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A respeito de confiança e desconfiança

1 Por não atuar profissionalmente nas áreas aqui envolvidas, gostaria de


contornar minha dificuldade propondo um mínimo recorte da vastíssima problemática
da saúde. Vastíssima, repito, porque há muitas frentes de combate nisso tudo, o que a
aproxima até mesmo da mais rebelde caótica. Como ordenar tudo isso sem cair em
meras generalidades? Não sei. E acho que até vocês, bem mais entrosados com esses
problemas, vivem a permanente dificuldade de mapear os fulgores deste ou daquele
ponto dessa multiplicidade de campos. Então, como contornarei minha dificuldade?
Com apoio em algumas lembranças de estudos deleuzeanos, tentarei esboçar, e apenas
esboçar, duas direções que se misturam na pesquisa interessada na implicação ética
desses combates: numa primeira direção, a saúde é indiretamente visada na perspectiva
de suas atualizações; numa segunda direção, a saúde é indiretamente visada na
perspectiva de suas virtualizações.
2 Do ponto de vista das preocupações que atiçam a consciência que se elabora
em nós da nossa própria saúde, desdobram-se perguntas que nascem da nossa inserção
imediata nos percursos do nosso dia-a-dia. Ao perguntarmos pelos alimentos que nossos
corpos orgânicos devem consumir para o seu bem, ao perguntarmos pelos mais variados
cuidados propícios ao seu pleno e bom funcionamento, estamos perguntando, a rigor,
pela melhor “mistura”, pela melhor composição possível entre nossos corpos e os
demais, sejam estes grandes, pequenos ou minúsculos, sejam eles feitos desta ou
daquela matéria, estejam próximos ou distantes etc. E sabemos quantas vezes repetimos
diferentemente esse tipo de pergunta ao longo das nossas vidas, pois é comum a
experiência de passarmos por bons e maus encontros com corpos que nos fizeram bem
ou mau em diferentes circunstâncias, neste ou naquele momento. Ora, essa experiência
do cuidar de si, essa variada reiteração das perguntas que somos levados a fazer a
respeito do que pode afetar nossa própria saúde corporal ou mental, tudo isso nos impõe
distintos graus de um estado de alerta. Por quê? Porque, condenada a viver ao longo dos
dias e das horas a experiência desse estado, nossa subjetividade não tem descanso do
ponto de vista de uma durável expectativa, como se fosse inevitável vivermos oscilando
sempre entre a espera da boa ou a espera da má ocorrência. Que nome dar a esse estado?

Comunicação apresentada no Colóquio “Semiótica, Afecção e Cuidado em Saúde”. Rio de
Janeiro. 8 de maio de 2009. Agradeço a Valéria do Carmo Ramos Stefani pela amabilidade do
convite.
2

3 Não é fácil nomeá-lo. Mas podemos usar duas palavras empregadas por
Deleuze para apontar aqueles que talvez sejam os sintomas que nos assaltam ao nos
misturarmos com outros corpos: o sintoma denominado “confiança” e o sintoma
denominado “desconfiança”. Confiança e desconfiança: não apenas em relação à
variabilidade das afecções que nos atingem, não apenas em relação à potência vital que
sentimos variar em nós, não apenas em relação às forças que julgamos possuir a cada
momento, mas também em relação ao próprio “mundo”, em relação ao conjunto dos
nossos encontros, ao conjunto dos dispositivos, institucionais ou não, que enredam, cada
qual a seu modo, as possibilidades do nosso bem-estar e do nosso mal- estar. São
exímios jogadores esses dois sintomas que se espalham por todas as conjugações do
confiar e do desconfiar, desde sua aplicação a este ou àquele plano de saúde até sua
aplicação aos candidatos que elegemos para ocupar poderes públicos que nos afetam.
Confiança e desconfiança nunca pararam de atuar nos variados campos do nosso viver,
a tal ponto que os estóicos, como lembra Deleuze, os apontam como “dupla atitude face
ao mundo”, atitudes sintomáticas da pergunta que ele extrai dos Pensamentos de Marco
Aurélio: “será esta a boa ou a má mistura?” 1. A pergunta se impõe, justamente porque
somos feitos dessas misturas disparatadas, somos feitos dos nossos bons e maus
encontros.
4 Cada um de nós, separados ou juntos, é um campo em que essas atitudes
sintomáticas subsistem alternadamente, e até simultaneamente. Por força das oscilações
dos nossos encontros, por força das suas variações quantitativas e qualitativas, o
envolvimento mútuo do confiar e do desconfiar chega a ser a mais constante doença
pública e privada que nos liga ao mundo, pondo sempre em risco a possibilidade de nele
termos alguma fé. A respeito disso, é como se a lucidez de Deleuze, dois anos antes de
sua morte, estivesse embebida no ácido que escoa de uma frase como esta: “o mundo é
o conjunto dos sintomas cuja doença se confunde com o homem” 2. Mas, considerando
o caso de sermos adultos tornados relativamente experientes pelos encontros vividos ao
longo dos anos, cabe perguntar o seguinte: estaria, verdadeiramente, ao alcance da nossa
mera consciência evitar essa dupla atitude, essa imersão sucessiva e/ou simultânea na
confiança e na desconfiança? Bastaria virar as costas a esses sintomas, matá-los assim
que eles agradassem ou ferissem nossa sensibilidade?

1
Gilles Deleuze, Logique du sens, Paris: Minuit, 1969, p. 191. Lógica do sentido, tr. br. de Luiz Roberto
Salinas Fortes, São Paulo: Perspectiva, 1974, p. 168.
2
G. Deleuze, Critique et clinique, Paris : Minuit, 1993, p. 14. Crítica e clínica, tr. br. de Peter Pál
Pelbart, São Paulo : Ed. 34, 1997, p. 13.
3

5 Muito dificilmente. Por quê? Não por nos faltar quase sempre uma decisiva
força de vontade para nos fixarmos num desses pólos, mas simplesmente porque somos
corpos vivos. E por que vivemos, convivemos imediatamente com a morte, da qual
Deleuze chegou a dizer que ela, “antes de tudo, é a fonte dos problemas e das questões,
a forma derradeira do problemático, a marca da permanência do problemático acima de
toda resposta, o Onde e o Quando?” 3. Mais explicitamente, está fora do nosso alcance
livrarmo-nos da confiança e da desconfiança em nossos encontros, porque convivemos
com aquilo de que “a morte é ‘feita’”, reitera Deleuze, ao reler idéias de Xavier Bichat,
médico, fisiologista e um dos pioneiros no campo da histologia, autor de Recherches
physiologiques sur la vie et la mort (1800), idéias anteriormente retomadas por
Foucault. E do que a morte é feita?
6 Contrariando a concepção clássica da morte como “instante decisivo ou
acontecimento indivisível”, Bichat nos leva a pensar a morte como “cortejo de um
‘Morre-se’”. Somos portadores de um morre-se indiferente ao pseudo centro que
costumamos chamar de eu. Ao quê está ligada essa indiferença para comigo de um
morrer permanentemente conjugado em mim? Está ligada àquilo de que a morte é feita,
está ligada à morte entendida como “multiplicidade de mortes parciais e singulares”. O
cortejo do morre-se é presença desse tipo de multiplicidade atuante no corpo vivo. Por
isso, a consciência não é o árbitro absoluto do jogo da confiança e da desconfiança. Ela
recebe inúmeros sinais emitidos por ele, é claro, mas num cruzamento de linhas que a
surpreendem, obrigando-a a contorcionismos e a alianças com forças que não são
precisamente suas. Sem dúvida, chegamos a ter consciência de que queremos confiar
em certos momentos e desconfiar em outros. Sim, mas por que confiamos? Seria porque
nos iludimos ou porque a vida é insistente, parecendo buscar caminhos que a ajudem a
perseverar em cada um de nós? E por que desconfiamos? Pelo exercício permanente de
algum senso crítico? Pode ser que essa postura se verifique em muitos casos; mas é
preciso levar em conta que até a mais sólida saúde também convive com pontos de
apoio numa desconfiança que não pede licença a senso crítico algum para instalar-se,
dado que, radicalmente pensada, a própria morte é “coextensiva à vida” 4.
7 Então, será que isso é tudo? Será que o nosso complexo campo de experiências
com a saúde e a doença mantém a centralidade desse jogo de vida e morte que a
consciência pratica ativamente ou pelo menos registra como cotidianas oscilações da
3
G. Deleuze, Différence et répétition, Paris: P.U.F., 1968, p. 148. Diferença e repetição, tr. Br. de Luiz
B. L. Orlandi e Roberto Machado, Rio de Janeiro : Graal, 1988, 1ª ed., p. 189; 2006, 2ª ed., p. 166.
4
G. Deleuze, Foucault, Paris: Minuit, 1986, p. 102.
4

confiança e da desconfiança em nossos encontros, sejam aqueles que, em nós mesmos,


relacionam as partes que nos constituem, sejam aqueles que nos entrosam ou nos
desentrosam com os outros, as coisas e o mundo? Será que não nos desprendemos de
quando em quando dessa macabra oscilação de boas e más expectativas?
8 É claro que algo mais ocorre no próprio nível consciente e semi-consciente em
que se pratica esse jogo. Com efeito, sabemos, há muito tempo, que há possibilidade de
interferirmos nessas oscilações do confiar e do desconfiar, a fim de reduzirmos a
incidência dos estados em que esses verbos ocorrem como dilacerantes curtos-circuitos.
E para serenidade do nosso ânimo, geralmente preferimos procedimentos que julgamos
serem capazes de tornar mais duradoura a confiança, simplesmente porque é muito
enervante permanecermos em constante desconfiança. Paradoxalmente, talvez seja esta
a razão pela qual descuidamo-nos em demasia em assuntos de saúde, assim como nos
contentamos com frases humorísticas a respeito da canalhice de homens públicos que se
dedicam aos seus interesses particulares em detrimento da saúde dos tesouros do povo.
O próprio descuido, portanto, quando possível, já aparece como um tipo de intervalo
insuflando um sossego mais ou menos breve nesse jogo.
9 Porém, é mais duradoura nossa confiança em nossa alimentação, por exemplo,
quando as refeições nos fazem bem do ponto de vista das nossas disposições vitais, do
nosso gosto etc., assim como do ponto de vista das pesquisas interessadas nas
qualidades dos alimentos, dos remédios, dos programas eleitorais etc., mesmo que tais
pesquisas não gerem verdades absolutas. Ou ainda, na perspectiva da saúde da nossa
audição, que esforço podemos fazer para nos rodearmos das sonoridades que nos
ajudem a suportar melhor, sem a necessidade de nos tornarmos violentos, as vizinhanças
que nos condenam a ouvir seus alarmes e os latidos dos seus cachorros incontroláveis?
Até mesmo algumas pessoas fortemente ligadas a bebidas ou drogas, quando alcançam,
por si ou graças à ajuda de outrem, decisivo poder sobre si mesmas, talvez consigam
cuidar do seu melhor entrosamento possível com dosagens virtuosas, isto é, confiáveis,
ou seja, propícias (pelo menos temporariamente) à retomada não catastrófica da
variabilidade dos efeitos alucigênicos. Que nome dar ao conjunto dos cuidados
tendentes a assegurar uma confiança mais duradoura em nossos encontros marcados
pela problemática da saúde corporal ou mental?
10 Há um velho nome empregado por Platão e Aristóteles em suas respectivas
maneiras de pensar: phronesis. As significações linguageiras desse termo também
ressoam na idéia de cuidados a serem tomados tendo em vista o que é bom, o que faz
5

bem ao existente. Como conceito, Platão o mantém ligado ao seu próprio ideal de
conhecimento verdadeiro. A uma ciência correspondente a esse ideal, aquela que
encontra em si mesma seu próprio fim, Aristóteles chegou a dar esse mesmo nome em
textos ditos de juventude e até mesmo na Metafísica (A, 2, 982 b 24), assim como o
nome sophia (sapientia, sabedoria para os latinos), designando um saber científico do
necessário. Porém, na Ética Nicomaquéia, justamente a obra que, destinada a uma
problemática ética, é também aquela cujo livro VI é tido como esclarecedor de sua
noção de ciência, o termo phronesis aparece como virtude voltada ao contingente,
virtude que se flexibiliza relativamente a indivíduos e circunstâncias. É nesta
perspectiva que os latinos da tradição estóica traduziram phronesis por prudentia
(Cícero, De Officiis, I, 43, 153).
11 Pois bem, chamar a prudência aristotélica de virtude implica distingui-la não
apenas da ciência do necessário, mas também da arte. Anotemos que há uma íntima
imbricação entre virtude e prudência em Aristóteles. Como diz Aubenque, isto é notável
na própria definição geral de virtude presente nessa Ética: “a virtude é uma disposição
da vontade”, disposição que “consiste no justo meio relativo a nós”, meio esse que “é
determinado” por uma “regra justa” que o “homem prudente determinaria”. (Ét. Nic., II,
6, 1106 b 36). Conquanto implique um exercício do pensamento, essa regra não deriva
puramente da teoria, mas da busca daquilo que faria um homem prudente, um virtuoso,
em determinada circunstância de certo modo semelhante àquela que me envolve. Isto
fica explícito numa estrita definição de prudência como “disposição prática”, o que é
suficiente para distingui-la da ciência do necessário ao consignar-lhe um fim no
domínio das contingências em que vivem os homens: a prudência é uma “disposição
prática acompanhada de regra verdadeira concernente ao que é bom e mau para o
homem” (Ét. Nic., VI, 5, 1140 b 20). É precisamente por ser prática, por ser uma
disposição voltada para a ação (práxis), que a prudência deixa também de ser arte, pois
esta é ligada por Aristóteles à produção (poyesis). Essas ações implicam um processo
educativo, dado que, como salienta Barbara Cassin ao analisar certa passagem da obra
Política (VII, 13, 1332 b 4 ss.), “se cada cidadão for ‘virtuoso’ (spoudaios, ‘homem de
bem’), a cidade como um todo será assim”; mas esse processo deve articular-se à
importância crescente de “três fatores que tornam alguém virtuoso: physis, ‘a natureza’,
6

éthos, ‘o hábito’ e logos”, que a autora traduz por “razão” 5. É visível que não se trata de
uma escolaridade qualquer.
12 Como justificar esta breve passagem pela prudência aristotélica num texto
que pretende apoiar-se em estudos deleuzeanos não especializados em Aristóteles?
Primeiro, porque certa idéia de prudência não é estranha a Deleuze, como será
salientando logo mais. Segundo, porque ocorre a alguns usuários de frases deleuzeanas
tratar com certo desdém a palavra prudência, como se temessem que esse conceito,
como virtude, pudesse contaminar o pensamento deleuzeano ou condenar sua ética a
estabilizar-se no culto de um medíocre meio termo, culto que nem mesmo parece ser o
de Aristóteles. Aliás, com a ajuda de outras frases, esses usuários poderiam notar que tal
culto não aparece em Deleuze. Por exemplo, relida por ele, a nietzscheana vontade de
potência atua como critério de seleção dos encontros ao promover uma postura ética,
postura que “não consiste em cobiçar e nem mesmo em tomar, mas em dar e em criar”;
é para ela que Zaratustra encontra o “verdadeiro nome”: em sua forma intensa, a
vontade de potência, diz ele, “é a virtude que dá” 6 .
13 Mas, aquém desses auges intensivos, é também preciso levar em conta o
seguinte: em sua cotidianidade extensiva, a própria vida de aristotélicos e deleuzeanos é
coagida a envolver-se com esforços opinativos capazes de calcular as misturas que
possam fazer durar a confiança em seus encontros. E estes incluem aqueles
especialmente marcados pela problemática da saúde. Neste caso, a prudência opera
tanto na escolha de cuidados destinadas à vida mais saudável, a um bem viver, quanto
na sobreposição da confiança sobre a desconfiança relativa a esses cuidados. Em
conseqüência, intervalando-se entre a confiança e a desconfiança no sentido de uma
durável preponderância daquela em relação a esta, a prudência ajuda a reduzir o tempo
do nosso estar à deriva dos curtos circuitos desse jogo que simplesmente nos adoece
ainda mais.
5
Os dois últimos parágrafos resumem livremente passagens do livro de Pierre Aubenque, La
prudence chez Aristote, Paris, PUF, 1963, pp. 8, 9, 34-39, uma passagem do livro de Barbara
Cassin, Aristóteles e o logos – Contos da fenomenologia comum (Paris: P.U.F., 1997) , tr. br. de Luiz
Paulo Rouanet, São Paulo: Ed. Loyola, 1999, p. 54. E foi consultado o livro de Oswaldo Porchat
Pereira, Ciência e dialética em Aristóteles, São Paulo, Ed. UNESP, 2001, pp. 272-277.

6
“Conclusions sur la volonté de puissance et l’éternel retour » (1967), em L’Île déserte, et autres
textes (textes et entretiens 1953-1974). Éd. préparée par David Lapoujade, Paris, Minuit, 2002 pp.
166-167 ; 171. “Conclusões sobre a vontade de potência e o eterno retorno” – texto 15 – 1967, tr.
br. de Luiz B. L. Orlandi, em A Ilha deserta e outros textos (textos e entrevistas 1953-1974). Tr. br.
Coletiva, São Paulo: Iluminuras, 2006). pp.158 ; 161-162.
7

14 Mas quando falamos em ganhar tempo cronológico por meio de ações


prudentes, expomo-nos a uma objeção a ser considerada, porque ela também corrói, por
desconsideração suicida ou não, as investidas do confiar e do desconfiar. A objeção é a
seguinte: que fazer desse tempo que se acaba ganhando graças a uma prudência que
muitas vezes é capaz de mediocrizar a existência, de reduzir nossas forças vitais a uma
medíocre contenção do nosso desejo ou de promover nossa adequação a uma esfera de
prazeres duvidosos do ponto de vista de uma vida envolvida com a complexidade de sua
própria potência? Observemos, entretanto, que essa objeção não se arma precisamente
contra o exercício de alguma prudência, mas contra a mediocridade insuflada no tempo
que foi ganho graças a escolhas prudentes tornadas possíveis. Vemos, portanto, que o
problema se complica, suscitando pelo menos duas perguntas: que possibilidades de
escolhas e ações prudentes estão ou podem ser abertas em meu campo de experiências?
Que fazer do tempo porventura ganho ao longo desses cuidados?
15 Parece óbvio que o trato dessas duas perguntas não pode satisfazer-se com
respostas que as tornem independentes uma da outra. Com efeito, por menor que seja o
tempo cronológico conquistado, esse tempo porventura ganho ao longo de ações
prudentes, convenhamos que ele pode muito bem ser aplicado numa vasta rede de
interferências, em amenas andanças por aí, no embelezamento da existência, na leitura
de obras excelentes, nos encontros que nos ajudam ou nos forçam a “criar no
pensamento o ato de pensar” 7, nas idas ao cinema etc. e/ou ser vigorosamente investido
no combate aos intoleráveis que cerceiam a abertura dos possíveis em nosso campo de
experiências. Sabe-se que Deleuze, desde 1968, quando foi hospitalizado aos 43 anos
em conseqüência de uma seriíssima tuberculose 8 , conviveu com uma saúde frágil até o
suicídio em 1995, suicídio que aparece como afirmação num lance final, como
derradeira e digna viagem de um corpo extremamente separado do seu poder de
respirar. Importa destacar que a partir de 1968 ele ganhou um tempo de vida, e vida
produtiva, graças a certos cuidados, ter rompido com a bebida, por exemplo. Contudo,
ele disse que teve “menos mérito” ao fazer isso. Por que, menos mérito? Ele responde:
“porque parei de beber por razões de respiração, de saúde etc., mas é evidente que se
deve parar ou se privar disso”. Podemos notar que dois níveis se insinuam nessa
7
G. Deleuze, Proust et les signes, Paris : P.U.F., 1964 ; 4ª ed. remanejada 1976, p. 134. Proust e os
signos, tr. br. de Antonio Carlos Piquet e Roberto Machado, Rio de Janeiro : Forense-
Universitária, 1987, p. 109.
8
Ver, “L’Abécédaire de Gilles Deleuze”, entrevista a Claire PARNET realizada por P. A. Boutang
em 1988 e transmitida em série televisiva a partir de novembro de 1995 pela TV-ART, Paris:
Vídeo Edition Montparnasse, 1996, Letra M, Maladie (Doença).
8

resposta. Até o etc., o parar de beber teria sido eticamente menos meritório porque se
tratava de uma ação tornada urgente por problemas respiratórios que o afligiam em
demasia. Essa atmosfera de um simples e prudente cuidar de si teria dominado também
a segunda parte da frase, se após o etc. ele tivesse dito, por exemplo, de modo que é
evidente que se deve... Porém, o mas empregado aí não parece estar funcionando como
advérbio destinado a corroborar o já dito anteriormente; ele parece operar como
conjunção adversativa que nos obriga a argumentar assim: entendo, prezado Deleuze,
que seus problemas respiratórios o obrigaram a parar de beber, mas por que razão “é
evidente que se deve parar ou se privar disso”? Portanto, uma outra causa está aí
operando, que não apenas a do prudente enfrentamento do problema respiratório
imediato. Que causa seria essa?
16 Que causa se insinua, forçando-o a ocupar esse tempo ganho e não apenas a
gastá-lo no usufruto prazeroso de uma vida biológica ou social prudentemente vivida
numa atualidade tornada menos intolerável? Vejamos outra passagem do Abecedário
ainda ligada a esse problema do beber ou drogar-se: “Beber, se drogar, tudo isso parece
tornar quase possível algo forte demais, mesmo se se deve pagar depois [...] mas em
todo caso, está ligado a isto, trabalhar, trabalhar. [...] A única justificação possível é se
isso ajuda o trabalho. Mesmo se se deve pagar fisicamente depois. Quanto mais se
avança, mais a gente diz a si mesmo que não ajuda o trabalho...” Como vemos, a causa
que se insinua no segundo nível a que nos referíamos já não se liga simplesmente às
ações de uma prudência que se esgota no cuidado fisiológico de si, de sua própria saúde
atual; liga-se, isto sim, a “algo forte demais” que poderá estar ao alcance da minha
potência, da minha força de trabalho, do meu corpo, enfim, se este for efetivamente
capaz disso. Algo forte demais a que sou levado a engatar minha potência. Por isso,
Deleuze diz ainda: “e é evidente que quando tudo se inverte, e que beber impede de
trabalhar, e a droga se torna uma maneira de não trabalhar, é o perigo absoluto, não tem
mais interesse”. Portanto, o critério de seleção daquilo a que convém abrir meu corpo
orgânico vem a ser sua participação favorável no movimento pelo qual minha força de
trabalho se compõe com esse algo forte demais que sinto ser capaz de aliciar
maximamente minha potência de vida. É esse movimento em prol do meu envolvimento
com algo forte demais que me lança para além do princípio dos prazeres imediatos da
minha vida, da minha saúde em sua cotidiana atualidade.
9

17 Que será esse algo forte demais? Em termos deleuzeanos, esse algo forte
9
demais é o retomar a criação, o recomeçar o novo . No caso de Deleuze, esse algo
estava ligado ao fazer filosofia, isto é, à criação de “conceitos filosóficos”; mas
conceitos que, por ressonância entre si e por ressonância entre os componentes de cada
um, acabam por levar a consistência assim alcançada a determinar a seu modo a própria
consistência de uma problemática da diferença que, por sua vez, impunha-se ao seu
pensamento. Tarefa exaustiva. Ele teve a sensação de que beber o “ajudava a fazer
conceitos”, mas “depois”, diz ele, “percebi que já não ajudava, que me punha em
perigo”, pois “não tinha vontade de trabalhar se bebesse” 10. Para que haja essa criação,
impõe-se o encontro com algo forte demais, como foi dito; mas o que também se impõe,
concomitantemente, é um estar à espreita desse algo, mesmo que de maneira divertida.
“Estou à espreita de algo”, diz ele, “que passa dizendo para mim... isso me perturba”.
Sem desenvolvermos aqui esse tema, podemos dizer que os movimentos implicados no
re-criar, no re-começar, estão como que pincelados de rebrilhos, de luminescências, a
que podemos colar o nome de idéias. Ele diz: “sempre tenho a impressão que posso ter
o encontro com uma idéia”. Não se trata nem de idéias prontas e nem de idéia no
sentido de Platão. Por que? Porque há idéia em “todas as atividades criadoras”, pois
“criar é ter uma idéia”, de modo que “um pintor tem tantas idéias quanto um filósofo,
mas não se trata do mesmo tipo de idéias”. É quando os rebrilhos de um encontro
intensivo ganham por esforço criador a “forma de conceitos” é que se tem efetivamente
idéia em filosofia, e conceitos criados, não descobertos.
18 O mínimo que podemos dizer a respeito desse algo forte demais é que ele,
como acontecimento, implica um encontro disparador envolvendo meu poder de ser
afetado e aquilo que nele desencadeia uma intensificação, um salto para além da minha
estruturação atual, meu repentino dançar na chuva, por exemplo. Outros modos de sentir
e perceber criados nos instantes desses encontros intensivos. Deleuze pergunta: “será
que a música não seria a grande criadora de afectos? Será que ela não nos arrasta para
11
potências acima de nossa compreensão? É possível” . Mesmo que se discuta esse
destaque da música (a mais temporal das artes), o importante é essa viagem “acima de

9
« Primeiramente, é verdade que não se opera a própria criação [...], mas a re-criação, não o
começo, mas o re-começo.” G. Deleuze, L’Île deserte et autres textes (textes et entretiens 1953-1974),
Paris : Minuit, 2002. Texto 1 : « Causes et raisons des îles désertes » (Manuscrito dos anos 50). P.
16. A ilha deserta e outros textos. Texteos e entrevistas (1953-1974). Tr. br. coletiva. Texto 1 : « Causas
e razões das ilhas desertas », tr. de Luiz B. L. Orlandi, p. 21.
10
L’Abécédaire, Letra B – Boire (Beber).
11
L’Abécédaire, Letra I, Idée (Idéia).
10

nossa compreensão”, o que pode ocorrer a qualquer um de nós. Se ficarmos à espreita


de encontros como esse, ele pode acontecer mais vezes, dependendo das circunstâncias
e das variações que suportarmos ao sermos tocados. “Acho que os encontros”, diz
Deleuze, “quando vou ver uma exposição, estou à espreita, em busca de um quadro que
12
me toque, de um quadro que me comova, quando vou ao cinema” . Instantes como
esse não podem ser desperdiçados, pois são preciosos pelos afectos e perceptos com que
eles nos surpreendem.

19 Em seguida, tudo dependerá do poder de entregar-se a processos criadores


que efetuem como obra as intensidades desse encontro. É decisivo, como se nota, ficar à
espreita de algo forte demais. Ficar à espreita, como os animais sabem ficar, é uma
postura a ser diferenciada daquelas ações típicas da prudência a que nos referíamos do
ponto de vista da vida em sua saudável imediatidade, aquela a que recorremos para que
a confiança predomine sobre a desconfiança em nossa cotidianidade. A prudência,
enquanto prática, opera em prol da maior confiabilidade possível em nosso modo
empírico de viver a vida na atualidade do nosso mais saudável aqui e agora. O ficar à
espreita de algo forte demais é uma postura que inicia o deslocamento dessa prudência
do dia-a-dia, essa que se pratica em prol do domínio da confiança sobre a desconfiança
na vida, para a prudência enquanto arte envolvida com as intensificações de uma vida.
20 Não se trata de uma distinção absoluta entre a prudência como prática regrada
e a prudência como arte. Deleuze aproxima as duas vertentes em função de um
problema bem preciso: o de ligar os encontros intensivos à construção de um plano de
consistência ou de imanência. Nessa construção, vivemos em constante combate em três
frentes: uma frente em que nos dedicamos a não ser simplesmente tomados pela forma
organismo que “cola no corpo” em detrimento de “conexões que supõem todo um
agenciamento, circuitos, conjunções, superposições e limiares, passagens e distribuições
de intensidade, territórios e desterritorializações medidas à maneira de um agrimensor”;
outra frente é a de não nos limitarmos ao jogo do estrato da “significância” que “cola na
alma”, fixando opiniões, por exemplo, em detrimento do ato de pensar; e numa terceira
frente combatemos para “nos deslocar dos pontos de subjetivação que fixam” nossa
“consciência” e “nos pregam numa realidade dominante”. É grande o risco que
corremos nesses combates. Com efeito, somos derrotados, trazemos a morte para mais
perto ainda, “tangenciamos o ilusório, o alucinatório, a morte psíquica” toda vez que
combatemos sem a “prudência necessária”, isto é, sem “a arte das doses”, sem uma
“arte comum” a essas três frentes de “batalha”. Deleuze e Guattari não dizem que essa
prudente arte das doses seja uma “sabedoria”; falam em “prudência como dose, como

12
L’Abécédaire, Letra C, Culture (Cultura).
11

regra imanente à experimentação”, o que nos leva a pensar em “injeções de prudência”


a cada caso.
21 Tanto quanto em Aristóteles, também aqui vivemos às voltas com o
contingente, mas em outro nível de mobilidade e radicalidade, pois não podemos contar
com a exemplaridade de um virtuoso na busca de uma privilegiada regra mediadora. Por
exemplo, é dito que “é necessário guardar o suficiente do organismo para que ele se
recomponha a cada aurora; pequenas provisões de significância e de interpretação, é
também necessário conservar, inclusive para opô-las a seu próprio sistema, quando as
circunstâncias o exigem, quando as coisas, as pessoas, inclusive as situações nos
obrigam; e pequenas rações de subjetividade, é preciso conservar suficientemente para
poder responder à realidade dominante”. E para quê? Para que os encontros intensivos
não nos precipitem num estado que torne impossível a própria experimentação
consistente deles. “É seguindo uma relação meticulosa com os estratos que se consegue
liberar as linhas de fuga, fazer passar e fugir os fluxos conjugados, desprender
intensidades contínuas para um corpo sem órgãos. Conectar, conjugar, continuar: todo
um ‘diagrama’ contra os programas ainda significantes e subjetivos” 13. Em virtude da
própria continuação variável da experimentação, os cuidados banhados em regras e arte
implicam o dever de “multiplicar as regras práticas” 14. Uma pluralidade de práticas de
prudência deve interferir com arte não para que as intensidades sejam contidas, retidas,
reprimidas por um plano de organização, mas para que elas coexistam e co-operem num
plano de consistência, de modo que este “não devenha um puro plano de abolição, ou de
morte”; “para que a involução não se transforme em regressão ao indiferenciado”, o que
implica reservar com suficiente ardil “um mínimo de estratos, um mínimo de formas e
de funções, um mínimo de sujeito para dele extrair materiais, afectos, agenciamentos”
15
.
22 É preciso ficar à espreita de encontros intensivos que, co-operando num plano
de consistência, tornem possível extrair uma vida da vida cronometrada. Neste caso, as
intensidades são de “singularização”; são vibrações que compõem a própria essência
singular do indivíduo, o grau de potência que o caracteriza, vibrações que saltam do
nível da variação contínua em que continuam ocorrendo os processos de
“individuação”; essas vibrações saltam da inserção do indivíduo no conjunto de suas
“determinações empíricas” e instalam de tempos em tempos uma “vida impessoal”, mas
“singular”, reitera Deleuze, vida plena de “entretempos” e “entremomentos”, plena de
13
G. Deleuze e Félix Guattari, Mille plateaux, Paris : Minuit, 1980. Platô 6 : « Comment se faire un corps
sans organes ? », pp. 187, 198, 199. Mil platôs, Rio de Janeiro: Ed. 34, Platô 6 « Como criar para si um
corpo sem órgãos?”, tr. br. Aurélio Guerra Neto, vol. III, pp. 11, 22-23, 23-24.
14
Mille plateaux, obr. cit. Platô 7 : « Année Zéro – Visagéité”, p. 231. Mil platôs, ob. cit., Platô 7:
“Ano Zero – Rostidade”, tr. br. de Ana Lúcia de Oliveira e Lúcia Cláudia Leão, Vol. III, p. 58.

15
Mille plateaux, ob. cit. Platô 10 : « Devenir-intense, devenir-animal, devenir-imperceptible... », p. 330-
331. Mil platôs, ob. cit. Vol. IV: « Devir-intenso, devir-animal, devir-imperceptível... », tr. br. de Suely
Rolnik, p. 60.
12

trajetos transtópicos que se transpõem “no absoluto de uma consciência imediata”. Essa
“vida de pura imanência” é pensada como “puro acontecimento liberado dos acidentes
da vida interior e exterior” 16 . É nesta perspectiva que cabe orientar “a questão de
saber” se este ou aquele intensificador da sensibilidade, tido como capaz de provocar a
molecularização das percepções, (como a “droga”), “consegue efetivamente traçar o
plano que condiciona”, diz Mil platôs, o próprio “exercício” das intensificações, coisa
posta radicalmente em dúvida por esse livro no que concerne à droga, dado que “sua
linha de fuga não pára de ser segmentarizada na forma, a mais dura possível, da
dependência, do dopar-se, da dose e do traficante”, de modo que, em vez de “partir do
zero a cada vez”, trata-se de “partir para outra coisa, partir ‘no meio’, bifurcar no meio”,
“embriagar-se, mas com água pura (Henry Miller)” 17.
23 Aproximamo-nos, assim, de uma questão difícil. Difícil, porque ela deve
apropriar-se dessa prudência pensada como arte. E ao fazer isso, essa questão deve levar
essa arte da prudência a envolver-se com regras ou procedimentos produtivamente
favoráveis a uma experimentação curtida a cada instante pelo ficar à espreita de algo
forte demais. Estamos dizendo que algo mais pode nos acontecer e não apenas vivermos
a vida engrenada nos e pelos estratos, vida em que somos tomados pelo jogo da
confiança e da desconfiança, jogo até certo ponto domado no nível de certas práticas
prudentes. Como já tivemos a experiência de que algo mais pode nos acontecer,
digamos que também podemos ficar à espreita, não de outra vida no além, mas de
encontros intensivos que povoam uma vida a que temos acesso de quando em quando.
Isto quer dizer o seguinte: buscamos uma questão que não se reduza ao jogo da
confiança e da desconfiança, embora não o suprima; e essa questão é justamente a da
relação que torna possível uma vida, a relação entre intensificações e o plano (ou
planos) em que elas ganham uma consistência co-determinada por elas mesmas. Sem
essa relação de consistência entre as intensidades, corremos o risco de cair num “puro e
simples caos”, e até mesmo no “vazio”, na “destruição” 18. Os cuidados com essa
relação fazem da prudência a arte de nos agenciar com aquilo que intensifica nossa
participação criativa e consistente no enfrentamento do caos.
24 Podemos aproximar dessa questão certos acontecimentos memoráveis: por
exemplo, a coragem com que respeitáveis sanitaristas brasileiros, Adolpho Lutz e
Emílio Ribas, enfrentaram há mais de um século a grande epidemia de febre amarela. É
que eles, além de outros voluntários (Oscar Moreira, Domingos Vaz, André Ramos e
16
G. DELEUZE, “L’immanence: une vie...”, Philosophie, no 47, 1/9/1995, pp. 3-7. Republicado
como texto nº 62 em G. Deleuze, Deux régimes de fous – Textes et entretiens – 1975-1995. Edição
preparada por David Lapoujade. Paris: Minuit, 2003, págs. 359-363. A continuação desse texto é
que foi publicada como ultimo capítulo, intitulado “L’Actuel et le virtuel”, de G. Deleuze e C.
Parnet, Dialogues. Paris: Flammarion, 1996, págs. 177-185.

17
Mille plateaux, ob. cit. Platô 10, já citado, pp. 348 e 350. Tr. br. já citada, pp. 79 e 80-81.
18
Mille plateaux, ob. cit. Platô 15: « Conclusion », p. 628. Mil platôs, obr. cit., vol. V, Platô 15:
“Conclusão”, tr. br. de Peter Pál Pelbart, p. 217-218.
13

Januário Fiori), levando a sério uma teoria do médico cubano Carlos Finlay, deixaram-
se picar por mosquitos infectados que a teoria indicava como sendo os efetivos
transmissores da doença. Sem dúvida, a saúde de todos eles correu um grande risco,
mesmo que, prudentemente, tenham tomado certos cuidados, como o de usar mosquitos
infectados de um “caso leve” 19. Mas isso não é tudo. Convém salientar que eles, sem
que fossem obrigados a isso, articularam suas próprias vidas orgânicas a uma
experiência pioneira cuja única garantia, naquele momento, era algo forte demais: dar
consistência experimental ao brilho de uma idéia que os arrastou para além de sua
compreensão imediata. E nesse intenso movimento eles não apenas ajudaram a “nos
proteger do caos” como também a vencer o caos mental que se apoderava dos
estudiosos daquela epidemia. Deleuze recolhe de Henri Michaux uma comparação
muito útil neste caso: esse acontecimento nos leva a pensar que “o que basta para as
‘idéias correntes’ não basta para as ‘idéias vitais’”, justamente as idéias “que se deve
criar” e que, uma vez criadas, rodeiam-se de zonas de indeterminação, inexploradas,
instigadoras de re-criações.
25 Com essa referência ao acontecimento vivido por alguns dos nossos
sanitaristas, posso reafirmar uma obviedade: a de que a filosofia não tem o monopólio
das idéias vitais. Mas seria possível privilegiar um outro lugar para elas, para essas
idéias que abrem saídas para a vida? Uma pergunta de Deleuze aponta a dificuldade:
“que seria pensar se ele não se defrontasse sem cessar com o caos?” Quando se diz que
as idéias vitais são “objetos mentais da filosofia, da arte e da ciência”, aparece a
pergunta: como pensar um “lugar” para elas nesse conjunto? Ou: em que lugar ocorre o
pensar que elas diferenciam tão vertiginosamente? Se as idéias vitais são inseparáveis
de saltos de intensidade experimentados por quaisquer dos nossos poderes (desde o
sentir até o pensar por conceitos, por funções ou por sensações ), a procura de um lugar
extensivo para situá-las já é por si mesma um “criar” e, portanto, um lance de idéia vital
20
. O salto intensivo implicado pelas idéias vitais, não sendo redutível a conexões
extensivas, é uma indicação de que nosso campo de experiências com acontecimentos
sofre aberturas não apenas à vida orgânica, mas também à vida não-orgânica. Deleuze
fala em “potência de uma vida não-orgânica, aquela que pode haver numa linha de
desenho, de escrita ou de música”. Por isso, ele pode dizer que “são os organismos que
morrem, não a vida”. Por que? Porque a potência de uma vida não-orgânica presente
numa “obra” acaba por indicar “uma saída para a vida”, de traçar “um caminho por
entre as vias”. Neste sentido, “criar” é “resistir”. E resistir, primeiramente, à tentação
de escrever com seu ego, “sua memória e suas doenças”. Deleuze diz que “no ato de
escrever há a tentativa de fazer da vida algo mais do que pessoal, de liberar a vida
19
Ver Neldson Marcolin, “Na própria pele”, artigo na seção “Memória” da Revista Pesquisa Fapesp, São
Paulo, março de 2009, pp. 6, 7.
20
G. Deleuze e F. Guattari, Qu’est-ce que la philosophie ?, Paris : Minuit, p. 189, 196, 197. O que é a
filosofia ?. Tr br. de Bento Prado Jr. e Alberto Alonso Muñoz, São Paulo: Ed. 34, pp.259, 266-268.
14

daquilo que a aprisiona”. Ele destaca a “pequena saúde frágil” de três autores que ele
tanto admira, Espinosa, Nietzsche e Lawrence, dotados de um “fraco organismo””, de
um “equilíbrio mal assegurado”. Entretanto, “não é a morte que os quebra; é sobretudo
o excesso de vida que eles viram, provaram, pensaram”. O que com eles aconteceu é
certamente uma virtualização excepcional, uma vida não-orgânica, “uma vida muito
grande para eles” 21. A saúde frágil transforma-se na grande saúde, tema que sempre
retorna em Deleuze. A grande saúde, mesmo às custas da “doença”, implica “realizar
um pouco de potência”, pois “a doença deve servir para alguma coisa, como todo o
resto”. Para ele, a doença “não é uma inimiga”, pois “aguça uma visão da vida, uma
sensação da vida”; trata-se, de “ser tomado” pela “vida em toda sua potência, em toda a
sua beleza” 22 até quando o organismo suportar os encontros intensivos com algo forte
demais.
26. Mas, aí, algum ferino ceticismo, que mal suportou a palestra até este ponto,
grita lá de não sei onde: pois bem, professor, toda essa fala em prol da grande saúde, em
prol de obras e ações que marcam vigorosamente a potência de pensar e a potência de
agir, tudo isso pode até valer em relação aos grandes pensadores, artistas, cientistas e
benfeitores da humanidade... mas pergunto: como alguém incapaz de uma grande obra,
e não sendo um místico, pode ter alguma fé no mundo, ir além do jogo da confiança e da
desconfiança, e ser assim arrebatado pela vida em toda sua potência, em toda sua
beleza? Como pode um irrisório rosário de misérias vividas comportar rebrilhos de uma
vida, já que o algo forte demais que o afronta não passa de uma existência alquebrada?
27. Diante da pergunta, o palestrante cala na garganta a tendência ao discurso
consolador, e espera que uma outra junção de vozes transforme essa pergunta numa
outra saída. Ao buscá-la, ele apenas lê, sem comentário algum: “cristãos ou ateus, em
nossa universal esquizofrenia precisamos de razões para crer neste mundo. É toda uma
conversão da crença”. Esta “não se volta para outro mundo, dirige-se a este mundo”. “O
certo é que crer não significa mais crer em outro mundo, nem num mundo
transformado. É apenas, simplesmente, crer no corpo. Restituir o discurso ao corpo, e,
para tanto, atingir o corpo antes dos discursos, antes das palavras, antes de serem
nomeadas as coisas” 23. Ora, restituir o discurso ao corpo implica cuidar dos encontros
intensivos neste mundo, mundo do qual “nos desapossaram”, o que nos obriga a
politizar a questão em toda parte em que a vida é ameaçada. Assim, “acreditar no
mundo” vem a ser, “principalmente, suscitar acontecimentos, mesmo pequenos, que
escapem ao controle, ou engendrar novos espaços-tempos, mesmo de superfície ou
volume reduzidos”. Porque, “é no nível de cada tentativa que se avaliam a capacidade

21
G. Deleuze, Pourparlers, Paris: Minuit, 1990, p. 196. Conversações, tr. br. de Peter Pál Pelbart, São
Paulo: Ed. 34, 179.
22
L’Abécédaire, ob. cit., Letra L de Literatura.
23
G. Deleuze, Cinéma 2. L’Image-temps, Paris: Minuit, 1985, pp. 223-225. Cinema 2. A imagem-tempo,
tr. br. De Eloísa de Araújo Ribeiro, São Paulo : Ed. Brasiliense, 1990, pp. 207-209.
15

de resistência ou, ao contrário, a submissão a um controle. Necessita-se, ao mesmo


tempo, de criação e povo” 24, salientando-se que esse e entre criação e povo é o da
consistente co-presença intensiva e não o da organizatória relação extensiva entre chefes
e subordinados.

Luiz B. L. Orlandi
.DF-IFCH-Unicamp
.Núcleo de Subjetividade-
PUC-SP

24
G. Deleuze, Pourparlers, ob. cit., p. 239. [Entrevista a Toni Negri em 1990]. Conversações, ob. cit., p.
218.

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