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3 Não é fácil nomeá-lo. Mas podemos usar duas palavras empregadas por
Deleuze para apontar aqueles que talvez sejam os sintomas que nos assaltam ao nos
misturarmos com outros corpos: o sintoma denominado “confiança” e o sintoma
denominado “desconfiança”. Confiança e desconfiança: não apenas em relação à
variabilidade das afecções que nos atingem, não apenas em relação à potência vital que
sentimos variar em nós, não apenas em relação às forças que julgamos possuir a cada
momento, mas também em relação ao próprio “mundo”, em relação ao conjunto dos
nossos encontros, ao conjunto dos dispositivos, institucionais ou não, que enredam, cada
qual a seu modo, as possibilidades do nosso bem-estar e do nosso mal- estar. São
exímios jogadores esses dois sintomas que se espalham por todas as conjugações do
confiar e do desconfiar, desde sua aplicação a este ou àquele plano de saúde até sua
aplicação aos candidatos que elegemos para ocupar poderes públicos que nos afetam.
Confiança e desconfiança nunca pararam de atuar nos variados campos do nosso viver,
a tal ponto que os estóicos, como lembra Deleuze, os apontam como “dupla atitude face
ao mundo”, atitudes sintomáticas da pergunta que ele extrai dos Pensamentos de Marco
Aurélio: “será esta a boa ou a má mistura?” 1. A pergunta se impõe, justamente porque
somos feitos dessas misturas disparatadas, somos feitos dos nossos bons e maus
encontros.
4 Cada um de nós, separados ou juntos, é um campo em que essas atitudes
sintomáticas subsistem alternadamente, e até simultaneamente. Por força das oscilações
dos nossos encontros, por força das suas variações quantitativas e qualitativas, o
envolvimento mútuo do confiar e do desconfiar chega a ser a mais constante doença
pública e privada que nos liga ao mundo, pondo sempre em risco a possibilidade de nele
termos alguma fé. A respeito disso, é como se a lucidez de Deleuze, dois anos antes de
sua morte, estivesse embebida no ácido que escoa de uma frase como esta: “o mundo é
o conjunto dos sintomas cuja doença se confunde com o homem” 2. Mas, considerando
o caso de sermos adultos tornados relativamente experientes pelos encontros vividos ao
longo dos anos, cabe perguntar o seguinte: estaria, verdadeiramente, ao alcance da nossa
mera consciência evitar essa dupla atitude, essa imersão sucessiva e/ou simultânea na
confiança e na desconfiança? Bastaria virar as costas a esses sintomas, matá-los assim
que eles agradassem ou ferissem nossa sensibilidade?
1
Gilles Deleuze, Logique du sens, Paris: Minuit, 1969, p. 191. Lógica do sentido, tr. br. de Luiz Roberto
Salinas Fortes, São Paulo: Perspectiva, 1974, p. 168.
2
G. Deleuze, Critique et clinique, Paris : Minuit, 1993, p. 14. Crítica e clínica, tr. br. de Peter Pál
Pelbart, São Paulo : Ed. 34, 1997, p. 13.
3
5 Muito dificilmente. Por quê? Não por nos faltar quase sempre uma decisiva
força de vontade para nos fixarmos num desses pólos, mas simplesmente porque somos
corpos vivos. E por que vivemos, convivemos imediatamente com a morte, da qual
Deleuze chegou a dizer que ela, “antes de tudo, é a fonte dos problemas e das questões,
a forma derradeira do problemático, a marca da permanência do problemático acima de
toda resposta, o Onde e o Quando?” 3. Mais explicitamente, está fora do nosso alcance
livrarmo-nos da confiança e da desconfiança em nossos encontros, porque convivemos
com aquilo de que “a morte é ‘feita’”, reitera Deleuze, ao reler idéias de Xavier Bichat,
médico, fisiologista e um dos pioneiros no campo da histologia, autor de Recherches
physiologiques sur la vie et la mort (1800), idéias anteriormente retomadas por
Foucault. E do que a morte é feita?
6 Contrariando a concepção clássica da morte como “instante decisivo ou
acontecimento indivisível”, Bichat nos leva a pensar a morte como “cortejo de um
‘Morre-se’”. Somos portadores de um morre-se indiferente ao pseudo centro que
costumamos chamar de eu. Ao quê está ligada essa indiferença para comigo de um
morrer permanentemente conjugado em mim? Está ligada àquilo de que a morte é feita,
está ligada à morte entendida como “multiplicidade de mortes parciais e singulares”. O
cortejo do morre-se é presença desse tipo de multiplicidade atuante no corpo vivo. Por
isso, a consciência não é o árbitro absoluto do jogo da confiança e da desconfiança. Ela
recebe inúmeros sinais emitidos por ele, é claro, mas num cruzamento de linhas que a
surpreendem, obrigando-a a contorcionismos e a alianças com forças que não são
precisamente suas. Sem dúvida, chegamos a ter consciência de que queremos confiar
em certos momentos e desconfiar em outros. Sim, mas por que confiamos? Seria porque
nos iludimos ou porque a vida é insistente, parecendo buscar caminhos que a ajudem a
perseverar em cada um de nós? E por que desconfiamos? Pelo exercício permanente de
algum senso crítico? Pode ser que essa postura se verifique em muitos casos; mas é
preciso levar em conta que até a mais sólida saúde também convive com pontos de
apoio numa desconfiança que não pede licença a senso crítico algum para instalar-se,
dado que, radicalmente pensada, a própria morte é “coextensiva à vida” 4.
7 Então, será que isso é tudo? Será que o nosso complexo campo de experiências
com a saúde e a doença mantém a centralidade desse jogo de vida e morte que a
consciência pratica ativamente ou pelo menos registra como cotidianas oscilações da
3
G. Deleuze, Différence et répétition, Paris: P.U.F., 1968, p. 148. Diferença e repetição, tr. Br. de Luiz
B. L. Orlandi e Roberto Machado, Rio de Janeiro : Graal, 1988, 1ª ed., p. 189; 2006, 2ª ed., p. 166.
4
G. Deleuze, Foucault, Paris: Minuit, 1986, p. 102.
4
bem ao existente. Como conceito, Platão o mantém ligado ao seu próprio ideal de
conhecimento verdadeiro. A uma ciência correspondente a esse ideal, aquela que
encontra em si mesma seu próprio fim, Aristóteles chegou a dar esse mesmo nome em
textos ditos de juventude e até mesmo na Metafísica (A, 2, 982 b 24), assim como o
nome sophia (sapientia, sabedoria para os latinos), designando um saber científico do
necessário. Porém, na Ética Nicomaquéia, justamente a obra que, destinada a uma
problemática ética, é também aquela cujo livro VI é tido como esclarecedor de sua
noção de ciência, o termo phronesis aparece como virtude voltada ao contingente,
virtude que se flexibiliza relativamente a indivíduos e circunstâncias. É nesta
perspectiva que os latinos da tradição estóica traduziram phronesis por prudentia
(Cícero, De Officiis, I, 43, 153).
11 Pois bem, chamar a prudência aristotélica de virtude implica distingui-la não
apenas da ciência do necessário, mas também da arte. Anotemos que há uma íntima
imbricação entre virtude e prudência em Aristóteles. Como diz Aubenque, isto é notável
na própria definição geral de virtude presente nessa Ética: “a virtude é uma disposição
da vontade”, disposição que “consiste no justo meio relativo a nós”, meio esse que “é
determinado” por uma “regra justa” que o “homem prudente determinaria”. (Ét. Nic., II,
6, 1106 b 36). Conquanto implique um exercício do pensamento, essa regra não deriva
puramente da teoria, mas da busca daquilo que faria um homem prudente, um virtuoso,
em determinada circunstância de certo modo semelhante àquela que me envolve. Isto
fica explícito numa estrita definição de prudência como “disposição prática”, o que é
suficiente para distingui-la da ciência do necessário ao consignar-lhe um fim no
domínio das contingências em que vivem os homens: a prudência é uma “disposição
prática acompanhada de regra verdadeira concernente ao que é bom e mau para o
homem” (Ét. Nic., VI, 5, 1140 b 20). É precisamente por ser prática, por ser uma
disposição voltada para a ação (práxis), que a prudência deixa também de ser arte, pois
esta é ligada por Aristóteles à produção (poyesis). Essas ações implicam um processo
educativo, dado que, como salienta Barbara Cassin ao analisar certa passagem da obra
Política (VII, 13, 1332 b 4 ss.), “se cada cidadão for ‘virtuoso’ (spoudaios, ‘homem de
bem’), a cidade como um todo será assim”; mas esse processo deve articular-se à
importância crescente de “três fatores que tornam alguém virtuoso: physis, ‘a natureza’,
6
éthos, ‘o hábito’ e logos”, que a autora traduz por “razão” 5. É visível que não se trata de
uma escolaridade qualquer.
12 Como justificar esta breve passagem pela prudência aristotélica num texto
que pretende apoiar-se em estudos deleuzeanos não especializados em Aristóteles?
Primeiro, porque certa idéia de prudência não é estranha a Deleuze, como será
salientando logo mais. Segundo, porque ocorre a alguns usuários de frases deleuzeanas
tratar com certo desdém a palavra prudência, como se temessem que esse conceito,
como virtude, pudesse contaminar o pensamento deleuzeano ou condenar sua ética a
estabilizar-se no culto de um medíocre meio termo, culto que nem mesmo parece ser o
de Aristóteles. Aliás, com a ajuda de outras frases, esses usuários poderiam notar que tal
culto não aparece em Deleuze. Por exemplo, relida por ele, a nietzscheana vontade de
potência atua como critério de seleção dos encontros ao promover uma postura ética,
postura que “não consiste em cobiçar e nem mesmo em tomar, mas em dar e em criar”;
é para ela que Zaratustra encontra o “verdadeiro nome”: em sua forma intensa, a
vontade de potência, diz ele, “é a virtude que dá” 6 .
13 Mas, aquém desses auges intensivos, é também preciso levar em conta o
seguinte: em sua cotidianidade extensiva, a própria vida de aristotélicos e deleuzeanos é
coagida a envolver-se com esforços opinativos capazes de calcular as misturas que
possam fazer durar a confiança em seus encontros. E estes incluem aqueles
especialmente marcados pela problemática da saúde. Neste caso, a prudência opera
tanto na escolha de cuidados destinadas à vida mais saudável, a um bem viver, quanto
na sobreposição da confiança sobre a desconfiança relativa a esses cuidados. Em
conseqüência, intervalando-se entre a confiança e a desconfiança no sentido de uma
durável preponderância daquela em relação a esta, a prudência ajuda a reduzir o tempo
do nosso estar à deriva dos curtos circuitos desse jogo que simplesmente nos adoece
ainda mais.
5
Os dois últimos parágrafos resumem livremente passagens do livro de Pierre Aubenque, La
prudence chez Aristote, Paris, PUF, 1963, pp. 8, 9, 34-39, uma passagem do livro de Barbara
Cassin, Aristóteles e o logos – Contos da fenomenologia comum (Paris: P.U.F., 1997) , tr. br. de Luiz
Paulo Rouanet, São Paulo: Ed. Loyola, 1999, p. 54. E foi consultado o livro de Oswaldo Porchat
Pereira, Ciência e dialética em Aristóteles, São Paulo, Ed. UNESP, 2001, pp. 272-277.
6
“Conclusions sur la volonté de puissance et l’éternel retour » (1967), em L’Île déserte, et autres
textes (textes et entretiens 1953-1974). Éd. préparée par David Lapoujade, Paris, Minuit, 2002 pp.
166-167 ; 171. “Conclusões sobre a vontade de potência e o eterno retorno” – texto 15 – 1967, tr.
br. de Luiz B. L. Orlandi, em A Ilha deserta e outros textos (textos e entrevistas 1953-1974). Tr. br.
Coletiva, São Paulo: Iluminuras, 2006). pp.158 ; 161-162.
7
resposta. Até o etc., o parar de beber teria sido eticamente menos meritório porque se
tratava de uma ação tornada urgente por problemas respiratórios que o afligiam em
demasia. Essa atmosfera de um simples e prudente cuidar de si teria dominado também
a segunda parte da frase, se após o etc. ele tivesse dito, por exemplo, de modo que é
evidente que se deve... Porém, o mas empregado aí não parece estar funcionando como
advérbio destinado a corroborar o já dito anteriormente; ele parece operar como
conjunção adversativa que nos obriga a argumentar assim: entendo, prezado Deleuze,
que seus problemas respiratórios o obrigaram a parar de beber, mas por que razão “é
evidente que se deve parar ou se privar disso”? Portanto, uma outra causa está aí
operando, que não apenas a do prudente enfrentamento do problema respiratório
imediato. Que causa seria essa?
16 Que causa se insinua, forçando-o a ocupar esse tempo ganho e não apenas a
gastá-lo no usufruto prazeroso de uma vida biológica ou social prudentemente vivida
numa atualidade tornada menos intolerável? Vejamos outra passagem do Abecedário
ainda ligada a esse problema do beber ou drogar-se: “Beber, se drogar, tudo isso parece
tornar quase possível algo forte demais, mesmo se se deve pagar depois [...] mas em
todo caso, está ligado a isto, trabalhar, trabalhar. [...] A única justificação possível é se
isso ajuda o trabalho. Mesmo se se deve pagar fisicamente depois. Quanto mais se
avança, mais a gente diz a si mesmo que não ajuda o trabalho...” Como vemos, a causa
que se insinua no segundo nível a que nos referíamos já não se liga simplesmente às
ações de uma prudência que se esgota no cuidado fisiológico de si, de sua própria saúde
atual; liga-se, isto sim, a “algo forte demais” que poderá estar ao alcance da minha
potência, da minha força de trabalho, do meu corpo, enfim, se este for efetivamente
capaz disso. Algo forte demais a que sou levado a engatar minha potência. Por isso,
Deleuze diz ainda: “e é evidente que quando tudo se inverte, e que beber impede de
trabalhar, e a droga se torna uma maneira de não trabalhar, é o perigo absoluto, não tem
mais interesse”. Portanto, o critério de seleção daquilo a que convém abrir meu corpo
orgânico vem a ser sua participação favorável no movimento pelo qual minha força de
trabalho se compõe com esse algo forte demais que sinto ser capaz de aliciar
maximamente minha potência de vida. É esse movimento em prol do meu envolvimento
com algo forte demais que me lança para além do princípio dos prazeres imediatos da
minha vida, da minha saúde em sua cotidiana atualidade.
9
17 Que será esse algo forte demais? Em termos deleuzeanos, esse algo forte
9
demais é o retomar a criação, o recomeçar o novo . No caso de Deleuze, esse algo
estava ligado ao fazer filosofia, isto é, à criação de “conceitos filosóficos”; mas
conceitos que, por ressonância entre si e por ressonância entre os componentes de cada
um, acabam por levar a consistência assim alcançada a determinar a seu modo a própria
consistência de uma problemática da diferença que, por sua vez, impunha-se ao seu
pensamento. Tarefa exaustiva. Ele teve a sensação de que beber o “ajudava a fazer
conceitos”, mas “depois”, diz ele, “percebi que já não ajudava, que me punha em
perigo”, pois “não tinha vontade de trabalhar se bebesse” 10. Para que haja essa criação,
impõe-se o encontro com algo forte demais, como foi dito; mas o que também se impõe,
concomitantemente, é um estar à espreita desse algo, mesmo que de maneira divertida.
“Estou à espreita de algo”, diz ele, “que passa dizendo para mim... isso me perturba”.
Sem desenvolvermos aqui esse tema, podemos dizer que os movimentos implicados no
re-criar, no re-começar, estão como que pincelados de rebrilhos, de luminescências, a
que podemos colar o nome de idéias. Ele diz: “sempre tenho a impressão que posso ter
o encontro com uma idéia”. Não se trata nem de idéias prontas e nem de idéia no
sentido de Platão. Por que? Porque há idéia em “todas as atividades criadoras”, pois
“criar é ter uma idéia”, de modo que “um pintor tem tantas idéias quanto um filósofo,
mas não se trata do mesmo tipo de idéias”. É quando os rebrilhos de um encontro
intensivo ganham por esforço criador a “forma de conceitos” é que se tem efetivamente
idéia em filosofia, e conceitos criados, não descobertos.
18 O mínimo que podemos dizer a respeito desse algo forte demais é que ele,
como acontecimento, implica um encontro disparador envolvendo meu poder de ser
afetado e aquilo que nele desencadeia uma intensificação, um salto para além da minha
estruturação atual, meu repentino dançar na chuva, por exemplo. Outros modos de sentir
e perceber criados nos instantes desses encontros intensivos. Deleuze pergunta: “será
que a música não seria a grande criadora de afectos? Será que ela não nos arrasta para
11
potências acima de nossa compreensão? É possível” . Mesmo que se discuta esse
destaque da música (a mais temporal das artes), o importante é essa viagem “acima de
9
« Primeiramente, é verdade que não se opera a própria criação [...], mas a re-criação, não o
começo, mas o re-começo.” G. Deleuze, L’Île deserte et autres textes (textes et entretiens 1953-1974),
Paris : Minuit, 2002. Texto 1 : « Causes et raisons des îles désertes » (Manuscrito dos anos 50). P.
16. A ilha deserta e outros textos. Texteos e entrevistas (1953-1974). Tr. br. coletiva. Texto 1 : « Causas
e razões das ilhas desertas », tr. de Luiz B. L. Orlandi, p. 21.
10
L’Abécédaire, Letra B – Boire (Beber).
11
L’Abécédaire, Letra I, Idée (Idéia).
10
12
L’Abécédaire, Letra C, Culture (Cultura).
11
15
Mille plateaux, ob. cit. Platô 10 : « Devenir-intense, devenir-animal, devenir-imperceptible... », p. 330-
331. Mil platôs, ob. cit. Vol. IV: « Devir-intenso, devir-animal, devir-imperceptível... », tr. br. de Suely
Rolnik, p. 60.
12
trajetos transtópicos que se transpõem “no absoluto de uma consciência imediata”. Essa
“vida de pura imanência” é pensada como “puro acontecimento liberado dos acidentes
da vida interior e exterior” 16 . É nesta perspectiva que cabe orientar “a questão de
saber” se este ou aquele intensificador da sensibilidade, tido como capaz de provocar a
molecularização das percepções, (como a “droga”), “consegue efetivamente traçar o
plano que condiciona”, diz Mil platôs, o próprio “exercício” das intensificações, coisa
posta radicalmente em dúvida por esse livro no que concerne à droga, dado que “sua
linha de fuga não pára de ser segmentarizada na forma, a mais dura possível, da
dependência, do dopar-se, da dose e do traficante”, de modo que, em vez de “partir do
zero a cada vez”, trata-se de “partir para outra coisa, partir ‘no meio’, bifurcar no meio”,
“embriagar-se, mas com água pura (Henry Miller)” 17.
23 Aproximamo-nos, assim, de uma questão difícil. Difícil, porque ela deve
apropriar-se dessa prudência pensada como arte. E ao fazer isso, essa questão deve levar
essa arte da prudência a envolver-se com regras ou procedimentos produtivamente
favoráveis a uma experimentação curtida a cada instante pelo ficar à espreita de algo
forte demais. Estamos dizendo que algo mais pode nos acontecer e não apenas vivermos
a vida engrenada nos e pelos estratos, vida em que somos tomados pelo jogo da
confiança e da desconfiança, jogo até certo ponto domado no nível de certas práticas
prudentes. Como já tivemos a experiência de que algo mais pode nos acontecer,
digamos que também podemos ficar à espreita, não de outra vida no além, mas de
encontros intensivos que povoam uma vida a que temos acesso de quando em quando.
Isto quer dizer o seguinte: buscamos uma questão que não se reduza ao jogo da
confiança e da desconfiança, embora não o suprima; e essa questão é justamente a da
relação que torna possível uma vida, a relação entre intensificações e o plano (ou
planos) em que elas ganham uma consistência co-determinada por elas mesmas. Sem
essa relação de consistência entre as intensidades, corremos o risco de cair num “puro e
simples caos”, e até mesmo no “vazio”, na “destruição” 18. Os cuidados com essa
relação fazem da prudência a arte de nos agenciar com aquilo que intensifica nossa
participação criativa e consistente no enfrentamento do caos.
24 Podemos aproximar dessa questão certos acontecimentos memoráveis: por
exemplo, a coragem com que respeitáveis sanitaristas brasileiros, Adolpho Lutz e
Emílio Ribas, enfrentaram há mais de um século a grande epidemia de febre amarela. É
que eles, além de outros voluntários (Oscar Moreira, Domingos Vaz, André Ramos e
16
G. DELEUZE, “L’immanence: une vie...”, Philosophie, no 47, 1/9/1995, pp. 3-7. Republicado
como texto nº 62 em G. Deleuze, Deux régimes de fous – Textes et entretiens – 1975-1995. Edição
preparada por David Lapoujade. Paris: Minuit, 2003, págs. 359-363. A continuação desse texto é
que foi publicada como ultimo capítulo, intitulado “L’Actuel et le virtuel”, de G. Deleuze e C.
Parnet, Dialogues. Paris: Flammarion, 1996, págs. 177-185.
17
Mille plateaux, ob. cit. Platô 10, já citado, pp. 348 e 350. Tr. br. já citada, pp. 79 e 80-81.
18
Mille plateaux, ob. cit. Platô 15: « Conclusion », p. 628. Mil platôs, obr. cit., vol. V, Platô 15:
“Conclusão”, tr. br. de Peter Pál Pelbart, p. 217-218.
13
Januário Fiori), levando a sério uma teoria do médico cubano Carlos Finlay, deixaram-
se picar por mosquitos infectados que a teoria indicava como sendo os efetivos
transmissores da doença. Sem dúvida, a saúde de todos eles correu um grande risco,
mesmo que, prudentemente, tenham tomado certos cuidados, como o de usar mosquitos
infectados de um “caso leve” 19. Mas isso não é tudo. Convém salientar que eles, sem
que fossem obrigados a isso, articularam suas próprias vidas orgânicas a uma
experiência pioneira cuja única garantia, naquele momento, era algo forte demais: dar
consistência experimental ao brilho de uma idéia que os arrastou para além de sua
compreensão imediata. E nesse intenso movimento eles não apenas ajudaram a “nos
proteger do caos” como também a vencer o caos mental que se apoderava dos
estudiosos daquela epidemia. Deleuze recolhe de Henri Michaux uma comparação
muito útil neste caso: esse acontecimento nos leva a pensar que “o que basta para as
‘idéias correntes’ não basta para as ‘idéias vitais’”, justamente as idéias “que se deve
criar” e que, uma vez criadas, rodeiam-se de zonas de indeterminação, inexploradas,
instigadoras de re-criações.
25 Com essa referência ao acontecimento vivido por alguns dos nossos
sanitaristas, posso reafirmar uma obviedade: a de que a filosofia não tem o monopólio
das idéias vitais. Mas seria possível privilegiar um outro lugar para elas, para essas
idéias que abrem saídas para a vida? Uma pergunta de Deleuze aponta a dificuldade:
“que seria pensar se ele não se defrontasse sem cessar com o caos?” Quando se diz que
as idéias vitais são “objetos mentais da filosofia, da arte e da ciência”, aparece a
pergunta: como pensar um “lugar” para elas nesse conjunto? Ou: em que lugar ocorre o
pensar que elas diferenciam tão vertiginosamente? Se as idéias vitais são inseparáveis
de saltos de intensidade experimentados por quaisquer dos nossos poderes (desde o
sentir até o pensar por conceitos, por funções ou por sensações ), a procura de um lugar
extensivo para situá-las já é por si mesma um “criar” e, portanto, um lance de idéia vital
20
. O salto intensivo implicado pelas idéias vitais, não sendo redutível a conexões
extensivas, é uma indicação de que nosso campo de experiências com acontecimentos
sofre aberturas não apenas à vida orgânica, mas também à vida não-orgânica. Deleuze
fala em “potência de uma vida não-orgânica, aquela que pode haver numa linha de
desenho, de escrita ou de música”. Por isso, ele pode dizer que “são os organismos que
morrem, não a vida”. Por que? Porque a potência de uma vida não-orgânica presente
numa “obra” acaba por indicar “uma saída para a vida”, de traçar “um caminho por
entre as vias”. Neste sentido, “criar” é “resistir”. E resistir, primeiramente, à tentação
de escrever com seu ego, “sua memória e suas doenças”. Deleuze diz que “no ato de
escrever há a tentativa de fazer da vida algo mais do que pessoal, de liberar a vida
19
Ver Neldson Marcolin, “Na própria pele”, artigo na seção “Memória” da Revista Pesquisa Fapesp, São
Paulo, março de 2009, pp. 6, 7.
20
G. Deleuze e F. Guattari, Qu’est-ce que la philosophie ?, Paris : Minuit, p. 189, 196, 197. O que é a
filosofia ?. Tr br. de Bento Prado Jr. e Alberto Alonso Muñoz, São Paulo: Ed. 34, pp.259, 266-268.
14
daquilo que a aprisiona”. Ele destaca a “pequena saúde frágil” de três autores que ele
tanto admira, Espinosa, Nietzsche e Lawrence, dotados de um “fraco organismo””, de
um “equilíbrio mal assegurado”. Entretanto, “não é a morte que os quebra; é sobretudo
o excesso de vida que eles viram, provaram, pensaram”. O que com eles aconteceu é
certamente uma virtualização excepcional, uma vida não-orgânica, “uma vida muito
grande para eles” 21. A saúde frágil transforma-se na grande saúde, tema que sempre
retorna em Deleuze. A grande saúde, mesmo às custas da “doença”, implica “realizar
um pouco de potência”, pois “a doença deve servir para alguma coisa, como todo o
resto”. Para ele, a doença “não é uma inimiga”, pois “aguça uma visão da vida, uma
sensação da vida”; trata-se, de “ser tomado” pela “vida em toda sua potência, em toda a
sua beleza” 22 até quando o organismo suportar os encontros intensivos com algo forte
demais.
26. Mas, aí, algum ferino ceticismo, que mal suportou a palestra até este ponto,
grita lá de não sei onde: pois bem, professor, toda essa fala em prol da grande saúde, em
prol de obras e ações que marcam vigorosamente a potência de pensar e a potência de
agir, tudo isso pode até valer em relação aos grandes pensadores, artistas, cientistas e
benfeitores da humanidade... mas pergunto: como alguém incapaz de uma grande obra,
e não sendo um místico, pode ter alguma fé no mundo, ir além do jogo da confiança e da
desconfiança, e ser assim arrebatado pela vida em toda sua potência, em toda sua
beleza? Como pode um irrisório rosário de misérias vividas comportar rebrilhos de uma
vida, já que o algo forte demais que o afronta não passa de uma existência alquebrada?
27. Diante da pergunta, o palestrante cala na garganta a tendência ao discurso
consolador, e espera que uma outra junção de vozes transforme essa pergunta numa
outra saída. Ao buscá-la, ele apenas lê, sem comentário algum: “cristãos ou ateus, em
nossa universal esquizofrenia precisamos de razões para crer neste mundo. É toda uma
conversão da crença”. Esta “não se volta para outro mundo, dirige-se a este mundo”. “O
certo é que crer não significa mais crer em outro mundo, nem num mundo
transformado. É apenas, simplesmente, crer no corpo. Restituir o discurso ao corpo, e,
para tanto, atingir o corpo antes dos discursos, antes das palavras, antes de serem
nomeadas as coisas” 23. Ora, restituir o discurso ao corpo implica cuidar dos encontros
intensivos neste mundo, mundo do qual “nos desapossaram”, o que nos obriga a
politizar a questão em toda parte em que a vida é ameaçada. Assim, “acreditar no
mundo” vem a ser, “principalmente, suscitar acontecimentos, mesmo pequenos, que
escapem ao controle, ou engendrar novos espaços-tempos, mesmo de superfície ou
volume reduzidos”. Porque, “é no nível de cada tentativa que se avaliam a capacidade
21
G. Deleuze, Pourparlers, Paris: Minuit, 1990, p. 196. Conversações, tr. br. de Peter Pál Pelbart, São
Paulo: Ed. 34, 179.
22
L’Abécédaire, ob. cit., Letra L de Literatura.
23
G. Deleuze, Cinéma 2. L’Image-temps, Paris: Minuit, 1985, pp. 223-225. Cinema 2. A imagem-tempo,
tr. br. De Eloísa de Araújo Ribeiro, São Paulo : Ed. Brasiliense, 1990, pp. 207-209.
15
Luiz B. L. Orlandi
.DF-IFCH-Unicamp
.Núcleo de Subjetividade-
PUC-SP
24
G. Deleuze, Pourparlers, ob. cit., p. 239. [Entrevista a Toni Negri em 1990]. Conversações, ob. cit., p.
218.