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REVISTA DE DIVULGAÇÃO CIENTÍFICA DO INSTITUTO CIÊNCIA HOJE | R$17,40 JULHO 2020 | EDIÇÃO 367

CIÊNCIA E POLÍTICA
EM TEMPOS DE
NEGACIONISMO
O INSTITUTO CIÊNCIA HOJE é uma organização sem A CIÊNCIA TEM OCUPADO BOA PARTE dos debates nas
fins lucrativos que publica as revistas Ciência Hoje e
Ciência Hoje das Crianças.
redes sociais e nos noticiários. Ainda assim tem sido di-
fícil convencer os brasileiros da necessidade de isolamen-
DIRETORIA
to social enquanto a pandemia continua a avançar. Por
Presidente | Alberto Passos Guimarães Filho (CBPF)
Diretores | Andrea T. Da Poian (UFRJ), Diego V. Be- que o discurso científico é ouvido, mas não basta para
vilaqua (Fiocruz) e Marco Moriconi (UFF). Convidado induzir comportamentos? No artigo de capa desta edição,
especial: Carlos Medicis Morel (Fiocruz).
Conselho consultivo | Aldo Dutra (Inmetro), Georgia temos que o impulso de “voltar à normalidade” em par-
Pessoa (FRM), Débora Foguel (UFRJ), Eduardo Fleury te se explica pela necessidade dos que não têm meios
Mortimer (UFMG), Gustavo Balduino (Andifes), José
Murilo de Carvalho (EGN e ABL), Reinaldo Guimarães materiais para sobreviver na quarentena. Mas há outras
(Uerj), Roberto Lent (UFRJ), Roseli de Deus Lopes questões em torno da ciência e da política em tempos
(USP) e Walter Araújo Zin (UFRJ).
Superintendente executiva | Bianca Encarnação
de negacionismo.
Superintendente de projetos educacionais | Ricardo O tema ‘a covid-19 e os povos indígenas’ também está
Madeira
em pauta. A doença, que avança nas aldeias, não pode
CIÊNCIA HOJE ser considerada uma fatalidade diante de fatos como a
Editores científicos | Ciências Humanas: Carla invasão de terras indígenas por garimpeiros que disse-
Madureira (UFRJ) e Mônica Lima (UFRJ) | Ciências
Exatas: Claudia Rezende (UFRJ), Diego V. Bevilaqua minam o vírus, a falta de assistência médica adequada
(Fiocruz), Marco Moriconi (UFF) e Victor Giraldo (UFRJ) e a omissão do poder público, entre outros fatores.
| Ciências Biológicas: Andrea T. Da Poian (UFRJ),
Franklin Rumjanek (UFRJ) e Leandro Lobo (UFRJ). Em um terceiro artigo em torno da pandemia, dis-
cute-se que os efeitos e os impactos sociais causados
REDAÇÃO
Editora executiva | Bianca Encarnação
pela covid-19 não são os mesmos para todas as popula-
Subeditora | Thaís Fernandes ções ou grupos. Estatísticas do Ministério da Saúde
Editores de texto |  Alicia Ivanissevich, Bianca
apontam que negros são a maior parte dos mortos. A
Encarnação, Cássio Leite Vieira, Thaís Fernandes e
Valquíria Daher. explicação evidentemente passa pelo fato de que, quan-
Revisora | Laura Chaloub to piores as condições materiais de vida de certos gru-
Contato | redacao.cienciahoje@gmail.com
pos, pior o impacto da doença em suas chances de re-
Arte | Ampersand Comunicação Gráfica S/C Ltda. cuperação e sobrevivência.
(ampersand@amperdesign.com.br)
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Designer assistente | Laura Fleury

Desenvolvimento e suporte | Loja Interativa


A Redação

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4 | PEQUENAS E GRANDES QUESTÕES
O que é uma tempestade de
citocinas?; Já sabemos por
14 | ARTIGO
CIÊNCIA E POLÍTICA EM TEMPOS
que o SARS-CoV-2 leva à DE NEGACIONISMO
tempestade de citocinas? Existe Alyne Costa, PUC-Rio; Tatiana Roque, UFRJ
algo que pode ser feito para evitar
que essa resposta do organismo
agrave o quadro de covid-19? |
22 | ARTIGO
O BRASIL E A OMS
Claudia Farias Benjamim, UFRJ Marcos Cueto, Fiocruz

6 | ENTREVISTA
O antirracismo como sentido
da vida | Karine Teixeira Damasceno,
30 | ARTIGO

PUC-Rio
O VÍRUS DO RACISMO E A COVID-19
Marcio André dos Santos, Unilab

10 | CIENCIA E CULTURA POP 36 | ARTIGO


Voar: um superpoder com muitos COVID-19 E A GUERRA DE CONQUISTA DOS
limites | Lucas Miranda, UFJF POVOS INDÍGENAS
João Gabriel da Silva Ascenso, Cap-UFRJ;
12 | RESULTADOS IMEDIATOS Rayane Barreto de Araújo, UFRRJ
Convivência pacífica | Rafael de
Souza Laurindo, ISMECN 44 | ARTIGO
ZOONOSES, O PROTAGONISMO HUMANO EM
PANDEMIAS, EPIDEMIAS E SURTOS
Helena Godoy Bergallo e Maria Alice Santos Alves, Uerj;
Walfrido Tomás, Embrapa-Pantanal

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362 | JULHO
JANEIRO-FEVEREIRO
2020 | 2020 |
11 | GEOINFORMAÇÃO
A valorização das representações
espaciais | Carla Madureira Cruz, UFRJ

51 | DESVENDANDO O COSMOS
O desafio para compreender
a natureza | Adilson de Oliveira, UFSCar

23 | CAÇADORES DE FÓSSEIS
Nascido do fogo |
Alexander W. A. Kellner, Museu Nacional

45 | LITERÁRIA
Vírus e bactérias estão na Bíblia? |
Georgina Martins, UFRJ

64 | QUAL É O PROBLEMA?
Pesando bolinhas | Marco Moriconi, UFF
52 | MULHERES NA CIÊNCIA
Juventude, determinação e sensibilidade
Bárbara de Paula P. F. Guimarães,
Instituto D’Or

54 | BASTIDORES DA CIÊNCIA
Lições de Maria Tifoide
Omar Lupi da Rosa Santos, ABM

56 | OUTRAS PALAVRAS
Evo-Devo e o mito de Pegasus
Adeilson Batista Lins, Profbio

58 | INFINITAS POSSIBILIDADES
Ensaio sobre a cegueira botânica
Fernanda Aparecida Soares Costa, Profbio;
Denise Maria Trombert Oliveira, UFMG

60 | NA TELA
Valeu a pena o sangue derramado? –
sobre o filme Destacamento Blood
Jorge Lucas Maia, UFRJ

62 | NA ESTANTE
Um convite à transformação – sobre o
livro Pequeno manual antirracista
Thayara Cristine Silva de Lima, UFRJ

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Claudia Farias Benjamim
Programa de Imunobiologia, Universidade Federal do Rio de Janeiro

O QUE É UMA TEMPESTADE DE CITOCINAS?

O VÍRUS SARS-COV-2 ao entrar no mediadores inflamatórios. Alguns dos doenças prévias, como diabetes e hi-
organismo, normalmente pelas vias mediadores mais conhecidos são pro- pertensão, ocorre uma reação infla-
aéreas (pulmão), se liga a um receptor teínas chamadas citocinas, responsá- matória exagerada, resultante de de-
chamado ACE2 na superfície de dife- veis por iniciar vários processos que sequilíbrio e falha nos mecanismos
rentes tipos de células, como as epi- culminarão na eliminação do vírus. de controle da resposta inflamatória.
teliais (nas quais revestem as vias Um desses processos é o recrutamen- Essa grande liberação de mediadores
aéreas), as alveolares (onde ocorre to de mais células de defesa da cor- inflamatórios, principalmente das ci-
troca gasosa), as endoteliais (que re- rente sanguínea para o local (neutró- tocinas, recebe o nome de “tempesta-
vestem o interior dos vasos sanguíne- filos, monócitos e linfócitos). Esses de de citocinas”. Esse fenômeno é
os) e os leucócitos, que são as células mediadores e células são muito im- perigoso porque as células ativadas
de defesa (algumas residentes nos portantes para induzir a morte das pelas citocinas liberam outros media-
tecidos, como os macrófagos e os mas- células infectadas com os vírus, eli- dores – como os radicais livres e as
tócitos). Logo em seguida, o vírus en- minando-as e impedindo assim que redes extracelulares de DNA de neu-
tra na célula, onde será reconhecido o vírus se replique e infecte outras trófilo (NET) – também em grande
por moléculas que desencadeiam a células vizinhas. Mas, em alguns ca- quantidade, que são tóxicos para os
produção de grandes quantidades de sos – sobretudo em indivíduos com microrganismos, mas também para as
células sadias do tecido. |

CRÉDITO: ADOBE STOCK

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JÁ SABEMOS POR QUE O SARS-COV-2 LEVA À TEMPESTADE DE CITOCINAS?
EXISTE ALGO QUE PODE SER FEITO PARA EVITAR QUE ESSA RESPOSTA
DO ORGANISMO AGRAVE O QUADRO DE COVID-19?

CRÉDITO: ADOBE STOCK


Sabemos em parte. A tempestade de citocinas observada em pacientes com covid-19 acontece quando a resposta inflama-
tória perde o controle da infeção. Isso tem sido observado principalmente em indivíduos com doenças prévias, como dia-
betes, hipertensão e enfermidades pulmonares, bem como em idosos, obesos e fumantes. O idoso, por exemplo, tem fra-
gilidade na defesa contra o microrganismo porque suas células responsáveis por atacar esse invasores estão em menor
número e são menos eficientes. Já o paciente diabético é mais suscetível por ter muita glicose no sangue, propiciando
maior capacidade de replicação viral e grande produção de citocinas, como o interferon, além dos radicais livres, molécu-
las muito reativas que destroem as células saudáveis do organismo. O interferon aumenta o número de receptores ACE2
nas células, por onde o vírus SARS-CoV-2 entra, favorecendo o aumento da carga viral nos tecidos. Sobre os pacientes hi-
pertensos, o que sabemos hoje é que eles são mais susceptíveis à infecção por SARS-CoV-2 por acumular um mediador/
hormônio que se chama angiostensina II no organismo, responsável por diminuir o calibre dos vasos. A angiostensina II
também é uma molécula pró-inflamatória, o que leva ao aumento de citocinas e radicais livres, agravando o quadro do
paciente. Os indivíduos fumantes e com doenças prévias pulmonares ficam mais predispostos porque já possuem uma
inflamação basal no pulmão, consequentemente já apresentam lesão tecidual e isso favorece a infeção viral.
Sobre a possibilidade de impedir que a tempestade de citocina agrave o quadro, os cientistas estão estudando algu-
mas estratégias. Já se sabe que os anticorpos direcionados para a proteína S (espícula) presente na parte externa do ví-
rus impedem a ligação do vírus à célula e isso bloqueia a infecção, impedindo por sua vez a liberação de grandes quan-
tidades de citocinas. Fármacos ou anticorpos que inibam a citocina IL-6 também parecem ser bem promissores, já que
impedem a ação dessa citocina nas células e no organismo. O fármaco dexametasona (um glicocorticoide sintético)
também é um potente agente anti-inflamatório e inibe a tempestade de citocinas, porém apresenta muitos efeitos ad-
versos e deve ser usado por um curto período de tempo, em doses baixas e para os pacientes em oxigenoterapia ou em
ventilação mecânica. Em resumo, ainda não temos um tratamento efetivo comprovado para a covid-19, porque o vírus
afeta muitos órgãos e ativa muitas vias inflamatórias ao mesmo tempo, o que torna a terapia um grande desafio. |

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Karine Teixeira Damasceno
O ANTIRRACISMO COMO SENTIDO DA VIDA
Historiadora e ativista, Karine Teixeira Damasceno reflete sobre o movimento
‘Vidas Negras Importam’, reforça o protagonismo negro na luta pela liberdade no
século 19 e denuncia o preconceito racial dentro da academia

Valquíria Daher
Instituto Ciência Hoje
CRÉDITO: FOTO SEDRIK MILES

A historiadora Karine Teixeira Damasceno mostra, em sua tese de doutorado, a trajetória de mulheres negras escravizadas, li-
bertas e livres que foram protagonistas na luta por sua liberdade, de seus familiares e de outras pessoas de suas comunidades.
Movendo ações de liberdade na Justiça ou negociando cartas de alforria, elas foram fundamentais no processo que fez ruir o
sistema escravista no Brasil no século 19. Mais de 130 anos depois, em meio à pandemia de covid-19, que atinge mais duramen-
te a população negra, e dos protestos contra o assassinato de George Floyd, que tomaram ruas e redes sociais nos Estados
Unidos e no mundo, Karine, que é filiada ao Movimento Negro Unificado (MNU) e integrante da Rede de Mulheres Negras da Ba-
hia, compara os dois momentos: “A luta contra o racismo nos tempos atuais é o sentido da nossa vida assim como era, para os
que viveram a escravidão, a luta pela liberdade”. Nesta entrevista, a pesquisadora, que é doutora pela Universidade Federal da
Bahia e faz pós-doutorado no Programa de Pós-Graduação em História Social da Cultura da PUC-Rio, compara os movimentos an-
tirracistas de Brasil e EUA, fala do racismo acadêmico, avalia a importância das ações afirmativas, destaca a importância de estu-
dar a África e reafirma o protagonismo das mulheres. “Nós, mulheres negras, saímos dos bastidores e, mais do que nunca, estamos
na cena pública, apresentando para a sociedade o nosso ponto de vista, tentando contribuir para nossa própria libertação das
opressões, do sexismo, do racismo, e propondo mudanças nos mais diversos setores”.

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CIÊNCIA HOJE: Como você avalia os atuais protestos
antirracistas? No que diferem de outros, do passado?
Representam um ponto de ruptura? 
A resposta ao caso George Floyd foi à
KARINE DAMASCENO: Nos Estados Unidos, como aqui, o altura e foi inspiradora para negras e
racismo é estrutural. Então, em curtos intervalos de tempo,
negros no mundo inteiro, mas a luta
temos notícias da violência policial, principalmente contra
homens jovens negros. Todas essas violências provocam contra o racismo está em curso e há
respostas da comunidade negra estadunidense, mas o que muito ainda o que se fazer
está acontecendo agora tem uma proporção muito maior.
Acredito que uma das razões foi a cena ter sido filmada,
assistida e compartilhada em todos os lugares do mundo.
Como brasileira e negra, me sentindo parte dessa dor, venenamentos, fugas, como também foi travada na Justiça.
quando vi a imagem de George Floyd dizendo “não consi- Um número muito grande de pessoas escravizadas move-
go respirar”, eu também parei de respirar. Pessoas negras ram ações contra senhores reivindicando a liberdade. As
e não negras, no mundo todo, sentiram o mesmo. Outro mulheres  negras foram grandes protagonistas desse pro-
grande diferencial é que, como o racismo é estrutural, a cesso. Elas ousavam enfrentar senhores e senhoras nos
população negra é a que mais sofre com a covid-19. Mor- tribunais. Pense no nível de vulnerabilidade que essas
talidade, desemprego, habitação precária... Várias questões mulheres e esses homens viviam. Eles não eram donos dos
vieram à tona e, somadas à violência policial, influenciaram próprios corpos e conseguiam se articular pela liberdade
nessa reação gigantesca. Mas não acho que os protestos legal, sendo, muitas vezes, vitoriosos. Quando, em 13 de
levem a uma grande ruptura porque centram fogo na de- maio 1888, se oficializa o fim da escravidão, um número
núncia da violência policial, e não na necessidade de mu- muito grande de pessoas escravizadas já tinha conquistado
danças mais profundas na sociedade estadunidense. Por a liberdade para si, para os seus familiares e também para
exemplo, o debate sobre reparação por conta da escravidão outros integrantes da comunidade negra. Outro ponto: no
não aparece. Falar da violência policial é falar de um bra- Brasil houve um projeto de Estado de embranquecimento
ço, e há várias outras instâncias, como educação, saúde, da população, por isso, a opção pelos imigrantes europeus.
trabalho e poder. Isso, sim, mexeria com as estruturas do Não houve uma segregação institucionalizada como nos
país. A resposta ao caso George Floyd foi à altura e foi ins- EUA, mas a segregação sempre foi um fato em nosso país.
piradora para negras e negros no mundo inteiro, mas a Algo muito forte que não ocorreu em nenhum outro lugar
luta contra o racismo está em curso e há muito ainda o da diáspora negra é o mito da democracia racial, que ga-
que se fazer. rantiu a dominação da minoria branca, negando conflitos
e diferenças, permitindo o contínuo processo de genocídio
CH: Como compara a luta antirracista da população negra. Essas pessoas perderam, nós estamos
nos EUA e no Brasil? aqui até hoje.  
KD: Os processos  de escravização, de independência e de
abolição nos EUA e no Brasil foram completamente dife- CH: O que a maior visibilidade na mídia do movimento
rentes. Infelizmente diante das notícias das manifestações Black Lives Matter pode representar para a luta
nos EUA, nós, negras e negros brasileiros, temos sido mui- antirracista no mundo e no Brasil?
to questionados sobre não haver reação equivalente aqui. KD: A imprensa brasileira cumpriu seu papel, colocando
Basta revisitar nossa história para ver que a experiência as coisas como devem ser: um homem negro foi assassi-
da população negra no Brasil sempre foi de luta pela li- nado por um policial branco, falando do racismo estrutural
berdade, contra a escravidão e o racismo. Mas, só recente- da sociedade estadunidense. É com muita facilidade que
mente, pouco mais de 30 anos para cá, a historiografia tem a grande mídia brasileira admite que o que está aconte-
revisitado as produções em torno desse passado. Até então, cendo lá é racismo, mas, quando se trata de Brasil, é desi-
o protagonismo negro na luta pela liberdade era invisibi- gualdade social, problema de ordem econômica, qualquer
lizado. Isso faz com que as pessoas vejam o que está acon- coisa, menos racismo. Essa dificuldade de admitir o racis-
tecendo nos EUA, mas não enxerguem que a população mo no Brasil tem a ver com a dificuldade da mídia de en-
negra do Brasil enfrentou – e enfrenta – a escravidão e o frentar o racismo dentro de suas próprias empresas. As
racismo de forma muito contundente. A luta pela liberda- pessoas que gerem essas empresas precisam se compro-
de foi feita tanto a partir de um enfrentamento direto, com
revoltas, queima de senzalas, assassinato de senhores, en-
meter em combater o racismo. Porque quando você só fala
do racismo na casa dos outros, não toca na sua ferida que >
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CH: De que maneira os estudos sobre escravidão e
pós-abolição, que cresceram e se afirmaram nas últimas
Considerando o perfil racial da décadas, contribuíram para que fossem questionadas
população brasileira, a África visões equivocadas sobre a história do Brasil? 
KD: O grande diferencial desses estudos é que historiado-
precisa ter lugar central nos res começam a ficar interessados pelo ponto de vista das
programas de história pessoas escravizadas. E isso faz toda a diferença, porque
influencia nas perguntas que os estudiosos farão à docu-
mentação. Claro que isso é uma opção teórica e metodo-
é muito profunda. No Brasil, a cada 23 minutos, morre um lógica, mas também é uma opção política desses historia-
jovem negro, e ocorrem manifestações contra esses assas- dores, que passam a revisitar documentos e a tirar novas
sinatos, mas a repercussão na maioria das vezes não é conclusões e interpretações. Isso começou a acontecer na
grande e, depois, a notícia deixa de aparecer, num proces- década de 1980, quando o Brasil estava passando por um
so de naturalização.  É importante observar que o assassi- processo de redemocratização. Nessa época, estavam acon-
nato de mulheres negras tem uma repercussão ainda me- tecendo encontros nacionais de mulheres negras, e o mo-
nor aqui e também nos Estados Unidos. vimento negro, reorganizado a partir da década de 1970,
estava muito mais forte. Esse debate político chegou, então,
CH: Como propor uma discussão das políticas públicas de aos historiadores e repercutiu na produção. A partir daí,
segurança a partir de um posicionamento crítico ao teve-se também um outro olhar para a África, que é fun-
genocídio de jovens negros no nosso país? damental para pensar a sociedade brasileira. 
KD: É preciso que os comandos dessas instituições da lei,
particularmente a Polícia Militar, que é o braço armado do CH: Como vê a ideia – formulada pela pedagoga Nilma
Estado e que de forma mais contundente tem ceifado a Lino Gomes, mas enunciada de outras formas por outros
vida de jovens negros, entendam que é urgente enfrentar intelectuais, como a historiadora Beatriz Nascimento
o racismo dentro das próprias corporações. Se o Estado – de movimento negro educador?
vivencia um racismo estrutural, obviamente, a instituição KD: A denúncia do racismo pelo movimento negro passa
policial e a Justiça também são racistas. A formação do por um processo ativo, ressignificando, por exemplo, na dé-
soldado já tem que passar por essa perspectiva de debate, cada de 1970, o ser negro no Brasil, que era algo considera-
e isso precisa ser contínuo ao longo da carreira. Mas ad- do negativo. A própria população negra foi educada para
mitir que existe racismo não basta. É preciso adotar me- não querer ser negra, porque ninguém quer ser considera-
didas concretas no sentido de enfrentar e punir pessoas do feio, negativo, demonizado. Então, há o papel educativo
que reproduzem essa prática genocida. O comando é fun- da própria população negra, do ponto de vista da identida-
damental, mas o soldado, o policial que está no contato de, e também o de ensinar e refletir sobre a diáspora negra.
direto com a comunidade, também precisa ser responsa- E tem esse processo educativo para além dos grupos negros.
bilizado. No Brasil, a maioria dos policiais militares são A ideia é debater sobre racismo, a identidade negra, a for-
homens negros que, muitas vezes, vieram das mesmas mação da sociedade brasileira e a história da África em
comunidades daqueles jovens assassinados. todos os espaços da sociedade. Em meu ponto de vista, essa
é a perspectiva do movimento negro educador. 
CH: Além da luta antirracista, no Brasil estamos
assistindo também ao crescimento de movimentos CH: Como a lei que torna obrigatório o ensino de cultura e
antifascistas. Como você vê a relação entre essas lutas? história afro-brasileira nas escolas pode contribuir para
KD: Não dá para ser antifascista  sendo racista. Então se esse debate?
você é antifascista, é antirracista, mas, numa sociedade
como a brasileira, que ainda tem tanta dificuldade para
enfrentar a discussão sobre racismo, eu acho fundamental
que a luta antirracista esteja no centro do debate, até por- A universidade é um espaço de
que como o racismo é estruturante e atinge a maior parte
da população brasileira, se você mudar isso vai mexer com
construção de conhecimento científico, e
toda a estrutura da sociedade. isso precisa ser feito por grupos diversos

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KD: A lei é de 2003, mas sua efetivação ainda é um desa-
fio. A proposta da lei é anterior aos anos 2000 e tem o
objetivo de dar às crianças negras e não negras o acesso a Nenhum negro ou negra escapa
informações sobre a constituição da sociedade brasileira de enfrentar racismo na experiência
e também a origem dessa população negra que constrói o
Brasil. Isso é fundamental para a superação do racismo, acadêmica; quanto mais retinto
porque as pessoas têm direito a conhecer a sua história. A mais forte isso é
lei, embora aprovada, tem uma dificuldade muito grande
para sua efetivação. Mas, de lá para cá, houve avanços.
Quando entrei na graduação na Universidade Estadual de CH: Existe “racismo acadêmico”? Como isso se
Feira de Santana, em 2001, a disciplina História da África, manifesta? 
hoje obrigatória, era optativa, mas todos os alunos enten- KD: Não posso negar o racismo acadêmico. Para começar,
diam que precisavam cursar. Percebo que há um número as universidades brasileiras ainda são eurocêntricas, a re-
muito maior de pessoas interessadas em estudar a história ferência do conhecimento científico produzido a partir da
da África, e isso é fundamental para o conteúdo chegar a Europa ainda é algo muito forte. Por isso, eu falo da im-
crianças e adolescentes. Considerando o perfil racial da portância de pensar a África cada vez mais. Como histo-
população brasileira, a África precisa ter lugar central nos riadora, percebo que pesquisadores negras e negros são
programas de história. menos lidos. É claro que só recentemente temos um
número maior de pessoas negras com acesso ao Ensino
CH: Qual a importância da política de cotas nas Superior, produzindo dissertação, tese e publicando livros.
universidades para reforçar a luta antirracista?  Mas, no passado, já tínhamos algumas pioneiras e pionei-
KD: Primeiro é preciso falar sobre o debate feito, na pri- ros nesse espaço. E, na história, pouco se lê os escritos de
meira década nos anos 2000, em torno da política de Beatriz Nascimento, Lélia Gonzalez — uma referência de
cotas porque discutiu o racismo, talvez como nunca antes feminista negra para nós — Clovis Moura ou Abdias do
no Brasil, com a participação de todos os grupos e forças Nascimento. É como se esses estudiosos não fossem con-
políticas. Foi uma disputa por direito à educação e a es­ siderados relevantes para a produção do conhecimento na
se espaço de poder que é a universidade, que contribuiu academia. Isso faz parte do racismo científico e acadêmico.
para que nos forçássemos a pensar o país sob outras pers- É uma questão de gênero, raça e classe. Como sou pesqui-
pectivas. Naquele momento, a grande mídia e vários in- sadora de mulheres negras, eu observo pesquisas que tra-
telectuais se colocaram contra as ações afirmativas, mas zem a questão de gênero sem incluir pesquisadoras e fe-
conseguíamos algum espaço para falar. Avalio que saímos ministas negras. Já falando em relações, eu, como histo-
vitoriosas e vitoriosos dessa luta, mas, infelizmente, ago- riadora negra, durante toda a minha vida educacional,
ra, em vez de avançarmos de forma mais acelerada para enfrentei racismo dentro da universidade. Por isso, já na
sofisticar e ampliar essas políticas, estamos lutando para graduação, eu me juntei ao Núcleo de Estudantes Negras
impedir a perda desse e de outros direitos conquistados. e Negros da Universidade Estadual de Feira de Santana,
A universidade é um espaço de construção de no qual denunciávamos o racismo e assumíamos uma pos-
conhecimento científico, e isso precisa ser feito por gru- tura educadora. Nenhum negro ou negra escapa de enfren-
pos diversos. Quando os jovens negros entram na univer- tar racismo na experiência acadêmica; quanto mais retin-
sidade, eles estão contribuindo com essa instituição, le- to mais forte isso é. No caso das mulheres negras, isso se
vando pensamentos de lugares diferentes. E é claro que aprofunda também. É muito recorrente e forte ainda o
isso vai repercutir nas políticas públicas. É importante descrédito em nossa produção. Algumas pessoas não en-
destacar que quando o debate das ações afirmativas che- tendiam porque eu era tão disciplinada e minuciosa com
ga ao Brasil, de alguma forma, a conversa sobre reparação a pesquisa do doutorado. Claro que tinha a ver com mi-
perde espaço. A reparação é um debate que precisa ser nha paixão pelo tema, mas também havia o fato de eu
enfrentado pela sociedade brasileira, e é muito mais pro- saber que não seria só uma doutora, seria uma doutora
fundo do que políticas de ações afirmativas na educação negra. Várias outras acadêmicas negras passam por esse
ou nos concursos públicos. O Estado brasileiro precisa processo, que tem a ver com toda uma história de des-
assumir que tem uma dívida com a população negra, e crédito na nossa escrita, no que temos a dizer e em nos-
que essa dívida precisa ser paga. sas potencialidades. |

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VOAR: UM SUPERPODER
COM MUITOS LIMITES
Atravessar o céu em alta velocidade é um dos poderes
mais cobiçados dos super-heróis. Mas essa habilidade
tem limitações que colocariam em risco a vida de
qualquer ser humano comum

Lucas Miranda pírito Santo e Minas Gerais) ou o Pico


Editor do blogue Ciência Nerd da Neblina (Amazonas), provavelmen-
Universidade Federal de Juiz de Fora te sentiu maior dificuldade de respirar
à medida que foi chegando ao topo.
Por isso, se você voasse sem um
SÃO MUITOS os superpoderes da fic- tanque de oxigênio, seu organismo meçam a respirar o pouco ar disponí-
ção que nos fazem pensar em como sofreria muitas consequências da fal- vel quando se está a milhares de me-
seria nossa vida se pudéssemos tê-los. ta de ar e da baixa pressão atmosfé- tros de altitude, é questão de segun-
Voar é, certamente, um deles. Atraves- rica em altitudes mais altas. dos até que eles desmaiem.
sar os céus em alta velocidade, com a Estudos sugerem que o mais sau- Além disso, em altitudes acima dos
brisa batendo no rosto, sem preocu- dável a se fazer em regiões de grande 4.000 metros, a temperatura ambiente
pações com trânsito e com atrasos, altitude é utilizar tanques de oxigê- já está próxima ou até abaixo de 0 ºC.
sem precisar sequer ter que pegar um nio, para auxiliar na respiração, e pas- Nenhum ser humano normal resistiria
avião para visitar uma cidade distan- sar por um processo de aclimatização por muitos minutos nessa temperatura
te ou mesmo outro país. (ou seja, adaptação às novas condi- sem uma boa roupa de proteção.
Super-heróis como Tempestade ções ambientais). Portanto, você pode até ter a habi-
(dos X-Men), Capitã Marvel, Mulher Em um organismo que não está lidade de voar, mas não vai querer ir
Maravilha, Super-Homem, entre ou- bem adaptado, os primeiros efeitos muito alto.
tros, nos dão a impressão de que voar da altitude já podem surgir em ques-
é fácil e só tem vantagens. Mas, se tão de minutos: náusea, fadiga, ton- Pisando no freio
você tivesse esse superpoder, pode ter tura e edemas nas mãos, pés e rosto. Você poderia então pensar: “certo, vo-
certeza de que teria que enfrentar al- Em altitudes maiores e com tempo de arei baixo, mas posso ser tão rápido
guns desafios e limitações. exposição maior, a situação pode se quanto um super-herói”. Talvez essa
agravar para edemas pulmonar ou também não seja uma ótima ideia.
O céu nem sempre cerebral e ataque cardíaco. Já experimentou ficar na frente de
é o limite Em poucas horas em altitudes aci- um ventilador potente? Mesmo em
O primeiro obstáculo está relacionado ma de 5.000 metros, já se observam dias quentes, é possível que você sin-
à altitude. Altitude é a altura de uma também problemas como quedas ta frio nesse caso. Mas por que isso
região com relação ao nível do mar. drásticas de sensibilidade visual, de acontece?
São Paulo, por exemplo, está 760 me- atenção espacial, de memória de cur- Quando estamos parados, o ar que
tros acima do mar, enquanto La Paz, to prazo, de habilidades aritméticas e está ao nosso redor (em contato dire-
na Bolívia, está a uma altitude de 3.640 da capacidade de tomar decisões. to com nossa pele) se mantém na
metros. Quanto maior a altitude em Não é à toa que as companhias mesma temperatura que nosso corpo.
que nos encontramos, menor é a dis- aéreas sempre orientam seus passa- Quando passa por nós uma rajada de
ponibilidade de ar atmosférico. Se você geiros a colocarem a máscara de res- vento, esse ar quentinho ao nosso re-
já escalou uma montanha que ultra- piração primeiro em si próprios, em dor é levado embora e a nova camada
passe os 2.500 metros de altitude, caso de acidente. Se um avião sofre de ar que chega rouba um pouquinho
como o Pico da Bandeira (entre o Es- despressurização e os passageiros co- de calor da nossa pele, nos dando a

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CRÉDITO: DIVULGAÇÃO
sensação térmica de frio. Se ficarmos mesmo com algum drone, avião ou he- de super-humanos (veja o exemplo de
constantemente expostos a ventos, licóptero (dependendo da altitude). X-Men e tantas outras histórias).
nosso corpo vai perdendo quantida- A colisão com pássaros pode pro- Com relação à vida em sociedade,
des significativas de calor para o ar e vocar danos expressivos em aviões. o poder de voar provavelmente seria
temos a sensação de frio. Não à toa, os aviões costumam passar proibido ou, ao menos, regulamenta-
Você já deve ter visto pessoas fala- por um teste que consiste em dispa- do. Existem regras para acesso ao es-
rem coisas do tipo “está fazendo 10 rar frangos congelados em alta velo- paço aéreo do Brasil e de qualquer
ºC, mas a sensação térmica é de 5 ºC”. cidade contra a aeronave, com o au- outro país. Da mesma forma que você
Isso acontece porque os ventos e a xílio de uma espécie de canhão, para não pode pilotar um drone que ultra-
umidade do ar podem fazer você sen- simular o impacto de animais. Se o passe os 120 metros de altura sem a
tir ainda mais frio do que a própria avião resiste, ele passa no teste. licença e a habilitação da Agência
temperatura real, fazendo um dia frio Se pássaros são perigosos para avi- Nacional de Aviação Civil (Anac), você
parecer ainda mais congelante! ões, imagine para você! Assim, para certamente também teria que seguir
No site do Instituto Nacional de não correr o risco de se chocar com regras para voar por aí.
Meteorologia (Inmet), você encontra objetos voadores e animais, você teria Se quiser ir ainda mais além, não
uma calculadora que determina a que voar em baixa velocidade e, even- seria exagero imaginar que esse poder
sensação térmica com base na veloci- tualmente, desviar desses obstáculos. despertaria o interesse de muitas pes-
dade do vento e na temperatura real. soas, empresas e até governos, seja
Se você estiver voando a uma veloci- Superpoderes em para estudá-lo, seja para controlá-lo.
dade de 61 Km/h em uma altitude em sociedade Será que, sem o anonimato, você esta-
que a temperatura real seja de 10 ºC, Há ainda uma última questão. O que ria seguro? Sua família estaria segura?
a sua sensação térmica será de -3 ºC! passaria na sua cabeça se você olhas- Você já deve ter percebido que o po-
Ou seja, para não passar muito frio se para o céu e visse uma pessoa vo- der de voar tem várias limitações e con-
voando, não basta voar baixo, tem que ando? Diferentemente de outros po- sequências que podem colocar em risco
voar devagar também. deres, voar não é o mais fácil de es- a sua vida e de outras pessoas. E olha
conder. Será que esse poder poderia que nem falamos de todos os problemas
Obstáculos no caminho te causar algum problema social? relacionados ao voo! Mesmo assim, to-
Quando olhamos para o céu, não nos É difícil dizer como as pessoas rea- mando diversas precauções e recorren-
damos conta de que ele não é um espa- giriam à existência de um poder como do a algumas tecnologias, é possível
ço vazio por onde se pode voar sem pre- voar. Mas podemos fazer algumas es- imaginar um cenário em que esse poder
ocupações. Em poucos minutos voando peculações. Os universos dos quadri- possa ser usado sem trazer efeitos nega-
em linha reta, há uma chance razoável nhos nos ensinam que nem sempre a tivos para o indivíduo. E então, você gos-
de se chocar com insetos e pássaros ou população lida bem com a existência taria de ter esse superpoder? |

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CONVIVÊNCIA PACÍFICA
Morcegos adaptados à vida urbana prestam importante serviço para os humanos,
contribuindo para regenerar áreas verdes nas cidades, polinizar flores e controlar
a população de insetos transmissores de doenças

Rafael de Souza Laurindo Dieta à base de frutos morcegos. O mais comum é por ana-
Núcleo de Pesquisa Artibeus lituratus é um morcego fru- lise fecal: os indivíduos capturados
Instituto Sul Mineiro de Estudos e Conser- gívoro de grande porte, comum em com auxílio de redes de neblina (um
vação da Natureza áreas preservadas, ambientes rurais tipo de armadilha) são colocados em
e cidades de todo o Brasil. O fato de sacos de pano até defecarem – algo
ter uma dieta generalista, sendo ca- em torno de 30 minutos – e, poste-
O PROCESSO de urbanização leva à paz de consumir grande diversidade riormente, os pesquisadores coletam
perda total ou ao isolamento de frag- de frutos, é uma das características essas fezes para identificar em labo-
mentos de vegetação nativa que fi- que podem beneficiar a adaptação da ratório as sementes presentes na
cam ilhados nas cidades. Como refle- espécie a ambientes com diferentes amostra.
xo dessas modificações, há um declí- graus de interferência antrópica (hu- Outro método usado é a busca de
nio na biodiversidade quando com- mana), como centros urbanos. fezes e restos de alimentos em abri-
paramos as áreas urbanas com os Apesar da preferência por frutos gos. Nesse caso, costuma colocar-se
ambientes naturais. Isso ocorre, em de embaúbas, como Cecropia glaziovii um pano branco embaixo do abrigo
parte, porque muitas espécies não e Cecropia pachystachya, e figueiras, de uma espécie de morcego para co-
conseguem sobreviver em centros como Ficus gomelleira, Ficus guaraniti- letar as fezes e os restos de alimen-
urbanos e acabam extintas localmen- ca e Ficus enormis, esse morcego in- tos (frutos, folhas). Também é adota-
te.Porém, algumas espécies de dife- clui em sua dieta mais de 260 espé- da a observação direta dos animais
rentes grupos persistem, incluindo cies de frutos, ao longo de toda sua em árvores com frutos.
aves, morcegos e anfíbios. Alguns área de ocorrência, que vai do México
desses animais são excelentes mode- ao norte da Argentina. A capacidade Ambientes urbanos e
los para estudar quais atributos de de explorar a matriz urbana e de não naturais
sua ecologia, morfologia ou fisiologia ficar restrito a parques urbanos que Nossa equipe encontrou 55 espécies de
lhe conferem tolerância à urbaniza- mantenham vegetação natural é ou- frutos consumidas por Artibeus litura-
ção. tra característica que favorece a so- tus, sendo que 23 espécies delas foram
Estudos sobre ecologia urbana brevivência da espécie em cidades. exclusivamente em ambientes urba-
apontam que, para os animais frugí- Recentemente, o Journal of Tropical nos, 20, em hábitats naturais e 12, em
voros (que se alimentam de frutas), a Ecology publicou um artigo de minha ambos os hábitats. Um achado interes-
capacidade de encontrar frutos e a autoria em parceria com Jeferson sante foi a considerável riqueza de
flexibilidade no uso desses recursos Vizentin-Bugoni, pós-doutorando na frutos exóticos consumidos nas cida-
alimentares é uma característica de- Universidade de Ilinois (EUA), com- des, se comparada à de áreas naturais.
terminante para sobreviver em am- parando os frutos consumidos por Acreditamos que essa capacidade
bientes urbanos. Assim, morcegos Artibeus lituratus em ambientes natu- de explorar frutos exóticos pode ser
frugívoros generalistas, capazes de rais e urbanos. Para esse estudo, fo- essencial para a persistência dessa
incluir grande diversidade de frutos ram feitas uma revisão bibliográfica e espécie em ambientes com graus va-
em sua dieta, podem se beneficiar uma compilação de dados sobre os riados de interferência antrópica no
desses ambientes, pois as cidades for- frutos consumidos pela espécie em país, incluindo grandes centros ur-
necem uma considerável diversidade áreas urbanas e naturais do Brasil. banos. A maioria das plantas exóti-
de plantas exóticas e nativas que lhes Diferentes métodos podem ser cas encontradas na dieta de Artibeus
servem de alimento e de abrigo. utilizados para descrever a dieta de lituratus é comumente achada nas

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CRÉDITO: RODRIGO MÂCEDO MELLO
Artibeus lituratus consumindo fruto de Ficus sp. em fragmento florestal na zona rural de Monte Belo (MG)

cidades brasileiras – essas espécies urbanos. Pelo fato de se deslocarem entre as pessoas e os morcegos, as
vegetais são usadas principalmente por grandes distâncias, os morcegos relações são majoritariamente posi-
para ornamentação florestal urbana podem facilitar a invasão de plantas tivas. Apesar de morcegos serem po-
ou em quintais e pomares. exóticas em ambientes naturais. De tenciais hospedeiros de diversos
Outro resultado importante obti- fato, algumas das espécies de frutos micro-organismos patogênicos para
do no estudo é o de que essa espécie consumidas por Artibeus lituratus em humanos, como os vírus Ebola, da
de morcego consome, em cidades, centros urbanos são consideradas SARS e possivelmente da covid-19,
maior proporção de frutos grandes, invasoras em diversas áreas protegi- isso não é necessariamente um risco
como Syagrus romanzoffiana (coqui- das no Brasil. para as pessoas. Desde que não haja
nho-jerivá), Eugenia jambolana (ja- Alguns estudos sugerem que o contato físico frequente – o que é
melão) e Mangifera indica (manga). risco de invasão é maior em florestas facilitado pela caça e pelo comércio
Isso pode ter relação direta com o próximas às cidades devido a esse ilegal de carne, como ocorre na Chi-
tipo de método utilizado, uma vez fluxo de sementes entre os ambien- na –, as chances de transmissão de
que, para detectar sementes grandes, tes natural-urbano, o que pode ser vírus de morcegos para pessoas são
é preciso observação direta e coleta facilitado por esses morcegos. Por muito baixas.
de sementes em abrigos, o que é outro lado, sementes de espécies na- Além disso, morcegos são res-
muito difícil de ser realizado em am- tivas também podem ser transporta- ponsáveis pela realização de impor-
biente naturais. Esse achado tem re- das de hábitats naturais a urbanos tantes serviços ecossistêmicos,
levância porque ajuda a direcionar por longas distâncias, facilitando a como a polinização de flores – fun-
futuras pesquisas. regeneração e o enriquecimento bio- damental para a produção de frutos
lógico de parques e outras áreas ver- – e a predação de insetos: um único
Risco de invasão de des nas cidades e contribuindo para morcego insetívoro pode consumir
espécies exóticas que outros animais frugívoros per- centenas de insetos por noite, con-
É importante que novos estudos ava- maneçam nessas áreas. trolando a população de artrópodes
liem a dispersão ou o transporte de
sementes entre hábitats naturais e
Embora essa maior tolerância à
urbanização aumente a proximidade
que, inclusive, podem ser transmis-
sores de doenças. | >
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CIÊNCIA E POLÍTICA
EM TEMPOS DE
NEGACIONISMO

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COMPREENDER OS FATORES QUE CULMINARAM NA DECISÃO
DE VÁRIOS GOVERNANTES DE VOLTAR ÀS RUAS ANTES DO
TEMPO RECOMENDADO PARA ENFRENTAR A PANDEMIA DO NOVO
CORONAVÍRUS DEMANDA UMA ANÁLISE CUIDADOSA.
NÃO SE TRATA DE FALTA DE ENTENDIMENTO DO PROBLEMA
POR PARTE DA POPULAÇÃO, MAS DE UMA INCOMPATIBILIDADE
DE MUNDOS: AS VERDADES CIENTÍFICAS NÃO TÊM CONSEGUIDO
ENGAJAR A MAIORIA DAS PESSOAS NUM PROJETO COMUM,
NEM SERVIDO DE PONTE PARA CONECTAR NECESSIDADES
INDIVIDUAIS A PROJETOS COLETIVOS.

Alyne Costa
Fórum de Ciência e Cultura, Universidade Federal do Rio de Janeiro
e Pontifícia Universidade Católica (PUC-Rio)

Tatiana Roque
Instituto de Matemática
Universidade Federal do Rio de Janeiro

A CIÊNCIA TEM OCUPADO boa parte dos debates nas redes sociais e nos
noticiários. Ainda assim, tem sido difícil convencer os brasileiros da necessi-
dade de manter o isolamento social enquanto a pandemia continuar a avan-
çar. As explicações são muitas e – frequentemente – elitistas: vão desde a
natureza de nosso povo, que gosta demais de convívio social e da rua, até
certa deficiência educacional ou moral, que atrapalharia sua compreensão
das verdades científicas ou o tornaria alheio ao bem comum.
Claro que um presidente que desafia a medicina, as instituições interna-
cionais e a ciência contribui para o enfraquecimento da palavra dos especia-
listas. Mas as vozes que enfatizam a gravidade da pandemia e a necessidade
do isolamento social são significativas: parlamentares, instituições científicas
e grande mídia (principalmente, a campeã de audiência!). Governadores e
prefeitos também estiveram do lado da quarentena num primeiro momento.
CRÉDITO: ADOBE STOCK

Havia escolha, portanto, para quem quisesse ouvir os conselhos da ciência.


Diante disso, compreender os fatores que culminaram na decisão de voltar
às ruas antes do tempo recomendado demanda uma análise cuidadosa. >

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Neste artigo, rejeitamos de antemão hipóteses que partam da separação entre
O QUE ‘nós’ – as analistas esclarecidas – e ‘eles’ – um povo supostamente ignorante, incul-
APARENTEMENTE to ou egoísta. Uma matéria do jornal O Globo, publicada em 11 de junho de 2020,
CAUSOU MAIS tratava da impressionante multidão atraída aos shoppings do Rio de Janeiro, rea-
bertos à frequentação naquele mesmo dia. Muitos ficaram assombrados – não sem
ESPANTO FOI A
razão – pela decisão da prefeitura de permitir a reabertura dos estabelecimentos
AVIDEZ COM QUE comerciais num momento em que a pandemia estava ainda longe de ser controla-
TANTAS PESSOAS da. Mas, justamente porque tantos de nós já não esperamos coerência ou proteção
RESPONDERAM desses governantes, o que aparentemente causou mais espanto foi a avidez com
AO CHAMADO que tantas pessoas responderam ao chamado de ‘retorno à normalidade’, mesmo
com os números de infectados e mortos aumentando.
DE ‘RETORNO À Nesse contexto, a frase dita por um dos entrevistados na reportagem, que aguar-
NORMALIDADE’, dava pacientemente na fila para entrar no shopping, pode soar atordoante: “É en-
MESMO COM OS graçado: sou contra, mas estou aqui. Acho que o shopping é lazer, bem-estar, con-
NÚMEROS DE forto e segurança. Mesmo vindo, acho que não era o momento da reabertura. Esta-
mos em uma situação crítica e acredito que vai aumentar o número de casos.
INFECTADOS Mesmo assim, a gente é tentado a vir”.
E MORTOS
AUMENTANDO Sinais contrários
O testemunho expressa desorientação, de fato, mas não ignorância. As narrativas
da ciência são ouvidas, mas não bastam para induzir comportamentos. Esse é o nó.
Vivemos tempos em que sinais contrários são emitidos todo o tempo, evidenciando
um conflito de autoridade, declarado de modo assustadoramente exemplar nos
gestos do presidente da República, Jair Bolsonaro.
Uma pesquisa do final de maio de 2020, conduzida pelo Datafolha, mostrou que,
ainda que 60% dos entrevistados se digam a favor do lockdown (confinamento es-
trito), 52% acham que pessoas fora do grupo de risco devem voltar a trabalhar. Não
faria sentido, assim, explicar essa aparente contradição afirmando que falta infor-
mação. Parece que essas pessoas queriam manter o isolamento – e até radicalizá-lo!
– mas se sentem compelidas a voltar à normalidade. Claro que parte importante
se explica pela necessidade daqueles que não têm meios materiais para sobreviver
na quarentena.
A narrativa de Bolsonaro e de outros governantes usou descaradamente essa
chantagem para minar o isolamento social. Isso só reforça o imperativo material
como fator determinante para que a verdade científica induza ações e comporta-
mentos, tornando ainda mais elitistas os diagnósticos que tentam eclipsar a agên-
cia e a autonomia de boa parte da população ao ‘escolher’ sair às ruas. Nossa hipó-
tese é a de que não há déficit de conhecimento ou de saber atuando como pressu-
posto dessas ações: as pessoas sabem dos riscos, mas o que explica a contradição
entre o que elas sabem e fazem é uma ‘incompatibilidade de mundos’.
Essa defasagem se estabelece não apenas entre as diferentes classes sociais,
mas também no interior delas, com a crescente cisão que a chamada ‘crise da de-
mocracia’ vem provocando entre nossas vidas privadas – incluindo nossas relações
mais próximas – e nosso senso de pertencimento a uma coletividade ampliada (a
sociedade). Essa crise da democracia, evidentemente, reverbera nas instituições que
a sustentam, o que não exclui a ciência. É assim que suas verdades não têm con-
seguido engajar a maioria das pessoas num projeto comum, não têm contribuído
para a construção de um tecido social coeso, não têm servido de ponte para conec-
tar necessidades e desejos individuais a projetos coletivos.

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CRÉDITO: ADOBE STOCK
NÃO HÁ DÉFICIT DE Relações complexas e imprescindíveis
Conhecer não implica necessariamente se engajar. E as verdades que mais afli-
CONHECIMENTO OU DE gem nos dias de hoje demandam ação, mais do que informação. É aqui que as
SABER ATUANDO COMO relações entre ciência e política se tornam tão mais complexas quanto impres-
PRESSUPOSTO DESSAS cindíveis.
AÇÕES: AS PESSOAS As contradições vividas na pandemia servem de pistas para outras ainda
mais graves – pois menos efêmeras – que virão com o colapso climático. O fi-
SABEM DOS RISCOS,
lósofo francês Bruno Latour vem alertando, desde muito antes da pandemia,
MAS O QUE EXPLICA para a necessidade de enxergar o engajamento como tarefa bem distinta do
A CONTRADIÇÃO convencimento ou do debate racional. Cientistas e ativistas do clima, mesmo
ENTRE O QUE ELAS legitimados por instituições como o IPCC (Painel do Clima da ONU), estão
SABEM E FAZEM É UMA sendo contestados por negacionistas que reivindicam precisamente “a liberda-
de de investigação científica para poluir não apenas a atmosfera, mas também
‘INCOMPATIBILIDADE DE a esfera pública”. A explicação sugerida por Latour é incômoda: ambos os lados,
MUNDOS’ climatólogos e negacionistas, usam o mesmo repertório ‘ciência versus política’.
Diz Latour: “Em primeiro lugar, ‘ambos os lados’ sustentam que a ciência
trata de fatos da natureza, distantes e desapaixonados, ao passo que a política
envolve a ideologia, as paixões e os interesses, cuja intrusão na ciência não
pode fazer outra coisa senão distorcer os fatos propriamente ditos. Em segundo
lugar, ‘ambos os lados’ concordam que as políticas devem seguir a expertise
científica e que não podemos tomar decisões baseadas em uma ciência incerta.
A dificuldade é que esse repertório (refutado por 50 anos de estudos de casos
históricos) é também compartilhado por grande parte do público. (...) Parte um:
a ciência trata de fatos incontroversos e incontestáveis. Parte dois: a ciência
fornece subsídios para as políticas. Uma vez que é nisso que todos os políticos
– e todos os espectadores – acreditam, e, uma vez que é essa também a manei-
ra pela qual os programas de TV organizam os debates como se fossem juízes
em uma sala de tribunal, torna-se incrivelmente fácil fazer emergir dois lados
mesmo quando existe apenas um”. >
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Durante a pandemia, foram inúmeros os exemplos desse tipo de argumen-
SOMOS TENTADOS tação, usando a ciência para submeter a política, como se, de um lado, houves-
A USAR A CIÊNCIA se apenas neutralidade e, de outro, apenas interesse e ideologia. Somos tentados
COMO ARMA a usar a ciência como arma contra a política porque temos políticos ruins.
CONTRA A POLÍTICA Contra a “gripezinha” de Bolsonaro, amplificamos o alarme de números de mor-
tos beirando o milhão, com base em estudos cuja incerteza era bem menos
PORQUE TEMOS enfatizada do que a autoridade.
POLÍTICOS RUINS Do outro lado, não faltaram especialistas encarnando o negacionismo. Salta
aos olhos que o mais influente tenha sido um francês, Didier Raoult, o médico
por trás das primeiras hipóteses sobre a efetividade da cloroquina. Não foi só
entre nosso povo supostamente ignorante – que eufemismos condescendentes
apontam como ‘pouco escolarizado’ – que a crença na cloroquina se dissemi-
nou. Uma pesquisa mostrou que mais de 60% dos franceses acreditaram na
sua eficácia, levando o presidente Emanuel Macron a mudar radicalmente sua
atitude, inicialmente refratária, passando a acolher Raoult em seus círculos de
influência – para terror dos ‘esclarecidos’.
Políticos são eleitos pelo povo e precisam dar respostas firmes. Os negacio-
nistas adquirem poder em momentos agudos justamente porque trazem solu-
ções prontas, tarefa que a ciência séria não pode realizar. A cloroquina era essa
mágica de que alguns políticos, principalmente o presidente dos Estados Uni-
dos, Donald Trump, e Bolsonaro, precisavam para ‘retomar a economia’. Espe-
cialistas servem bem à política quando produzem certezas. Mas, embora a ima-
gem de experts detentores de um saber indisputável tenha servido para a con-
solidação da autoridade da ciência, as incertezas que cercam as questões pre-

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mentes de nosso tempo – como o comportamento do vírus e os impactos das
mudanças climáticas – acabam sendo usadas pelos detratores da ciência para
desqualificar o conhecimento que ela produz.
O imbróglio do artigo da revista britânica The Lancet que supostamente ates-
tava a ineficácia da cloroquina ilustra bem o quanto a temporalidade da ciên-
cia é incompatível com a demanda da opinião pública. Na pressa de apresentar
uma resposta para a controvérsia, a credibilidade dos dados do estudo não foi
verificada, o que acabou servindo de munição para os que atacam a ciência de
forma deliberada.
Um descuido análogo foi cometido pela chefe da unidade de doenças emer-
gentes da Organização Mundial da Saúde (OMS), Maria Van Kerkhove, que afir-
mou que doentes assintomáticos não transmitiriam o novo coronavírus. Ainda
que a hipótese científica seja plausível (carecendo, contudo, de uma melhor espe-
cificação da diferença entre pré-sintomáticos e assintomáticos), seu anúncio em
uma tribuna da OMS, palco de especialistas por excelência, a converteu imediata-
mente em certeza, tendo causado repercussões imediatas nas decisões políticas.

O papel da ciência
A força da ciência é a dúvida; sua matéria-prima, a incerteza. É pela investiga-
ção paciente e obstinada que as dúvidas vão se transformando em conheci-
mento confiável, ainda que nunca irrefutável. Por isso, diante da atual investi-
da dos negacionistas para deslegitimar esse conhecimento, a ciência não pode
mais se portar como a detentora de uma verdade indisputável que silencia as
CRÉDITO: ADOBE STOCK

divergências.
Esse papel nem sempre converge com o dos expertos, que funcionam como
fonte de certezas para escolhas políticas. É aos governantes que compete tomar
decisões firmes, mesmo diante de uma realidade incerta e ambígua, para trans-
DIANTE DA ATUAL mitir segurança. Foi o que fez Alberto Fernández, presidente da Argentina. Em
entrevista na TV em 18 de junho de 2020, ele afirmou: “Dizem que sou um
INVESTIDA DOS frouxo por não prestar atenção à economia. Os que prestaram atenção à eco-
NEGACIONISTAS PARA nomia, olhem aqui do lado, o Brasil tem 45 mil mortos. Não me façam explicar
DESLEGITIMAR ESSE o que todos sabemos”.
CONHECIMENTO, A A relação entre ciência e política foi especialmente caótica em países com
governos negacionistas. Diante do hábito de crer em uma ciência imperial, vo-
CIÊNCIA NÃO PODE
calizada por expertos e reveladora de verdades incontestáveis, acabamos refor-
MAIS SE PORTAR çando, sem querer, o sentimento antipolítica, desacostumando o povo a res-
COMO A DETENTORA ponsabilizar os governantes pelas decisões que lhes cabem. A decepção só se
DE UMA VERDADE multiplica, o que acaba fornecendo à população razões para não escutar mais
INDISPUTÁVEL nem os políticos nem os expertos – nem mesmo cientistas, enquanto fizerem
questão de ocupar o posto de especialistas.
QUE SILENCIA AS Isso não significa que a ciência deva permanecer neutra. Se, como diz Latour,
DIVERGÊNCIAS não é um suposto ‘déficit intelectual’ que explica a adesão aos anticientificis-
mos, mas sim ‘um déficit de prática comum’, o papel da ciência não pode ser
meramente o de informar e esperar que obedeçam, mas sim o de suscitar o in-
teresse por como seu conhecimento é produzido e engajar as pessoas nas pos­
sibilida­­des de transformação da sociedade que tal conhecimento pode permitir.
Participar de uma construção de mundo, por si só política, pode voltar a fazer
sua verdade importar e, mais que isso, servir como uma aliada da reconstrução
do tecido social. Um fato científico não se impõe simplesmente pela força de
sua evidência, mas também pela percepção de sua relevância, pelas promessas
nele encerradas, pelo engajamento que consegue suscitar na sociedade que o
>
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A CIÊNCIA PRECISA ABANDONAR A
POSIÇÃO DE MERA ENUNCIADORA DE
VERDADES A SEREM OBEDECIDAS E SE
POSICIONAR VERDADEIRAMENTE COMO
ALIADA DA SOCIEDADE, MOSTRANDO SUA
CONTRIBUIÇÃO PARA REDUZIR OS EFEITOS
DESSA AMEAÇA NA POPULAÇÃO

CRÉDITO: ADOBE STOCK


acolhe. Em seu mais recente livro, intitulado Onde aterrar?, Bruno Latour analisa
o contexto em que se deu a eleição de Donald Trump. Para ele, não são apenas
os apoiadores de Trump e do Brexit (saída do Reino Unido da União Europeia)
que vivem uma realidade alternativa: aqueles que maldizem a “estupidez das
massas ignorantes” também nutrem uma concepção de mundo que carece de
materialidade, apostando na crença de que “os fatos se sustentam sozinhos, sem
precisar de um mundo compartilhado, de instituições e de uma vida pública”.
No que diz respeito ao colapso climático, cujo negacionismo é objeto de pre-
ocupação de Latour nesse livro, o paradigma da divulgação científica parece se
pautar na ideia de que saber que há consenso científico acerca da questão ten-
de a fazer as pessoas acreditarem que o problema existe. Contudo, a maioria
da população já sabe que a mudança climática está ocorrendo (ainda que su-
bestimem o nível de consenso científico, que hoje já beira os 100%).
Por isso, também no que diz respeito a esse fenômeno, a explicação para a
falta de mobilização não se deve a uma lacuna de entendimento, mas de co-
munidade política. Para enfrentá-lo de forma efetiva, portanto, a ciência preci-
sa abandonar a posição de mera enunciadora de verdades a serem obedecidas Leia +
e se posicionar verdadeiramente como aliada da sociedade, mostrando sua
contribuição para reduzir os efeitos dessa ameaça na população. LATOUR, B. “Para distinguir
De forma análoga, a ciência precisa convencer as pessoas acerca da utilida- amigos e inimigos no tempo
de que o conhecimento científico pode ter em suas vidas. No caso das mudan- do Antropoceno”. Tradução:
ças climáticas, trata-se de um desafio ainda maior, tanto mais porque o discur- Renato Sztutman. In: Revista
so ambientalista ainda hoje é percebido por grande parte da população como de Antropologia (USP), v. 57, n.
uma preocupação secundária, abstrata, desconectada das dificuldades mais 1, 2014.
imediatas que enfrentam no dia a dia. LATOUR, B. Onde aterrar. Como
Acreditamos que a ciência pode capitanear uma conexão vigorosa entre o se orientar politicamente no
ambientalismo e as questões sociais se deixar os interesses e as preocupações Antropoceno. Rio de Janeiro:
da sociedade influenciarem suas decisões e a forma como conduzem suas prá- Bazar do Tempo, 2020.
ticas, sem menosprezar as objeções que a sociedade pode vir a lhe fazer. Mas,
para isso, ela precisa contribuir para reconectar a dimensão privada à coletiva, ROQUE, T., ‘O negacionismo no
colocando o conhecimento confiável que produz e a extensão dos sentidos que Poder’, Revista Piauí, Rio de
permite a serviço da melhoria da vida das pessoas e oferecendo saídas para as Janeiro, fevereiro/2020.
aflições do presente e aquelas por vir. |

20 | | 367 | JULHO 2020


ALEXANDER W. A. KELLNER
Museu Nacional > Universidade Federal do Rio de Janeiro | Academia Brasileira de Ciências

Nascido do fogo
ARATASAURUS MUSEUNACIONALI é o nome do novo dinossau- Jovem predador
ro brasileiro que acaba de ser descrito por paleontólogos do Brasil O único exemplar de Aratasaurus é formado pela perna direita e
e da China no periódico Scientific Reports (grupo Nature). Posso pode ser classificado no grupo Coelurosauria. Os celurossauros
imaginar a supressa do leitor com o nome, mas a história do acha- surgiram há cerca de 168 milhões de anos, no período Jurássico
do justifica. Aratasaurus é a combinação de ‘ara’ e ‘atá’ – que signi- Médio, e englobam muitas formas de dinossauros, incluindo as aves
ficam ‘nascido’ e ‘fogo’ na língua Tupi – com ‘saurus’, sufixo de origem recentes. As formas mais basais desse grupo são muito raras e
grega muito usado na determinação de répteis fósseis, em especial restritas essencialmente à América do Norte e à China. Aratasaurus
dinossauros. Museunacionali é uma homenagem ao primeiro museu é o celurossauro mais basal encontrado na América do Sul até ago-
do Brasil, que tanto sofreu com o grande incêndio de 02 de setem- ra. O achado sugere que essas primeiras formas de celurossauros
bro de 2018. Assim, em uma tradução livre, o nome significa ‘dinos- eram mais diversificadas e tinham uma distribuição mais ampla do
sauro que nasceu do fogo do Museu Nacional’, uma homenagem à que se supunha até então.
instituição científica mais antiga do país e que se encontra em Aratasaurus tinha pouco mais de 3 m de comprimento e uma
plena reconstrução. massa entre 34 e 35 kg. Estudos histológicos dos ossos fossilizados
Aratasaurus foi encontrado em rochas que recebem o nome de desse animal indicam que ele ainda estava em fase de crescimen-
Formação Romualdo, presentes na região da Bacia do Araripe, uma to, sendo, portanto, um jovem que poderia alcançar dimensões
área muito rica em fósseis que se estende pelos estados de Ceará, ainda maiores quando adulto. Deveria ser um predador ágil, que
Pernambuco e Piauí. Foi coletado em uma mina de gesso, chama- corria pelas margens de lagos à procura de alimento, possivelmen-
da Mina Pedra Branca, localizada entre as cidades Nova Olinda e te pequenos animais. É provável que seu corpo fosse recoberto por
Santana do Cariri, no Ceará. De lá, já saíram milhões de exemplares, estruturas filamentosas interpretadas como protopenas, assim
com destaque para os peixes excepcionalmente bem conservados. como muitos outros celurossauros.
Esses fósseis estão preservados em nódulos calcários, bem típicos,
que são muito famosos pelo mundo. Além de peixes e plantas, Parente na China
também foram encontrados crocodilomorfos, pterossauros (grupo Outra curiosidade sobre Aratasaurus é sua relação de parentesco.
de répteis alados) e alguns poucos registros de dinossauros. Ao contrário do que se poderia imaginar, o novo dinossauro não é
Mas, ao contrário destes, Aratasaurus foi preservado em uma diretamente aparentado com outros encontrados na região do Ara-
placa de folhelho (rocha escura composta por finas lâminas de ripe, como o famoso Santanaraptor. Essa nova espécie estava mais
sedimentos com grãos do tamanho dos de argila), procedente de proximamente relacionada com o celurossauro Zuolong sallei, pro-
uma camada situada na base da Formação Romualdo, sendo, cedente da província de Xinjiang, da China. Também chama atenção
portanto, alguns milhares de anos mais antiga que a camada com a grande diferença de idade entre a forma chinesa e Aratasaurus.
os nódulos calcários. A formação dessas rochas é estimada entre Zuolong foi encontrado em rochas formadas há aproximadamente
115 e 110 milhões de anos atrás, um período geológico denomina- 160 milhões de anos, ou seja, pelo menos 45 milhões de anos antes
do de Cretáceo Inferior. É o primeiro registro de dinossauro nes- das rochas em que estava o nosso Aratasaurus. Esse aspecto su-
sa parte da Formação Romualdo, o que abre a possibilidade para gere fortemente que existem muitas outras espécies de celuros-
novos achados no futuro. sauros basais a serem descobertas. Agora é importante realizar
novas escavações na região para encontrar mais exemplares.
Por último, vale a pena mencionar que o exemplar pertence ao
CRÉDITO: MAURÍLIO OLIVEIRA

Reconstrução do Araratasaurus
museunacionali em vida, correndo há Museu de Paleontologia da Universidade Regional do Cariri (Crato)
milhões de anos em uma região onde e estava emprestado ao Museu Nacional para pesquisa há alguns
hoje fica o Ceará, no nordeste do Brasil anos. Por sorte, o fóssil encontrava-se no laboratório de prepara-
ção, situado em uma área anexa ao palácio, e não sofreu com o
trágico incêndio de 2018. Todos os autores, que incluem profissio-
nais do Museu Nacional, estão dedicados a auxiliar nessa importan-
te tarefa que é a de reconstrução da instituição e sua devolução o
quanto antes para a sociedade brasileira. |

| 367 | JULHO 2020 | 21


O BRASIL
E A OMS

22 | | 367 | JULHO 2020


Desde que foi fundada, em 1948, a
Organização Mundial da Saúde (OMS)
contou com a colaboração de sanitaristas
brasileiros que contribuíram para que a
agência alcançasse seu principal objetivo de
considerar a saúde como direito fundamental
de qualquer ser humano, sem distinção de
raça, religião, crença política, condição
econômica ou social. A OMS foi – e é – a
principal autoridade reitora e coordenadora
em saúde internacional. Este artigo conta
um pouco dessa presença marcante dos
brasileiros no órgão e reflete sobre o desafio
de manter tal participação ativa.

Marcos Cueto
Casa de Oswaldo Cruz
Fundação Oswaldo Cruz

É IMPORTANTE LEVAR EM CONTA a história da OMS na


discussão sobre o presente e o futuro dessa agência multi-
lateral. Ainda mais, após decisões desinformadas e oportu-
nistas como as do presidente norte-americano Donald
Trump contra esse organismo para achar um culpado da
epidemia de covid-19.
Sua origem remonta à fundação da Organização das
Nações Unidas (ONU), em 1945, quando o médico paulista
Geraldo de Paula Souza (1889-1951) propôs, junto com o de-
legado e dilpomata chinês Szeming Sze (1908-1998), a cria-
ção de uma agência internacional especializada em saúde.
Primeiro brasileiro a se especializar na Universidade Jonhs
Hopkins, com bolsa da Fundação Rockefeller, Paula Souza
tinha ampla experiência na área de saúde pública. Duran-
te os primeiros anos de atuação profissional, ele fundou o
instituto que posteriormente seria a Faculdade de Saúde
Pública da Universidade de São Paulo – no qual foi o pri-
meiro diretor – e a Sociedade Brasileira de Higiene. Além
CRÉDITO: ADOBE STOCK

disso, esteve à frente da gestão do Serviço Sanitário paulis-

>
ta, entre 1922 e 1927, por meio do qual implementou servi-
ços nas zonas interioranas do estado.

| 367 | JULHO 2020 | 23


O CONFLITO MAIS Bem-estar físico, mental e social
A proposta de se criar uma agência para fomentar a cooperação internacional
AGUDO DA OMS em saúde foi bem acolhida por sanitaristas europeus, uma vez que muitos po-
OCORREU NO líticos à época ansiavam em construir um estado de bem-estar em que a sa-
COMEÇO DOS ANOS nidade fosse uma obrigação governamental e um direito do cidadão. Em sua
1950, DURANTE A primeira assembleia em 1948, a OMS elegeu o psiquiatra canadense Brock
Chisholm (1896-1971) como diretor, com mandato de quatro anos, e aprovou
GUERRA FRIA […], uma constituição segundo a qual “a saúde é um estado de completo bem-estar
QUANDO A URSS físico, mental e social, e não somente a ausência de enfermidades”.
E OS REGIMES DA Outra ideia importante desse texto foi que a saúde “é um dos direitos fun-
EUROPA DO LESTE damentais de qualquer ser humano, sem distinção de raça, religião, crença
política, condição econômica ou social”. Em 1951, durante o terceiro ano da
SE RETIRARAM
gestão de Chisholm, foi criado no Rio de Janeiro um importante programa de
TEMPORARIAMENTE cooperação em saúde veterinária, conhecido como o Centro Panaftosa.
DA AGÊNCIA POR O conflito mais agudo da OMS ocorreu no começo dos anos 1950, durante
CONSIDERAR a Guerra Fria – período de tensão geopolítica (1947-1991) entre os Estados Uni-
QUE ESTAVA dos (EUA) e a União Soviética (URSS) –, quando a URSS e os regimes da Euro-
pa do Leste se retiraram temporariamente da agência por considerar que es-
DEMASIADAMENTE tava demasiadamente perto da política exterior dos EUA. Os soviéticos muda-
PERTO DA POLÍTICA ram sua posição depois da morte, em 1953, do líder soviético comunista Joseph
EXTERIOR DOS EUA Stalin (1878-1953), que mantinha uma linha dura contra os norte-americanos.

Autoridade mundial em epidemiologia


No mesmo ano, o médico carioca Marcolino Candau (1911-1983) foi eleito dire-
tor da OMS. Ele tinha valiosa experiência como superintendente do Serviço
Especial de Saúde Pública (Sesp), organização criada como resultado de um
acordo firmado entre os Estados Unidos e o Brasil em 1942, e mantida depois
da Segunda Guerra Mundial com objetivo de implementar obras de saneamen-
to básico em comunidades carentes de infraestrutura, formar novos profissio-
EMBORA A nais de enfermagem e apoiar pesquisas de doenças transmissíveis.
EXPECTATIVA Por sua habilidade e competência, Candau se reelegeu até 1973 e ajudou a
DE ATINGIR O consolidar a agência como autoridade mundial de informação epidemiológica
OBJETIVO EM 2000 e centro de cooperação de especialistas de todo o mundo. Ele foi responsável
por construir os modernos prédios da sede da OMS em Genebra (Suíça), onde
FOSSE DEMASIADO funciona até hoje. Embora procurasse trabalhar principalmente pelo consenso,
OTIMISTA, O LEMA não era uma organização supranacional que pudesse impor sansões aos países
[SAÚDE PARA que não cumprissem suas recomendações – muitas delas aprovadas em as-
TODOS] AINDA sembleias mundiais de saúde, para as quais todos países enviavam represen-
tantes; no entanto, foram incorporadas nas legislações nacionais.
SEGUE INSPIRANDO Com Candau no comando, ocorreu o fracassado programa de erradicação
SANITARISTAS EM da malária, que não previu quais espécies de mosquitos anófeles resistiriam ao
TODO O MUNDO inseticida DDT nem que muitos camponeses não teriam recursos para melhorar
suas condições de vida e se proteger desse vetor. Candau também era o diretor
quando se iniciou a campanha de erradicação da varíola, a qual alcançou seu
objetivo em 1980 – até hoje única doença eliminada pela ação humana.

Saúde para todos


O médico dinamarquês Hafldan Mahler (1923-2016), que trabalhara como vice-
-diretor de Candau, se elegeu diretor-geral da OMS em 1973, cargo que ocupou
até 1988. Uma conquista ainda celebrada de sua gestão foi a Conferência In-
ternacional de 1978, quando se proclamou a Atenção Primária da Saúde como

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CRÉDITO: CENTRO DE MEMÓRIA DA FACULDADE DE SAÚDE PÚBLICA - USP/DIVULGAÇÃO

O médico paulista Geraldo de Paula principal estratégia da agência, com o objetivo de promover “a assistência sa-
Souza (1889-1951) propôs, junto com o nitária essencial acessível a todos os indivíduos e família com sua plena par-
delegado e dilpomata chinês Szeming
ticipação” e que teve como lema “Saúde para Todos”.
Sze (1908-1998), a criação de uma
agência internacional especializada Embora a expectativa de atingir o objetivo em 2000 fosse demasiado oti-
em saúde mista, o lema ainda segue inspirando sanitaristas em todo o mundo. Nas últi-
mas décadas do século passado, a liderança da OMS deveu-se também a sua
capacidade de produzir a Classificação Internacional de Doenças, padrão mé-
dico comum mundial para as enfermidades. Além disso, a OMS ajudou a pro-
mover melhoria de alguns indicadores de saúde, como o aumento da expecta-
tiva de vida e a ampliação da cobertura vacinal.

Destaque de brasileiros
Nos programas de vacinação, destacaram-se, novamente, dois sanitaristas bra-
sileiros. Um deles foi Ciro de Quadros (1940-2014), que conduziu campanhas
contra a varíola na África e, posteriormente, foi funcionário da Organização
Pan-americana de Saúde (OPAS), escritório regional da OMS.
A origem de seu trabalho remonta à saúde comunitária em regiões pobres
dos estados do Pará e Paraná. Ele participou da inovadora estratégia da OMS
de ‘vigilância e bloqueio’ na vacinação contra a varíola, em vez da onerosa e
menos eficaz vacinação em massa. No período 1971-1976, foi chefe do programa
de erradicação da varíola da OMS na Etiópia. >
| 367 | JULHO 2020 | 25
A OMS TEVE
DIFICULDADES
EM SE ADAPTAR
À GLOBALIZAÇÃO
E MANTER SUA
LIDERANÇA
INTERNACIONAL

O segundo brasileiro a se destacar foi Carlyle Guerra de Macedo, que seria elei-
to por dois períodos seguidos (1983-1995) como diretor da OPAS. Macedo começou
sua carreira no início dos anos 1960 como coordenador do Projeto de Colonização
do Maranhão; posteriormente, dirigiu a Divisão de Saúde no Departamento de Re-
cursos Humanos da Superintendência de Desenvolvimento do Nordeste (Sudene),
criada pelo governo desenvolvimentista de Juscelino Kubitscheck (1902-1976).
Graças à ajuda da Rotary Internacional (associação de clubes de voluntários que
prestam serviços humanitários), Macedo e Quadros foram peças-chave na moder-
nização dos programas de imunização em toda a América Latina e na erradicação
da poliomielite na América Latina e no Caribe.

Saúde e direitos humanos


A partir de 1987, a OMS apresentou uma resposta inovadora à Aids, graças ao médico
norte-americano Jonathan Mann (1947-1998), que vinculou saúde pública aos direitos
humanos. Segundo Mann, o mais eficaz e solidário era respeitar a dignidade das pes-
soas que viviam com a doença e recrutá-las para prevenção e tratamento.
Posteriormente, o sul-coreano Jong-Wook Lee (1945-2006) lançou, com apoio da
agência Unaids (da sigla em inglês Joint United Nations Program on HIV/AIDS), em
2003, como diretor da OMS, a campanha pela distribuição gratuita de antirretrovi-
rais aos mais pobres, a qual foi fortemente influenciada pelo programa brasileiro
que, desde 1996, apoiava o acesso universal e gratuito a esses medicamentos e os
considerava como um bem público e não como mercadoria. Nesse período, o mé-
dico paulista Paulo Roberto Teixeira, que havia chefiado o Programa Estadual de
DST/Aids de São Paulo e o Programa Federal de Aids, foi contratado pela OMS por
um breve período para organizar o programa mundial de aceso aos antirretrovirais.
A partir de então, o programa brasileiro foi reconhecido pela OMS e pela Fundação
Gates como exemplo a ser seguido em outros países em desenvolvimento.

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Percalços e conquistas
Entre 1988 e 1998, a OMS foi dirigida pelo japonês Hiroshi Nakajima (1928-2013),
criticado por não ter carisma, por ser incapaz de gerenciar a agência e até por
corrupção. As críticas se deram no contexto de governos liberais, como o do
presidente norte-americano Ronald Reagan (1911-2004), que censuravam a OMS
e a ONU como um todo, sem oferecer uma alternativa às relações multilaterais.
A OMS teve dificuldades em se adaptar à globalização e manter sua liderança
internacional, quando apareceram novos protagonistas, como os ativistas de
saúde, a Fundação Gates e o Banco Mundial.
Entre 1998 e 2003, a OMS voltou a ganhar credibilidade graças a sua dire-
tora Gro Harlem Brundtland, ex-primeira-ministra da Noruega, médica e líder
do movimento ambientalista. Ela liderou, em 2003, a Convenção-Quadro para
o Controle do Tabaco, primeiro tratado internacional obrigatório em saúde pú-
blica, para reduzir o consumo de uma das causas de várias doenças crônicas,
referendado por 181 países. Sua ratificação no Brasil, em 2005, envolveu deba-
tes no Congresso Nacional e audiências públicas com representantes da indús-
tria do tabaco, dos agricultores, do Sistema Único de Saúde (SUS) e de partidos
políticos.
Após Brundtland, o sul-coreano Lee Jong-Wook (1945-2006) lançou uma Co-
missão de Determinantes Sociais da Saúde (DSS) na OMS para reduzir as de-
CRÉDITO: ADOBE STOCK

sigualdades que multiplicavam muitas doenças. Lamentavelmente, Lee morreu


de repente, sendo sucedido pela médica chinesa Margaret Chan, que inaugurou
a Conferência Mundial sobre Determinantes Sociais da Saúde, realizada no Rio
de Janeiro, em 2011. O evento aconteceu no Rio porque o Brasil foi um dos pa-
íses que mais haviam se destacado com sua Comissão Nacional de DSS, e tam-
bém porque sanitaristas e diplomatas brasileiros eram apreciados no debate
internacional da governança global da saúde.
Um indicador disso foi que o médico e pesquisador brasileiro Paulo Buss,
presidente da Fundação Oswaldo Cruz entre os anos 2000 e 2008 e coordena-
dor da Comissão Nacional de DSS, foi eleito em maio de 2010 vice-presidente
do Conselho Executivo da OMS, composto por 34 países que representam os
193 estados-membros da agência. O Conselho nomeia o diretor-geral e decide
os assuntos a serem discutidos nas assembleias da OMS.
Nessa Conferência Mundial de 2011, a Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) teve
papel de destaque e, durante sua programação, aprovou-se uma declaração, as-
sinada por representantes de 130 países, que demandava acesso das populações
pobres a bens essenciais, como medicamentos, alimentação, água potável e
habitação adequada. A direção de Chan teve elogios, mas também sofreu duras
críticas em relação aos surtos epidêmicos do H1N1 (2009) e de SARS e Ebola
(2014). Muitos especialistas consideraram que a resposta da OMS ao vírus Ebo-
la que atacou a África Central demorou a chegar. Para poucos, o problema era
falta de recursos para implementar o Regulamento Sanitário Internacional, que
vigiava os surtos epidêmicos.

Por serviços gratuitos e de qualidade


Em 2017, muitos países em desenvolvimento apoiaram a candidatura à direto-
ria da OMS do etíope Tedros Ghebreyesus, que ganhou confortavelmente uma
eleição na qual seus concorrentes eram apoiados pelos Estados Unidos e por
países europeus. Como sua antecessora, Ghebreyesus priorizou a cobertura uni-
versal da saúde, que buscava garantir serviços de saúde preventivos, curativos
e de reabilitação gratuitos e de qualidade.
>
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APESAR DAS
VICISSITUDES
EXISTENTES NA
ATUAL POLÍTICA
BRASILEIRA, O
VÍNCULO DOS
CIENTISTAS E
SANITARISTAS DO
PAÍS COM A OMS
CONTINUA FORTE
CRÉDITO: FIOCRUZ

Leia +
CUETO, Marcos; REINALDA,
Bod. ‘Candau, Marcolino
Apesar das vicissitudes existentes na atual política brasileira, o vínculo dos Gomes’ in IO BIO, Biographical
cientistas e sanitaristas do país com a OMS continua forte. Atualmente, vários Dictionary of Secretaries-
grupos de pesquisa de universidades e institutos brasileiros são valorizados General of International
e fazem parte de redes transnacionais, como os centros colaboradores da Organizations, Edited by Bob
OPAS e da OMS. Reinalda, Kent J. Kille and Jaci
A designação como centro colaborador é resultado de uma exigente avalia- Eisenberg, www.ru.nl/fm/
ção internacional. Em 2019, 41 desses centros operavam na América do Sul, dos iobio, Acesso 2 Abril 2020.
quais 24 eram brasileiros. O segundo país da região com maior número de cen-
CUETO, Marcos; BROWN,
tros é a Argentina, que tem 11. Recentemente, o Laboratório de Vírus Respira-
Theodore; FEE, Elizabeth. The
tórios e do Sarampo do Instituto Oswaldo Cruz (IOC/Fiocruz) foi nomeado para
World Health Organization, A
toda a América Latina como Laboratório de Referência da OMS para a covid-19.
History. Cambridge:
Um dos principais desafios das últimas diretorias da OMS tem sido au-
Cambridge University Press,
mentar seus recursos e recuperar o controle de seu orçamento, pois as doa-
2019.
ções dos países industrializados têm destinos que não podem ser alterados.
Além disso, a OMS deve diversificar seu quadro de funcionários e incorporar PIRES-ALVES, Fernando A.;
mais cientistas sociais. PAIVA, Carlos Henrique
O objetivo mais importante das próximas diretorias, no entanto, é forta- Assunção; HOCHMAN,
lecer o multilateralismo e reposicionar a agência em uma futura governança Gilberto. História, saúde e
mundial que não apenas lute para ter mais recursos e capacidades suprana- seus trabalhadores: da agenda
cionais em responder aos surtos epidémicos, como o da covid-19, mas que internacional às políticas
também promova consensos políticos e investimento em sistemas universais brasileiras. Ciência e Saúde
e equitativos de saúde em todos os países. Todas são tarefas em que cientis- Coletiva, v.13, n.3, p.819-829.
tas e sanitaristas brasileiros devem continuar a participar ativamente como 2008.
fizeram no passado. |

28 | | 367 | JULHO 2020


CARLA MADUREIRA CRUZ
Departamento de Geografia | Instituto de Geociências > Universidade Federal do Rio de Janeiro

A valorização das representações


espaciais
QUANDO FALAMOS QUE atualmente estamos inundados por va em seu primeiro parágrafo, que dizia (em livre tradução):
dados georreferenciados representados de forma pontual ou “Incêndios florestais que assolam o sul da Califórnia, febre
aglomerada em unidades espaciais, isso não é bem uma novi- aftosa devastando a indústria pecuária britânica, recente sur-
dade. Lembro-me de ter lido, no início dos anos 1990, um tex- to de síndrome respiratória aguda grave (SARS) – todos esses
to do pesquisador norte-americano Stan Aronoff que me sur- desastres têm, pelo menos, uma coisa em comum – o papel
preendeu bastante naquele momento. Ele afirmava que, em desempenhado por analistas geoespaciais e a mineração de
breve, teríamos mais de 90% das informações localizadas no imagens de satélite na obtenção de informações para ajudar
espaço. Imaginem só! Há 30 anos o sistema de navegação autoridades a tomar decisões cruciais”.
GNSS (mais conhecido por GPS) estava apenas iniciando e ter Pareceu similar?
acesso a dados georreferenciados não era nada trivial. Parecia Cheguei a me assustar ao ler, tanto que precisei confirmar
ficção científica pura. a data de referência do artigo, parecia que era de agora. Os
Embora, em nossa evolução histórica, tenhamos buscado problemas se repetem e estamos sempre às voltas com a ne-
referências que nos ajudassem na orientação espacial, até cessidade de encontrar soluções adaptativas que possam res-
mesmo por sobrevivência, a possibilidade de nos localizarmos ponder pela velocidade e acurácia necessárias para o acom-
rapidamente foi algo conquistado lentamente. Não há dúvidas panhamento de fenômenos. E, apesar de parecer que estamos
de que os sistemas de navegação por satélites foram funda- dando voltas, é fato que o avanço tecnológico tem viabilizado
mentais para esse avanço. Mas, repensando agora sobre a soluções mais rápidas e poderosas. Por outro lado, os fenô-
afirmação que Aronoff fez há quase três décadas, vejo que é menos podem apresentar características muito distintas. Po-
necessário reconhecer o quanto essa previsão acabou se con- dem ser de curto a longo prazo, localizados ou globais, rápidos
cretizando de forma muito mais contundente do que se podia e intensos ou mais lentos. Essa diversidade de opções irá
imaginar. Afinal, hoje temos um percentual elevado da popu- pressionar por soluções diferentes, que apresentem condições
lação mundial se deslocando, quase que o tempo todo, com de percepção da evolução dos mesmos e, assim, auxiliar na
um localizador ativo nos smartphones. tomada de decisão.
Mais recentemente me deparei com um pequeno artigo da Mas, afinal, como perceber padrões espaciais e temporais?
Nature publicado em 2004, que, com o título Mapping oppor- A compreensão da escala do problema é uma condição prio-
tunities (ou Mapeando oportunidades, traduzido para o portu- ritária a ser tratada. Ser capaz de delinear a abrangência e o
guês), indicava novas oportunidades de especialização. Nele, detalhamento do fenômeno é crucial para a escolha do universo
a jornalista Virginia Gewin afirmava que cientistas que sabiam que deverá ser mapeado ou analisado. Entender sua dinâmica
combinar o uso de sistemas de informações geográficas com também, porque isso definirá o intervalo de observação.
imagens de satélite eram cada vez mais procurados em várias Virginia Gewin informa ainda em seu texto que, no início de
disciplinas do conhecimento. No entanto, o mais incrível esta- 2004, um levantamento de perfis de empregos nos EUA iden-
tificou que as geotecnologias se configuravam em um dos três
CRÉDITO: ADOBE STOCK

campos emergentes e em evolução mais importantes, junta-


mente com a nanotecnologia e a biotecnologia. O que se ob-
serva, desde então, é que as oportunidades de emprego cres-
cem e se diversificam à medida que as tecnologias geoespa-
ciais provam seu valor em áreas cada vez maiores. Parece que
estamos mesmo vendo diariamente mais e mais aplicações
que se expressam através desses produtos georreferenciados.
Nem é mais possível imaginar como poderíamos lidar com o
caso de fenômenos de abrangência global sem as ferramentas
de monitoramento atuais. |

| 367 | JULHO 2020 | 29


O VÍRUS DO
RACISMO
E A COVID-19

30 | | 367 | JULHO 2020


CRÉDITO: ADOBE STOCK
No final de fevereiro, quando foi confirmado o
primeiro caso de covid-19 no Brasil, a doença se
concentrava em bairros de classes média e alta
das maiores metrópoles do país, São Paulo e Rio
de Janeiro. Os primeiros infectados foram pessoas
que viajaram ao exterior. Quatro meses depois,
57% dos óbitos são de pessoas pretas e pardas,
segundo dados do Ministério da Saúde, e a doença
avança nas periferias e no interior do país. Nos
atestados de óbito a causa mortis é a covid-19,
mas o racismo estrutural, que submete a maior
parte da população negra a péssimas condições
de vida, é tão culpado quanto o vírus.

Marcio André dos Santos


Instituto de Humanidades e Letras
Universidade da Integração Internacional da Lusofonia
Afro-brasileira  (Unilab) – Campus dos Malês

A PANDEMIA DO NOVO CORONAVÍRUS (SARS-CoV-2) tem causa-


do fortes impactos sociais e econômicos por todo o planeta. No
Brasil, os dados sobre a doença, até julho, seguiam alarmantes -
para dizer o mínimo. Atrás dos Estados Unidos, somos o segundo
país no mundo com o maior número de infectados e mortos pela
covid-19, e temos grandes chances de ocupar a lamentável primei-
ra colocação, caso as políticas para conter a transmissão da doen-
ça não avancem. No momento em que escrevo este texto, mais de
60 mil brasileiros perderam suas vidas e os casos confirmados já
ultrapassam um milhão e quatrocentos mil. Além dos números
muito elevados de contaminados e mortos, a curva de contágio
continua ascendente em todo o país.
>

| 367 | JULHO 2020 | 31


A covid-19, no início, era uma “doença importada” que acometia basicamen-
te pessoas de classe média e média alta, residentes em áreas nobres dos gran-
des centros urbanos, que haviam viajado para áreas nas quais o vírus já circu-
lava, sobretudo China e países na Europa. Devido a esse perfil social e econô-
mico, a maior parte dos infectados era branca. Semanas depois, as transmissões
passaram a ser qualificadas como sustentáveis, ou seja, sem controle de quem
estaria passando a doença para os demais. Bairros populares, periferias, favelas
das grandes cidades e territórios de populações tradicionais, logo, foram atin-
gidos pelo novo coronavírus. E, já que no caso brasileiro não há como dissociar,
em termos sociológicos, condições sociais do pertencimento étnico e racial,
muitas das pessoas infectadas são negras (pretas e pardas de acordo com o
IBGE) e de baixa renda.
Os efeitos e os impactos sociais causados pela pandemia da covid-19 não
são os mesmos para todas as populações ou grupos. E a explicação disso é re-
lativamente simples: quanto piores as condições materiais de vida de certos
grupos, pior o impacto da doença em suas chances de recuperação e sobrevi-

JÁ QUE NO BRASIL NÃO HÁ COMO DISSOCIAR,


EM TERMOS SOCIOLÓGICOS, CONDIÇÕES
SOCIAIS DO PERTENCIMENTO ÉTNICO E
RACIAL, MUITAS DAS PESSOAS INFECTADAS
SÃO NEGRAS (PRETAS E PARDAS DE ACORDO
COM O IBGE) E DE BAIXA RENDA

32 | | 367 | JULHO 2020


A MAIOR EXPOSIÇÃO DOS NEGROS NOS EUA
AOS IMPACTOS DA COVID-19 TEM A VER COM A
DISPARIDADE RACIAL PRODUZIDA PELO RACISMO
ESTRUTURAL NAQUELE PAÍS

vência. O sociólogo argentino Carlos Hasenbalg (1942-2014) cunhou a expressão


“ciclo cumulativo de desvantagens”, em meados dos anos 1980, a fim de expli-
car as dinâmicas sociorraciais experienciadas pelas famílias negras. Desvanta-
gens e prejuízos sociais e econômicos causados pelo racismo estrutural e pela
pobreza marcam negativamente os processos de ascensão e mobilidade social
de pessoas negras. Neste sentido, uma pessoa negra jovem, cujos pais tiveram
precária escolarização, tende a deixar como “herança” poucas expectativas de
aumento de escolaridade para os seus filhos, e assim sucessivamente.

Covid-19 é mais letal para negros nos EUA


Por essa razão, a covid-19, além de ser potencialmente mortal, impõe obstácu-
los extras em termos de geração de renda e empregabilidade já existentes em
determinados segmentos sociais da população. Este cenário não é uma singu-
laridade nacional. Nos Estados Unidos, a covid-19 tem sido muito mais letal
entre os afro-americanos e latinos – proporcionalmente mais expostos aos efei-
tos do empobrecimento capitalista – do que entre brancos. Em Louisiana, es-
tado localizado no Golfo do México, os afro-americanos constituem cerca de
33% da população, no entanto, são 70% dos mortos em decorrência da covid-19.
Em Chicago, no estado de Illinois, em outro extremo do país, o cenário não é
diferente: afro-americanos compõem 30% da população, porém o número de
óbitos chega a 68%. As disparidades raciais são tão explícitas que até mesmo
o presidente Donald Trump, considerado conservador e racista por muitos ati-
vistas negros nos EUA, reconheceu que a covid-19 tem sido particularmente
mais letal entre os afro-americanos.
A maior exposição dos negros nos EUA aos impactos da covid-19 tem a ver
com a disparidade racial produzida pelo racismo estrutural naquele país. Em
uma nação em que o sistema de saúde é altamente seletivo e caro, os mais po-
bres sabem que ficar doente pode significar uma sentença de morte. Neste
contexto da pandemia, a imprensa tem retratado situações de pacientes cura-
dos pela covid-19 e com dívidas médicas estratosféricas. Além disso, a pobreza
associada ao racismo faz com que parte significativa dessa população se ali-
mente muito mal. Não é à toa que redes de fast food de todo tipo estejam es-
palhadas pelos bairros negros e latinos, potencializando a chamada epidemia
da obesidade.

O desmantelamento do SUS
Diferenças nacionais à parte, é possível perceber algumas semelhanças
importantes com o contexto brasileiro. Negros (pretos e pardos) são os mais
afetados e vulnerabilizados pela pobreza em todo o país, de acordo com os
indicadores recentes. Diferentemente dos EUA, aqui temos o Sistema Único
CRÉDITO: ADOBE STOCK

de Saúde (SUS) que prevê atendimento universal para variados tipos de


tratamento de saúde.
>
| 367 | JULHO 2020 | 33
PRETOS E PARDOS CONSTITUEM
O GRUPO MAIS ATINGIDO PELA
COVID-19 DEVIDO À ASSOCIAÇÃO
PERVERSA ENTRE DESIGUALDADE
RACIAL E CONDIÇÕES
SOCIOECONÔMICAS DE VIDA

A pandemia da covid-19 tem evidenciado o que especialistas na área cha-


mam a atenção há muitas décadas: o SUS tem sido sistematicamente desman-
telado para atender aos interesses financeiros de empresas ligadas à saúde do
setor privado. Como uma das principais conquistas da Constituição de 1988, o
SUS é encarado pelos governos neoliberais como dispendioso e ineficaz, quan-
do, na verdade, é a única alternativa de atendimento e tratamento de saúde
para a imensa maioria das pessoas que não podem arcar com os custos (no
geral, altos) dos planos de saúde. Cerca de 67% da população negra depende
dos serviços prestados pelo SUS.

Enfim, dados da pandemia por raça


Somente a partir do dia 10 de abril de 2020, dados relativos à pandemia com
recorte por cor/raça foram publicados pelo Ministério da Saúde. Não fosse a
insistência da Sociedade Brasileira de Medicina de Família e Comunidade (SB-
MFC) e da Coalização Negra por Direitos, sediada em São Paulo, não teríamos
nenhum tipo de informação minimamente confiável que registrasse o número
de contaminados e mortos com base na cor/raça dos indivíduos. Apesar do nú-
mero expressivo de subnotificações frente aos dados oficiais, pretos e pardos
constituem o grupo mais atingido pela covid-19 devido à associação perversa
entre desigualdade racial e condições socioeconômicas de vida.
De acordo com o Boletim Epidemiológico nº 17, do Ministério da Saúde,
49.6% dos óbitos foram registrados entre pardos; 7.4% entre pretos; 41% entre

34 | | 367 | JULHO 2020


CERCA DE 67% DA POPULAÇÃO NEGRA
DEPENDE DOS SERVIÇOS PRESTADOS PELO SUS

brancos, 0.5% entre indígenas e 1.6% entre amarelos. Portanto, se somarmos os


dados de pardos e pretos de acordo com as informações acima, o total chega a
57% dos casos. Ou seja, negros e negras são os mais atingidos e prejudicados
pela pandemia até este momento.

Interiorização da doença, mais um perigo aos negros


Outro fator a considerar é a interiorização e a capilaridade da covid-19. No iní-
cio, a doença se concentrava em cidades grandes e médias, espalhando-se ra-
pidamente por regiões mais periféricas e de forte concentração de população
negra. No geral, o sistema de saúde destas cidades não suporta demandas tão
altas em tão pouco tempo. O problema ganha outra magnitude em cidades pe-
quenas, com menos de 100 mil habitantes. Os postos de saúde ou hospitais
(quando existem) não dispõem dos respiradores e medicamentos necessários
para tratar os efeitos da doença. E, nas regiões Norte, Nordeste e Centro-Oeste,
temos uma grande concentração de populações não-brancas, de baixíssima
renda, que depende exclusivamente do SUS para tratamento de saúde. É a ou-
CRÉDITO: ADOBE STOCK

tra faceta do racismo estrutural traduzido na quase total falta de assistência


às populações mais vulneráveis.
No momento em que escrevo este texto, no início de julho, o Brasil, segundo
colocado em número de infectados e mortos pelo novo coronavírus, está há
quase dois meses sem ministro da saúde, situação que tem chamado a atenção
de boa parte da imprensa internacional. A gestão interina do Ministério da
Saúde chegou a omitir dados oficiais de contaminados e mortos, possivelmen-
te para forçar o país a uma volta precoce às atividades econômicas.
É fato que todo problema de saúde pública é de natureza política. Por isso
é que políticas públicas de saúde são essenciais para o bem-estar de um país
do mesmo modo que para o seu desenvolvimento. Desta vez um dos diferenciais
é que a ideologia política que rege o atual governo consegue piorar ainda mais
uma situação que tem sido altamente complexa e disruptiva. Já não podemos
mais falar da covid-19 de forma impessoal, como algo distante de nossas vidas.
Parentes, vizinhos e amigos nossos estão adoecendo, e tudo isso provoca um
misto de medo, ansiedade e preocupação com o futuro. Ligar a TV e ser infor-
mado de que o governo federal não está fazendo o suficiente para frear o nú-
mero crescente de mortes e contaminados gera ainda mais angústia e temor.
A pandemia expõe, escancara e agudiza velhas lógicas de opressão presentes
na sociedade brasileira e que podemos resumir em um conceito: necropolítica.
Nada é por acaso: as contradições do governo federal no comando do Ministé-
rio da Saúde, a resistência na aprovação da ajuda emergencial de R$ 600 aos
mais necessitados, os embates do presidente da República com governadores
e prefeitos quanto às melhores estratégias de enfretamento à covid-19 e a re-
cusa em entender qual o papel do Estado como agente vital na resolução de
todos esses problemas são alguns elementos presentes no descompasso em que
nos encontramos. Enquanto isso as populações negras, indígenas, quilombolas
e periféricas continuam expostas. |

| 367 | JULHO 2020 | 35


Os indígenas estão entre as
populações tradicionais altamente
vulneráveis e em risco devido à
pandemia de covid-19. A ilustração
mostra a líder indígena Célia Xakriabá,
no Território Xakriabá (MG),
em maio de 2020

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COVID-19 E A GUERRA
DE CONQUISTA AOS
POVOS INDÍGENAS
Há cinco séculos, as doenças são armas de uma guerra para a conquista
dos povos indígenas e seus territórios. No passado, foram as gripes e a
varíola que dizimaram milhões, em tempos de colonização ou, até mais
recentemente, na ditadura militar. Hoje, a covid-19 avança nas aldeias, e a
morte dos povos originários do continente americano por contaminação
do SARS-CoV-2 não pode ser considerada uma fatalidade, diante de fatos
como a invasão de terras indígenas por garimpeiros que disseminam o
vírus, falta de assistência médica adequada, omissão do poder público,
acobertamento de dados da pandemia entre essa população, assim como
sua vulnerabilidade socioeconômica.

João Gabriel da Silva Ascenso


Colégio de Aplicação,
Universidade Federal do Rio de Janeiro
Rayane Barreto de Araújo
Programa de Pós-Graduação em História,
Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro
CRÉDITO: ILUSTRAÇÃO A PARTIR DE FOTO CÉLIA XAKRIABÁ

A CHEGADA DO NAVEGADOR italiano Cristóvão Colombo (1451-1506) à ilha que seria batizada de
San Salvador, no Caribe, iniciou, em 1492, o que muitos chamaram de “encontro entre dois mun-
dos”. É difícil estimar a demografia do continente americano àquela época. Estudos oscilam entre
números relativamente baixos – o geógrafo norte-americano William Denevan (1931-) calculou pou-
co mais de 57 milhões de pessoas – e cifras muito mais altas, chegando a 100 milhões, como pro-
pôs o historiador norte-americano Woodrow Borah (1912-1999). Igualmente difícil é quantificar a
parcela dessa população que foi dizimada pelo contato com os europeus. O filólogo venezuelano
Angel Rosenblat (1902-1984) defendeu que 75% das pessoas que viviam no continente americano
foram eliminadas até 1650, enquanto o historiador espanhol Nicolás Sánchez-Albornoz (1926-) che-
gou a conceber 95%, mesmo número especulado por antropólogos como o brasileiro Eduardo Vivei-
ros de Castro (1951-) e o norte-americano Henry Dobyns (1925-2009) – este último tendo classifica-
do esse processo como um “cataclismo biológico”.

>
| 367 | JULHO 2020 | 37
“NÓS ESTAMOS EM GUERRA. EU NÃO SEI POR QUE
VOCÊ ESTÁ ME OLHANDO COM ESSA CARA TÃO
SIMPÁTICA. NÓS ESTAMOS EM GUERRA. O SEU MUNDO
E O MEU MUNDO ESTÃO EM GUERRA, OS NOSSOS
MUNDOS ESTÃO TODOS EM GUERRA. A FALSIFICAÇÃO
IDEOLÓGICA QUE SUGERE QUE NÓS TEMOS PAZ É
PARA A GENTE CONTINUAR MANTENDO A COISA
FUNCIONANDO. NÃO TEM PAZ EM LUGAR NENHUM. É
GUERRA EM TODOS OS LUGARES O TEMPO TODO”
(Ailton Krenak, Guerras do Brasil)

Os responsáveis pelo extermínio daqueles que viriam a ser chamados de ‘índios’

CRÉDITO: DIVULGAÇÃO
são nossos conhecidos: os violentos ataques que marcaram a invasão, os processos
de escravização e, sobretudo, as doenças que foram trazidas pelos europeus – e cujos
surtos geralmente vinham seguidos de fome e de desagregação da produção de
subsistência. Tais doenças eram mais letais para os indígenas, segundo o biólogo
norte-americano Jared Diamond (1937-), porque, em sua maioria, eram decorrentes
Abaixo, imagem de indígenas do contato com animais domesticados – o que era comum no velho mundo, mas
Mexica (Asteca) contaminados praticamente não existia na América, reduzindo o estímulo imunológico. Foi o caso
com varíola, presente de diferentes tipos de gripe e da varíola.
no Códice Florentino, Esta última foi a doença que mais destruição trouxe aos habitantes originários
também conhecido como do continente. No Brasil, vários surtos ocorreram, desde as primeiras décadas de
Historia General de las cosas
presença portuguesa. Um deles, ocorrido entre 1563 e 1564 em Itaparica e Ilhéus,
de la Nueva España, criado
sob a supervisão do frade na Bahia, teve 30 mil mortos estimados em três meses. A seu respeito, o testemu-
franciscano Bernardino de nho do padre jesuíta português Leonardo Nunes (1509-1554) foi revelador não ape-
Sahagún. Ao lado, à direita, nas do desconhecimento da doença, mas também de sua interpretação pela ótica
imagem de indígena Mexica da moralidade cristã. Referindo-se aos indígenas, ele afirmou, em 1563, que “seu
(Asteca) contaminado com
pecado foi castigado por uma peste tão estranha que por ventura nunca nestas
sarampo, presente no livro
Viruses, Plagues, and History: partes houve outra semelhante. [...] Finalmente chegou a coisa a tanto que já não
Past, Present and Future, havia quem fizesse as covas [...] e com tudo isso diziam os índios que não era nada
de Michael B. A. Oldstone em comparação da mortalidade que ia pelo sertão adentro”.
CRÉDITO: REPRODUÇÃO/DOMÍNIO PÚBLICO

38 | | 367 | JULHO 2020


A fala do padre Leonardo do Valle é testemunho, também, da interiorização OS RESPONSÁVEIS
das doenças trazidas pelos europeus. Fugindo delas, os indígenas acabavam
transportando-as por imensas extensões, atingindo até mesmo o coração da
PELO EXTERMÍNIO
Amazônia. Isso nos ajuda a explicar algo de cuja dimensão apenas nos demos DAQUELES QUE VIRIAM
conta há pouco tempo: as sociedades amazônicas eram muito mais diversas A SER CHAMADOS DE
do que se pensava desde o período colonial. Como revela hoje a arqueologia, ‘ÍNDIOS’ SÃO NOSSOS
muitas sociedades de grande porte, inclusive com aldeias fortificadas, existiam
CONHECIDOS: OS
às margens dos grandes rios, como o Amazonas. Seu desaparecimento (ou a
alteração de sua organização) muito antes de qualquer contato com os euro-
VIOLENTOS ATAQUES
peus deveu-se, muito provavelmente, à disseminação das moléstias, que acabou QUE MARCARAM A
com esses centros de maior concentração demográfica. INVASÃO, OS PROCESSOS
DE ESCRAVIZAÇÃO
Doenças como armas contra os indígenas
Frente a esse cenário, é razoável recuperar a declaração do importante líder
E, SOBRETUDO, AS
indígena, ambientalista e escritor brasileiro Ailton Krenak (1954-): não se trata DOENÇAS QUE FORAM
de um mero “encontro de mundos”. O que se estabeleceu foi uma guerra de TRAZIDAS PELOS
mundos! Muitas vezes, nessa guerra, a percepção das formas de contágio e da EUROPEUS
maior letalidade entre os indígenas levou a que se buscasse conscientemente
a contaminação como arma. A médica e pesquisadora brasileira Cristina Gurgel
menciona, em seu livro Doenças e curas: o Brasil nos primeiros séculos (Editora
Contexto, 2010), um ofício em que Balthazar da Silva Lisboa (1761-1840), ouvi-
dor de Ilhéus, de 1799, descrevia doações de vestimentas infectadas aos indí-
genas. O antropólogo brasileiro Darcy Ribeiro (1922-1997) descreve, no livro Os
índios e a civilização (Global Editora, publicado originalmente em 1970), um caso
no sul do Maranhão, em 1816, em que estratégia semelhante foi utilizada con- Charge presente na edição
tra o povo indígena Timbira, para que contraíssem varíola e liberassem áreas de 1º de agosto de 1981 do
para a criação de gado. Jornal Porantim, editado pelo
Conselho Indigenista Missionário,
Ao longo do século 20, continuou sendo recorrente que agentes de Estado e
em matéria chamada
civis infectassem indígenas. Um famoso documento, hoje chamado de ‘Relató­ ‘Desmentida versão da Funai:
rio Figueiredo’, de 1967, denuncia que os Pataxó-Hãhãhãe, de Itabuna (Bahia), sarampo mata 21 Waimirí-Atroarí’
foram contaminados propositalmente com o vírus da varíola, entre os anos
1950 e 1960, “para que se pudessem distribuir suas terras entre figurões
do governo”. Segundo o relatório, “a falta de assistência, porém, é a mais
eficiente maneira de praticar o assassinato”. Foi justamente isso o que
aconteceu com tantos povos ao longo das décadas de 1970 e 1980,
afetados pelos planos e projetos de desenvolvimento da dita-
dura militar para a Amazônia. A construção
CRÉDITO: DISPONÍVEL EM: ACERVO.SOCIOAMBIENTAL.ORG/ACERVO/NOTICIAS/SARAMPO-MATA-21-WAIMIRI-ATROARI

de rodovias – como a Transamazônica, a


BR-163 e a BR-174 – e de hidrelétricas, bem
como a expansão da agropecuária e da
mineração, quase fizeram desaparecer
diversos povos, assolados pela vio-
lência e por doenças. Wai­m i­-
ri-Atroari, Yanomami, Nambi­
quara, Krenakore, entre outros,
foram alguns dos povos que paga-
ram o preço da associação entre a
negligência histórica do Estado
brasileiro e os interesses econô­
micos do empresariado. >
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Ainda que, na maioria das vezes, a contaminação dos indígenas não tenha OS POVOS INDÍGENAS
ocorrido por um esforço deliberado, isso não anula o fato de que as doenças fo-
ram parte integrante de um esforço de guerra de conquista, e isso por quatro
SÃO MAIS VULNERÁVEIS
motivos principais: 1) fizeram parte do cotidiano do contato forçado que euro- DIANTE DA EXPANSÃO
peus e seus descendentes estabeleceram com povos indígenas; 2) expandiram-se DA COVID-19. NÃO POR
graças à omissão do Estado colonial (posteriormente Estado nacional); 3) foram, RAZÕES BIOLÓGICAS,
muitas vezes, usadas propositalmente como arma, como vimos; 4) as informa-
MAS POR CONDIÇÕES
ções relativas ao contágio foram constantemente dissimuladas e escondidas.
SOCIOECONÔMICAS,
Mais vulneráveis frente à covid-19 PELO DEFICIENTE
Hoje, em 2020, os elementos dessa guerra de conquista não parecem ter ter- ATENDIMENTO À
minado. No dia 1º de abril, foi confirmado o primeiro caso de covid-19 entre SAÚDE, PELA ALTA
indígenas, no Brasil: uma mulher do povo Kokama, moradora de Santo Antônio
do Içá (Amazonas) e agente de saúde indígena. Em 02 de julho, de acordo com
MORTALIDADE INFANTIL
a Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai), já havia 7.198 casos confirma- E, ESPECIALMENTE,
dos e 166 óbitos. A Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB), entretan- PELOS ALTOS
to, contesta esses números, registrando para o mesmo dia 10.373 casos e 412 ÍNDICES DE DOENÇAS
indígenas mortos, a maior parte deles na região amazônica. As diferenças entre
os dados se deve, em parte, ao fato de a Sesai apenas contabilizar os casos em
RESPIRATÓRIAS
terras indígenas homologadas, não incluindo indígenas vivendo em situação
urbana e não lhes oferecendo, tampouco, assistência.
Em coletiva de imprensa no dia 09 de junho, o chefe da secretaria, Robson
Santos da Silva, afirmou que os números à época (85 mortos, segundo a Sesai)
eram baixos, e que procedimentos precoces foram adotados pelo Ministério da
Saúde. Informou uma taxa de letalidade entre os casos confirmados de 3,9%,
que contrasta com os 9,6% indicados pela APIB para o mesmo período. No mes-
mo dia, a ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, Damares
Alves, declarou que seu ministério se antecipou à crise, inclusive entregando
520 mil cestas básicas a comunidades indígenas – algo que a Federação das
Organizações Indígenas do Rio Negro (Foirn) contesta.
Não são apenas as organizações indígenas, entretanto, que rebatem as con-

CRÉDITOS: EXTRAÍDO DE INSTITUTO SOCIOAMBIENTAL (HTTPS://COVID19.SOCIOAMBIENTAL.ORG/)

Comparação dos números de indígenas mortos por Covid-19 segundo a Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai), na linha roxa,
e o Comitê Nacional de Vida e Memória Indígena (linha verde). As diferenças entre os dados se devem, em parte, ao fato de a Secretaria
apenas contabilizar os casos ocorridos em terras indígenas homologadas, não incluindo indígenas em situação urbana

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FONTE: INSTITUTO SOCIOAMBIENTAL (HTTPS://COVID19.SOCIOAMBIENTAL.ORG/)

Mapa de vulnerabilidade
para Covid-19 nas terras
indígenas, mostrando desde clusões otimistas dos órgãos oficiais. Pesquisas apontam que os povos indíge-
o risco mais baixo (1) nas são mais vulneráveis diante da expansão da covid-19. Dessa vez, não por
até o mais alto (5) razões biológicas, já que indígenas e não indígenas estão suscetíveis ao contá-
gio, mas por condições socioeconômicas, pelo deficiente atendimento à saúde,
pela alta mortalidade infantil e, especialmente, pelos altos índices de doenças
respiratórias, um dos principais fatores de morbidade e mortalidade indígena.
Além disso, o padrão de vida comunitária das aldeias aumenta a possibilidade
de contágio. Mesmo as práticas de cura tradicionais, como lembra a antropó-
loga brasileira Aparecida Vilaça em seu artigo ‘A dupla ameaça aos povos indí-
genas’, publicado na Revista Serrote, envolvem um cuidado físico através do to-
que, tendo uma dimensão social que favorece a contaminação.

Garimpeiros e agentes de saúde como vetores


Considerados um povo de recente contato, e especialmente vulnerável à pan-
demia, os Yanomami sofrem com a investida de garimpeiros – atualmente cer-
ca de 20 mil em suas terras, sendo eles o principal vetor de doenças. Com cin-
co mortes e 188 casos confirmados em seu território, segundo dados da Rede
Pró-Yanomami e Ye’kwana relativos ao dia 02 de julho, os Yanomami têm sido
ESTUDO ESTIMA um dos povos mais afetados pela covid-19. Eles preocupam pelo alto índice de
QUE ATÉ 40% DOS doenças respiratórias e pela insuficiência de UTIs em Roraima – 0,72 UTIs para
YANOMAMI QUE MORAM cada 10 mil habitantes, segundo relatório do Instituto Socioambiental (ISA) e
da Universidade Federal de Minas Gerais. Outro estudo destas instituições, re-
PERTO DE MINAS
visado pela Fiocruz, estima que até 40% dos Yanomami que moram perto de
ILEGAIS PODEM SER minas ilegais podem ser infectados pela doença, anunciando um eminente
INFECTADOS PELA risco de “genocídio com a cumplicidade do Estado brasileiro”.
DOENÇA, ANUNCIANDO Apesar do que se pode imaginar, povos em situação de isolamento também
UM EMINENTE RISCO se encontram em situação de grande fragilidade. É o que acontece na Terra In-
dígena Vale do Javari (Amazonas), que possui a maior quantidade de povos em
DE “GENOCÍDIO COM situação de isolamento no mundo. Um dos principais riscos aos povos desse
A CUMPLICIDADE DO território são missionários evangélicos que frequentemente investem em ten-
ESTADO BRASILEIRO” tativas de contato. Mas, em relação à covid-19, as denúncias são de que a trans-

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missão da doença ocorreu por meio dos próprios agentes de saúde. Diante dos NENHUM PLANO DE
perigos do avanço da doença, 20 das 23 famílias do povo Matsés (Mayoruna) ENFRENTAMENTO AO
que vivem em Nova Esperança, dentro do território indígena, foram se isolar
na floresta, de acordo com o site De olho nos ruralistas – algo que, como já vi-
NOVO CORONAVÍRUS
mos, pode aumentar radicalmente o alcance da transmissão. É EFETIVO SEM
A RETIRADA DOS
Omissão e ataques do Estado INVASORES DAS
Em nota de 10 de junho, a Coordenação das Organizações Indígenas da Ama-
zônia Brasileira (Coiab) nos lembra que nenhum plano de enfrentamento ao
TERRAS INDÍGENAS
novo coronavírus é efetivo sem a retirada dos invasores das terras indígenas e E A SUA EFETIVA
a sua efetiva proteção. A nota reitera que a postura do governo tem sido de PROTEÇÃO
negacionismo em relação aos grandes incêndios de 2019, afrouxamento da le-
gislação ambiental, tentativas de autorizar mineração e arrendamento de terras
indígenas e obstrução de processos de identificação e delimitação de terras
indígenas já aprovadas. Lembra ainda uma instrução normativa da Fundação
Nacional do Índio (Funai), de 16 de abril, reconhecendo registros de imóveis
privados em terras indígenas, e a gradual desestruturação da Sesai.
Vale recordar que, em março de 2019, era evidente a intenção de desmonte
dessa secretaria, com o anúncio feito pelo ex-ministro da saúde, Luiz Henrique
Mandetta, de que a saúde indígena seria municipalizada – o que acabou não
ocorrendo frente à intensa mobilização indígena. No dia 07 de julho de 2020,
o Projeto de Lei (PL) 1142, que cria o Plano Emergencial para Enfrentamento à
covid-19 nos Territórios Indígenas, já aprovado na Câmara dos Deputados e no
Senado Federal, recebeu uma série de vetos do Presidente da República, entre
eles, o veto à obrigação do governo de fornecimento de água potável, materiais
de higiene e leitos hospitalares aos indígenas.
Essa postura do governo parecia já anunciada quando a primeira medida
provisória assinada pelo presidente Jair Bolsonaro, no dia de sua posse, 1º de
janeiro de 2019, pretendia transferir da Funai para o Ministério da Agricultura
a prerrogativa de demarcar terras indígenas – medida barrada pelo Congresso
e, finalmente, suspensa pelo Supremo Tribunal Federal (STF). Diante disso, não
é possível conceber o rápido avanço da covid-19 em terras indígenas como uma Leia +
mera fatalidade. Intrusão nas terras, omissão do poder público e divulgação de
dados questionáveis permanecem como características históricas de um pro- GURGEL, Cristina. Doenças e
cesso de invasão que nunca terminou. curas: o Brasil nos primeiros
Nesse contexto, o movimento indígena e as comunidades se organizam, pres- séculos. São Paulo: Contexto,
sionando a opinião pública e divulgando o que acontece em suas terras, fazen- 2010.
do petições, circulando informativos nas próprias línguas indígenas, propondo
OLIVEIRA, João Pacheco de;
campanhas de arrecadação e, muitas vezes, fechando por conta própria os seus
FREIRE, Carlos Augusto da
territórios à presença externa. No dia 29 junho, a APIB lançou o plano Emer-
Rocha. A presença indígena na
gência Indígena, para o enfrentamento à covid-19, com diretrizes sanitárias, ju-
formação do Brasil. Brasília:
diciais, políticas e de comunicação. No dia 1º de julho, a mesma instituição
Ministério da Educação/Museu
acionou o STF com a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental
Nacional, 2006.
(ADPF) 709, buscando, entre outras coisas, instalação de barreiras sanitárias e
retirada de grupos invasores de terras indígenas. O antropólogo brasileiro Carlos VALENTE, Rubens. Os fuzis e
Fausto (1963-), em matéria publicada no Nexo Jornal em 11 de junho, afirmou que as flechas: história de sangue e
os Kuikuro do Alto Xingu anunciaram que “vão fazer lockdown na aldeia”. Uma resistência indígena na
palavra nova atualizando uma prática que os povos indígenas conhecem há ditadura. São Paulo:
cinco séculos: resistir às consequências trágicas da guerra de conquista. | Companhia das Letras, 2017.

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GEORGINA MARTINS > Curso de Especialização em Literatura Infantil e Juvenil > Faculdade de Letras >
Universidade Federal do Rio de Janeiro | Programa de Mestrado Profissional em Letras (Profletras)

Vírus e bactérias estão na Bíblia?


“TEMA E TREMAM em vossa presença todos os animais da quanto no ato da criação, quando o todo poderoso indica que
Terra, todas as aves do céu e tudo o que tem vida e movimento tudo que existe sobre a terra está sob o domínio do homem,
na Terra. Em vossas mãos pus todos os peixes do mar. crença que funda o imaginário ocidental e determina o poder
Sustentai-vos de tudo o que tem vida, e movimento: eu vos dos colonizadores sobre os povos colonizados, considerados
deixei todas essa coisas quase como ervas” (Gênesis, 9:2-3) 1. selvagens, incultos e descrentes.
Interpretada como verdade absoluta, e não como um conjunto Em 1705, o médico britânico George Cheyne (1672-1743) che-
de relatos ficcionais — literatura, poesia—, a Bíblia outorgou gou ao ponto de afirmar que os excrementos dos cavalos te-
poder sobre tudo que há na face da Terra ao homem do oci­ riam um cheiro bom porque Deus sabia que os homens esta-
dente. Este, por sua vez, tratou de exercê-lo com a pre­po­ riam sempre na vizinhança deles. Clérigos e “intelectuais”
tên­cia e onipotência dos deuses, submetendo a natureza às desse período desenvolviam teorias estapafúrdias sobre a fi-
suas necessidades e aos seus desejos mais cruéis, como o nalidade dos macacos e dos papagaios: ambos existiam ape-
de caçar animais para enfeixá-los em coleções, exibir suas nas para entreter os humanos, bois e cavalos foram criados
cabeças em paredes domésticas, e suas peles sobre os para trabalhar para eles, cães, para mostrar lealdade afetuosa
ombros de damas fúteis. e, por fim, o piolho, para incentivar os hábitos de higiene.
As narrativas do velho testamento não deixam dúvidas no Até mesmo o filósofo e matemático britânico Thomas Ho-
que se referem aos direitos humanos sobre o mundo natural, bbes (1588-1679), que não era lá muito católico, afirmava que
explícitas tanto no contrato de Deus com Noé, após o dilúvio, não poderiam existir obrigações para com os animais, pois
“fazer pactos com bestas é impossível” 2. Desse modo, quando
alguns viajantes começaram a narrar a forma como religiões
orientais pensavam os animais, a resposta cristã foi a de que
o sexto mandamento, Não Matarás, não se aplicava aos ani-
mais e nem àqueles que não eram considerados humanos.
Essa forma de encarar a natureza, sobretudo os animais, levou
o filósofo alemão Arthur Schopenhauer (1788-1860) a afirmar
que os animais viviam num inferno onde os homens eram os
demônios.
Mas eis que chegamos ao século 21, era dos avanços tec-
nológicos, dos homens “civilizadíssimos”, que desdenham de
tudo o que consideram primitivo, mas que continuam desma-
tando florestas e poluindo as águas da face da Terra. Um tem-
po quase no futuro, que nos prometia carros voadores, viagens
interplanetárias e uma inteligência artificial capaz de nos guiar
rumo a um paraíso high-tech. No entanto, entre o prometido
e o vivido, nos pegamos aprendendo outra vez a lavar as mãos,
CRÉDITO: ADOBE STOCK

mas não no sentido bíblico.


Talvez o homem não tenha se dado conta de que Deus pa-
rece não ter incluído os vírus e as bactérias quando fez o pri-
meiro anúncio de estávamos acima de todos os seres:
1
FRYE. Nortrop. O código dos códigos: A Bíblia e a literatura.
São Paulo: Boitempo, 2006. “Façamos o homem como a nossa imagem como nossa
2
THOMAS, Keith. O homem e o mundo natural. São Paulo: semelhança, e que eles dominem sobre os peixes do mar, as
Companhia das Letras, 2010. aves do céu, os animais domésticos, todas as feras e todos os
3
FRYE. Notrop. Op. Cit, p.22 répteis que rastejam sobre a Terra” (Gênesis, IX, 2-3) 3. |

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ZOON

44 | | 367 | JULHO 2020


OSES
CRÉDITO: ADOBE STOCK
O protagonismo humano em
pandemias, epidemias e surtos
Na natureza, as chances de um patógeno, como um vírus, causar danos à saúde
– ou mesmo a morte – de seus hospedeiros específicos (humanos ou animais)
é reduzida. Porém, as doenças infecciosas têm avançado,
e o exemplo mais evidente é a atual pandemia da covid-19.
A razão mais forte para esses cenários está na quebra das chamadas
barreiras sanitárias naturais – principalmente, aquelas entre humanos e
espécies silvestres –, o que é potencializado, por exemplo, por desmatamentos,
assentamentos, caça, garimpos, comércio e consumo de animais silvestres.

Helena Godoy Bergallo


Maria Alice Santos Alves
Departamento de Ecologia, Universidade do Estado do Rio de Janeiro
Walfrido Tomás
Laboratório de Vida Selvagem, Embrapa Pantanal

OS HUMANOS VÊM PRESENCIANDO um avanço de doenças infecciosas que se tornaram ameaças


globais à saúde pública, ceifando vidas e impactando a economia global. Exemplos dessas doenças
são influenza, gripe espanhola, gripe suína, gripe aviária, Aids e ebola.
Essas enfermidades têm em comum o fato de serem zoonoses, ou seja, se originaram em animais

>
silvestres ou domésticos e se espalharam para humanos. As doenças infecciosas matam anualmente 14
milhões de pessoas no mundo – desse total, 10,5 milhões das mortes têm sido atribuídas às zoonoses.

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Desde o início de 2020, temos sido expostos às notícias da pandemia de
ATUALMENTE, NO MUNDO, covid-19, causada pelo vírus SARS-CoV-2, detectado no final do ano passado.
SÃO CONHECIDOS PELO Essa é uma doença zoonótica, que, assim como a SARS (síndrome respiratória
MENOS 139 PATÓGENOS aguda grave, responsável por um surto entre 2002 e 2003 em vários países),
VIRAIS QUE OCORREM tem como causador um vírus da família dos coronavírus. Ambas as doenças
tiveram origem em mercados de alimentos na China, e evidências indicam
EM OUTROS MAMÍFEROS
que os morcegos são os principais reservatórios do vírus.
E QUE PROVOCAM Quando uma doença de fácil e rápido contágio como a covid-19 emerge
ENFERMIDADES NOS em uma pandemia, imediatamente, as pesquisas passam a identificar sinto-
HUMANOS mas; conhecer formas de contágio e grau de isolamento necessário para evitar
a rápida disseminação e o consequente colapso na rede hospitalar; buscar a
origem da doença; isolar o vírus; produzir medicamentos; e desenvolver vaci-
na. Todas essas ações são pós-emergenciais.
Embora governantes, pesquisadores, profissionais da saúde e demais ato-
res ajam rapidamente para controlar surtos de doenças zoonóticas, o ideal
seria evitar o surgimento delas. Conhecer as origens das zoonoses é impor-
tante para prevenir fenômenos como a pandemia de covid-19.
Atualmente, no mundo, são conhecidos pelo menos 139 patógenos virais
que ocorrem em outros mamíferos e que provocam enfermidades nos hu-
manos. Só na Amazônia brasileira, foram isolados, em vertebrados, 196 ar-
bovírus – vírus que são transmitidos aos humanos e outros animais por
mosquitos ou outros artrópodes. A maioria desses vírus é restrita a essa
região, com potencial para se tornar zoonoses.

Qual o risco?
Pesquisadores vêm mostrando que novos surtos de doenças podem ocorrer a
qualquer momento, mas não em qualquer lugar. Estudos preveem que as do-
enças zoonóticas emergentes terão maiores prevalências nas regiões tropicais,
em áreas com maiores densidades humanas e com maior riqueza de mamí-
feros – especialmente, em regiões com degradação ambiental devido às mu-
danças no uso da terra.
Mas o fato de esses patógenos estarem presentes no ambiente natural, em
populações de animais silvestres, não significa que a contaminação humana
ocorrerá obrigatória e facilmente. Cada vírus tende a evoluir de forma a de-
senvolver um acesso que lhe permita infectar um hospedeiro específico ou
um grupo de hospedeiros relacionados.
Em contrapartida, cada hospedeiro desenvolve estratégias para lidar com e
sobreviver à infecção por seu vírus específico. Dessa forma, as chances de um ví-
rus causar danos à saúde ou a morte de seus hospedeiros específicos é reduzida.
O problema ocorre quando uma barreira biológica – que mantém o vírus circuns-
crito a determinada espécie ou conjunto de espécies – é rompida por humanos.

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Barreiras que separam humanos de outras espécies podem ser: i) físicas en-

CRÉDITO: ADOBE STOCK


tre espécies (humanos e animais não humanos), as quais determinam a natu-
reza e o nível de exposição dos primeiros a patógenos zoonóticos; ii) entre in-
divíduos das populações humanas, dificultando a transmissão e evitando epi-
demias e pandemias; iii) imunológicas, que determinam a habilidade do indi-
víduo em resistir à infecção pelo patógeno e sua reprodução no hospedeiro
humano; e iv) moleculares, que impedem que os vírus infectem diferentes es-
pécies, porque seu repertório para invasão celular e sua maquinaria de replica-
ção não permitem – ou seja, nem todas as células são permissivas para o vírus.
Entre os indutores do rompimento dessas barreiras entre humanos e espé-
cies nativas portadoras de potenciais patógenos, estão o desmatamento decor-
rente da expansão ou estabelecimento de novos assentamentos humanos em
áreas naturais ainda bem conservadas, além de intervenções como caça, tráfi-
co de animais (para consumo ou mercado de animais de estimação) e garimpos.
Além desses processos indutores, há outros mecanismos que levam ao
rompimento das barreiras: contato com fezes, saliva, urina, carne e sangue
contendo patógenos, bem como exposição a vetores (mosquitos, carrapatos,
barbeiros etc.).
A combinação de processos indutores e mecanismos de contato pode levar
à transferência de um potencial patógeno para o ser humano, ou seja, para um
hospedeiro que não fazia parte de seu ciclo de transmissão.
No Brasil, a expansão do desmatamento e das atividades de mineração, bem
como a instalação de novas represas em áreas onde o ambiente natural ainda
está conservado (principalmente, na Amazônia), vem exercendo forte pressão
sobre o ambiente e pondo em risco a saúde ambiental – e, consequentemente,
a humana. No primeiro trimestre de 2020, o desmatamento na Amazônia foi de
796,08 km², batendo o recorde do mesmo período nos últimos quatro anos.
Segundo o relatório de 2018 sobre biodiversidade da Organização das Na-
ções Unidas, o desmatamento é uma das principais causas de transmissão de
doenças como malária, dengue, febre amarela e Zika, cujos casos dobraram nas
últimas três décadas no mundo. Soma-se a isso o fato de que as mudanças
climáticas podem levar ao surgimento de novas doenças, bem como ao retorno
e à expansão de doenças restritas ou já controladas.
A caça de animais silvestres é reconhecida como fonte de zoonoses, em ra-
zão tanto da exposição a patógenos nos ambientes utilizados por animais
quanto da presença de patógenos em espécies caçadas. Doenças que incidem
em espécies silvestres podem afetar humanos de forma direta, como leptospi-
rose, brucelose e tuberculose.
No entanto, doenças pouco conhecidas podem resultar em casos graves, le-
vando à morte de pessoas envolvidas com caça ou consumo de carne de ani-
mais silvestres que, diferentemente da carne produzida comercialmente, não
tem inspeção sanitária. Caso conhecido no Brasil (mais especificamente, no
Nordeste) é o de pessoas que caçam tatus infectados por fungo de solo.
A doença conhecida como coccidioidomicose pulmonar – causada pelo fun-
go Coccidioides immitis – ocorre pela aspiração de poeira com a forma infectan-
te do fungo na retirada de animais de tocas, resultando em pneumonia crôni-
ca. Suspeita-se também que uma das doenças que podem ser transmitidas pelo

>
consumo da carne de tatus é a hanseníase (lepra), pois esses animais são hos-
pedeiros da bactéria Mycobacterium leprae.

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No Brasil, o tráfico de animais silvestres retira, por ano, da natureza, milhares ESPÉCIES DE
de espécimes, dos quais parte considerável é comercializada. De 1992 a 2000, mais
de 264 mil animais foram apreendidos – número certamente subestimado, pois
PANGOLINS
depende da intensidade de fiscalização em cada estado. Desse total, 82% foram aves; COMERCIALIZADAS
3%, répteis; e 1%, mamíferos. NOS MERCADOS DA
Aves silvestres podem ser fonte de patógenos que causam doenças em humanos. CHINA TÊM SIDO
A clamidiose é uma doença causada pela bactéria Chlamydia psittaci, caracterizada
CONSIDERADAS
por uma pneumonia de difícil tratamento e transmitida principalmente por psita-
cídeos (periquitos, araras, papagaios etc.). Em 1929, por exemplo, houve um surto de
PROVÁVEIS
clamidiose nos EUA, originado de papagaios importados do Brasil e da Argentina, HOSPEDEIRAS
com posterior expansão mundial. INTERMEDIÁRIAS DO
Os psitacídeos são frequentemente comercializados legal e ilegalmente. Na Ama- SARS-COV-2. ESSES
zônia, entre 2005 e 2014, foram exportados, em média, 12 mil indivíduos por ano,
pertencentes a mais de 50 espécies, originárias principalmente da Guiana, do Peru
ANIMAIS, POR SUA VEZ,
e Suriname – países que têm cotas de exportação. PODEM TER RECEBIDO
Números como esses, aliados à falta de controle sanitário desde a captura até a O VÍRUS DE MORCEGOS
comercialização, podem aumentar o risco de rompimento de barreiras entre essas
aves e os humanos no que se refere às zoonoses.

A covid-19
Talvez, os pangolins sejam hoje o maior exemplo de como o tráfico de animais sil-
vestres não só está associado diretamente com a ameaça de extinção de espécies,
mas também é responsável pela disseminação de patógenos. Espécies de pangolins
comercializadas nos mercados da China têm sido consideradas prováveis hospedei-
ras intermediárias do SARS-CoV-2. Esses animais, por sua vez, podem ter recebido CRÉDITO: ADOBE STOCK

o vírus de morcegos (hospedeiro primário).


A maneira exata de como isso aconteceu ainda é incerta, mas, nos mercados de
alimento, os pangolins podem ter entrado em contato com morcegos para que ocor-

NO BRASIL, O TRÁFICO
DE ANIMAIS SILVESTRES
RETIRA, POR ANO, DA
NATUREZA, MILHARES DE
ESPÉCIMES, DOS QUAIS
PARTE CONSIDERÁVEL É
COMERCIALIZADA

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resse, por ação humana, o rompimento da barreira entre eles. Os pangolins ocorrem na
CRÉDITO: ADOBE STOCK

África e Ásia e são os mamíferos mais comercializados ilegalmente no mundo. Sua carne
pode custar US$ 300/kg, e suas escamas, US$ 3 mil/kg no mercado negro.
Podemos concluir que não são os pangolins e nem os morcegos, no caso da covid-19,
os responsáveis pela pandemia. Estes são, na verdade, vítimas da caça e do tráfico de
animais silvestres. Na China, animais silvestres são comercializados em mercados, fican-
do expostos (sem aparente fiscalização sanitária) em áreas onde circulam pessoas, geran-
do condições para que o SARS-CoV-2 tenha passado de animais para humanos e, poste-
riormente, entre humanos, de forma patogênica.
Primatas, roedores e morcegos – ordens de mamíferos com maior número de espécies
no mundo – são hospedeiros da maioria (76%) dos vírus zoonóticos descritos pela litera-
tura científica. Primatas mantidos como animais de estimação podem transmitir vírus
de doenças como raiva, sarampo, herpes e febre amarela.
Em razão de nosso parentesco com os demais primatas, é alto o risco de transmissão
de vírus. Além disso, também podemos infectá-los com patógenos altamente nocivos.
Exemplo desse processo reverso foi o surto de febre amarela ocorrido no sudeste do Bra-
sil, entre julho de 2017 e junho de 2018, que causou a morte de 482 pessoas que não ha-
viam sido vacinadas. Nesse período, populações de macacos foram afetadas pelo mesmo
surto, incluindo bugios, com uma taxa de mortalidade de 15% nas populações estudadas.
Oito das 10 espécies de mamíferos que mais compartilham vírus zoonóticos com hu-
manos são animais domésticos, que podem transmitir, em média, 19,3 vírus por espécie
– para efeito de comparação, animais silvestres podem transmitir 0,23 vírus por espécie.
Mas é preciso considerar que o rompimento de barreiras entre espécies nativas e huma-
nos pode ter animais domésticos como elo intermediário. Ocorrida essa infecção, ela pode
passar a se disseminar, de forma patogênica, entre humanos.
As zoonoses podem ocorrer também em áreas urbanas, como a criptococose ou do-
ença dos pombos (Columba livia) – causada pelos fungos Cryptococcus neoformans e C.
gattii – e a febre amarela urbana, transmitida pelo mosquito Aedes aegypti.
>
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O MEIO NATURAL Perspectivas
Nesse contexto, é fácil concluir que as ações humanas negligentes são as maiores
NÃO É INÓSPITO, desencadeadoras do surgimento e da expansão de zoonoses, podendo gerar surtos,
INSALUBRE OU epidemias e pandemias. Esses eventos são facilitados por atitudes humanas e de-
PERIGOSO PARA mandas de bens e recursos para suprir uma população crescente.
HUMANOS, COMO Assim, se quisermos um futuro seguro para a humanidade, devemos garantir que,
em áreas naturais ainda bem conservadas e/ou remotas: i) seja interrompido o avan-
PODE PARECER
ço do desmatamento, da urbanização sem controle e o aumento de densidade da po-
QUANDO SE pulação humana; ii) não seja permitido o avanço do garimpo e da caça; iii) não ocorra
EXAMINAM o avanço desnecessário de infraestruturas de transporte e transmissão de energia.
INFORMAÇÕES Além disso, são necessários esforços para: i) aumentar a produção de energia de
SOBRE ZOONOSES fontes limpas e com baixo impacto ambiental; e ii) coibir o tráfico de animais silvestres,
o comércio ilegal de madeira e o consumo de carne sem a devida inspeção sanitária.
Os dados aqui apresentados parecem indicar um cenário futuro assustador. Mas
a boa notícia é que podemos adotar estratégias inteligentes para minimizar os im-
pactos negativos. E, quanto mais cedo fizermos isso, melhor será para a natureza – na
qual, por sinal, estamos incluídos.
É importante lembrar que, tanto nos ‘Objetivos de Desenvolvimento Sustentável’
(ODS) quanto na ‘Agenda 2030’ – dos quais o Brasil é signatário –, consta a necessi-
dade de reduzir a intensidade das mudanças climáticas e a extinção das espécies,
CRÉDITO: ADOBE STOCK

bem como de diminuir os riscos de pandemias e manter os serviços ecossistêmicos


– ou seja, serviços essenciais para a vida humana ofertados pelos ecossistemas da
Terra, incluindo serviços de provisão (populações de peixes, oferta de água e madeira,
solos agriculturáveis); de regulação e manutenção (clima, estocagem e fluxo de água,
polinização, sequestro de carbono e dispersão de sementes); e culturais (paisagens e
valores cênicos, sons da natureza, espaços para observação da natureza), todos esses
permitindo boa qualidade de vida humana.
O meio natural não é inóspito, insalubre ou perigoso para humanos, como pode
parecer quando se examinam informações sobre zoonoses. Pelo contrário, ecossiste-
mas conservados e com relações ecológicas bem mantidas entre organismos são
homeostáticos (ou seja, são equilibrados). São locais que podem e devem ser visitados
e apreciados. Os cuidados que precisamos tomar são relativamente simples e basica-
mente voltados para evitar o rompimento das condições que mantêm microrganis-
mos em seus âmbitos naturais.
Assim, a mensagem que fica de eventos pandêmicos, como a covid-19, é que os hu-
manos não estão separados do resto da natureza e que há interdependência entre os
organismos. Mesmo doenças consideradas meramente ‘humanas’ têm quase sempre
sua origem no rompimento de processos naturais. Essa percepção de que a condição
humana é absolutamente conectada à natureza precisa cada vez mais moldar a forma
como nos relacionamos com as demais espécies e os ecossistemas de nosso planeta.
É uma mudança fundamental para que evitemos ao máximo que nossas ações se
convertam em indutores de catástrofes futuras por causa de escassez de recursos,
degradação ambiental, alterações climáticas ou pandemias – ou de todas essas si-
multaneamente. |

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ADILSON DE OLIVEIRA
Departamento de Física > Universidade Federal de São Carlos (SP)

O desafio para compreender


a natureza
OS FENÔMENOS NATURAIS sempre despertaram nosso in- mo e matemático polonês Nicolau Copérnico (1473-1543) levou
teresse – afinal, muitos deles nos afetam diretamente. Mas sua a um modelo heliocêntrico, com o Sol no centro do Sistema
compreensão foi, como regra, desafiadora. Em um primeiro Solar, e a Terra e os demais planetas descrevendo movimentos
momento, foi natural surgirem explicações baseadas em mitos circulares ao redor dele.
e lendas. Ao olhar para o céu e notar a persistência dos movi- Essa proposta era mais simples e levava a uma descrição
mentos celestes, imaginávamos que lá era a morada dos deuses. mais precisa – mas não completa – dos movimentos planetá-
No alvorecer da civilização helênica (por volta do século 5 rios. À época, também havia as observações astronômicas
a.C.), a observação contínua do céu, somada aos avanços da feitas pelo astrônomo dinamarquês Tycho Brahe (1546-1601).
matemática, permitiu descrever fenômenos planetários a par- Eram as mais precisas até então, mas não explicadas pelo
tir de representações geométricas. Exemplo famoso: a deter- modelo geocêntrico.
minação da circunferência da Terra feita pelo grego Erastós- Brahe propôs uma solução híbrida: mantinha a Terra no
tenes (276-194 a.C.), que, ao observar o comprimento das centro, com a Lua e o Sol a orbitando, mas os demais planetas
sombras projetadas no solstício de verão nas cidades de Sie- girariam ao redor do Sol. Mas essa proposta não era compatí-
na (norte da África) e Alexandria (Europa), calculou a circunfe- vel com suas próprias observações.
rência da Terra com um erro mínimo, em comparação a valo- A resposta final coube ao astrônomo e matemático alemão
res atuais. Com isso, outro grego, Hiparco (190-120 a.C), pôde Johannes Kepler (1571-1630), que trabalhou com Brahe e her-
calcular a distância Terra-Lua com base no tempo de duração dou deste os dados observacionais. Após inúmeras tentativas,
de um eclipse lunar. Kepler propôs que as órbitas dos planetas ao redor do Sol, em
Grande compilação desses conhecimentos foi feita pelo vez de circulares, eram elípticas, com a estrela em um dos
astrônomo grego Claudio Ptolomeu (90-168) em seu livro Alma- focos da elipse.
gesto (O grande tratado). A ideia fundamental era a de que a Kepler constatou que a velocidade com que um planeta
Terra estava estática e no centro do universo, com todos os descreve sua órbita varia em função da distância que este se
astros girando ao seu redor. Mas as trajetórias planetárias se encontra do Sol – no ponto mais próximo, ela é máxima; no
mostravam complexas e exigiram a inclusão de epiciclos (mo- mais distante, mínima. Também mostrou que a razão entre o
vimentos circulares em relação à própria órbita do planeta) cubo do raio da órbita e o quadrado do período de translação
para descrever as ‘laçadas’ que os planetas faziam no firma- era uma constante para todos os planetas.
mento. Isso acabou deixando esse modelo muito complexo. A proposta de Copérnico e as contribuições de Brahe e
Mesmo assim, esse modelo – chamado geocêntrico – se Kepler foram fundamentais para a mudança na compreensão
manteve por quase 1.500 anos. Contudo, um novo olhar ousa- da natureza. Fazendo jus a outros atores importantes para
do sobre esses movimentos planetários lançado pelo astrôno- essa mudança: os italianos Giordano Bruno (1548-1600), que
pagou com a vida por defender o modelo heliocêntrico, e Ga-
CRÉDITO: ADOBE STOCK

lileu Galilei (1564-1632), que, ao introduzir a luneta nas obser-


vações astronômicas, trouxe fortes evidências para a valida-
Todos esses ção dessas ideias.
Hoje, sabemos que o Sistema Solar é um entre os milhares
sistemas planetários de sistemas planetários já descobertos – e, talvez, existam
centenas de milhões só em nossa galáxia. Todos esses siste-
obedecem às leis de mas planetários obedecem às leis de movimento de Kepler. É
movimento de Kepler extraordinário saber que nós, humanos, vivendo em um canti-
nho do universo, fomos capazes de fazer descobertas maravi-
lhosas como essas. |

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JUVENTUDE, DETERMINAÇÃO
E SENSIBILIDADE
Na primeira vez em que colocou os pés em um laboratório, Bárbara de Paula Pires
Franco Guimarães sentiu que poderia ser pesquisadora. Sua intuição estava certa.
Mas as surpresas pelo caminho despertariam também a vontade de ensinar.
A história desta jovem cientista pode inspirar muitas mais

Bárbara de Paula Pires Franco públicas do estado do Rio de Janeiro. ciei o doutorado em fisiologia huma-
Guimarães Algo em mim sempre me direcionou na, também no Ibccf.
Instituto D’Or de Pesquisa e Ensino às humanidades, meu olhar está sem- No final do primeiro ano de dou-
pre voltado às minorias e às questões torado, senti a necessidade de mudar
sociais. Terminei a graduação com de linha de pesquisa. Não foi fácil,
MINHA MÃE, que esteve em jornada menção honrosa, um diploma de dig- precisei de muita coragem. Eu dese-
solo para cuidar, educar e me susten- nidade acadêmica conferido aos me- java trabalhar com seres humanos, in
tar, naquele momento, se viu aliviada. lhores alunos. vivo. Com total apoio do meu orienta-
Eu ingressava em uma universidade dor e da pós-graduação do Ibccf, can-
pública, começaria a minha jornada Esforço, casamento celei minha matrícula na instituição,
na Universidade Federal do Rio de e mudança abri mão da bolsa e fui em busca de
Janeiro (UFRJ) exatamente no curso Emendei a graduação com o mestra- cientistas que atuassem com o que
que tanto queria: educação física. do em fisiologia humana, no Ibccf. eu gostaria de trabalhar na vida. Fi-
Desde o início da graduação estive Fiz a seleção enquanto cursava o úl- quei seis meses nessa procura. Meu
muito voltada para os estudos, tinha timo período – foram seis provas: ex-orientador brincava, dizendo que
a determinação para aproveitar ao uma de cada fisiologia e outra de eu estava fazendo o “dever de casa”
máximo. Já no segundo período, um inglês, tudo feito em dois dias. Não direitinho – visitei vários laboratórios
professor me convidou para partici- passei de primeira. Precisei estudar do Rio de Janeiro.
par das suas atividades de pesquisa. imunologia sozinha, porque não tive
Foi a primeira vez que entrei em um essa matéria na graduação. Na se- E o trabalho virou projeto
laboratório. E foi lá, no Instituto de gunda tentativa, passei no mestrado de vida
Psiquiatria da UFRJ (IPUB), que des- com bolsa do CNPq em regime de Nesse período, fui me conhecendo
pertei para a ciência, em especial dedicação exclusiva. melhor. Decidi que não queria apenas
para a pesquisa no campo da neuro- No ano em que defendi o mestra- pesquisar, queria dar aulas no Ensino
fisiologia, com ênfase nos sistemas do também me casei com o amor da Superior e também transformar vidas,
sensório-motores. minha vida, que conheci quando en- dar oportunidade para outros alunos
Não demorou e fui selecionada trei na graduação. Estudei muito para se formarem – me descobri amante
para bolsista de iniciação científica passar nos primeiros lugares da sele- do colegiado. Também estava decidi-
em neurofisiologia no Instituto de ção de doutorado para ter direito a da de que queria falar sobre ciência
Biofísica Carlos Chagas Filho (Ibccf). uma bolsa – finalmente teria uma para mais pessoas, não somente den-
Conciliava a nova atividade com a pequena taxa de bancada, que pode- tro da universidade.
monitoria da disciplina de neurofi- ria ser usada para financiar a minha Após um período probatório de
siologia e o voluntariado em projetos primeira participação no maior con- sete meses, fiz a seleção para o dou-
de extensão universitária para divul- gresso internacional da minha área. torado em Ciências Médicas no Ins-
gação de neurociências em escolas Consegui a tão esperada bolsa e ini- tituto D’Or de Pesquisa e Ensino, exa-

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CRÉDITO: CEDIDO PELA AUTORA
tamente na  área que queria:  neurofi- torado e já em busca de um pós-dou- Aprendi que, do mesmo jeito que
siologia (com foco nos sistemas sen- torado. Continuarei investindo em existem pedras no caminho, também
sório-motores) e neuroimagem.  Pas- minha carreira, e tenho alguns outros existirão oportunidades, pessoas ge-
sei. Passei. Aquele era o primeiro ano projetos e sonhos também. Mesmo nerosas e incentivadoras que valori-
do doutorado da instituição. Ao mes- que eu passe algum período fora do zarão seu trabalho e confiarão em
mo tempo, outras portas se abriram. país, sinto que aqui é meu lugar. Que- você. Quando você encontrar essas
Comecei a dar aulas no Ensino Supe- ro poder contribuir para o ensino, a pessoas, fique perto delas. Se cheguei
rior aos finais de semana. Foi quando pesquisa e a extensão do Brasil. Quem até aqui, foi porque encontrei pessoas
pude retornar à Escola de Educação sabe em alguns anos volto a esta se- assim no meio do caminho. Sem citar
Física e Desportos (EEFD), onde fiz ção para contar o que aconteceu... nomes, agradeço a todas elas. Espero
minha graduação. Voltar como profes- que leiam este texto, acho que se re-
sora foi muito gratificante. À mesma Gente não nasce pronta conhecerão.
época, juntamente com duas colegas, Venho descobrindo que é caminhan- Gosto muito de um texto do Mario
recebi financiamento da Fiocruz para do que se descobre a caminhada. Que- Sérgio Cortella que diz assim: “Gente
realizar o sonho de levar ciência para ro ver mais mulheres, pessoas pretas, não nasce pronta e vai se gastando;
as favelas da cidade do Rio de Janeiro, pobres, transexuais em uma defesa de gente nasce não-pronta e vai se fa-
através do projeto Rap e Ciência. Mi- doutorado, embora tenha consciência zendo (...) o mais velho de mim (se é
nha forma de ver a vida mudou muito de que estamos ainda distantes disso. o tempo a medida) está no meu pas-
depois dessas vivências. Mas seguiremos na luta pelo investi- sado, não no presente”. Eu sigo essa
Atualmente, estou saindo do dou- mento em políticas públicas. ideia, e vamos em frente! |

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LIÇÕES DE MARIA TIFOIDE
Caso de cozinheira norte-irlandesa com febre tifoide, mas sem sintomas,
foi emblemático no século 19. Pacientes como ela exercem papel importante
na disseminação da atual pandemia

Omar Lupi da Rosa Santos jovem conseguiu, no entanto, deter os gem do surto em sua rica propriedade.
Academia Nacional de Medicina efeitos nocivos da bactéria Salmonella Após checar minuciosamente o esta-
(sorotipo Typhi), já então reconhecida do dos encanamentos, o sistema de
como causa da doença. Mary, porém, esgotos da casa e até o suprimento
NATURAL DA IRLANDA do Norte, continuou a transmitir a enfermida- local de mariscos, Soper encontrou a
Mary Mallon nasceu no mesmo ano de, ainda que estivesse aparentemen- causa na senhorita Mallon. A cozi-
de Mahatma Gandhi, em 1869. Dife- te sadia. Na verdade, ela nem descon- nheira que trabalhara para os Warren,
rentemente do famoso líder político fiava que havia adoecido e que, invo- semanas antes do surto, era provavel-
indiano, Mary teve uma vida bem me- luntariamente, era capaz de passar a mente o vetor.
nos ilustre, mas igualmente peculiar. doença a outras pessoas. Ao pesquisar o histórico de traba-
Emigrou ainda jovem para os Estados lho de Mallon, o engenheiro sanitário
Unidos, aos 14 anos de idade, fugindo Vetor silencioso descobriu que sete famílias para
dos desmandos do Império Britânico. Trabalhou como cozinheira em diver- quem ela cozinhou desde 1900 ha-
Mais essa característica colocou Mary sas casas de família até 1907, época viam relatado casos de febre tifoide:
e Gandhi em rota de convergência. em que sofreu um grave infortúnio. 22 pessoas foram infectadas e uma
Mary Mallon se contaminou com Seis membros da família do rico ban- menina morreu. Mallon era conhecida
febre tifoide em algum momento da queiro Charles Warren contraíram por preparar um delicioso sorvete de
sua adolescência. Caracterizada clini- febre tifoide durante as férias na casa pêssego. Mas, por incluir a fruta crua
camente por temperatura corporal de verão, em 1906. Temeroso de que na sua manufatura, o pêssego conta-
alta, dor de cabeça, diarreia e dor ab- o surto o impedisse de desfrutar de minado com Salmonella era provavel-
dominal, a febre tifoide, na época, era seu refúgio novamente, Warren con- mente a origem principal dos surtos.
vista como uma doença das moradias tratou George Soper, engenheiro sani- Mary Mallon foi então isolada em
aglomeradas, associada à pobreza e à tário que havia investigado focos de um hospital pelas autoridades sanitá-
falta de saneamento. O organismo da febre tifoide, para determinar a ori- rias por três anos, período em que tes-
tou positiva para a bactéria nas fezes
de forma contínua. Em 1909, lhe ofe-
receram fazer uma colecistectomia,
cirurgia de retirada da vesícula biliar,
na tentativa de interromper a conta-
minação de outras pessoas. Mary se
recusou a se submeter ao procedimen-
to, e seu caso, que na época era acom-
panhado de perto pela mídia, acabou
recebendo a alcunha de Typhoid Mary
(ou Maria Tifoide, em português), que
a acompanhou pelo resto da vida.

Liberdade X custódia
Após o longo período de quarentena
forçada, e devido aos apelos jurídicos
da paciente, Mary foi enfim liberada,

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CRÉDITO: WIKIMEDIA COMMONS
com a condição de que não voltasse ela eliminou durante toda a vida a disseminação da covid-19 em vários
a manipular alimentos em nenhuma bactéria Salmonella por sua vesícula países, como o Uruguai, a Coreia do
circunstância. Um grande debate so- biliar. É provável que, se ela tivesse Sul e a Itália.
bre as liberdades individuais surgiu concordado com a cirurgia de vesícula, Mahatma Gandhi faleceu somente
frente à situação, e o governo alegava seu triste destino teria sido diferente. em 1948 e, sob sua liderança, a Índia,
que mantê-la em custódia era uma Desde então, Maria Tifoide é um segundo país mais populoso do mun-
questão de saúde pública em tempos termo usado para designar a pessoa do e onde a febre tifoide foi endêmica
de epidemias. que, aparentemente saudável, é capaz por muito séculos, se libertou um ano
Entretanto, após alguns poucos de transmitir doenças aos demais, es- antes da colonização britânica.
anos, e sem ter outra qualificação pecialmente quando se recusa a fazer O destino de Maria Tifoide foi bem
profissional, Mary voltou a cozinhar. exames ou a tomar atitudes para mi- diferente do de Gandhi, mas, apesar
Em 1915, trabalhou para uma mater- nimizar o risco de propagação de mo- da doença crônica que albergava, vi-
nidade e um hotel, reiniciando a dis- léstias graves. veu quase tanto quanto ele. Pena que
seminação da doença. Nesse novo Mais recentemente e agora, em seu legado não possa ser comparado
episódio, 25 pessoas foram contami- tempos de infecção pelo SARS-CoV-2, ao do grande líder pacifista. Com o
nadas e uma morreu. Por causa disso, o caso de Maria Tifoide passou a ser passar dos anos, sua história se mis-
Mary foi confinada a uma 'quarente- reconhecido como o de um agente turou ao folclore e a notas da mídia,
na' que durou o resto de sua vida. superdisseminador, com impacto real caracterizando uma mulher que a
Faleceu aos 69 anos, vítima de aci- na saúde pública. Pacientes como ela ciên­cia poderia ter salvado e cuja pe-
dente vascular cerebral, agravado por foram identificados na atual pande- culiaridade até hoje não compreen-
pneumonia. Sua autópsia revelou que mia e exerceram papel importante na demos bem. |

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EVO-DEVO E O MITO DE PEGASUS
Reflexões a partir do diálogo entre um professor do
Ensino Médio e uma especialista em biologia evolutiva

Adeilson Batista Lins Ecologia, evolução e possível enxergar estruturas de es-


Mestrado Profissional em Ensino de desenvolvimento pécies já extintas (na época, deno-
Biologia em Rede Nacional (ProfBio)  embrionário minadas “inferiores”). Assim, foi
*Artigo resultante de entrevista com Tiana Essa ramificação da biologia do de- proposto que o desenvolvimento de
Kohlsdorf, pesquisadora da Universidade de senvolvimento começou a ganhar características fenotípicas no em-
São Paulo. Com revisão científica de Kátia forma em discussões científicas no brião está relacionado com fatores
Carneiro, Instituto de Ciências Biomédicas século 19, em debates sobre embrio- hereditários em cada espécie, mas
da Universidade Federal do Rio de Janeiro. logia comparada. Portanto, mais de também reflete as trajetórias evolu-
um século antes do lançamento do tivas e relações de parentesco den-
elucidativo livro Princípios evolutivos, tro de conjuntos de espécies.
PEGASUS, o famoso cavalo com asas, de Peter Calow, em 1983, muitos es- Desde as observações dos fenôme-
é mito ou realidade? Você, provavel- tudiosos apresentaram informações nos naturais, na antiguidade grega,
mente, está pensando “mito, claro”. cruciais para esse campo. Inspirado até as contribuições de Jean-Baptiste
Mas sabe explicar por quê? O que a por Charles Darwin (1809-1882), que de Lamarck (1744-1829), a hereditarie-
natureza tem a nos ensinar sobre propôs uma análise comparativa dade foi colocada como principal fa-
isso? A resposta para esse e outros para o desenvolvimento embrionário tor de transmissão das características
enigmas está na Biologia Evolutiva do dos vertebrados, o zoólogo alemão entre indivíduos de uma mesma es-
Desenvolvimento, conhecida pela si- Ernst Haeckel (1834-1919) apresentou, pécie ao longo das gerações. Darwin e
gla Evo-Devo. em 1866, a ‘teoria da recapitulação’, Alfred Russel Wallace (1823-1913)
Para chegar à resposta sobre o ca- fundamental para a Evo-Devo, na acrescentaram a essa ideia a seleção
valo alado, precisamos sobrevoar a qual defendia que “a ontogênese re- natural, que evidencia as relações en-
história da biologia. O ponto de par- capitula a filogênese”. Simplificando, tre o meio ambiente e os seres vivos.
tida é lembrar que todos os seres vi- quer dizer que as etapas do desenvol- A partir de então, o fenótipo ma-
vos têm características gerais que vimento embrionário dos animais nifestado por um dado genótipo pas-
nos permitem classificá-los e diferen- que surgiram mais recentemente sa a ser substrato para ação da sele-
ciá-los, que são chamadas de fenotí- apresentam características seme- ção natural. Essa ideia, devidamente
picas e, porque se estabelecem a par- lhantes às observadas em outras es- agregada aos conceitos identificados
tir da expressão de genes durante o pécies com origem mais antiga, de por Gregor Johan Mendel (1822-1884),
desenvolvimento, são hereditárias. forma que os estágios ontogenéticos permitiu que William Bateson (1861-
Mas não é só isso. Nem toda a progra- (fases que indicam o estágio do de- 1926), em 1906, identificasse as rela-
mação para a formação de um indi- senvolvimento de embriões) recor- ções de dominância entre genes ale-
víduo está contida nos genes. Há a dam (recapitulam) as relações de pa- los cunhando os termos homozigóti-
influência de fatores ambientais e rentesco entre grupos de seres vivos co e heterozigótico, e que Walter
comportamentais, que se integram (filogênese). As noções de recapitula- Stanboroug Sutton (1877-1916) deter-
com a informação contida no código ção, conforme Stephen Jay Gould, já minasse a existência dos cromosso-
genético. O estudo desse processo de apareciam na obra de Aristóteles. mos a partir de estudos de células
desenvolvimento (ontogenia) e sua Ernst Haeckel utilizou ideias an- reprodutoras de gafanhotos.
comparação entre diferentes espé- teriores ao seu tempo e próximas Finalmente, o elo que conecta a
cies podem evidenciar as conexões também, como os estudos de Da- hereditariedade e a ação ambiental
de ancestralidade entre os seres vi- rwin e Wallace. Ele afirmou que no foi materializado na descrição dos
vos. Esse é o campo da Evo-Devo. desenvolvimento de um embrião é cromossomos, e estudos dos meca-

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CRÉDITO: FLICKR/CREATIVE COMMONS
nismos evolutivos entraram em cena,
revelando a relação de ancestralidade
entre espécies, estudada por diferen-
tes gerações de cientistas.

Caixa de ferramentas
genéticas
Uma das diversas características que
nos permitem aproximar ou diferen-
ciar seres vivos, como os animais, é a
estruturação do plano corporal em
segmentos, ou regiões, como cabeça,
tórax e abdômen. Mas, afinal, o que
tudo isso tem a ver com Pegasus? É o
desenvolvimento desses segmentos
ou regiões que nos permite discutir
se o cavalo alado é mito ou realidade.
Genes, agrupados em conjuntos Por essas semelhanças, esses ge- par de apêndices? A Evo-Devo dá asas
formando uma “caixa de ferramen- nes poderiam compartilhar a mesma à nossa imaginação!
tas”, atuam em diferentes momentos função na formação do olho durante
da vida embrionária. O grupo de ge- o desenvolvimento? Para responder a Evo-Devo na escola
nes da família Hox (homoeóticos), essa pergunta, cientistas introduzi- A gaveta dos fenômenos embrioná-
também chamado homeobox, nos per- ram o gene Pax6 de camundongos no rios, no entanto, não está separada do
mite entender como é codificada a embrião de moscas cegas. Será que as restante. Tudo está em interação
identidade de cada segmento do cor- moscas ganharam olhos de ratos ao constante. Mas isso não é abordado
po de um animal, que é conservada nascer? Não, desenvolveram olhos de no ensino de ciências e biologia. O
tanto em vertebrados como inverte- moscas. Esse experimento fascinante biólogo norte-americano Sean B. Car-
brados. Esses genes dão orientações nos mostra não somente conexões de rol usa o termo ‘divórcio’ para tratar
personalizadas para a formação de ancestralidade entre os seres vivos, desse assunto. Os currículos realizam
cada segmento do corpo para que se como também de que forma o am- uma separação litigiosa, restringindo
desenvolvam em seu devido lugar. biente celular regula o comportamen- a discussão evolutiva aos fenômenos
to dos genes. que a caracterizam e limitando as
Moscas e humanos, A natureza nem sempre precisa imagens que comparam a embriogê-
nem tão diferentes criar novos genes para gerar formas nese de vertebrados aos conceitos de
A mosquinha das frutas, Drosophila específicas. A conservação de um con- homologia (o estudo das semelhan-
melanogaster, ajudou a ciência a des- junto deles garante que a natureza se ças entre diferentes organismos) e
vendar muitos segredos da genética, encarregue de promover variação a analogia (semelhanças morfológicas
fornecendo instrumentos úteis para a partir das combinações de genes exis- entre estruturas), deixando homolo-
Evo-Devo. Esse inseto contribuiu tentes, nas diferentes espécies. gia profunda (deep homology) para o
para entendermos como estruturas Mas, e quanto a Pegasus? É mito, Ensino Superior.
complexas, a exemplo do olho, se de- pois cavalos não possuem nem a iden- Se a escola investir em discussões
senvolvem. Primeiro os cientistas tidade de segmento para o código ho- sobre ambiente e saúde, genética e ca-
descobriram que o gene Hox chama- meobox que regula o surgimento de um racterísticas dos seres vivos, desenvol-
do eyeless na Drosophila é homólogo terceiro par de apêndices (asas), nem vimento e controle da expressão gêni-
ao gene Pax6 de camundongos, evi- o sinal molecular para o desenvolvi- ca, e os postulados de evolução em
denciando que vertebrados e inverte- mento dessas estruturas. Mas, e se caráter indissociável da modulação
brados se diversificaram a partir de fôssemos capazes de modificar o códi- gênica regida pelos fatores abióticos, a
um ramo ancestral comum. As mos- go de genes homeobox do embrião de Eco-Evo-Devo será contemplada em
cas mutantes para eyeless não têm um cavalo e inserir nele o código mo- sua essência e poderá estar presente
olho, enquanto seres humanos mu- lecular equivalente às asas de uma ave em todo o ciclo do Ensino Médio, qui-
tantes para Pax6 têm glaucoma. com a informação para um terceiro çá do Ensino Fundamental II. |

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ENSAIO SOBRE
mentos do aluno sobre as plantas.
A metodologia investigativa tam-
bém induz a aprendizagem significati-

A CEGUEIRA BOTÂNICA va, pois transforma o aluno no prota-


gonista do próprio conhecimento. Exe-
cutar atividades de pesquisa gera, por-
Atividades práticas abrem os olhos dos estudantes tanto, maior adesão às práticas escola-
res e amplia a participação dos jovens,
para a vegetação próxima a suas comunidades e produzindo resultados efetivos.
ensinam sobre a importância das plantas para a Essa experiência foi feita com
manutenção de toda a vida no planeta uma turma do segundo ano do Ensi-
no Médio de uma escola pública no
município de Fortaleza de Minas, em
Fernanda Aparecida Soares Costa passarão a relacionar o reino vegetal à Minas Gerais. Os alunos observaram,
Mestrado Profissional em Ensino de manutenção da vida. listaram, mapearam e pesquisaram a
Biologia (Profbio) identificação das espécies arbóreas
Denise Maria Trombert Oliveira Quais árvores são suas presentes no entorno de suas resi-
Departamento de Botânica, vizinhas? dências. A proposta de desenvolvi-
Universidade Federal de Minas Gerais Trabalhar o conteúdo de botânica no mento baseou-se no protagonismo
Ensino Médio precisa ser prazeroso, o juvenil e foi desenvolvida durante as
que é tarefa fácil de executar, já que as seis aulas descritas a seguir. Para a
RECONHECER O VALOR das plantas plantas estão presentes em nosso coti- identificação das espécies amostra-
para a sobrevivência e manutenção do diano. Basta olhar ao redor, por exem- das, grupos de alunos compareceram
equilíbrio ambiental é necessário e plo, para observar a arborização urba- na escola no contraturno.
urgente, especialmente para os jovens. na. E esse é um tópico muito interes-
Os vegetais são essenciais não apenas sante para ser desenvolvido de forma Como funcionou o
por fornecerem oxigênio, mas, tam- investigativa com os estudantes. O trabalho na prática?
bém, por suas aplicações comerciais e assunto não costuma ser trabalhado Na primeira aula, para problematizar
industriais. Eles oferecem alimentos, como conteúdo no ensino de biologia, conceitos sobre a arborização urbana,
medicamentos, matéria-prima para mas sua inclusão pode favorecer a con- foram feitas as seguintes perguntas
tecidos (fibras), madeira, combustível solidação e a aplicação dos conheci- norteadoras:
e lazer nas áreas naturais. Por que, en-
tão, os estudantes têm tão pouca in-
formação e contato com as plantas,
um fenômeno que já está sendo cha-
mado de ‘cegueira botânica’?
A falta de conhecimento prático é
um dos obstáculos. Para nos aproxi-
mar das plantas, é necessário reconhe-
cê-las como seres vivos e entender que
possuem um ciclo de vida, são forma-
das por células, possuem metabolismo,
respondem aos estímulos do ambien-
te, evoluem e são fatores bióticos rele-
vantes na constituição dos ecossiste-
mas. Apesar disso, os professores op-
tam, em alguns casos, por não traba-
lhar esse conteúdo no Ensino Médio Figura 1. Croqui
ou por deixá-lo para o final do ano le- elaborado por aluna
tivo, o que acaba por simplificá-lo ao residente na zona rural
máximo. Assim, dificilmente os alunos

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CRÉDITO: IMAGENS FORNECIDAS PELOS AUTORES
• Vocês sabem o que é arborização
urbana?
• Qual é a importância das árvores
para o município?
• Será que o município de Fortaleza
de Minas é arborizado adequada-
mente?
Diante dessas questões, houve de-
bate, e os alunos levantaram hipóte-
ses. Também elaboraram um questio- Figura 3. Quantidade de indivíduos amostrados por espécie. Por estarem em número
nário único para aplicar aos vizinhos extremamente maior, as palmeiras foram excluídas do gráfico, para facilitar a visualização
e coletar dados sobre cada espécime da presença das outras espécies
de planta amostrado.
No trabalho de campo, os alunos
que residem na zona urbana realiza-
ram um levantamento das árvores da
rua onde moram. Os alunos residen-
tes na zona rural fizeram um levan-
tamento de árvores próximas a sua
residência. Os alunos fizeram o regis-
tro fotográfico dos espécimes analisa-
dos e distribuíram em um croqui (de-
senho) da rua (zona urbana) ou do
entorno (zona rural) de sua residên-
cia (figura 1). Figura 4. Depois das palmeiras, as espécies mais frequentes registradas na arborização
Na segunda e terceira aulas, os alu- urbana foram: a) murta (Murraya paniculata); b) rosedá (Lagerstroemia indica); e c) oiti
nos, após análise dos dados coletados, (Licania tomentosa)
apresentaram seus relatórios indivi-
duais e localizaram, no mapa do mu- Vale ressaltar que a amostragem da três ruas sem árvores.
nicípio, os pontos que representam as do trabalho foi pequena, pois mui- Na quarta e quinta aulas, os alunos
árvores encontradas por eles (figura 2). tos alunos moram na mesma rua foram levados à sala de informática da
Nessa fase, houve discussão sobre as que seus colegas. Foram observadas escola para pesquisar a identificação
observações dos estudantes durante a 14 ruas do município e 238 indiví- das espécies por eles amostradas,
atividade de campo, suas dificuldades duos arbóreos, sendo 145 palmeiras comparando as imagens e os nomes
e os resultados encontrados. (figura 3). Foram identificadas ain- populares obtidos por meio do ques-
tionário com os vizinhos (figura 4).
Na sexta aula, a turma foi orienta-
da a confeccionar um relatório único,
que, posteriormente, foi entregue ao
prefeito pelos próprios alunos, em
um exercício de cidadania e contri-
buição para o planejamento da arbo-
rização do município.
Depois desse trabalho, os alunos
mudaram sua visão das plantas, o
que caracteriza essa atividade como
eficiente para minimizarmos a ce-
Figura 2. Mapa do município gueira botânica. Além disso, os estu-
com a localização das árvores dantes se tornaram replicadores do
pesquisadas pelos alunos olhar atento à arborização urbana,
ampliando sua participação cidadã. |

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VALEU A PENA O SANGUE
DERRAMADO?
Destacamento Blood, o mais recente filme do ator e cineasta Spike Lee, é o primeiro
filme a tratar a guerra do Vietnã a partir do ponto de vista racial e pela perspectiva
afro-americana, o que em si já bastaria para justificar sua importância

Jorge Lucas Maia Apesar de o tema em si já ter sido com as quais precisam lidar ao longo
Grupo de Estudos e Pesquisas em amplamente explorado, Destacamento da trama. Vai ficando cada vez mais
Educação Antirracista Blood (Da 5 Bloods) é o primeiro filme evidente que o filme tem como pilar
Universidade Federal do Rio de Janeiro a tratar a guerra do Vietnã a partir do central a história de Paul, um homem
ponto de vista racial e pela perspectiva atordoado, que carrega consigo os so­
A GUERRA DO VIETNÃ é tema re­cor­ afro-americana, o que em si já bastaria frimentos causados pelos traumas,
rente nos roteiros cinema­tográfi­cos para justificar sua importância. culpas, perdas e amarguras de ter dado
estadunidenses desde o final dos anos À primeira vista, é a história de tudo de si em defesa de um país racis­
1960. Assistimos a sucessos históricos quatro amigos veteranos – Paul, ta que sempre o tratou como escória.
como Apocalypse now e Rambo: first Eddie, Otis e Melvin – que voltam ao
blood. Na atualidade, o tema ainda Vietnã, depois de quase 50 anos, para Referências mais que
deixa suas marcas – é o caso da série resgatar os restos mortais do quinto propositais
de TV This is us (2016-2020), em que componente dos Bloods – Norman. Spike Lee, o diretor, esbanja referên­
Jack Pearson, um ex-combatente, vive Para além do ato de honra e lealdade cias artísticas e históricas. Exemplo
sob a sombra dos traumas psico­ a Norman, eles têm ainda uma se­ disso é a reverência a Francis F. Cop­
lógicos deixados pela guerra. Todas gunda intenção não tão etérea quan­ pola e o clássico Apocalypse now nas
essas produções têm em comum a to a primeira: resgatar uma caixa cenas da selva, utilizando transições,
exposição dos horrores e danos pes­ cheia de ouro enterrada na selva vie­ texturas e tonalidades carregadas em
soais causados aos egres­sos do con­ tnamita desde os tempos da guerra. amarelo e verde, coroadas com o so­
flito, que, despe­da­çados por dentro, Uma verdadeira caça ao tesouro. brevoo da floresta vietnamita ao som
têm dificuldades de se desven­cilhar No entanto, o retorno ao cenário do de Cavalgada das Valquírias, para que
das memórias aterrori­zantes e voltar conflito reacende memórias sensí­veis não restem dúvidas de sua intenção
a levar uma vida normal. e feridas não curadas daquele período, em prestar tal homenagem.

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É notável a preocupação do di­ diria em público. Não há escapató­ primeiro soldado negro a receber me­

CRÉDITO: DIVULGAÇÃO
retor em produzir um cinema for­ ria, a cumplicidade é inevitável. dalha de honra por bravura na guerra
mativo, contar histórias ocultadas do Vietnã em abafar a explo­são de
ou, ainda, recontar histórias dis­tor­ Abordagem inédita uma granada com o próprio corpo,
cidas por narrativas racistas, foca­ Em Destacamento Blood, o contraste morrendo para salvar seus compa­
lizando as experiências negras, em entre progresso e miséria, que marca nheiros, além de outros personagens
suas complexas e múltiplas pos­si­ as décadas de 1960 e 1970 nos Estados e fatos históricos inse­ridos no roteiro
bilidades de ser. Destacamento Blood Unidos, percorre toda a narrativa. As de maneira direta ou indireta em
tem recursos que são marca de Spike primeiras imagens da chegada huma­ busca de um objetivo evidente: ree­
Lee: cuidadosa exploração de ar­ na à lua, os protestos do movimento ducar nossos olhos e ouvidos para
quivos e estudos, no intuito de apre­ negro, as cenas da guerra, a pobreza perceber a importância negra e as
sentar uma seleção refinada de nos bairros negros e as falas marcan­ suas contribuições para a história
obras artísticas, biografias e histó­ tes de personalidades que se opu­ dos Estados Unidos.
rias que deseja que o público conhe­ nham ao combate no Vietnã – como Em poucas palavras, o filme vale a
ça. Tudo inserido de maneira explí­ Muhammad Ali, Angela Davis, Bobby pena por sua abordagem inédita de
cita na montagem, para que reconhe­ Seale e Malcolm X – abrem o filme. E um tema já tão banalizado e, princi­
çamos suas fontes. O que pode ser a questão logo colocada é: “por que palmente, pelo desafio que propõe: a
considerado o mais íntimo e ousado nós, negros, sempre sacrificamos nos­ flexibilização de nossas verdades
de seus recursos é o momento em sas vidas por uma ‘América’ que nos cristalizadas. É um convite a conhe­
que deixa espectador e protagonis­- vira as costas?”. Tudo ao som delicio­ cer e incorporar outros olhares, igual­
ta a sós. Olho no olho, na intimida­- so, e ácido, de Marvin Gaye (1939-1984). mente ou mais verdadeiros do que
de de uma conversa a dois, ele (ou Ao longo da trama conhecemos aqueles que aprendemos quase que
ela) confessa tudo aquilo que jamais um pouco sobre Milton L. Olive III, naturalmente a ter. |

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UM CONVITE À TRANSFORMAÇÃO
Livro problematiza as causas e consequências do racismo na sociedade e reforça a
importância da participação de cada um de nós para construir uma nova realidade

PEQUENO MANUAL ANTIRRACISTA


Djamila Ribeiro
Companhia das Letras, 2019, 136p.

O Brasil tem visto o aumento da visibilidade do tema


‘antirracismo’, muito em função da luta histórica de mu-
lheres e homens intelectuais e militantes negros por equi-
dade racial em diversas dimensões da sociedade. O livro
da filósofa e ativista Djamila Ribeiro, lançado em novem-
bro de 2019, compõe essa rede e é um exemplo de inicia-
tiva gestada pela indignação, pela articulação e pelo pen-
samento estratégico dentro da luta antirracista.
O clamor de que ‘#VidasNegrasImportam’ (do inglês,
#BlackLivesMatter) conquistou grande visibilidade nesse
último mês de junho, tanto nas mídias sociais quanto nos
meios de comunicação tradicionais, por meio do uso des-
sa hashtag e de coberturas jornalísticas de grandes conglo-
merados. A circulação massiva de imagens de indignação
e revolta, mas também de força e capacidade de articula-
ção, afetou uma série de novos sujeitos, que, se antes es-
tavam fora dos círculos de discussão sobre a questão racial,
agora começam a se atentar para essa luta. É nesse con-
texto, em que o antirracismo emerge como questão para
tanta gente, que o Pequeno manual antirracista atinge o topo
da lista de livros não-ficcionais mais vendidos do Brasil.
Trata-se de uma obra forte e com muita energia. A lin-
guagem é direta, e a autora não faz cerimônias ao pro-
blematizar as causas e consequências do racismo, falan-
O GENOCÍDIO DA POPULAÇÃO NEGRA, em curso no do abertamente palavras como ‘branco’, ‘negro’, ‘racismo’
mundo, vem continuamente acrescentando pressão ao e ‘racista’, e indicando ainda, conforme seu aprendizado
contexto de profundas desigualdades raciais presentes na com o feminismo negro, a importância de nomear as
sociedade. Em 2020, ano que se estabeleceu como um ca- opressões.
talisador de tensões sociais – após o assassinato do afro-
-americano George Floyd por um policial nos Estados Uni- Racismo estrutural como ponto de
dos, filmado e reproduzido pelas mídias digitais centenas partida
de milhões de vezes –, a pressão, que já era grande, foi Baseando-se na ideia de que o racismo é estruturante da
potencializada, tornando-se disrupção social e incendian- sociedade, ou seja, ele comanda o ‘piloto automático’ social,
do o debate sobre racismo e antirracismo em várias partes Djamila Ribeiro convida todos os leitores a se questiona-
do mundo. Essa catarse mundial vem ao encontro, no Bra- rem não sobre culpa, mas sobre suas responsabilidades
sil, do nosso próprio estado de calamidade racial, em que diante do quadro sócio-racial que se apresenta: “Ainda que
contamos diariamente corpos de meninas e meninos ne- uma pessoa branca tenha atributos morais positivos – por
gros, como os de Ágatha, Miguel e João Pedro. exemplo, que seja gentil com uma pessoa negra –, ela não

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CRÉDITO: DIVULGAÇÃO

só se beneficia da estrutura racista como muitas vezes, los começam com verbos no imperativo: informe-se, en-
mesmo sem perceber, compactua com a violência racial”. xergue, reconheça, perceba, apoie, transforme, leia, ques-
Um grande ponto positivo desta obra é que observar o tione, conheça e combata.
racismo estrutural é apenas um ponto de partida. A auto- Esse aspecto inicial dá a tônica da leitura do livro. O
ra segue apresentando ao leitor que deseja se inserir nes- Pequeno manual antirracista não é uma obra para simples
se debate ferramentas mais objetivas, que possibilitam o contemplação; ao contrário, ela abre caminhos, contribui
começo de uma transformação exatamente a partir de para o movimento, indica redes e ações.
onde se está. Esse não se trata de um livro do qual você, leitor, deve-
Quanto ao leitor, ao se questionar sobre seus privilégios rá sair tranquilo. Mas tudo bem. É a desestabilização de
ou sobre o racismo que incide sobre sua existência, ele certezas que possibilita novas realidades. |
precisa, por sua vez, entender que apenas a leitura de um
livro não o faz antirracista. Por isso, apesar do texto curto Thayara Cristine Silva de Lima
e bem direto, a autora se utiliza de sofisticada estratégia Grupo de Estudos e Pesquisas em
que pretende instar a sociedade à ação. Isso pode ser per- Educação Antirracista,
cebido desde o sumário, onde vemos que todos os capítu- Universidade Federal do Rio de Janeiro

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MARCO MORICONI
Instituto de Física | Universidade Federal Fluminense

Pesando bolinhas

ARRUMANDO A CASA, achamos 10 potinhos com deze­- Vamos complicar um pouco. E se não soubéssemos
nas de bolinhas de gude cada. Um bilhete diz: “Um dos quantos potinhos contêm bolinhas de gude falsas?
potinhos contém bolinhas de gude falsas, pesando 10,1 gra­ A ideia anterior não funciona imediatamente, pois, se ti­­-
mas cada. Os outros nove potinhos contêm bolinhas ver­ ver­mos bolinhas falsas no primeiro e segundo potinho, o re­
dadeiras, pesando 10 gramas cada. Descubra qual potinho sul­tado final seria 550,3 gramas, que é compatível com a pos­
tem as bolinhas falsas… com uma pesagem apenas. Por quê? si­bilidade de apenas o terceiro potinho conter bolinhas falsas.
Por que não? Hahaha”. Mas a ideia pode ser adaptada. Temos que descobrir
Fiquei intrigado. Desafio do passado? Delírio? Um bom quantas bolinhas teríamos que tirar de cada pote, para que
problema, isso sim. a pesagem final nos mos­
Primeiramente, é fácil trasse diretamente quais
se convencer de que é potinhos contêm as falsas.

DESAFIO
possível encontrar o pote Uma maneira de fazer
com as bolinhas falsas. isso é retirando uma bo­
Se pesarmos apenas uma Como resolver o linha do primeiro potinho,
bolinha de um potinho de mesmo problema duas bolinhas do segundo;
cada vez, em algum mo­ supondo que a quatro do terceiro; oito do
mento nos depara­remos bolinha de gude quarto – ou seja, sempre
com uma bolinha falsa. falsa é mais leve, dobrando – até 512 boli­
No melhor cenário, acha­ pesando nhas do décimo potinho. O
mos a falsa na primeira 9,9 gramas? nú­mero final nos permitirá
pesagem. No pior... só descobrir quais potinhos
depois da nona pesagem têm bolinhas falsas. Por
– afinal, se as primeiras exemplo, se o peso for
nove pesagens derem 10 gramas, o potinho com as bolinhas 550,5 gramas, a única possibilidade é ter bolinhas falsas no
falsas tem que ser o último. primeiro e no terceiro potinhos.
Mas, com uma balança – digamos, digital –, podemos fazer Por quê?
melhor e resolver o mistério com... uma pesagem apenas! A explicação é tão interessante que… sim, merece uma
Para isso, vamos fazer o seguinte: marcamos os potinhos coluna só para ela! Dica: números binários. Se ficou
de 1 a 10 e pegamos uma bolinha do pote 1; duas do pote 2; curioso(a), ótimo! Na próxima coluna, continuamos.
e assim por diante. Ao todo temos 1 + 2 + 3 + … + 10 = 55 Mas mistério mesmo é… quem escreveu aquele bilhetinho? |
bolinhas de gude. Se todas fossem ‘bolinhas honestas’, te­
ríamos 550 gramas.
Mas, como há bolinhas mais pesadas, o peso será 550 + SOLUÇÃO DO DESAFIO PASSADO > Partindo da
alguma coisa. Quanto é esse ‘alguma coisa’? Se a bolinha fal- suposição de que existe um quadrado vermelho que
sa veio do primeiro pote, é 0,1 de grama; se do segundo po- satisfaz a nossa equação geométrica, podemos
tinho, 0,2 de gramas. E assim por diante. analisar quadrados de lados 1, 2, 3…, e assim por
Então, basta ver o quanto o peso passou de 550 gramas diante, até encontrar a primeira solução.
para sabermos qual potinho contribuiu com a bolinha de Por construção, essa é a menor possível. Por isso,
gude falsa! Por exemplo, se a pesagem fosse 550,7 gramas, podemos supor que começamos nosso argumento
isso significaria que o pote número sete é o que contém as usando esse ‘quadrado mínimo’.
bolinhas falsas.

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