tarefa
é encontrar sempre o bom ponto de vista, ou o melhor,
aquele que determina o indeterminado por signos am-
bíguos, aquele que fornece as respostas e os casos, sem
o qual só haveria o caos.
EXEMPLO VIII: Atenção

Pesquisar uma escola, desse modo, não é atribuir

PESQUISAR
ao pré-consciente as multiplicidades escolares
molares, reservando para o inconsciente o outro

O
gênero de multiplicidades moleculares, porque o

ACONTECIMENTO:
que pertence de todo modo ao inconsciente é o
agenciamento das duas, a maneira pela qual as
multiplicidades molares condicionam as molecu-
lares e pela qual estas preparam as molares, ou de-

ESTUDO EM
las escapam, ou a elas voltam.
O grande desafio é manter-se atento a tudo o que

XII
acontece na escola ao mesmo tempo: “à maneira pela

EXEMPLOS
qual uma máquina social ou uma massa organizada
tem um inconsciente molecular que não marca uni-
camente sua tendência à decomposição, mas com-
ponentes atuais de seu próprio exercício e de sua pró-
pria organização; à maneira pela qual um indivíduo
171

tal ou qual, tomado numa massa, tem ele mesmo


um inconsciente de matilha que não se assemelha
necessariamente às matilhas da massa da qual ele faz
parte; à maneira pela qual um indivíduo ou uma
massa vão viver em seu inconsciente as massas e as
matilhas de uma outra massa ou de um outro indi-
víduo” (DELEUZE e GUATTARI, 1995b, p. 49).

Apaixonar-se por um problema de pesquisa é ex-


trai-lo de um grupo de problemas, mesmo restrito, do
qual ele participa, mesmo que por sua família teórica ou
por sua imagem de pensamento, e, depois, buscar as
multiplicidades que ele encerra e que são, talvez, de uma
natureza completamente diversa: “Ligá-las às minhas,
fazê-las penetrar nas minhas e penetrar as suas. Núpcias
celestes, multiplicidades de multiplicidades” (DELEUZE
e GUATTARI, 1995b, p. 49).
Não existe paixão por um problema de pesquisa que
não seja um exercício de problematização sobre um corpo
sem órgãos a ser construído; e é no ponto mais alto dessa
problematização que um problema pode adquirir a discer-
nibilidade mais intensa na apreensão instantânea dos múl-
tiplos que lhe pertencem e aos quais ele pertence.
DE ESCRITA

EXEMPLO IX: Mapa


LINHAS

O que acontece primeiramente naquilo que se está


pesquisando é uma “desterritorialização absoluta,
uma linha de fuga absoluta, por mais complexa e
172

múltipla que seja, aquela do plano de consistência


ou do corpo sem órgão (a Terra, a absolutamente-
desterritorializada)”. E essa linha de fuga só se tor-
na relativa por estratificação naquele plano, naquele
corpo: os estratos são sempre resíduos, não o in-
verso. Por isso, na Pesquisa da Desterritorialização
Absoluta, nunca perguntaremos como alguma coisa
sai dos estratos, mas antes como as coisas aí en-
tram. De modo que há continuamente imanência
da desterritorialização absoluta na relativa e agenci-
amentos maquínicos entre estratos que regulam as
relações diferenciais, assim como os movimentos re-
lativos têm também picos de desterritorialização vol-
tados para o absoluto: “Sempre imanência dos es-
tratos e do plano de consistência, ou coexistência

PESQUISAR
dos dois estados da máquina abstrata como a de
dois estados diferentes de intensidades” (DELEU-
ZE e GUATTARI, 1995c, p. 72-73).

O
ACONTECIMENTO:
A orientação geral para desenvolver esse tipo de pes-
quisa pode ser: “São os decalques que é preciso re-
ferir aos mapas e não o inverso” (DELEUZE e GUAT-
TARI, p. 33); ou então: “Religar os decalques ao

ESTUDO EM
mapa, relacionar as raízes ou as árvores a um rizo-
ma” (DELEUZE e GUATTARI, 1995a, p. 23-24).
Ressituar os impasses sobre o mapa e por aí abri-

XII
los sobre linhas de fuga possíveis poderia fornecer

EXEMPLOS
os seguintes exemplos: 1) Para estudar um pro-
blema de pesquisa como o do pequeno Hans: mos-
trar como ele tenta constituir um rizoma com a
casa da família, com a linha de fuga do prédio, da
173

rua etc.; como essas linhas são obstruídas, como o


menino é enraizado na família, fotografado sob o
pai, decalcado sob a cama materna; como a inter-
venção de Freud assegura uma tomada de poder do
significante como subjetivação dos afetos; como
Hans não pode mais fugir senão sob a forma de um
devir-animal apreendido como vergonhoso e cul-
pado: “o devir-cavalo do pequeno Hans, verdadeira
opção política”; 2) A mesma coisa para um mapa
de grupo: mostrar até que ponto do rizoma for-
mam-se fenômenos de massificação, de burocracia,
de leadership, de fascistização etc.; mas, no entanto,
quais linhas, mesmo subterrâneas, subsistem e con-
tinuam a fazer rizoma, nem que seja obscuramen-
te; 3) Para usar o método Deligny: mapear os gestos
e os movimentos de uma criança autista, combinar
vários mapas para a mesma criança, para várias cri-
anças (DELEUZE e GUATTARI, 1995a, p. 24).
Não podemos perder de vista que o mapa (ou o
rizoma de uma pesquisa) tem entradas múltiplas;
por isso, se pode entrar nelas pelo caminho dos
decalques ou pela via das árvores-raízes, observan-
do-se as precauções necessárias, como, a mais im-
portante, de renunciar aos dualismos maniqueístas.
DE ESCRITA

Em algumas passagens da pesquisa, seremos obri-


gados a cair em impasses, passar por poderes signi-
LINHAS

ficantes e afetos subjetivos, nos apoiar em forma-


ções edipianas, paranóicas ou piores do que isso,
sobre territorialidades endurecidas; pode ser que até
a Psicanálise nos sirva de ponto de apoio; em ou-
174

tras, aí sim, poderemos nos apoiar sobre uma ou


mais linhas de fuga, que explodem os estratos, rom-
pem as raízes e operam novas e inéditas conexões.
Há, então, para serem pesquisados agenciamentos
muito diferentes de mapas-decalques, rizomas-ra-
ízes, com coeficientes variáveis de desterritoriali-
zação. Mas, existem também estruturas de árvore
ou de raízes nos rizomas, assim como um galho de
árvore ou uma divisão de raiz podem recomeçar a
brotar em rizoma. O que faremos, como procede-
remos nas atividades de pesquisa não depende de
análises teóricas que impliquem universais, e sim
de uma pragmática que compõe as multiplicida-
des ou conjuntos de intensidades: “No coração de
uma árvore, no oco de uma raiz ou na axila de um

PESQUISAR
galho, um novo rizoma pode se formar”. Ou, en-
tão, “é um elemento microscópico da árvore raiz,
uma radícula, que incita a produção de um rizo-

O
ACONTECIMENTO:
ma” (DELEUZE e GUATTARI, 1995a, p. 24).
Por exemplo, os parâmetros e diretrizes curricula-
res procedem por decalques; eles podem, no entan-
to, começar a brotar, a lançar hastes de rizoma, como

ESTUDO EM
num livro de Foucault, de Carroll, de Proust, de
Joyce. Um traço intensivo pode começar a traba-
lhar por sua conta; uma percepção alucinatória, uma

XII
sinestesia, uma mutação perversa, um jogo de ima-

EXEMPLOS
gens podem destacar-se e a hegemonia do signifi-
cante ser, definitivamente, colocada em questão.
“Semióticas gestuais, mímicas, lúdicas, etc, reto-
mam sua liberdade na criança e se liberam do ‘de-
175

calque’, quer dizer, da competência dominante da


língua do mestre – um acontecimento microscó-
pico estremece o equilíbrio do poder local.” Exem-
plo: os conteúdos das “árvores-curriculares” pode-
riam abrir-se em todos os sentidos e fazer rizoma,
de modo a produzir hastes e filamentos que pare-
cem raízes, ou melhor ainda, que se conectam com
elas penetrando no tronco, podendo fazê-las ser-
vir a estranhos e inesperados usos: “Estamos can-
sados da árvore. Não devemos mais acreditar em
árvores, em raízes ou radículas, já sofremos mui-
to” (DELEUZE e GUATTARI, 1995a, p. 25).
Não podemos esquecer que, quando referimos os
decalques aos mapas, e não os mapas aos decal-
ques, estamos pesquisando contra “os sistemas
centrados (e mesmo policentrados) de comuni-
cação hierárquica e ligações preestabelecidas”, já
que “o rizoma é um sistema a-centrado não hie-
rárquico e não significante, sem General, sem me-
mória organizadora ou autômato central, unica-
mente definido por uma circulação de estados”.
Lembramos que, no rizoma, o que está em ques-
tão é sempre “uma relação com a sexualidade, mas
também com o animal, com o vegetal, com o
DE ESCRITA

mundo, com a política, com o livro, com as coi-


sas da natureza e do artifício, relação totalmente
LINHAS

diferente da relação arborescente: todo tipo de


‘devires’” (DELEUZE e GUATTARI, 1995a, p. 33).
É crucial para a Pesquisa Rizomática, desde o iní-
cio, saber como as coisas entram nos estratos, mais
176

do que como elas saem, deformam-se, desseg-


mentarizam-se, já que a ordem de passagem é a
do absoluto (da matéria instável não-formada)
para o relativo (formações, estratos etc.). Na pes-
quisa, vamos perguntar e responder: como se re-
aliza esta passagem do desestratificado ao estra-
to? Para isso: “Temos que pensar a desterritoria-
lização como uma potência perfeitamente
positiva, que possui seus graus e seus limiares
(epistratos) e que é sempre relativa, tendo um
reverso, uma complementaridade na reterritoria-
lização” (DELEUZE e GUATTARI, 1995c, p. 69).
Toda Pesquisa do Acontecimento é intensiva e se faz
em limiares de intensidade nos quais evolui ou, então,
transpõe. É sempre por intensidade que se pesquisa, e

PESQUISAR
os deslocamentos, as figuras no espaço dependem de
limiares intensivos da desterritorialização nômade, por
conseguinte, de relações diferenciais que fixam, ao mes-

O
ACONTECIMENTO:
mo tempo, as reterritorializações sedentárias e comple-
mentares (DELEUZE e GUATTARI, 1995c, p. 70, ss.).
Todo Pesquisador do Acontecimento vê-se em face do
seguinte enigma: como é possível que alguma coisa de

ESTUDO EM
novo surja na educação? Ora, os estratos agem como bu-
racos negros, com a atividade de formar as matérias do
plano desestratificado, capturar fluxos e intensidades, fi-

XII
xar singularidades, e fazem isso através de duas opera-

EXEMPLOS
ções: por codificação, modos de codificação, e por terri-
torialização. Uma máquina abstrata compõe códigos e
territorialidades, mas ela também os atravessa de pontos
de descodificação e de pontos de desterritorialização, que
177

fazem com que todo código comporte uma margem es-


sencial de descodificação (suplementos capazes de variar
livremente), da mesma maneira que territorialidades atra-
vessam limiares de desterritorialização que correspondem
a estados transitórios, valências, ligações mais ou menos
localizáveis. Os estratos ocorrem quando populações se
territorializam e se desterritorializam, se codificam e se
descodificam e também se reterritorializam; quando li-
nhas de fuga (desterritorialização absoluta) são barradas,
bloqueadas pelas formações de poder produzidas no pró-
prio agenciamento e que as fazem perder seu potencial
criativo, sua mobilidade e flexibilidade.
EXEMPLO X: Agenciamento

Cada escola, como todo agenciamento social, tem


duas faces: agenciamento técnico-maquínico (uma
máquina-prisão, máquina-tribunal, máquina-con-
fessionário) e agenciamento coletivo de enuncia-
ção (cf. DELEUZE; PARNET, 1998, p. 153, ss.); uma
face voltada para os estratos, a outra para o corpo
sem órgãos, ou plano de consistência, tanto que,
no trabalho de pesquisa, cartografamos os seus blo-
cos-segmentos (poderes e territórios) e os seus flu-
xos, pontos de desterritorialização (por onde uma
DE ESCRITA

escola foge e faz fugir).


Pela teoria do agenciamento, as pesquisadoras não
LINHAS

encontrarão numa escola apenas segmentos estan-


ques, tais como campo da realidade, instância repre-
sentativa da linguagem ou campo de subjetividade.
Ao problematizá-la e descrevê-la, ressaltarão que os
178

seus agenciamentos são sempre de desejos, desde que


só há desejo agenciado e agenciando, desde que o
desejo é revolucionário e experimentador.
Mas, quando as pesquisadoras podem dizer que
um agenciamento escolar é novo? Dado um con-
junto de signos, o seu problema é saber qual agen-
ciamento eles efetuam, de que regimes de signos
participam, se são potências criativas e galopam
em direção aos limites (desterritorialização) ou se
formam blocos de captura (reterritorialização).
Elas tratam da montagem e da desmontagem de
agenciamentos, de linhas, blocos, forças, materiais,
pois só estes podem dizer-lhes em que medida
um fluxo escapa, cria, inventa ou, se por outro
lado, um bloco se cristaliza. Se as pesquisadoras

PESQUISAR
vão descrever, avaliar, pesar os agenciamentos es-
colares, é sempre em função de critérios imanen-
tes, segundo seu teor em possibilidades, em liber-

O
ACONTECIMENTO:
dade, em criatividade (cf. DELEUZE, 1990).
As pesquisadoras ficam atentas para responder à
seguinte questão: quando um enunciado pedagó-
gico ou uma máquina técnica, como a escola, abrem

ESTUDO EM
campos de possibilidades? Ora, em cada agencia-
mento, separam as linhas que o atravessam em duas
direções: 1) linhas que formam contornos, figu-

XII
ras, dentros, estrias, segmentos, blocos; 2) linhas

EXEMPLOS
de variação que atravessam o agenciamento de
devires, metamorfoses, variações, intensidades,
mudanças, novas relações.
Uma escola, um currículo, uma disciplina, uma
179

formação social, um quadro, um conto, uma sub-


jetividade, um grupo compõem: 1) um sistema
retilíneo, mas também 2) um sistema sempre aber-
to a um plano de consistência não formado (em
toda forma alguma coisa sempre corre, escorre,
foge). Todo agenciamento será, assim, cartografa-
do nos seguintes elementos: 1) planos de estratifi-
cação que compõem quadros, segmentos e blocos;
2) plano de consistência que estica linhas segundo
seu potencial de fuga e variação.
A Pesquisa Aberta vai cartografar, nos agenciamentos
de enunciação e nas multiplicidades linguageiras da
escola, as passagens mais desterritorializadas, os
procedimentos variáveis que distribuem dinamis-
mos, além das fugas nessas configurações. Vai en-
trever, multiplicar as linhas de fuga em todos os
domínios, conectar-se nelas de modo que um agen-
ciamento escolar, didático, metodológico, curri-
cular, familiar, comunitário possa preparar as con-
dições de enunciação coletiva que não seja comando
e interdição. Vai falar de um dispositivo de forças
passando em meio a todos os componentes do
agenciamento. Vai descrever o plano de consis-
tência e sua matéria aformal, as últimas partes in-
DE ESCRITA

finitamente pequenas de um infinito atual, graus


de intensidade, resistência, velocidade, traços de
expressão desterritorializada ou tensores.
LINHAS

Porque sabem que o estatuto da forma e do formado


implica secundariedade em relação ao não-formado,
as pesquisadoras têm como ponto de partida o trans-
180

cendental definido como Fora, ou uma superfície


intensiva e aformal, que se desdobra numa tempora-
lidade aformal (Aion) e que não se confunde com o
transcendente, na medida em que sua imanência é
absoluta como idealidade, virtualidade.

Uma Pesquisa Microfísica, que faça uma microfísi-


ca do poder, vê os poderes e as normatizações nas lutas;
e, mais do que abordar a dominação social ou suas ins-
tâncias hegemônicas, ressalta, sobretudo, as lutas em
suas múltiplas perspectivas. Logo, na visão microfísica,
Uhma Mvlier não pode falar de maneira fundamentada
de normalidade e desvio, mas de diferentes padrões de
normalização e desviação. A pluralidade dos pontos de
poder e campos de força acarreta o alargamento, senão

PESQUISAR
afrouxamento, desses dualismos. Não cabe, na analítica
do poder (ao menos de Foucault), qualquer maniqueís-
mo, porque ela trabalha com as lateralidades e os deslo-

O
ACONTECIMENTO:
camentos parciais, derivando daí a questão da possibili-
dade de saída da normalização, fora de um
reagenciamento social global. Essa analítica passa de
um ideal de revolução física, da transformação de uma

ESTUDO EM
ordem social por outra antecipadamente previsível ou
tangível, para uma idéia de revolução química, da trans-
formação da rede de poder pelo imponderável, que cons-

XII
tituem os afloramentos inesperados dos campos de luta

EXEMPLOS
na configuração do seu jogo (cf. BRANCO, 1997).
Como é possível, para a pesquisadora, detectar, aí,
um devir? Primeiramente, ela deve ficar atenta para a
distinção entre diferenciação e “alternativas”, já que o devir
181

não consiste no reverso de uma mesma moeda: nas ditas


práticas pedagógicas “alternativas”, por exemplo, não se
tem de fato um devir, pois nelas se está assumindo uma
forma de prática antecipadamente legitimável, que ape-
nas produz uma ilusão de mudança, para logo se reterri-
torializar, para logo se exercer em outro ponto um mes-
mo domínio nos múltiplos lugares da rede de poder.
Em segundo lugar, terá presente que o processo
do devir é o de estar-entre, numa passagem entre os
caminhos; é a diferenciação, o devir-outro, no interstí-
cio dos pontos de poder, dado que seria aquilo que é
condição de novidade sem que a pesquisadora esteja na
vontade de fazer novidade. A diferenciação não pode
ser objeto de justificação, não visa à legitimidade, por-
que é uma paixão: paixão no sentido de que a pesquisa-
dora é forçada a caminhar num outro pólo. A diferen-
ciação dá-se quando uma inesperada ruptura acontece,
quando algo incita a um começo, já que ela é heterogê-
nea, da ordem do quase-vazio, da quase-causa, paixão
que é marca da linha de fuga, expressão da virtualidade:
devir-acontecimento.
Diferenciação material e incorporal: é nesse nível
material e incorporal que a diferenciação advém como
produto involuntário de uma coação – é o pensamento.
DE ESCRITA

Mas, não se trata do pensamento na perspectiva carte-


siana, entendido como bom senso ou inteligência. Pois,
LINHAS

a inteligência aí, com boa vontade, quando busca al-


gum fundamento, chega a uma solução teórica ou prá-
tica que já estava contida na forma de problematizar, e
essa solução aparece como possibilidade natural. A in-
182

teligência relaciona o saber ao código e ao método, en-


quanto a aprendizagem dessas leva à calma possessão
de uma regra de soluções.
Assim, um aluno inteligente é designado pelo sen-
so comum dos professores como sendo aquele que sabe
fazer conforme o esperado, que estabelece soluções plau-
síveis para o mundo prático; e essa inteligência, com
seus cálculos e medidas, é do domínio seja da normali-
zação seja da alternativa. Para além do bom senso, trata-
se de analisar a diferenciação no e pelo pensamento, do
que é da ordem da problematização, do que ocorre com o
estranhamento no pensamento: “O ato de pensar não
decorre de uma simples possibilidade natural; é, ao con-
trário, a única criação verdadeira. A criação é a gênese
do ato de pensar no próprio pensamento. Ora, essa gê-

PESQUISAR
nese implica alguma coisa que violenta o pensamento,
que o tira de seu natural estupor, de suas possibilidades
apenas abstratas” (DELEUZE, 1987, p. 96).

O
ACONTECIMENTO:
Trata-se de descrever a diferenciação no pensa-
mento, deslocado por algum constrangimento de seu
caminho previsível, de um modo que o pensamento fica,
por isso, tomado por questões diferenciais ao próprio

ESTUDO EM
ato de pensar. Nesse momento, capta-se a criação, isto
é, o que vem à existência, pela criação, qual seja: uma
nova intelecção e uma nova valoração, que operam como

XII
uma desaprendizagem, como uma deseducação, como

EXEMPLOS
uma saída dos roteiros ideais das pedagogias, didáticas,
metodologias. A pesquisa, aqui, debruça-se sobre o pen-
samento a-pedagógico, a-didático, a-metodológico; so-
bre o pensamento como movimento da alma, variação
183

contínua de paisagem, inquietação permanente, cons-


trução de novos mundos, fundação de novas taxiono-
mias, não modelar, metamórfico, que cria na diferença,
não está a serviço da boa intenção, é força terrível, da
ordem da crueldade.
Descreve-se o pensamento como a instância por
excelência da diferenciação, e que não tem nada a ver
com a forma exterior e explícita da contestação ou da
resistência. Ao contrário, sua característica maior é a
discrição, já que alardear uma criação é quase impos-
sível, e o pensamento não depende da fórmula do su-
cesso ou da marginalização, pois ele só pode ser uma
singularidade delicada, quase imperceptível. Apesar
disso, é pela criação que se dão todas as transforma-
ções radicais.

EXEMPLO XI: Impessoal

Para analisar algum aluno (ou professor), nos de-


bruçamos sobre o impessoal deleuziano (cf. DE-
LEUZE, 1997, 1998, 2002, 2003; SCHÉRER, 2000;
SIMONDON, 2003; TADEU, 2003), que designa um
modo de individuação que não é aquele que co-
DE ESCRITA

nhecemos, dos indivíduos, sujeitos e objetos, mas


que compreende a individuação numa direção de
superação do indivíduo, como realidade constitu-
LINHAS

ída e dada, a partir da qual o ser pode ser pensado.


A pesquisa se volta, por conseguinte, à individua-
ção do ser desde as operações pré-individuais que
o constituem, em relação às quais o individual pode
184

ser pensado como, simplesmente, uma das fases


do ser. A individuação é entendida como devir do
ser, isto é, surgimento de fases, sendo o indivíduo
apenas uma dessas fases, sempre relativa à opera-
ção de individuação e à problemática inicial que
ele jamais esgota. Por isso, um aluno é pensado
enquanto ser como realidade pré-individual, par-
tindo de uma operação de individuação que se pro-
cessa como resolução de uma problemática pré-
individual – contra um modelo de pesquisa que
pensa o princípio de individuação a partir de um
indivíduo já constituído. Um aluno não resulta da
bipolaridade forma-matéria, mas aparece como um
sistema tenso, supersaturado, carregado de tensões
pré-individuais, das quais a individuação é solução,

PESQUISAR
sem jamais as esgotar. Ele não é pensado pelas ca-
tegorias da unidade, da identidade, na medida em
que elas não se aplicam a qualquer ontogênese, isto

O
ACONTECIMENTO:
é, não se aplicam ao devir do aluno, como ser que se
desdobra e se defasa ao individuar-se.
Assim, nessa Pesquisa do Impessoal, é privilegiada a
análise dos acontecimentos em detrimento das sub-

ESTUDO EM
jetividades (eu/tu) e das objetividades (ele), desde
que não há subjetividades e objetividades que não
sejam operadas pelo Acontecimento, enquanto flu-

XII
xo de criação pré-individual. Reportar um aluno a

EXEMPLOS
acontecimentos leva-nos a pensar nos processos de
individuação que se desdobram e os excedem, sem-
pre desproporcionais à unidade, e nos conduz a
uma realidade que não pode ser percebida enquanto
185

nos deixávamos guiar pelos conceitos de indiví-


duo constituído e de identidade.
O que importa descrever não são alunos como
pontos-centros, mas aquilo que se passa entre eles,
no que se passa entre os seus corpos, aquilo que
sempre faz devir os seus corpos: um acontecimen-
to impessoal. Seguimos, então, a arte que possui
um tipo de olho que não pára nos indivíduos, mas
vai aos acontecimentos puros e aos devires que es-
tão em pauta nas coisas e nas pessoas. Pesquisa dos
Encontros: reino das individuações sem sujeito,
em devir, que comportam elementos materiais,
corpos que não são mais do que potências afecti-
vas, poder de afectar e ser afectado, encontros: uma
criança, um pátio, um muro, uma luz, o brilho de
um olhar, intensidades de um rosto...
Porém, não basta apreender um impessoal, enquan-
to oposto ou ao lado das individuações subjetivas: é
cada aluno, os sentimentos, uma mulher, um ani-
mal, que são tornados potências de um impessoal,
singularidades impessoais no mais alto grau.
O que implica essa Pesquisa da Singularidade? Pri-
meiramente, eliminar todo recurso ao geral, ex-
DE ESCRITA

presso pelo artigo definido: o aluno, o professor, a


criança... A singularidade foge à generalidade, pois
implica a emergência de traços absolutamente cir-
LINHAS

cunstanciais, que não são os mesmos que proces-


sos pessoais. A singularidade não é da ordem do
indivíduo, mas dos acontecimentos e das atmos-
feras, e os traços singulares não-pessoais que a pes-
186

quisa é capaz de compor são os trajetos e devires.


Definem-se, então, os trajetos, explora-se um
meio, uma trajetória, uma viagem. Nessa dimen-
são em extensão, não basta considerar os traços
singulares dos personagens implicados no trajeto;
é preciso considerar a singularidade do meio que
se reflete naquele que o percorre, seus materiais,
barulhos, acontecimentos. Descrever uma trajetó-
ria é descrever a partida extensional de uma ope-
ração de individuação que se desdobra em perso-
nagem e meio. Pode-se tomar a vida escolar de
um aluno, onde “formar-se” equivale ao processo
de individuação-trajeto que individualiza esse per-
sonagem e o meio escolar. Um trajeto é assim uma
individuação sem sujeito que conduz personagem

PESQUISAR
e meio por uma via impessoal, e vê-se bem por
que, numa pesquisa assim realizada, há muito pou-
co de memória, já que a seleção de um trajeto de-

O
ACONTECIMENTO:
pende mesmo é de uma cartografia, feita com ma-
pas, caminhos, planos de viagem e de encontros.
Mas, não é suficiente cartografar esses trajetos sem
mostrar os devires, sem mostrar como a singulari-

ESTUDO EM
dade extensiva é afectada por gradientes de inten-
sidade, por afectos. Aqui, o pesquisador pensa um
aluno que está pesquisando enquanto graus de

XII
potência ou diferenças intensivas, em que não há

EXEMPLOS
ainda subjetividade, pessoalidade, nem humani-
dade, na medida em que ele pode ser definido pe-
los afectos e intensidades de que é capaz, e se apre-
senta, neste plano de vida pré-subjetivo, como
187

populações de afectos e de intensidades.


Turbilhão de vidas, efervescência do caos: o que
se pesquisa é colocado em planos pré-subjetivos,
das potências afectivas, e efetuado o trânsito das
intensidades mais radicais, de maneira que os con-
ceitos de impessoal e de individuação sem sujeito
introduzem na problemática de um aluno singu-
laridades extensivas (trajeto e meio) e intensida-
des (afectos), fazendo com que ele não possa mais
ser visto nem pensado sem os dinamismos de uma
realidade complexa e diferenciada que o torna em
si uma multiplicidade. Interconectividade ou
entremultiplicidades: um aluno visto como um ser
tenso, agitado por problemas, afectos e intensida-
des, que vive em uma rede de conexões fora da
qual não há individuação; um ser que, ao indivi-
duar-se, integra necessariamente uma problemá-
tica mais vasta, participa de sistemas de individu-
ação mais amplos e estabelece aí relações, de modo
que a realidade pré-individual que nele se agita
reúne-se à dos outros, participando de uma verda-
deira operação de individuação coletiva.
Os processos de individuação supõem assim o tran-
sindividual, com suas problemáticas e modos de
DE ESCRITA

resolução, com sua metaestabilidade, isto é, seus


potenciais de transformação e de constituição de
LINHAS

novas individuações. Com o conceito de “agencia-


mento coletivo de enunciação”, é possível superar
noções eivadas de subjetividade lingüística, tais
como sujeito de enunciação e sujeito de enunciado,
188

não remetendo a uma simples operação de somató-


rio de indivíduos. Esse conceito de agenciamento
não aponta apenas a existência de dois termos 1+1,
mas uma conexão de heterogêneos, onde há algo
que acontece entre os termos, uma operação de in-
dividuação que os faz colidir, que os cerca e arreba-
ta. O agenciamento coletivo de enunciação não é
apenas numericamente superior ao sujeito, um co-
letivo; antes, ele é uma individuação coletiva.
O impessoal, desdobrado em fazer-se vapor, e en-
contro de um vapor com outro, é abertura das sub-
jetividades e dos objetos para uma virtualidade que
os extrapola e conecta, para além dos limites do
individual e do meramente coletivo. Mas, qual é a
linguagem do impessoal? A forma verbal do infi-

PESQUISAR
nitivo apreende as singularidades de sentido e de
acontecimento, independentemente das coordena-
das espaço-temporais (estudar, tornar, chegar, en-

O
ACONTECIMENTO:
contrar etc.), enuncia o tempo do acontecimento
puro ou o devir. Os nomes próprios designam in-
dividuações por hecceidades, já que nomear um
aluno (ou uma professora, uma briga, um assalto,

ESTUDO EM
uma doença) é sempre recolher na linguagem os
traços individuantes que se encarnam no designa-
do. Os artigos e os pronomes indefinidos introdu-

XII
zem hecceidades (Era uma vez... Uma criança brin-

EXEMPLOS
ca...) e encontram sua individuação no
agenciamento do qual eles fazem parte.
Essa Pesquisa dos Signos, capazes de fomentar o
impessoal, isto é, de manter a agitação, a nuvem e
189

as conexões de um campo que só se individualiza


relativa e secundariamente, encontra na indetermi-
nação do se (fala-se) e no verbo impessoal (chove) as
figuras contrárias ao tu, ponto de subjetivação, a
partir do qual cada um constitui-se como sujeito;
ao Eu, que designa o sujeito que enuncia e refle-
te-se no enunciado; ao eu, como sujeito do enun-
ciado, passível de ser substituído por ele.
Descreve-se um aluno que não coincide com o
indivíduo individuado, senão que contém em si,
sempre, uma certa proporção irredutível de realida-
de pré-individual, como um precipitado instável,
como algo composto, já que há nos seres indivi-
duados uma carga de indeterminado, de realidade
pré-individual, que passou através da operação da
individuação sem ser individuada; enquanto o pré-
individual é percebido, antes de tudo, como um tipo
de passado não resolvido: a realidade do possível, de
onde surge a singularidade bem definida, persiste
ainda nos limites desta última – o pré-individual –,
que é o tecido íntimo do sujeito, constitui o meio
(milieu) do aluno individuado (cf. SIMONDON, 2003).
Assim, não se assimila um aluno ao indivíduo, e a
coexistência do pré-individual e do individuado no
DE ESCRITA

seio dele está mediada pelos afectos; emoções e


paixões assinalam a integração provisória dos dois
LINHAS

aspectos, mas também seu eventual desapego,


embora não falte angústia quando não se conse-
gue compor os aspectos pré-individuais de sua ex-
periência com os aspectos individuados.
190

A individuação de um aluno não está garantida de


uma vez para sempre: pode regressar sobre seus
passos, fragilizar-se. O pré-individual parece, às
vezes, inundar a singularidade: esta é como aspi-
rada no anonimato do “se”; outras vezes, de ma-
neira oposta e simétrica, força a reduzir todos os
aspectos pré-individuais de sua experiência à sin-
gularidade pontual – extremos de uma oscilação
constante e não suprimível.
Um outro perigo, na análise de um aluno, é conside-
rar que este, desde o momento em que participa de
um coletivo, deve suprimir algumas características
individuais, renunciar a certos signos distintivos
que nele se mesclam e que são impenetráveis. Pa-
rece que, de acordo com um senso comum disfor-

PESQUISAR
me, no coletivo a singularidade se dilui, que é re-
gressão, o que, para Simondon (2003), é pura
superstição: obtusa epistemologicamente e equí-

O
ACONTECIMENTO:
voca desde o ponto de vista da ética, alimentada
por aqueles que acreditam que o indivíduo é um
ponto de partida imediato. Se, ao contrário, ad-
mite-se que o indivíduo provém de seu oposto, isto

ESTUDO EM
é, do universal indiferenciado, o problema do co-
letivo toma outro caráter, qual seja, de que a vida
do grupo é o momento de uma ulterior e mais com-

XII
plexa individuação. Longe de ser regressiva, a

EXEMPLOS
singularidade alcança seu apogeu no atuar conjun-
tamente, na pluralidade de vozes. O coletivo não
prejudica a individuação, não atenua a individua-
ção, mas a persegue, aumenta desmesuradamente
191

sua potência. Essa continuação concerne à parte da


realidade pré-individual que o primeiro processo de
individuação não tinha resolvido, pois a instância
do coletivo é ainda uma instância de individuação:
o que está em jogo é dar uma forma contingente e
impossível de confundir com o indeterminado, isto
é, com “a realidade do possível” que precede a sin-
gularidade (cf. ALMEIDA, 2003, p. 115, ss.).

Na Pesquisa Pática, abolimos o ser, em favor do


acontecimento como entidade, a ontologia em prol de
um evenemencialismo; privilegiamos uma orientação
pática do pensamento, estabelecendo de direito um pen-
samento-pathos capaz de elevar a faculdade de pensar à
sua superior competência intrínseca, de criação ou ino-
vação (cf. DIAS, 1995, p. 35-63). Para isso, exercitamos
uma crítica fundamental, uma vertente “negativa”, que
exige: emancipar o exercício pensante do modelo lógi-
co da verdade; denunciar a matriz doxológica desse
modelo, quer dizer, denunciar o decalque da forma li-
mitativa do senso comum pelo pensamento determina-
do como racional. Em outras palavras, destituímos o
ser e orientamos paticamente o pensamento, por meio
da desarticulação da concepção tradicional predominan-
DE ESCRITA

te do pensamento, e tornamos evidente o seu funciona-


mento sobre a operação prática de pensar – funciona-
LINHAS

mento que decorre dos compromissos contraídos por


essa imagem desde os seus pressupostos implícitos.
A pertinência desse modo de pensar a pesquisa
justifica-se por sua inventividade anárquica em sinto-
192

nia, por contigüidade ou à distância, com elementos da


política, da ciência, da arte, da filosofia. Para esse pen-
samento, não existe a falsa alternativa: função “cultu-
ral” mediadora ou comunicativa da pesquisa, ou o au-
tismo do conceito (especulações visionárias avessas a
procedimentos de validação, ou encerramento estéril na
exegese da tradição educacional); e também nada há de
salvamento da pesquisadora da pseudo-opção: prota-
gonismo intelectual público ou solidão sem ecos, luzes
da ribalta da moda ou gueto meditativo privado.
Essa pesquisa não opera com idéias reguladoras de
um senso comum “crítico”, nem por meio de consensos
como opinião “razoável” da maioria, mas é inseparável de
um caráter de inatualidade ou de intempestividade. Pes-
quisar os acontecimentos, via objectéis e superjectos, não

PESQUISAR
tem a ver com ruidosos ou mais silenciosos (mas, nem
por isso, menos atuantes) eventos, atualidades, senso co-
mum ou bom senso do pensamento dogmático da edu-

O
ACONTECIMENTO:
cação. Aliás, esses elementos são totalmente inaptos para
captar acontecimentos, ou só os capturam quando já se
transformaram em fenômenos “atuais”.
É que os acontecimentos não são os “fatos” educa-

ESTUDO EM
cionais, como dados históricos ou vividos; e, embora os
acontecimentos não existam fora das suas efetuações,
também não se esgotam nelas, nem se encontram ape-

XII
nas no seu existir atual: “O acontecimento é imaterial,

EXEMPLOS
incorporal, invivível” (DELEUZE e GUATTARI, 1992, p.
202). A substituição da questão ontológica “o que é...?”
(essência) pelas questões “o que é que se passou?”, ou “o
que é que se vai passar?” (e: onde e quando?; em que
193

casos e circunstâncias?) não é uma reconversão filosófi-


ca ao aqui-e-agora, não é uma troca do essencial pelo
acidental. Os acontecimentos a serem pesquisados não
são os acidentes, coletivos ou individuais, mas antes di-
namismos criadores, perfeitamente insensíveis pelos
canais da tradição.
Quando esses dinamismos se traduziram já em
processos em atos perceptíveis e, como tais, tratáveis
como informação (A avaliação é um processo...) e, portan-
to, como matéria de opinião (Eu acho que a avaliação é...),
ou existentes (Existem três tipos de avaliação...) no cam-
po educacional, ainda aí, o que o pensamento ortodoxo
da tradição pode reter é apenas uma atualização particular
do acontecimento, uma porção de sua existência sensível,
já que o Acontecimento, em sua idealidade, é inesgotável
por suas atualizações sempre diferentes; ele não é o que
existe, mas o que subsiste fora de sua existência sensível,
como auto-subsistente, não como uma noção geral, sim-
plesmente inteligível, mas como singularidade real estri-
tamente virtual: “Ele [o acontecimento] não é o que acon-
teceu nem o que está na iminência de acontecer, ele está
entre ambos, é as duas coisas ao mesmo tempo, o inatual
entre-dois, em simultâneo o que vai ocorrer e o que ocor-
reu já num tempo próprio, sem presente, num tempo infi-
DE ESCRITA

nitivo não-cronológico” (DIAS, 1995, p. 15).


Pesquisar o Acontecimento, experimentá-lo e des-
LINHAS

crevê-lo como produção de acontecimentos e a ele pró-


prio, de cada vez, como Acontecimento: essa é a princi-
pal prática pesquisadora, a qual troca o eterno pelo
presente, embora esse presente não capture, conceitu-
194

almente, o “ser” do presente, como uma fenomenologia


da atualidade, ou uma compreensão sintética da reali-
dade histórica. Praticar, nessa pesquisa, a “ontologia do
presente” (ao modo de FOUCAULT, 1991) leva as pesqui-
sadoras a detectarem, no presente, não a parte do ser,
mas a do devir, a parte inatual da realidade atual, visan-
do, assim, conceitualizar as tendências que traçam, na
face atual do presente, novas configurações não-atuais.
Elas distinguem o presente e o atual, separam no
presente a parte do atual e vinculam o pensamento da
pesquisa a essa parte, que é o Novo, o outro lado virtual
do presente, o devir-outro do presente: o presente como
o que elas são, mas o atual como aquilo que no presente
estão deixando de ser. Estabelecem a distinção não en-
tre o presente e o passado (a história), mas entre duas

PESQUISAR
co-dimensões ou partes do presente: a parte histórica
ou do “ser” desse presente e a sua parte virtual ou não-
histórica de devir.

O
ACONTECIMENTO:
Por esse motivo, os acontecimentos cartografados
pela Pesquisa do Devir nunca se confundem com os “da-
dos”: os acontecimentos encontram-se em produção, são
alguma coisa a produzir, a construir na sua consistência

ESTUDO EM
específica, e só uma pesquisa dessas está apta para tal
construção, porque só ela detém a capacidade de criar
conceitos, visto ser uma pesquisa de ordem filosófica.

XII
Pesquisar a parte virtual ou não-histórica do Aconteci-

EXEMPLOS
mento implica, portanto, tratar os conceitos como acon-
tecimentos e não como noções gerais, como singularida-
des e não como universais, não para determinar o que
uma coisa é (essência), mas pelas circunstâncias de uma
195

coisa: em que casos, onde e quando, como etc.?


Por isso, quando, derivados da pesquisa, como sua
expressão, como um de seus efeitos, as pesquisadoras
escrevem livros, dissertação, tese, relatório, o fazem,
pensando do fundo do não-saber, sobre o que não sa-
bem nem podem saber; e também para resolver “casos”,
quer dizer, situações problemáticas locais, e mudar com
as próprias situações. Essa escrita pressupõe uma orien-
tação eminentemente prática, e não representacionista,
do pensamento, e o que resultar dela se caracterizará
pela atividade inventiva de conceitos elaborados para os
problemas que são propostos.
É que a Pesquisa Inventiva restitui não apenas o
pensamento, como também suas ações e escrita, à fa-
culdade superior de livre criação, através da libertação
do conceito de seu vínculo com a substância e o atribu-
to e do “ser” dos acontecimentos, manifestando-se a
favor dos encontros entre os seres, das suas não-rela-
ções, de sua exterioridade aos próprios seres, da sua ir-
redutibilidade à ontologia. É uma pesquisa que proce-
de a uma virada noológica: em vez do ser das coisas e
dos estados de coisas, da interioridade da essência e do
atributo, privilegia o extra-ser das relações e sua auto-
nomia, a experiência das relações, como multiplicida-
DE ESCRITA

des de natureza diferente dos elementos e dos conjun-


tos por si relacionados, ou como exteriores aos seus
LINHAS

termos e independentes do respectivo número.


Encontra-se, aqui, toda uma violência do pensa-
mento que pensa a pesquisa sobre si própria, contra a
sua apetência ontológica, a sua fixação no É: a Pesquisa
196

Pluralista pensa os seres e as coisas em função das rela-


ções e não o inverso, pensa as relações como entre-seres
que afetam os seres de um grau de devir, de variação
correlativa, e as circunstâncias, as ações e paixões, como
fatores de variações das próprias relações.
O pensamento da pesquisa torna-se assim uma fic-
ção ou uma experimentação, uma prática experimental
e pluralista: a cada vez em que é exercido, experimenta
novas relações entre os seres, constrói novas composi-
ções, uma geografia inédita, faz do pensamento um pla-
no de composição onde os acontecimentos se tecem e
destecem. Não há primeiros princípios, representações
privilegiadas, ou regras apriorísticas e normativas, ne-
nhuma orientação natural do ato de pensar.
Desse modo, a Pesquisadora da Diferença sofre de

PESQUISAR
um desamparo radical dos princípios imutáveis, do co-
nhecimento formal da verdade, de referenciais sobre
como se orientar na pesquisa, de critérios a priori, coor-

O
ACONTECIMENTO:
denadas e diretrizes, de qualquer regulação prévia ou
posterior, que forneça à sua ação algum norte garanti-
do, como instância autolegitimadora. Ao agir, na in-
certeza e na obscuridade, voltada para a problematicida-

ESTUDO EM
de, essa pesquisadora pensa a partir daí, exerce o
pensamento como operação inventiva na ordem dos pro-
blemas e conceitos: o seu pensamento é criação, sendo

XII
que a grande questão, para ela, não é a da verdade, mas a

EXEMPLOS
da produção do sentido, ou do sentido como produção.
O segredo do empirismo de tal pesquisa, que con-
figura o predomínio do conceito-acontecimento sobre
a ontologia, a insurreição do E contra o É, das conjun-
197

ções contra o enfeudamento no verbo ser, é somente


este: pensar com E, em vez de pensar com É, por É. E
é esse empirismo que fornece a possibilidade da criação
de conceitos e os trata como objetos de encontros, como
um aqui-e-agora, de onde saem os aqui e os agora sem-
pre inesgotáveis, novos, diferentemente distribuídos.
A Pesquisa do Conceito tem o conceito como um
operador, válido pela fecundidade de seus efeitos para-
doxais, ou seja, por aquilo que ele faz pensar, ver e até
sentir, e que sem ele continuaria impensado, invisível,
insensível, porque o que por ele é revelado mostra-se
incapturável no horizonte vivido das opiniões.
Nesse pragmatismo intrínseco do conceito-parado-
xo, que diz o Acontecimento, a Pesquisa-criadora-de-con-
ceitos obriga-se a criar os conceitos porque não os encon-
tra prontos para serem “aplicados” a não importa qual
problema ou empiria; também porque, a cada passo seu,
novas situações concretas, movimentos inovadores vin-
dos de outros domínios, que não aqueles voluntariamen-
te escolhidos pela pesquisa, relançam a sua função pes-
quisante, demandam conceitos originais, ou encontram
conceitos já fabricados, solicitando-lhes recomposição,
reinjetando-lhes uma necessidade, e deles extraindo uma
força suplementar, que demanda desenvolvimento.
DE ESCRITA

Há, portanto, uma dimensão sensível dos concei-


tos criados durante a pesquisa, os quais, sem tal dimen-
LINHAS

são, tornam-se abstratos, deixam de realizar curtos-cir-


cuitos interfecundantes, cruzamentos, interferências
com movimentos das artes, ciências e filosofia, de modo
que, somente nessa contaminação, se lhes pode apreen-
198

der o sentido.
Para essa pesquisa, tudo são acontecimentos, mes-
mo as coisas, as pessoas, os sujeitos. Acontecimento que
não designa os acidentes das coisas, os estados de ser,
nem os fatos, ações exercidas e paixões sofridas pelos
corpos, nem suas modificações corporais. Porque um
acontecimento, o puro Acontecimento, é uma poten-
cialidade inexistente fora das suas atualizações e toda-
via não limitável por elas, transbordante delas. Incor-
poral sem ser vago, o Acontecimento é um modo de
individuação por intensidades, que já não é de uma
coisa, de uma pessoa, de um sujeito, mas de uma hora,
região, clima, rio, luz, vento. Mesmo porque as coisas,
as pessoas, os sujeitos são cada um deles individualida-
de de acontecimentos, seres individuados por linhas

PESQUISAR
acontecimentais. Um acontecimento não se liga a um
sujeito mas a outros acontecimentos, formando linhas,
e o “sujeito” se constitui aí, entre as linhas, por aconte-

O
ACONTECIMENTO:
cimentos. Um acontecimento pode ser coletivo ou par-
ticular, perceptível ou microscópico, mas é sempre im-
pessoal, assubjetivo; são os seres que a pesquisa pensa
em função dos acontecimentos e das suas linhas, a par-

ESTUDO EM
tir deles, como derivadas. Eu, tu, a gente: nada são, se
não acontecimentos impessoais, ou subpessoais, cada
um com sua duração própria variável, individuações não

XII
subjetivas, mas intensivas: afectos, paixões, sensações.

EXEMPLOS
Assim, sujeito e objeto não constituem a relação
fundamental do pensamento dessa pesquisa, e pensar
“não é um fio estendido entre um sujeito e um objeto,
nem uma revolução de um em torno do outro” (DE-
199

LEUZE e GUATTARI, 1992, p. 113). Pensar não é repre-


sentação de um objeto por um sujeito. Ao contrário, a
Pesquisa-sem-sujeito-e-sem-objeto descobre um plano
sub-representativo do pensamento (e da realidade), ex-
plora uma possibilidade superior do pensamento, pon-
do-o em relação não com um mundo da representação,
com uma ontologia, onde a identidade e as formas rei-
vindicam a primazia, mas com forças virtuais informes,
com um caosmos impensável.
A Pesquisadora do Impensável tem consciência da
dificuldade de pensar o não-pensável que provoca o
pensamento, sabe que essa dificuldade não é apenas
exógena, causada por obstáculos externos à reta nature-
za do seu pensamento e resolúvel por um método ade-
quado, mas que pensar se faz contra o próprio pensa-
mento, contra o que, do interior, mantém o pensamento
simplesmente possível. Ela pensa forças por si mesmas,
desde a abstração feita da sua transcendência ontológi-
ca, da sua concreção em formas, em seres formados. Ela
busca dar visibilidade a forças não visíveis, levar o ato
“descritivo”, “demonstrativo”, “mostrativo” da pesquisa
até uma faculdade pré-representativa de apreensão de
forças caósmicas. Ela torna pensáveis entidades alógi-
cas, acontecimentos, e pensa essas forças num puro plano
DE ESCRITA

imanente, num nexo originário com um impensável,


dando pensamento a um impensado, tentando atingir
LINHAS

um plano paradoxal que não pode ser pensado, e que é


o que há para ela pensar.
A Pesquisadora-daquilo-que-a-força-a-pensar en-
contra todo um pathos, tanto estético quanto filosófi-
200

co, que a força a pensar as forças irrepresentáveis – sem


mediações forma/matéria, do mundo ou do sujeito –,
mas em sua absoluta imanência, sem pensá-las como
imanentes a alguma coisa. Pensa em correlação com
forças de um cosmos energético, informal e material;
busca dar consistência ao caos, produzir uma consis-
tência caósmica, já que pesquisa e pensa do caos ao cos-
mos, já que o caos é o dado primeiro – o caos e a neces-
sidade vital da pesquisadora de tirar dele um pouco de
ordem, de realidade sólida, subsistente.
Aceito o desafio do caos, a Pesquisadora Caósmica mer-
gulha nele para arrancar-lhe um mínimo de consistência,
estados caóides, em função de que o caos não designa
um estado estacionário, uma mistura ao acaso, e carac-
teriza-se “menos por sua desordem que pela velocidade

PESQUISAR
infinita com a qual se dissipa toda forma que nele se
esboça” (DELEUZE e GUATTARI, 1992, p. 153). Enten-
de que o caos é um vazio que não é um nada, mas um

O
ACONTECIMENTO:
virtual, contendo todas as partículas possíveis e extra-
indo todas as formas possíveis que surgem para, de ime-
diato, desaparecerem, sem consistência nem referência.
Fundo virtual imanente sempre presente, coextensivo à

ESTUDO EM
realidade dada, onde todas as consistências atuais se pre-
carizam e se desfazem, o caos é feito de movimentos in-
finitos em dissipação absoluta, não de ausência de deter-

XII
minações, mas da sua evanescência. Por isso, não possui

EXEMPLOS
apenas uma existência física, mas também mental: a in-
finita rapidez com que as idéias se sucedem, fogem, mal
aparecem, testemunhando uma fenda interior, intrace-
rebral, dificuldade imensa de pensar inscrita no mais
201

profundo do pensamento (cf. DIAS, 1995, p. 40, ss.).


Nessa Pesquisa Caótica, a pesquisadora afronta o
caos, estende um plano sobre o caos, movimenta infini-
tamente o pensamento, reacessa o pensamento, e por
contra-efetuação, um plano de imanência absoluto da
realidade, plano tanto do pensamento quanto da natu-
reza, caracterizado por movimentos virtuais ilimitados.
Ela reinstala criativamente o pensamento nas velocida-
des infinitas do caos virtual, mas dando, pelos concei-
tos, às forças caóticas uma concreção caóide.
Não existe nenhum programa, nenhum método,
nenhuma ordem ou lei para orientar firmemente sua
pesquisa, porque esta se realiza num horizonte implí-
cito, que solicita os conceitos e define a necessidade e o
diagrama da criação, tanto quanto por eles é exigido como
elemento próprio de inscrição, distribuição, articulação.
Esse horizonte virtual da pesquisa é feito de movimentos
infinitos, que os conceitos ocupam, nele selecionando
acontecimentos, regiões, ordenadas intensivas e, com isso,
consolidando toda a mobilidade ilimitada.
Por isso, a Pesquisadora-sem-método-e-sem-programa
considera redutor conceber a atividade pesquisante em
termos de racionalidade, porque a razão é só um con-
ceito fabricado, e muitíssimo pobre, para definir o pla-
DE ESCRITA

no de imanência da pesquisa e os movimentos infinitos


que o percorrem; porque a razão não opera desde sem-
LINHAS

pre com conceitos, já que implica uma experimentação


tateante, e seu traçado recorre a meios pouco confessá-
veis: há todo um pathos genital do seu pensamento da
pesquisa, um fundo delirante, híbrido, experiências eso-
téricas, que não têm nada a ver com procedimentos “ra-
202

cionais”. Assim, a Pesquisadora Delirante pesquisa-e-


pensa baseada nas vontades e paixões concretas que a
forçam a pesquisar, que a arrancam de sua inércia natu-
ral e de sua má vontade de não pensar nada.

EXEMPLO XII: Energia

Como pesquisadora, Uhma Mvlier sabe que está


no mesmo barco com muitos pesquisadores, que rema-
mos todos juntos, que tentamos realizar uma nova escri-
ta de uma nova pesquisa, com Nietzsche, inspirados,
pode ser, em O pensamento nômade de Deleuze (1985,
p. 60), para permanecermos juntos, em uma relação
que não seja “nem legal, nem contratual, nem institu-

PESQUISAR
cional. O único equivalente concebível seria talvez ‘es-
tar no mesmo barco’. Embarcou-se: pessoas remam jun-
tas, que não supõem que se amam, que se batem, que

O
ACONTECIMENTO:
se comem. Remar juntos é partilhar, partilhar alguma
coisa, fora de qualquer lei, de qualquer contrato, de
qualquer instituição. Uma deriva, um movimento de
deriva, ou de ‘desterritorialização’”. Então, juntos, ma-

ESTUDO EM
quinamos a nova estilística da nova pesquisa, sem nos
preocupar com problemas de interpretação, apenas com
problemas de maquinação; procuramos detectar “com

XII
qual força exterior atual” o texto da pesquisa “faz pas-

EXEMPLOS
sar alguma coisa, uma corrente de energia” (DELEUZE,
p. 62); verificamos com quais vetores e eixos, de acordo
com cada caso, o pensamento da pesquisa é orientado
para contemplações, ou para reflexões etc., dando a cada
203

pensamento alguma coisa para contemplar, para refle-


tir, para comunicar, ou, melhor, para construir, fazen-
do o pensamento subir, erguer coordenadas verticais
sobre o horizonte especulativo, ou então escavar, afun-
dar, abismar-se, procurar um sem-fundo incógnito, ou
repudiar tanto a profundidade quanto a transcendên-
cia, toda a verticalidade, e estender-se sobre a superfí-
cie do horizonte, em pura imanência, fornecer diretri-
zes à criação de conceitos, e também uma finalidade,
tal como a verdade, o consenso, a opinião razoável, ou o
sentido e o novo, nos recusando a repetir ecolalicamen-
te: É o aluno, É a sala de aula, É a escola, É o currículo –
senso comum tornado pesquisa, caráter inofensivo da
crítica, implicados em compromissos tácitos com o Es-
tado, com a Moral dominante etc. –; operamos, expe-
rimentamos uma imagem do pensamento da pesquisa
que recusa todas as opiniões, a veracidade do pensador
ou a verdade do pensamento, o inatismo das idéias ou o
apriorismo dos conceitos, todos os obstáculos exterio-
res ao pensamento – o corpo, paixões, interesses sensí-
veis – como forças que desviam o pensamento de sua
reta natureza formal, a necessidade de um método como
artifício conjurador do resultado negativo dessas forças
e a garantia do reencontro do pensamento com sua vo-
DE ESCRITA

cação inata; sabemos que nada disso “salva” Uhma Mvlier


e seus parceiros de barco de avançar às escuras, de in-
ventar a cada vez a sua orientação, a sua desorientada
LINHAS

experimentação – caminhos necessariamente parado-


xais de uma Pesquisa do Acontecimento.
204

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ALMEIDA, Júlia. Estudos deleuzeanos da linguagem. Campinas:


Editora da UNICAMP, 2003.

BRANCO, Guilherme. Foucault com Deleuze: normalização, al-


ternativa, diferenciação. In: VASCONCELLOS, Jorge; FRAGO-
SO, Emanuel (Orgs.). Gilles Deleuze: imagens de um filósofo da ima-
nência. Londrina: Ed. da UEL, 1997. p. 21-28.

DELEUZE, Gilles. Pensamento nômade. In: MARTON, Scarlet


(Org.). Nietzsche hoje? São Paulo: Brasiliense, 1985. p. 56-76.
___. Proust e os signos. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1987.

___. Diferença e repetição. Rio de Janeiro: Graal, 1988.

PESQUISAR
___. Qué es um dispositivo? In: BALBIER, E.; DELEUZE, G.;
DREYFUS, H. L. et al. Michel Foucault, filósofo. Barcelona: Gedi-
sa, 1990. p. 155-163.

O
ACONTECIMENTO:
___. A dobra: Leibniz e o barroco. Campinas: Papirus 1991.

___. Crítica e clínica. São Paulo: Ed.34, 1997.

___. Lógica do sentido. São Paulo: Perspectiva, 1998.

ESTUDO EM
___. L’immanence: une vie. Educação & Realidade – Dossiê Gilles
Deleuze. Porto Alegre: Faced/UFRGS, 27(2), jul./dez. 2002. p.
10-18.

XII
___. A propósito de Simondon. In: Cadernos de Subjetividade – O

EXEMPLOS
reencantamento do concreto. São Paulo: Hucitec – EDUC, 2003. p.
119-124.

___. Francis Bacon: logique de la sensation. T.1. Paris: La différence,


s/d.
205

___, GUATTARI, Félix. O que é a filosofia? Rio de Janeiro: Ed. 34,


1992.

___, GUATTARI, Félix. 1. Introdução: Rizoma. In: __. Mil Pla-


tôs: capitalismo e esquizofrenia. v. 1. Rio de Janeiro: Ed. 34, 1995a.
p. 11-37.

___, GUATTARI, Félix. 2. 1914 – Um só ou vários lobos? In: __.


Mil Platôs: capitalismo e esquizofrenia. v. 1. Rio de Janeiro: Ed. 34,
1995b. p. 39-52.

___, GUATTARI, Félix. 3. 10.000 A.C. – A geologia da moral


(quem a Terra pensa que é?). In: __. Mil Platôs: capitalismo e esqui-
zofrenia. v. 1. Rio de Janeiro: Ed. 34, 1995c. p. 53-91.
___, GUATTARI, Félix. 5. 587 A.C. – 70 D.C. – Sobre alguns
regimes de signos. In: __. Mil Platôs: capitalismo e esquizofrenia. v. 2.
Rio de Janeiro: Ed. 34, 1995d. p. 61-107.

___, PARNET, Claire. Diálogos. São Paulo: Escuta, 1998.

DIAS, Sousa. Lógica do acontecimento: Deleuze e a filosofia. Porto:


Afrontamento, 1995.

FOUCAULT, Michel. Saber y verdad. Madrid: La Piqueta, 1991.

RAJCHMAN, John. As ligações de Deleuze. Lisboa: Temas e Deba-


tes, 2002.

SCHÉRER, René. Homo tantum O impessoal: uma política. In:


DE ESCRITA

ALLIEZ, Éric. (org.). Gilles Deleuze: uma vida filosófica. São Paulo:
Ed. 34, 2000. p. 21-38.

SIMONDON, Gilbert. A gênese do indivíduo. In: Cadernos de


LINHAS

Subjetividade – O reencantamento do concreto. São Paulo: Hucitec –


EDUC, 2003. p. 97-117.

TADEU, Tomaz; CORAZZA, Sandra; ZORDAN, Paola. Um


plano de imanência para o currículo. In: __. Linhas de escrita. Belo
206

Horizonte: Autêntica, 2004.


Qualquer livro do nosso catálogo não
encontrado nas livrarias pode ser pedido
por carta, fax, telefone ou pela Internet.

Autêntica Editora
Rua São Bartolomeu, 160 – Nova Floresta
Belo Horizonte-MG – CEP: 31140-290
Telefone: (31) 3423 3022
Fax: (31) 3446 2999
e-mail: vendas@autenticaeditora.com.br

Visite a loja da Autêntica na Internet:


www.autenticaeditora.com.br
ou ligue gratuitamente para
0800-2831322

Você também pode gostar