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Sempre acreditei que as longas enfermidades de entes queridos nos preparam para a
perda que virá. Hoje acredito que isso só vale para quem tem elevada resiliência, e
ajuda a quem tem moderada resiliência, mas pouco contribui a quem tem baixa
resiliência. Para estudar a resiliência em adultos criei e validei a escala ERS, específica
para a cultura brasileira, com a premissa de que a cultura afeta a atitude existencial
dos indivíduos, e resiliência é sobretudo uma atitude existencial perante a vida.
Na ciência há consenso de que a resiliência não é estável: ela flutua ao longo da vida.
Decorre daí a noção de que a resiliência é uma capacidade, que prefiro chamar de
competência, porque pode ser aprendida e aprimorada. Crianças geralmente
apresentam elevada resiliência frente às adversidades, enquanto que um terço dos
adolescentes perdem essa resiliência, comprovada quando se tornam drogaditos (a
ciência precisa estudar essa relação). Noto que adultos ao começarem a trabalhar
elevam sua resiliência, sobretudo jovens carentes com precária escolaridade e
contexto de vida. A rota de carreira vitamina em todos a resiliência, contudo traumas
e acidentes graves a derrubam. A aposentadoria e, sobretudo a terceira e quarta
idades derrubam a resiliência sobretudo em depressivos.
Relato como eu vivi meu luto, usando como moldura conceitual os fatores que
afetam a resiliência.
Resiliência
Uma análise fatorial exploratória revelou nove fatores que compõem a resiliência.
Com uma amostra de 1500 alunos de pós-graduação validei a escala ERS. Posterior
análise de equações estruturais revelou que não havia relação entre os fatores. A
resiliência é um construto formado a partir do sistema de nova fatores. Deduzo que
não adianta operar apenas sobre o fator de pior desempenho na escala: é preciso se
educar para ampliar o conjunto de fatores. Os escores em cada fator foram ajustados
para uma escala de 1 a 100, bem como o escore geral de resiliência.
Assim que a escala foi validada, eu a apliquei em mim: queria conhecer meus escores.
Fiquei supreso meu escore global estava na fronteira entre a baixa e moderada
resiliência e meu estilo era feminino (indicativo da fronteira entre baixa e moderada).
O uso de escalas psicométricas, mesmo quando baseadas em autoavaliação, evitam
essa racionalização. Queria sair dessa posição, então passei a buscar com pessoas
com evidente resiliência elevada as táticas que adotavam quando ela era posta à
prova. Uns usavam água, outros música, outros praticavam esportes radicais, alguns
iam para a oficina praticar hobbies. Passei a praticar algumas dessas táticas. Anos
depois meus escores de resiliência subiram um pouco. Não sei se foi efeito dessas
práticas ou se resultou de maior autoconhecimento. Todavia, a pandemia me levou
ao fundo do poço pela conjunção de fatores: uma "tempestade perfeita". Entendi
que aprimorar a resiliência é esforço para a vida toda, e vale a pena.
Dentre seis mil pessoas que usaram a escala ERS, 30% apresentam elevada, 40%
moderado e 30% baixa resiliência. Essas proporções são compatíveis com as
pesquisas com quem viveu estresse pós-traumático. Estudei muito o estresse, e até
fiz pesquisa comparando escores em estresse e resiliência, sem sucesso pois a
proporção de muito estressados em minha amostra não foi suficiente para a
validação estatística dessa relação. Julgo mais relevante estudar resiliência que
estresse. Até por que é mais fecundo educar para a maior resiliência do que
precaver-se de traumas e crises.
Luto
Assim que fechado o prognóstico da doença de minha esposa, deixei de trabalhar
para cuidar dela e de minhas filhas. Antes mesmo do desfecho tomei antidepressivos,
sob supervisão médica. Desempenhei bem tudo o que foi exigido, mas à custa de
muita energia psíquica, encoberta pelo uso da medicação. Quanto mais veloz a
progressão da doença, mas ela aguça pensamentos catastróficos, a sensação de
perda de controle e a ruptura da linha da vida. Sinais de crise e de trauma, que eu vivi
de modo atenuado. O luto havia começado em minha mente. Depois da morte dela,
viajei com minhas filhas para ampará-las. Surpresa: elas tentavam cuidar de mim
tanto quanto eu delas. Elas eram adolescentes que perderam a mãe, algo que
estudiosos consideram a maior fonte de distresse (estresse negativo).
Na primeira fase do luto, a mais sofrida, não pedi ajuda em meu círculo social. Esse é
um dos comportamentos habituais de quem apresenta baixa competência social.
Mas pessoas empáticas ofereceram essa ajuda, que aceitei relutante, possivelmente
diante de minha razoável empatia. Cuidava da casa e da família, mas sem projetos
para o futuro. Essa anedonia tanto era sintoma de depressão quanto revelava forte
introversão, característica de minha personalidade. Minha autoconfiança não foi
abalada, mas a autoestima sim.
Obeso e sem praticar atividade esportiva, só após validar a escala percebi que o
condicionamento físico e a vida saudável ampliam a tenacidade, que é a capacidade
de lidar com dor e sofrimento, um dos fatores da resiliência. Fiz muitos sacrifícios
nesse período de luto, o que pelo menos sustentou alguma tenacidade
pregressa. Decorrido um ano da perda, a diretora de RH de um banco que me
contratava sempre para alguns trabalhos me telefonou e disse: "vamos trabalhar? Já
teve tempo suficiente para viver a dor". Foi um empurrão fundamental. Nos anos
seguintes tive a maior produditividade em minha carreira como professor e consultor.
De fato, a ludoterapia funciona, mas no tempo de cada um. Quanto maior a
resiliência, menor o prazo para a vida "voltar ao normal" (que é o significado
etimológico do termo latino resilire).
Há uma crença popular de que demora cinco anos para alguém superar a fase sofrida
do luto. Acredito que esse é o tempo de superação para os de moderada resiliência.
Os de elevada o superam em um ou dois anos. E os de baixa resiliência muitas vezes
não se recuperam mais. Investir em relacionamentos afetivos vale a pena, com todas
as dificuldades típicas da viuvez. Afinal, a troca de afetos promove a resiliência em
diversos aspectos. Tantos anos depois da perda, aprendi a conviver com o luto
residual, mas não recompus os relacionamentos afetivos.
O esforço para enfrentar o luto fortaleceu tanto eu quanto minhas filhas, que
amadureceram precocemente. É uma batalha diária e sutil. E multifacetada.
Viver o luto nos torna humildes diante da fragilidade da vida, e é essa a principal
aprendizagem quando o vivemos. Qual arrogante, vaidoso ou narcisista aprenderia
com sua perda? A principal diferença entre quem tem moderada e elevada resiliência
é o grau de aprendizado. Ambos enfrentam de modo funcional as adversidades,
crises e luto, contudo os de elevada resiliência prosperam e se aprimoram.
O que não é possível evitar são as perdas que teremos ao longo da vida. Então,
parafraseando Ana Cláudia Arantes, afirmo: o luto é um processo que vale a pena
ser vivido.
Publicado por: Paulo Sabbag Diretor na Zagaz Aprendizagem Digital Diretor na Zagaz Aprendizagem Digital
Publicado • 1ª / LIVRO: RESILIÊNCIA: COMPETÊNCIA PARA ENFRENTAR SITUAÇÕES EXTRAORDINÁRIAS NA VIDA PROFISSIONAL – EDITORA
ALTABOOKS, LIVRO LAUREADO COM O PRÊMIO JABUTI.