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CIÊNCIA E POLÍTICA
EM TEMPOS DE
NEGACIONISMO
O INSTITUTO CIÊNCIA HOJE é uma organização sem A CIÊNCIA TEM OCUPADO BOA PARTE dos debates nas
fins lucrativos que publica as revistas Ciência Hoje e
Ciência Hoje das Crianças.
redes sociais e nos noticiários. Ainda assim tem sido di-
fícil convencer os brasileiros da necessidade de isolamen-
DIRETORIA
to social enquanto a pandemia continua a avançar. Por
Presidente | Alberto Passos Guimarães Filho (CBPF)
Diretores | Andrea T. Da Poian (UFRJ), Diego V. Be- que o discurso científico é ouvido, mas não basta para
vilaqua (Fiocruz) e Marco Moriconi (UFF). Convidado induzir comportamentos? No artigo de capa desta edição,
especial: Carlos Medicis Morel (Fiocruz).
Conselho consultivo | Aldo Dutra (Inmetro), Georgia temos que o impulso de “voltar à normalidade” em par-
Pessoa (FRM), Débora Foguel (UFRJ), Eduardo Fleury te se explica pela necessidade dos que não têm meios
Mortimer (UFMG), Gustavo Balduino (Andifes), José
Murilo de Carvalho (EGN e ABL), Reinaldo Guimarães materiais para sobreviver na quarentena. Mas há outras
(Uerj), Roberto Lent (UFRJ), Roseli de Deus Lopes questões em torno da ciência e da política em tempos
(USP) e Walter Araújo Zin (UFRJ).
Superintendente executiva | Bianca Encarnação
de negacionismo.
Superintendente de projetos educacionais | Ricardo O tema ‘a covid-19 e os povos indígenas’ também está
Madeira
em pauta. A doença, que avança nas aldeias, não pode
CIÊNCIA HOJE ser considerada uma fatalidade diante de fatos como a
Editores científicos | Ciências Humanas: Carla invasão de terras indígenas por garimpeiros que disse-
Madureira (UFRJ) e Mônica Lima (UFRJ) | Ciências
Exatas: Claudia Rezende (UFRJ), Diego V. Bevilaqua minam o vírus, a falta de assistência médica adequada
(Fiocruz), Marco Moriconi (UFF) e Victor Giraldo (UFRJ) e a omissão do poder público, entre outros fatores.
| Ciências Biológicas: Andrea T. Da Poian (UFRJ),
Franklin Rumjanek (UFRJ) e Leandro Lobo (UFRJ). Em um terceiro artigo em torno da pandemia, dis-
cute-se que os efeitos e os impactos sociais causados
REDAÇÃO
Editora executiva | Bianca Encarnação
pela covid-19 não são os mesmos para todas as popula-
Subeditora | Thaís Fernandes ções ou grupos. Estatísticas do Ministério da Saúde
Editores de texto | Alicia Ivanissevich, Bianca
apontam que negros são a maior parte dos mortos. A
Encarnação, Cássio Leite Vieira, Thaís Fernandes e
Valquíria Daher. explicação evidentemente passa pelo fato de que, quan-
Revisora | Laura Chaloub to piores as condições materiais de vida de certos gru-
Contato | redacao.cienciahoje@gmail.com
pos, pior o impacto da doença em suas chances de re-
Arte | Ampersand Comunicação Gráfica S/C Ltda. cuperação e sobrevivência.
(ampersand@amperdesign.com.br)
Direção de arte | Claudia Fleury e Henrique Viviani Seguimos dando voz e vez à ciência brasileira.
Designer assistente | Laura Fleury
Endereço: Instituto Ciência Hoje | Av. Venceslau Brás nº 71, casa 27, Rio de Janeiro-RJ, 22290-140 | Fone: 55 21 2109-8999 | 0800 727 8999
| contato@cienciahoje.org.br | Ciência Hoje digital: www.cienciahoje.org.br
6 | ENTREVISTA
O antirracismo como sentido
da vida | Karine Teixeira Damasceno,
30 | ARTIGO
PUC-Rio
O VÍRUS DO RACISMO E A COVID-19
Marcio André dos Santos, Unilab
2 | 367
362 | JULHO
JANEIRO-FEVEREIRO
2020 | 2020 |
11 | GEOINFORMAÇÃO
A valorização das representações
espaciais | Carla Madureira Cruz, UFRJ
51 | DESVENDANDO O COSMOS
O desafio para compreender
a natureza | Adilson de Oliveira, UFSCar
23 | CAÇADORES DE FÓSSEIS
Nascido do fogo |
Alexander W. A. Kellner, Museu Nacional
45 | LITERÁRIA
Vírus e bactérias estão na Bíblia? |
Georgina Martins, UFRJ
64 | QUAL É O PROBLEMA?
Pesando bolinhas | Marco Moriconi, UFF
52 | MULHERES NA CIÊNCIA
Juventude, determinação e sensibilidade
Bárbara de Paula P. F. Guimarães,
Instituto D’Or
54 | BASTIDORES DA CIÊNCIA
Lições de Maria Tifoide
Omar Lupi da Rosa Santos, ABM
56 | OUTRAS PALAVRAS
Evo-Devo e o mito de Pegasus
Adeilson Batista Lins, Profbio
58 | INFINITAS POSSIBILIDADES
Ensaio sobre a cegueira botânica
Fernanda Aparecida Soares Costa, Profbio;
Denise Maria Trombert Oliveira, UFMG
60 | NA TELA
Valeu a pena o sangue derramado? –
sobre o filme Destacamento Blood
Jorge Lucas Maia, UFRJ
62 | NA ESTANTE
Um convite à transformação – sobre o
livro Pequeno manual antirracista
Thayara Cristine Silva de Lima, UFRJ
O VÍRUS SARS-COV-2 ao entrar no mediadores inflamatórios. Alguns dos doenças prévias, como diabetes e hi-
organismo, normalmente pelas vias mediadores mais conhecidos são pro- pertensão, ocorre uma reação infla-
aéreas (pulmão), se liga a um receptor teínas chamadas citocinas, responsá- matória exagerada, resultante de de-
chamado ACE2 na superfície de dife- veis por iniciar vários processos que sequilíbrio e falha nos mecanismos
rentes tipos de células, como as epi- culminarão na eliminação do vírus. de controle da resposta inflamatória.
teliais (nas quais revestem as vias Um desses processos é o recrutamen- Essa grande liberação de mediadores
aéreas), as alveolares (onde ocorre to de mais células de defesa da cor- inflamatórios, principalmente das ci-
troca gasosa), as endoteliais (que re- rente sanguínea para o local (neutró- tocinas, recebe o nome de “tempesta-
vestem o interior dos vasos sanguíne- filos, monócitos e linfócitos). Esses de de citocinas”. Esse fenômeno é
os) e os leucócitos, que são as células mediadores e células são muito im- perigoso porque as células ativadas
de defesa (algumas residentes nos portantes para induzir a morte das pelas citocinas liberam outros media-
tecidos, como os macrófagos e os mas- células infectadas com os vírus, eli- dores – como os radicais livres e as
tócitos). Logo em seguida, o vírus en- minando-as e impedindo assim que redes extracelulares de DNA de neu-
tra na célula, onde será reconhecido o vírus se replique e infecte outras trófilo (NET) – também em grande
por moléculas que desencadeiam a células vizinhas. Mas, em alguns ca- quantidade, que são tóxicos para os
produção de grandes quantidades de sos – sobretudo em indivíduos com microrganismos, mas também para as
células sadias do tecido. |
Valquíria Daher
Instituto Ciência Hoje
CRÉDITO: FOTO SEDRIK MILES
A historiadora Karine Teixeira Damasceno mostra, em sua tese de doutorado, a trajetória de mulheres negras escravizadas, li-
bertas e livres que foram protagonistas na luta por sua liberdade, de seus familiares e de outras pessoas de suas comunidades.
Movendo ações de liberdade na Justiça ou negociando cartas de alforria, elas foram fundamentais no processo que fez ruir o
sistema escravista no Brasil no século 19. Mais de 130 anos depois, em meio à pandemia de covid-19, que atinge mais duramen-
te a população negra, e dos protestos contra o assassinato de George Floyd, que tomaram ruas e redes sociais nos Estados
Unidos e no mundo, Karine, que é filiada ao Movimento Negro Unificado (MNU) e integrante da Rede de Mulheres Negras da Ba-
hia, compara os dois momentos: “A luta contra o racismo nos tempos atuais é o sentido da nossa vida assim como era, para os
que viveram a escravidão, a luta pela liberdade”. Nesta entrevista, a pesquisadora, que é doutora pela Universidade Federal da
Bahia e faz pós-doutorado no Programa de Pós-Graduação em História Social da Cultura da PUC-Rio, compara os movimentos an-
tirracistas de Brasil e EUA, fala do racismo acadêmico, avalia a importância das ações afirmativas, destaca a importância de estu-
dar a África e reafirma o protagonismo das mulheres. “Nós, mulheres negras, saímos dos bastidores e, mais do que nunca, estamos
na cena pública, apresentando para a sociedade o nosso ponto de vista, tentando contribuir para nossa própria libertação das
opressões, do sexismo, do racismo, e propondo mudanças nos mais diversos setores”.
Rafael de Souza Laurindo Dieta à base de frutos morcegos. O mais comum é por ana-
Núcleo de Pesquisa Artibeus lituratus é um morcego fru- lise fecal: os indivíduos capturados
Instituto Sul Mineiro de Estudos e Conser- gívoro de grande porte, comum em com auxílio de redes de neblina (um
vação da Natureza áreas preservadas, ambientes rurais tipo de armadilha) são colocados em
e cidades de todo o Brasil. O fato de sacos de pano até defecarem – algo
ter uma dieta generalista, sendo ca- em torno de 30 minutos – e, poste-
O PROCESSO de urbanização leva à paz de consumir grande diversidade riormente, os pesquisadores coletam
perda total ou ao isolamento de frag- de frutos, é uma das características essas fezes para identificar em labo-
mentos de vegetação nativa que fi- que podem beneficiar a adaptação da ratório as sementes presentes na
cam ilhados nas cidades. Como refle- espécie a ambientes com diferentes amostra.
xo dessas modificações, há um declí- graus de interferência antrópica (hu- Outro método usado é a busca de
nio na biodiversidade quando com- mana), como centros urbanos. fezes e restos de alimentos em abri-
paramos as áreas urbanas com os Apesar da preferência por frutos gos. Nesse caso, costuma colocar-se
ambientes naturais. Isso ocorre, em de embaúbas, como Cecropia glaziovii um pano branco embaixo do abrigo
parte, porque muitas espécies não e Cecropia pachystachya, e figueiras, de uma espécie de morcego para co-
conseguem sobreviver em centros como Ficus gomelleira, Ficus guaraniti- letar as fezes e os restos de alimen-
urbanos e acabam extintas localmen- ca e Ficus enormis, esse morcego in- tos (frutos, folhas). Também é adota-
te.Porém, algumas espécies de dife- clui em sua dieta mais de 260 espé- da a observação direta dos animais
rentes grupos persistem, incluindo cies de frutos, ao longo de toda sua em árvores com frutos.
aves, morcegos e anfíbios. Alguns área de ocorrência, que vai do México
desses animais são excelentes mode- ao norte da Argentina. A capacidade Ambientes urbanos e
los para estudar quais atributos de de explorar a matriz urbana e de não naturais
sua ecologia, morfologia ou fisiologia ficar restrito a parques urbanos que Nossa equipe encontrou 55 espécies de
lhe conferem tolerância à urbaniza- mantenham vegetação natural é ou- frutos consumidas por Artibeus litura-
ção. tra característica que favorece a so- tus, sendo que 23 espécies delas foram
Estudos sobre ecologia urbana brevivência da espécie em cidades. exclusivamente em ambientes urba-
apontam que, para os animais frugí- Recentemente, o Journal of Tropical nos, 20, em hábitats naturais e 12, em
voros (que se alimentam de frutas), a Ecology publicou um artigo de minha ambos os hábitats. Um achado interes-
capacidade de encontrar frutos e a autoria em parceria com Jeferson sante foi a considerável riqueza de
flexibilidade no uso desses recursos Vizentin-Bugoni, pós-doutorando na frutos exóticos consumidos nas cida-
alimentares é uma característica de- Universidade de Ilinois (EUA), com- des, se comparada à de áreas naturais.
terminante para sobreviver em am- parando os frutos consumidos por Acreditamos que essa capacidade
bientes urbanos. Assim, morcegos Artibeus lituratus em ambientes natu- de explorar frutos exóticos pode ser
frugívoros generalistas, capazes de rais e urbanos. Para esse estudo, fo- essencial para a persistência dessa
incluir grande diversidade de frutos ram feitas uma revisão bibliográfica e espécie em ambientes com graus va-
em sua dieta, podem se beneficiar uma compilação de dados sobre os riados de interferência antrópica no
desses ambientes, pois as cidades for- frutos consumidos pela espécie em país, incluindo grandes centros ur-
necem uma considerável diversidade áreas urbanas e naturais do Brasil. banos. A maioria das plantas exóti-
de plantas exóticas e nativas que lhes Diferentes métodos podem ser cas encontradas na dieta de Artibeus
servem de alimento e de abrigo. utilizados para descrever a dieta de lituratus é comumente achada nas
cidades brasileiras – essas espécies urbanos. Pelo fato de se deslocarem entre as pessoas e os morcegos, as
vegetais são usadas principalmente por grandes distâncias, os morcegos relações são majoritariamente posi-
para ornamentação florestal urbana podem facilitar a invasão de plantas tivas. Apesar de morcegos serem po-
ou em quintais e pomares. exóticas em ambientes naturais. De tenciais hospedeiros de diversos
Outro resultado importante obti- fato, algumas das espécies de frutos micro-organismos patogênicos para
do no estudo é o de que essa espécie consumidas por Artibeus lituratus em humanos, como os vírus Ebola, da
de morcego consome, em cidades, centros urbanos são consideradas SARS e possivelmente da covid-19,
maior proporção de frutos grandes, invasoras em diversas áreas protegi- isso não é necessariamente um risco
como Syagrus romanzoffiana (coqui- das no Brasil. para as pessoas. Desde que não haja
nho-jerivá), Eugenia jambolana (ja- Alguns estudos sugerem que o contato físico frequente – o que é
melão) e Mangifera indica (manga). risco de invasão é maior em florestas facilitado pela caça e pelo comércio
Isso pode ter relação direta com o próximas às cidades devido a esse ilegal de carne, como ocorre na Chi-
tipo de método utilizado, uma vez fluxo de sementes entre os ambien- na –, as chances de transmissão de
que, para detectar sementes grandes, tes natural-urbano, o que pode ser vírus de morcegos para pessoas são
é preciso observação direta e coleta facilitado por esses morcegos. Por muito baixas.
de sementes em abrigos, o que é outro lado, sementes de espécies na- Além disso, morcegos são res-
muito difícil de ser realizado em am- tivas também podem ser transporta- ponsáveis pela realização de impor-
biente naturais. Esse achado tem re- das de hábitats naturais a urbanos tantes serviços ecossistêmicos,
levância porque ajuda a direcionar por longas distâncias, facilitando a como a polinização de flores – fun-
futuras pesquisas. regeneração e o enriquecimento bio- damental para a produção de frutos
lógico de parques e outras áreas ver- – e a predação de insetos: um único
Risco de invasão de des nas cidades e contribuindo para morcego insetívoro pode consumir
espécies exóticas que outros animais frugívoros per- centenas de insetos por noite, con-
É importante que novos estudos ava- maneçam nessas áreas. trolando a população de artrópodes
liem a dispersão ou o transporte de
sementes entre hábitats naturais e
Embora essa maior tolerância à
urbanização aumente a proximidade
que, inclusive, podem ser transmis-
sores de doenças. | >
| 367 | JULHO 2020 | 13
CIÊNCIA E POLÍTICA
EM TEMPOS DE
NEGACIONISMO
Alyne Costa
Fórum de Ciência e Cultura, Universidade Federal do Rio de Janeiro
e Pontifícia Universidade Católica (PUC-Rio)
Tatiana Roque
Instituto de Matemática
Universidade Federal do Rio de Janeiro
A CIÊNCIA TEM OCUPADO boa parte dos debates nas redes sociais e nos
noticiários. Ainda assim, tem sido difícil convencer os brasileiros da necessi-
dade de manter o isolamento social enquanto a pandemia continuar a avan-
çar. As explicações são muitas e – frequentemente – elitistas: vão desde a
natureza de nosso povo, que gosta demais de convívio social e da rua, até
certa deficiência educacional ou moral, que atrapalharia sua compreensão
das verdades científicas ou o tornaria alheio ao bem comum.
Claro que um presidente que desafia a medicina, as instituições interna-
cionais e a ciência contribui para o enfraquecimento da palavra dos especia-
listas. Mas as vozes que enfatizam a gravidade da pandemia e a necessidade
do isolamento social são significativas: parlamentares, instituições científicas
e grande mídia (principalmente, a campeã de audiência!). Governadores e
prefeitos também estiveram do lado da quarentena num primeiro momento.
CRÉDITO: ADOBE STOCK
O papel da ciência
A força da ciência é a dúvida; sua matéria-prima, a incerteza. É pela investiga-
ção paciente e obstinada que as dúvidas vão se transformando em conheci-
mento confiável, ainda que nunca irrefutável. Por isso, diante da atual investi-
da dos negacionistas para deslegitimar esse conhecimento, a ciência não pode
mais se portar como a detentora de uma verdade indisputável que silencia as
CRÉDITO: ADOBE STOCK
divergências.
Esse papel nem sempre converge com o dos expertos, que funcionam como
fonte de certezas para escolhas políticas. É aos governantes que compete tomar
decisões firmes, mesmo diante de uma realidade incerta e ambígua, para trans-
DIANTE DA ATUAL mitir segurança. Foi o que fez Alberto Fernández, presidente da Argentina. Em
entrevista na TV em 18 de junho de 2020, ele afirmou: “Dizem que sou um
INVESTIDA DOS frouxo por não prestar atenção à economia. Os que prestaram atenção à eco-
NEGACIONISTAS PARA nomia, olhem aqui do lado, o Brasil tem 45 mil mortos. Não me façam explicar
DESLEGITIMAR ESSE o que todos sabemos”.
CONHECIMENTO, A A relação entre ciência e política foi especialmente caótica em países com
governos negacionistas. Diante do hábito de crer em uma ciência imperial, vo-
CIÊNCIA NÃO PODE
calizada por expertos e reveladora de verdades incontestáveis, acabamos refor-
MAIS SE PORTAR çando, sem querer, o sentimento antipolítica, desacostumando o povo a res-
COMO A DETENTORA ponsabilizar os governantes pelas decisões que lhes cabem. A decepção só se
DE UMA VERDADE multiplica, o que acaba fornecendo à população razões para não escutar mais
INDISPUTÁVEL nem os políticos nem os expertos – nem mesmo cientistas, enquanto fizerem
questão de ocupar o posto de especialistas.
QUE SILENCIA AS Isso não significa que a ciência deva permanecer neutra. Se, como diz Latour,
DIVERGÊNCIAS não é um suposto ‘déficit intelectual’ que explica a adesão aos anticientificis-
mos, mas sim ‘um déficit de prática comum’, o papel da ciência não pode ser
meramente o de informar e esperar que obedeçam, mas sim o de suscitar o in-
teresse por como seu conhecimento é produzido e engajar as pessoas nas pos
sibilidades de transformação da sociedade que tal conhecimento pode permitir.
Participar de uma construção de mundo, por si só política, pode voltar a fazer
sua verdade importar e, mais que isso, servir como uma aliada da reconstrução
do tecido social. Um fato científico não se impõe simplesmente pela força de
sua evidência, mas também pela percepção de sua relevância, pelas promessas
nele encerradas, pelo engajamento que consegue suscitar na sociedade que o
>
| 367 | JULHO 2020 | 19
A CIÊNCIA PRECISA ABANDONAR A
POSIÇÃO DE MERA ENUNCIADORA DE
VERDADES A SEREM OBEDECIDAS E SE
POSICIONAR VERDADEIRAMENTE COMO
ALIADA DA SOCIEDADE, MOSTRANDO SUA
CONTRIBUIÇÃO PARA REDUZIR OS EFEITOS
DESSA AMEAÇA NA POPULAÇÃO
Nascido do fogo
ARATASAURUS MUSEUNACIONALI é o nome do novo dinossau- Jovem predador
ro brasileiro que acaba de ser descrito por paleontólogos do Brasil O único exemplar de Aratasaurus é formado pela perna direita e
e da China no periódico Scientific Reports (grupo Nature). Posso pode ser classificado no grupo Coelurosauria. Os celurossauros
imaginar a supressa do leitor com o nome, mas a história do acha- surgiram há cerca de 168 milhões de anos, no período Jurássico
do justifica. Aratasaurus é a combinação de ‘ara’ e ‘atá’ – que signi- Médio, e englobam muitas formas de dinossauros, incluindo as aves
ficam ‘nascido’ e ‘fogo’ na língua Tupi – com ‘saurus’, sufixo de origem recentes. As formas mais basais desse grupo são muito raras e
grega muito usado na determinação de répteis fósseis, em especial restritas essencialmente à América do Norte e à China. Aratasaurus
dinossauros. Museunacionali é uma homenagem ao primeiro museu é o celurossauro mais basal encontrado na América do Sul até ago-
do Brasil, que tanto sofreu com o grande incêndio de 02 de setem- ra. O achado sugere que essas primeiras formas de celurossauros
bro de 2018. Assim, em uma tradução livre, o nome significa ‘dinos- eram mais diversificadas e tinham uma distribuição mais ampla do
sauro que nasceu do fogo do Museu Nacional’, uma homenagem à que se supunha até então.
instituição científica mais antiga do país e que se encontra em Aratasaurus tinha pouco mais de 3 m de comprimento e uma
plena reconstrução. massa entre 34 e 35 kg. Estudos histológicos dos ossos fossilizados
Aratasaurus foi encontrado em rochas que recebem o nome de desse animal indicam que ele ainda estava em fase de crescimen-
Formação Romualdo, presentes na região da Bacia do Araripe, uma to, sendo, portanto, um jovem que poderia alcançar dimensões
área muito rica em fósseis que se estende pelos estados de Ceará, ainda maiores quando adulto. Deveria ser um predador ágil, que
Pernambuco e Piauí. Foi coletado em uma mina de gesso, chama- corria pelas margens de lagos à procura de alimento, possivelmen-
da Mina Pedra Branca, localizada entre as cidades Nova Olinda e te pequenos animais. É provável que seu corpo fosse recoberto por
Santana do Cariri, no Ceará. De lá, já saíram milhões de exemplares, estruturas filamentosas interpretadas como protopenas, assim
com destaque para os peixes excepcionalmente bem conservados. como muitos outros celurossauros.
Esses fósseis estão preservados em nódulos calcários, bem típicos,
que são muito famosos pelo mundo. Além de peixes e plantas, Parente na China
também foram encontrados crocodilomorfos, pterossauros (grupo Outra curiosidade sobre Aratasaurus é sua relação de parentesco.
de répteis alados) e alguns poucos registros de dinossauros. Ao contrário do que se poderia imaginar, o novo dinossauro não é
Mas, ao contrário destes, Aratasaurus foi preservado em uma diretamente aparentado com outros encontrados na região do Ara-
placa de folhelho (rocha escura composta por finas lâminas de ripe, como o famoso Santanaraptor. Essa nova espécie estava mais
sedimentos com grãos do tamanho dos de argila), procedente de proximamente relacionada com o celurossauro Zuolong sallei, pro-
uma camada situada na base da Formação Romualdo, sendo, cedente da província de Xinjiang, da China. Também chama atenção
portanto, alguns milhares de anos mais antiga que a camada com a grande diferença de idade entre a forma chinesa e Aratasaurus.
os nódulos calcários. A formação dessas rochas é estimada entre Zuolong foi encontrado em rochas formadas há aproximadamente
115 e 110 milhões de anos atrás, um período geológico denomina- 160 milhões de anos, ou seja, pelo menos 45 milhões de anos antes
do de Cretáceo Inferior. É o primeiro registro de dinossauro nes- das rochas em que estava o nosso Aratasaurus. Esse aspecto su-
sa parte da Formação Romualdo, o que abre a possibilidade para gere fortemente que existem muitas outras espécies de celuros-
novos achados no futuro. sauros basais a serem descobertas. Agora é importante realizar
novas escavações na região para encontrar mais exemplares.
Por último, vale a pena mencionar que o exemplar pertence ao
CRÉDITO: MAURÍLIO OLIVEIRA
Reconstrução do Araratasaurus
museunacionali em vida, correndo há Museu de Paleontologia da Universidade Regional do Cariri (Crato)
milhões de anos em uma região onde e estava emprestado ao Museu Nacional para pesquisa há alguns
hoje fica o Ceará, no nordeste do Brasil anos. Por sorte, o fóssil encontrava-se no laboratório de prepara-
ção, situado em uma área anexa ao palácio, e não sofreu com o
trágico incêndio de 2018. Todos os autores, que incluem profissio-
nais do Museu Nacional, estão dedicados a auxiliar nessa importan-
te tarefa que é a de reconstrução da instituição e sua devolução o
quanto antes para a sociedade brasileira. |
Marcos Cueto
Casa de Oswaldo Cruz
Fundação Oswaldo Cruz
>
ta, entre 1922 e 1927, por meio do qual implementou servi-
ços nas zonas interioranas do estado.
O médico paulista Geraldo de Paula principal estratégia da agência, com o objetivo de promover “a assistência sa-
Souza (1889-1951) propôs, junto com o nitária essencial acessível a todos os indivíduos e família com sua plena par-
delegado e dilpomata chinês Szeming
ticipação” e que teve como lema “Saúde para Todos”.
Sze (1908-1998), a criação de uma
agência internacional especializada Embora a expectativa de atingir o objetivo em 2000 fosse demasiado oti-
em saúde mista, o lema ainda segue inspirando sanitaristas em todo o mundo. Nas últi-
mas décadas do século passado, a liderança da OMS deveu-se também a sua
capacidade de produzir a Classificação Internacional de Doenças, padrão mé-
dico comum mundial para as enfermidades. Além disso, a OMS ajudou a pro-
mover melhoria de alguns indicadores de saúde, como o aumento da expecta-
tiva de vida e a ampliação da cobertura vacinal.
Destaque de brasileiros
Nos programas de vacinação, destacaram-se, novamente, dois sanitaristas bra-
sileiros. Um deles foi Ciro de Quadros (1940-2014), que conduziu campanhas
contra a varíola na África e, posteriormente, foi funcionário da Organização
Pan-americana de Saúde (OPAS), escritório regional da OMS.
A origem de seu trabalho remonta à saúde comunitária em regiões pobres
dos estados do Pará e Paraná. Ele participou da inovadora estratégia da OMS
de ‘vigilância e bloqueio’ na vacinação contra a varíola, em vez da onerosa e
menos eficaz vacinação em massa. No período 1971-1976, foi chefe do programa
de erradicação da varíola da OMS na Etiópia. >
| 367 | JULHO 2020 | 25
A OMS TEVE
DIFICULDADES
EM SE ADAPTAR
À GLOBALIZAÇÃO
E MANTER SUA
LIDERANÇA
INTERNACIONAL
O segundo brasileiro a se destacar foi Carlyle Guerra de Macedo, que seria elei-
to por dois períodos seguidos (1983-1995) como diretor da OPAS. Macedo começou
sua carreira no início dos anos 1960 como coordenador do Projeto de Colonização
do Maranhão; posteriormente, dirigiu a Divisão de Saúde no Departamento de Re-
cursos Humanos da Superintendência de Desenvolvimento do Nordeste (Sudene),
criada pelo governo desenvolvimentista de Juscelino Kubitscheck (1902-1976).
Graças à ajuda da Rotary Internacional (associação de clubes de voluntários que
prestam serviços humanitários), Macedo e Quadros foram peças-chave na moder-
nização dos programas de imunização em toda a América Latina e na erradicação
da poliomielite na América Latina e no Caribe.
Leia +
CUETO, Marcos; REINALDA,
Bod. ‘Candau, Marcolino
Apesar das vicissitudes existentes na atual política brasileira, o vínculo dos Gomes’ in IO BIO, Biographical
cientistas e sanitaristas do país com a OMS continua forte. Atualmente, vários Dictionary of Secretaries-
grupos de pesquisa de universidades e institutos brasileiros são valorizados General of International
e fazem parte de redes transnacionais, como os centros colaboradores da Organizations, Edited by Bob
OPAS e da OMS. Reinalda, Kent J. Kille and Jaci
A designação como centro colaborador é resultado de uma exigente avalia- Eisenberg, www.ru.nl/fm/
ção internacional. Em 2019, 41 desses centros operavam na América do Sul, dos iobio, Acesso 2 Abril 2020.
quais 24 eram brasileiros. O segundo país da região com maior número de cen-
CUETO, Marcos; BROWN,
tros é a Argentina, que tem 11. Recentemente, o Laboratório de Vírus Respira-
Theodore; FEE, Elizabeth. The
tórios e do Sarampo do Instituto Oswaldo Cruz (IOC/Fiocruz) foi nomeado para
World Health Organization, A
toda a América Latina como Laboratório de Referência da OMS para a covid-19.
History. Cambridge:
Um dos principais desafios das últimas diretorias da OMS tem sido au-
Cambridge University Press,
mentar seus recursos e recuperar o controle de seu orçamento, pois as doa-
2019.
ções dos países industrializados têm destinos que não podem ser alterados.
Além disso, a OMS deve diversificar seu quadro de funcionários e incorporar PIRES-ALVES, Fernando A.;
mais cientistas sociais. PAIVA, Carlos Henrique
O objetivo mais importante das próximas diretorias, no entanto, é forta- Assunção; HOCHMAN,
lecer o multilateralismo e reposicionar a agência em uma futura governança Gilberto. História, saúde e
mundial que não apenas lute para ter mais recursos e capacidades suprana- seus trabalhadores: da agenda
cionais em responder aos surtos epidémicos, como o da covid-19, mas que internacional às políticas
também promova consensos políticos e investimento em sistemas universais brasileiras. Ciência e Saúde
e equitativos de saúde em todos os países. Todas são tarefas em que cientis- Coletiva, v.13, n.3, p.819-829.
tas e sanitaristas brasileiros devem continuar a participar ativamente como 2008.
fizeram no passado. |
O desmantelamento do SUS
Diferenças nacionais à parte, é possível perceber algumas semelhanças
importantes com o contexto brasileiro. Negros (pretos e pardos) são os mais
afetados e vulnerabilizados pela pobreza em todo o país, de acordo com os
indicadores recentes. Diferentemente dos EUA, aqui temos o Sistema Único
CRÉDITO: ADOBE STOCK
A CHEGADA DO NAVEGADOR italiano Cristóvão Colombo (1451-1506) à ilha que seria batizada de
San Salvador, no Caribe, iniciou, em 1492, o que muitos chamaram de “encontro entre dois mun-
dos”. É difícil estimar a demografia do continente americano àquela época. Estudos oscilam entre
números relativamente baixos – o geógrafo norte-americano William Denevan (1931-) calculou pou-
co mais de 57 milhões de pessoas – e cifras muito mais altas, chegando a 100 milhões, como pro-
pôs o historiador norte-americano Woodrow Borah (1912-1999). Igualmente difícil é quantificar a
parcela dessa população que foi dizimada pelo contato com os europeus. O filólogo venezuelano
Angel Rosenblat (1902-1984) defendeu que 75% das pessoas que viviam no continente americano
foram eliminadas até 1650, enquanto o historiador espanhol Nicolás Sánchez-Albornoz (1926-) che-
gou a conceber 95%, mesmo número especulado por antropólogos como o brasileiro Eduardo Vivei-
ros de Castro (1951-) e o norte-americano Henry Dobyns (1925-2009) – este último tendo classifica-
do esse processo como um “cataclismo biológico”.
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“NÓS ESTAMOS EM GUERRA. EU NÃO SEI POR QUE
VOCÊ ESTÁ ME OLHANDO COM ESSA CARA TÃO
SIMPÁTICA. NÓS ESTAMOS EM GUERRA. O SEU MUNDO
E O MEU MUNDO ESTÃO EM GUERRA, OS NOSSOS
MUNDOS ESTÃO TODOS EM GUERRA. A FALSIFICAÇÃO
IDEOLÓGICA QUE SUGERE QUE NÓS TEMOS PAZ É
PARA A GENTE CONTINUAR MANTENDO A COISA
FUNCIONANDO. NÃO TEM PAZ EM LUGAR NENHUM. É
GUERRA EM TODOS OS LUGARES O TEMPO TODO”
(Ailton Krenak, Guerras do Brasil)
CRÉDITO: DIVULGAÇÃO
são nossos conhecidos: os violentos ataques que marcaram a invasão, os processos
de escravização e, sobretudo, as doenças que foram trazidas pelos europeus – e cujos
surtos geralmente vinham seguidos de fome e de desagregação da produção de
subsistência. Tais doenças eram mais letais para os indígenas, segundo o biólogo
norte-americano Jared Diamond (1937-), porque, em sua maioria, eram decorrentes
Abaixo, imagem de indígenas do contato com animais domesticados – o que era comum no velho mundo, mas
Mexica (Asteca) contaminados praticamente não existia na América, reduzindo o estímulo imunológico. Foi o caso
com varíola, presente de diferentes tipos de gripe e da varíola.
no Códice Florentino, Esta última foi a doença que mais destruição trouxe aos habitantes originários
também conhecido como do continente. No Brasil, vários surtos ocorreram, desde as primeiras décadas de
Historia General de las cosas
presença portuguesa. Um deles, ocorrido entre 1563 e 1564 em Itaparica e Ilhéus,
de la Nueva España, criado
sob a supervisão do frade na Bahia, teve 30 mil mortos estimados em três meses. A seu respeito, o testemu-
franciscano Bernardino de nho do padre jesuíta português Leonardo Nunes (1509-1554) foi revelador não ape-
Sahagún. Ao lado, à direita, nas do desconhecimento da doença, mas também de sua interpretação pela ótica
imagem de indígena Mexica da moralidade cristã. Referindo-se aos indígenas, ele afirmou, em 1563, que “seu
(Asteca) contaminado com
pecado foi castigado por uma peste tão estranha que por ventura nunca nestas
sarampo, presente no livro
Viruses, Plagues, and History: partes houve outra semelhante. [...] Finalmente chegou a coisa a tanto que já não
Past, Present and Future, havia quem fizesse as covas [...] e com tudo isso diziam os índios que não era nada
de Michael B. A. Oldstone em comparação da mortalidade que ia pelo sertão adentro”.
CRÉDITO: REPRODUÇÃO/DOMÍNIO PÚBLICO
Comparação dos números de indígenas mortos por Covid-19 segundo a Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai), na linha roxa,
e o Comitê Nacional de Vida e Memória Indígena (linha verde). As diferenças entre os dados se devem, em parte, ao fato de a Secretaria
apenas contabilizar os casos ocorridos em terras indígenas homologadas, não incluindo indígenas em situação urbana
Mapa de vulnerabilidade
para Covid-19 nas terras
indígenas, mostrando desde clusões otimistas dos órgãos oficiais. Pesquisas apontam que os povos indíge-
o risco mais baixo (1) nas são mais vulneráveis diante da expansão da covid-19. Dessa vez, não por
até o mais alto (5) razões biológicas, já que indígenas e não indígenas estão suscetíveis ao contá-
gio, mas por condições socioeconômicas, pelo deficiente atendimento à saúde,
pela alta mortalidade infantil e, especialmente, pelos altos índices de doenças
respiratórias, um dos principais fatores de morbidade e mortalidade indígena.
Além disso, o padrão de vida comunitária das aldeias aumenta a possibilidade
de contágio. Mesmo as práticas de cura tradicionais, como lembra a antropó-
loga brasileira Aparecida Vilaça em seu artigo ‘A dupla ameaça aos povos indí-
genas’, publicado na Revista Serrote, envolvem um cuidado físico através do to-
que, tendo uma dimensão social que favorece a contaminação.
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silvestres ou domésticos e se espalharam para humanos. As doenças infecciosas matam anualmente 14
milhões de pessoas no mundo – desse total, 10,5 milhões das mortes têm sido atribuídas às zoonoses.
Qual o risco?
Pesquisadores vêm mostrando que novos surtos de doenças podem ocorrer a
qualquer momento, mas não em qualquer lugar. Estudos preveem que as do-
enças zoonóticas emergentes terão maiores prevalências nas regiões tropicais,
em áreas com maiores densidades humanas e com maior riqueza de mamí-
feros – especialmente, em regiões com degradação ambiental devido às mu-
danças no uso da terra.
Mas o fato de esses patógenos estarem presentes no ambiente natural, em
populações de animais silvestres, não significa que a contaminação humana
ocorrerá obrigatória e facilmente. Cada vírus tende a evoluir de forma a de-
senvolver um acesso que lhe permita infectar um hospedeiro específico ou
um grupo de hospedeiros relacionados.
Em contrapartida, cada hospedeiro desenvolve estratégias para lidar com e
sobreviver à infecção por seu vírus específico. Dessa forma, as chances de um ví-
rus causar danos à saúde ou a morte de seus hospedeiros específicos é reduzida.
O problema ocorre quando uma barreira biológica – que mantém o vírus circuns-
crito a determinada espécie ou conjunto de espécies – é rompida por humanos.
>
consumo da carne de tatus é a hanseníase (lepra), pois esses animais são hos-
pedeiros da bactéria Mycobacterium leprae.
A covid-19
Talvez, os pangolins sejam hoje o maior exemplo de como o tráfico de animais sil-
vestres não só está associado diretamente com a ameaça de extinção de espécies,
mas também é responsável pela disseminação de patógenos. Espécies de pangolins
comercializadas nos mercados da China têm sido consideradas prováveis hospedei-
ras intermediárias do SARS-CoV-2. Esses animais, por sua vez, podem ter recebido CRÉDITO: ADOBE STOCK
NO BRASIL, O TRÁFICO
DE ANIMAIS SILVESTRES
RETIRA, POR ANO, DA
NATUREZA, MILHARES DE
ESPÉCIMES, DOS QUAIS
PARTE CONSIDERÁVEL É
COMERCIALIZADA
África e Ásia e são os mamíferos mais comercializados ilegalmente no mundo. Sua carne
pode custar US$ 300/kg, e suas escamas, US$ 3 mil/kg no mercado negro.
Podemos concluir que não são os pangolins e nem os morcegos, no caso da covid-19,
os responsáveis pela pandemia. Estes são, na verdade, vítimas da caça e do tráfico de
animais silvestres. Na China, animais silvestres são comercializados em mercados, fican-
do expostos (sem aparente fiscalização sanitária) em áreas onde circulam pessoas, geran-
do condições para que o SARS-CoV-2 tenha passado de animais para humanos e, poste-
riormente, entre humanos, de forma patogênica.
Primatas, roedores e morcegos – ordens de mamíferos com maior número de espécies
no mundo – são hospedeiros da maioria (76%) dos vírus zoonóticos descritos pela litera-
tura científica. Primatas mantidos como animais de estimação podem transmitir vírus
de doenças como raiva, sarampo, herpes e febre amarela.
Em razão de nosso parentesco com os demais primatas, é alto o risco de transmissão
de vírus. Além disso, também podemos infectá-los com patógenos altamente nocivos.
Exemplo desse processo reverso foi o surto de febre amarela ocorrido no sudeste do Bra-
sil, entre julho de 2017 e junho de 2018, que causou a morte de 482 pessoas que não ha-
viam sido vacinadas. Nesse período, populações de macacos foram afetadas pelo mesmo
surto, incluindo bugios, com uma taxa de mortalidade de 15% nas populações estudadas.
Oito das 10 espécies de mamíferos que mais compartilham vírus zoonóticos com hu-
manos são animais domésticos, que podem transmitir, em média, 19,3 vírus por espécie
– para efeito de comparação, animais silvestres podem transmitir 0,23 vírus por espécie.
Mas é preciso considerar que o rompimento de barreiras entre espécies nativas e huma-
nos pode ter animais domésticos como elo intermediário. Ocorrida essa infecção, ela pode
passar a se disseminar, de forma patogênica, entre humanos.
As zoonoses podem ocorrer também em áreas urbanas, como a criptococose ou do-
ença dos pombos (Columba livia) – causada pelos fungos Cryptococcus neoformans e C.
gattii – e a febre amarela urbana, transmitida pelo mosquito Aedes aegypti.
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| 367 | JULHO 2020 | 49
O MEIO NATURAL Perspectivas
Nesse contexto, é fácil concluir que as ações humanas negligentes são as maiores
NÃO É INÓSPITO, desencadeadoras do surgimento e da expansão de zoonoses, podendo gerar surtos,
INSALUBRE OU epidemias e pandemias. Esses eventos são facilitados por atitudes humanas e de-
PERIGOSO PARA mandas de bens e recursos para suprir uma população crescente.
HUMANOS, COMO Assim, se quisermos um futuro seguro para a humanidade, devemos garantir que,
em áreas naturais ainda bem conservadas e/ou remotas: i) seja interrompido o avan-
PODE PARECER
ço do desmatamento, da urbanização sem controle e o aumento de densidade da po-
QUANDO SE pulação humana; ii) não seja permitido o avanço do garimpo e da caça; iii) não ocorra
EXAMINAM o avanço desnecessário de infraestruturas de transporte e transmissão de energia.
INFORMAÇÕES Além disso, são necessários esforços para: i) aumentar a produção de energia de
SOBRE ZOONOSES fontes limpas e com baixo impacto ambiental; e ii) coibir o tráfico de animais silvestres,
o comércio ilegal de madeira e o consumo de carne sem a devida inspeção sanitária.
Os dados aqui apresentados parecem indicar um cenário futuro assustador. Mas
a boa notícia é que podemos adotar estratégias inteligentes para minimizar os im-
pactos negativos. E, quanto mais cedo fizermos isso, melhor será para a natureza – na
qual, por sinal, estamos incluídos.
É importante lembrar que, tanto nos ‘Objetivos de Desenvolvimento Sustentável’
(ODS) quanto na ‘Agenda 2030’ – dos quais o Brasil é signatário –, consta a necessi-
dade de reduzir a intensidade das mudanças climáticas e a extinção das espécies,
CRÉDITO: ADOBE STOCK
Bárbara de Paula Pires Franco públicas do estado do Rio de Janeiro. ciei o doutorado em fisiologia huma-
Guimarães Algo em mim sempre me direcionou na, também no Ibccf.
Instituto D’Or de Pesquisa e Ensino às humanidades, meu olhar está sem- No final do primeiro ano de dou-
pre voltado às minorias e às questões torado, senti a necessidade de mudar
sociais. Terminei a graduação com de linha de pesquisa. Não foi fácil,
MINHA MÃE, que esteve em jornada menção honrosa, um diploma de dig- precisei de muita coragem. Eu dese-
solo para cuidar, educar e me susten- nidade acadêmica conferido aos me- java trabalhar com seres humanos, in
tar, naquele momento, se viu aliviada. lhores alunos. vivo. Com total apoio do meu orienta-
Eu ingressava em uma universidade dor e da pós-graduação do Ibccf, can-
pública, começaria a minha jornada Esforço, casamento celei minha matrícula na instituição,
na Universidade Federal do Rio de e mudança abri mão da bolsa e fui em busca de
Janeiro (UFRJ) exatamente no curso Emendei a graduação com o mestra- cientistas que atuassem com o que
que tanto queria: educação física. do em fisiologia humana, no Ibccf. eu gostaria de trabalhar na vida. Fi-
Desde o início da graduação estive Fiz a seleção enquanto cursava o úl- quei seis meses nessa procura. Meu
muito voltada para os estudos, tinha timo período – foram seis provas: ex-orientador brincava, dizendo que
a determinação para aproveitar ao uma de cada fisiologia e outra de eu estava fazendo o “dever de casa”
máximo. Já no segundo período, um inglês, tudo feito em dois dias. Não direitinho – visitei vários laboratórios
professor me convidou para partici- passei de primeira. Precisei estudar do Rio de Janeiro.
par das suas atividades de pesquisa. imunologia sozinha, porque não tive
Foi a primeira vez que entrei em um essa matéria na graduação. Na se- E o trabalho virou projeto
laboratório. E foi lá, no Instituto de gunda tentativa, passei no mestrado de vida
Psiquiatria da UFRJ (IPUB), que des- com bolsa do CNPq em regime de Nesse período, fui me conhecendo
pertei para a ciência, em especial dedicação exclusiva. melhor. Decidi que não queria apenas
para a pesquisa no campo da neuro- No ano em que defendi o mestra- pesquisar, queria dar aulas no Ensino
fisiologia, com ênfase nos sistemas do também me casei com o amor da Superior e também transformar vidas,
sensório-motores. minha vida, que conheci quando en- dar oportunidade para outros alunos
Não demorou e fui selecionada trei na graduação. Estudei muito para se formarem – me descobri amante
para bolsista de iniciação científica passar nos primeiros lugares da sele- do colegiado. Também estava decidi-
em neurofisiologia no Instituto de ção de doutorado para ter direito a da de que queria falar sobre ciência
Biofísica Carlos Chagas Filho (Ibccf). uma bolsa – finalmente teria uma para mais pessoas, não somente den-
Conciliava a nova atividade com a pequena taxa de bancada, que pode- tro da universidade.
monitoria da disciplina de neurofi- ria ser usada para financiar a minha Após um período probatório de
siologia e o voluntariado em projetos primeira participação no maior con- sete meses, fiz a seleção para o dou-
de extensão universitária para divul- gresso internacional da minha área. torado em Ciências Médicas no Ins-
gação de neurociências em escolas Consegui a tão esperada bolsa e ini- tituto D’Or de Pesquisa e Ensino, exa-
Omar Lupi da Rosa Santos jovem conseguiu, no entanto, deter os gem do surto em sua rica propriedade.
Academia Nacional de Medicina efeitos nocivos da bactéria Salmonella Após checar minuciosamente o esta-
(sorotipo Typhi), já então reconhecida do dos encanamentos, o sistema de
como causa da doença. Mary, porém, esgotos da casa e até o suprimento
NATURAL DA IRLANDA do Norte, continuou a transmitir a enfermida- local de mariscos, Soper encontrou a
Mary Mallon nasceu no mesmo ano de, ainda que estivesse aparentemen- causa na senhorita Mallon. A cozi-
de Mahatma Gandhi, em 1869. Dife- te sadia. Na verdade, ela nem descon- nheira que trabalhara para os Warren,
rentemente do famoso líder político fiava que havia adoecido e que, invo- semanas antes do surto, era provavel-
indiano, Mary teve uma vida bem me- luntariamente, era capaz de passar a mente o vetor.
nos ilustre, mas igualmente peculiar. doença a outras pessoas. Ao pesquisar o histórico de traba-
Emigrou ainda jovem para os Estados lho de Mallon, o engenheiro sanitário
Unidos, aos 14 anos de idade, fugindo Vetor silencioso descobriu que sete famílias para
dos desmandos do Império Britânico. Trabalhou como cozinheira em diver- quem ela cozinhou desde 1900 ha-
Mais essa característica colocou Mary sas casas de família até 1907, época viam relatado casos de febre tifoide:
e Gandhi em rota de convergência. em que sofreu um grave infortúnio. 22 pessoas foram infectadas e uma
Mary Mallon se contaminou com Seis membros da família do rico ban- menina morreu. Mallon era conhecida
febre tifoide em algum momento da queiro Charles Warren contraíram por preparar um delicioso sorvete de
sua adolescência. Caracterizada clini- febre tifoide durante as férias na casa pêssego. Mas, por incluir a fruta crua
camente por temperatura corporal de verão, em 1906. Temeroso de que na sua manufatura, o pêssego conta-
alta, dor de cabeça, diarreia e dor ab- o surto o impedisse de desfrutar de minado com Salmonella era provavel-
dominal, a febre tifoide, na época, era seu refúgio novamente, Warren con- mente a origem principal dos surtos.
vista como uma doença das moradias tratou George Soper, engenheiro sani- Mary Mallon foi então isolada em
aglomeradas, associada à pobreza e à tário que havia investigado focos de um hospital pelas autoridades sanitá-
falta de saneamento. O organismo da febre tifoide, para determinar a ori- rias por três anos, período em que tes-
tou positiva para a bactéria nas fezes
de forma contínua. Em 1909, lhe ofe-
receram fazer uma colecistectomia,
cirurgia de retirada da vesícula biliar,
na tentativa de interromper a conta-
minação de outras pessoas. Mary se
recusou a se submeter ao procedimen-
to, e seu caso, que na época era acom-
panhado de perto pela mídia, acabou
recebendo a alcunha de Typhoid Mary
(ou Maria Tifoide, em português), que
a acompanhou pelo resto da vida.
Liberdade X custódia
Após o longo período de quarentena
forçada, e devido aos apelos jurídicos
da paciente, Mary foi enfim liberada,
Caixa de ferramentas
genéticas
Uma das diversas características que
nos permitem aproximar ou diferen-
ciar seres vivos, como os animais, é a
estruturação do plano corporal em
segmentos, ou regiões, como cabeça,
tórax e abdômen. Mas, afinal, o que
tudo isso tem a ver com Pegasus? É o
desenvolvimento desses segmentos
ou regiões que nos permite discutir
se o cavalo alado é mito ou realidade.
Genes, agrupados em conjuntos Por essas semelhanças, esses ge- par de apêndices? A Evo-Devo dá asas
formando uma “caixa de ferramen- nes poderiam compartilhar a mesma à nossa imaginação!
tas”, atuam em diferentes momentos função na formação do olho durante
da vida embrionária. O grupo de ge- o desenvolvimento? Para responder a Evo-Devo na escola
nes da família Hox (homoeóticos), essa pergunta, cientistas introduzi- A gaveta dos fenômenos embrioná-
também chamado homeobox, nos per- ram o gene Pax6 de camundongos no rios, no entanto, não está separada do
mite entender como é codificada a embrião de moscas cegas. Será que as restante. Tudo está em interação
identidade de cada segmento do cor- moscas ganharam olhos de ratos ao constante. Mas isso não é abordado
po de um animal, que é conservada nascer? Não, desenvolveram olhos de no ensino de ciências e biologia. O
tanto em vertebrados como inverte- moscas. Esse experimento fascinante biólogo norte-americano Sean B. Car-
brados. Esses genes dão orientações nos mostra não somente conexões de rol usa o termo ‘divórcio’ para tratar
personalizadas para a formação de ancestralidade entre os seres vivos, desse assunto. Os currículos realizam
cada segmento do corpo para que se como também de que forma o am- uma separação litigiosa, restringindo
desenvolvam em seu devido lugar. biente celular regula o comportamen- a discussão evolutiva aos fenômenos
to dos genes. que a caracterizam e limitando as
Moscas e humanos, A natureza nem sempre precisa imagens que comparam a embriogê-
nem tão diferentes criar novos genes para gerar formas nese de vertebrados aos conceitos de
A mosquinha das frutas, Drosophila específicas. A conservação de um con- homologia (o estudo das semelhan-
melanogaster, ajudou a ciência a des- junto deles garante que a natureza se ças entre diferentes organismos) e
vendar muitos segredos da genética, encarregue de promover variação a analogia (semelhanças morfológicas
fornecendo instrumentos úteis para a partir das combinações de genes exis- entre estruturas), deixando homolo-
Evo-Devo. Esse inseto contribuiu tentes, nas diferentes espécies. gia profunda (deep homology) para o
para entendermos como estruturas Mas, e quanto a Pegasus? É mito, Ensino Superior.
complexas, a exemplo do olho, se de- pois cavalos não possuem nem a iden- Se a escola investir em discussões
senvolvem. Primeiro os cientistas tidade de segmento para o código ho- sobre ambiente e saúde, genética e ca-
descobriram que o gene Hox chama- meobox que regula o surgimento de um racterísticas dos seres vivos, desenvol-
do eyeless na Drosophila é homólogo terceiro par de apêndices (asas), nem vimento e controle da expressão gêni-
ao gene Pax6 de camundongos, evi- o sinal molecular para o desenvolvi- ca, e os postulados de evolução em
denciando que vertebrados e inverte- mento dessas estruturas. Mas, e se caráter indissociável da modulação
brados se diversificaram a partir de fôssemos capazes de modificar o códi- gênica regida pelos fatores abióticos, a
um ramo ancestral comum. As mos- go de genes homeobox do embrião de Eco-Evo-Devo será contemplada em
cas mutantes para eyeless não têm um cavalo e inserir nele o código mo- sua essência e poderá estar presente
olho, enquanto seres humanos mu- lecular equivalente às asas de uma ave em todo o ciclo do Ensino Médio, qui-
tantes para Pax6 têm glaucoma. com a informação para um terceiro çá do Ensino Fundamental II. |
Jorge Lucas Maia Apesar de o tema em si já ter sido com as quais precisam lidar ao longo
Grupo de Estudos e Pesquisas em amplamente explorado, Destacamento da trama. Vai ficando cada vez mais
Educação Antirracista Blood (Da 5 Bloods) é o primeiro filme evidente que o filme tem como pilar
Universidade Federal do Rio de Janeiro a tratar a guerra do Vietnã a partir do central a história de Paul, um homem
ponto de vista racial e pela perspectiva atordoado, que carrega consigo os so
A GUERRA DO VIETNÃ é tema recor afro-americana, o que em si já bastaria frimentos causados pelos traumas,
rente nos roteiros cinematográficos para justificar sua importância. culpas, perdas e amarguras de ter dado
estadunidenses desde o final dos anos À primeira vista, é a história de tudo de si em defesa de um país racis
1960. Assistimos a sucessos históricos quatro amigos veteranos – Paul, ta que sempre o tratou como escória.
como Apocalypse now e Rambo: first Eddie, Otis e Melvin – que voltam ao
blood. Na atualidade, o tema ainda Vietnã, depois de quase 50 anos, para Referências mais que
deixa suas marcas – é o caso da série resgatar os restos mortais do quinto propositais
de TV This is us (2016-2020), em que componente dos Bloods – Norman. Spike Lee, o diretor, esbanja referên
Jack Pearson, um ex-combatente, vive Para além do ato de honra e lealdade cias artísticas e históricas. Exemplo
sob a sombra dos traumas psico a Norman, eles têm ainda uma se disso é a reverência a Francis F. Cop
lógicos deixados pela guerra. Todas gunda intenção não tão etérea quan pola e o clássico Apocalypse now nas
essas produções têm em comum a to a primeira: resgatar uma caixa cenas da selva, utilizando transições,
exposição dos horrores e danos pes cheia de ouro enterrada na selva vie texturas e tonalidades carregadas em
soais causados aos egressos do con tnamita desde os tempos da guerra. amarelo e verde, coroadas com o so
flito, que, despedaçados por dentro, Uma verdadeira caça ao tesouro. brevoo da floresta vietnamita ao som
têm dificuldades de se desvencilhar No entanto, o retorno ao cenário do de Cavalgada das Valquírias, para que
das memórias aterrorizantes e voltar conflito reacende memórias sensíveis não restem dúvidas de sua intenção
a levar uma vida normal. e feridas não curadas daquele período, em prestar tal homenagem.
CRÉDITO: DIVULGAÇÃO
retor em produzir um cinema for ria, a cumplicidade é inevitável. dalha de honra por bravura na guerra
mativo, contar histórias ocultadas do Vietnã em abafar a explosão de
ou, ainda, recontar histórias distor Abordagem inédita uma granada com o próprio corpo,
cidas por narrativas racistas, foca Em Destacamento Blood, o contraste morrendo para salvar seus compa
lizando as experiências negras, em entre progresso e miséria, que marca nheiros, além de outros personagens
suas complexas e múltiplas possi as décadas de 1960 e 1970 nos Estados e fatos históricos inseridos no roteiro
bilidades de ser. Destacamento Blood Unidos, percorre toda a narrativa. As de maneira direta ou indireta em
tem recursos que são marca de Spike primeiras imagens da chegada huma busca de um objetivo evidente: ree
Lee: cuidadosa exploração de ar na à lua, os protestos do movimento ducar nossos olhos e ouvidos para
quivos e estudos, no intuito de apre negro, as cenas da guerra, a pobreza perceber a importância negra e as
sentar uma seleção refinada de nos bairros negros e as falas marcan suas contribuições para a história
obras artísticas, biografias e histó tes de personalidades que se opu dos Estados Unidos.
rias que deseja que o público conhe nham ao combate no Vietnã – como Em poucas palavras, o filme vale a
ça. Tudo inserido de maneira explí Muhammad Ali, Angela Davis, Bobby pena por sua abordagem inédita de
cita na montagem, para que reconhe Seale e Malcolm X – abrem o filme. E um tema já tão banalizado e, princi
çamos suas fontes. O que pode ser a questão logo colocada é: “por que palmente, pelo desafio que propõe: a
considerado o mais íntimo e ousado nós, negros, sempre sacrificamos nos flexibilização de nossas verdades
de seus recursos é o momento em sas vidas por uma ‘América’ que nos cristalizadas. É um convite a conhe
que deixa espectador e protagonis- vira as costas?”. Tudo ao som delicio cer e incorporar outros olhares, igual
ta a sós. Olho no olho, na intimida- so, e ácido, de Marvin Gaye (1939-1984). mente ou mais verdadeiros do que
de de uma conversa a dois, ele (ou Ao longo da trama conhecemos aqueles que aprendemos quase que
ela) confessa tudo aquilo que jamais um pouco sobre Milton L. Olive III, naturalmente a ter. |
só se beneficia da estrutura racista como muitas vezes, los começam com verbos no imperativo: informe-se, en-
mesmo sem perceber, compactua com a violência racial”. xergue, reconheça, perceba, apoie, transforme, leia, ques-
Um grande ponto positivo desta obra é que observar o tione, conheça e combata.
racismo estrutural é apenas um ponto de partida. A auto- Esse aspecto inicial dá a tônica da leitura do livro. O
ra segue apresentando ao leitor que deseja se inserir nes- Pequeno manual antirracista não é uma obra para simples
se debate ferramentas mais objetivas, que possibilitam o contemplação; ao contrário, ela abre caminhos, contribui
começo de uma transformação exatamente a partir de para o movimento, indica redes e ações.
onde se está. Esse não se trata de um livro do qual você, leitor, deve-
Quanto ao leitor, ao se questionar sobre seus privilégios rá sair tranquilo. Mas tudo bem. É a desestabilização de
ou sobre o racismo que incide sobre sua existência, ele certezas que possibilita novas realidades. |
precisa, por sua vez, entender que apenas a leitura de um
livro não o faz antirracista. Por isso, apesar do texto curto Thayara Cristine Silva de Lima
e bem direto, a autora se utiliza de sofisticada estratégia Grupo de Estudos e Pesquisas em
que pretende instar a sociedade à ação. Isso pode ser per- Educação Antirracista,
cebido desde o sumário, onde vemos que todos os capítu- Universidade Federal do Rio de Janeiro
Pesando bolinhas
ARRUMANDO A CASA, achamos 10 potinhos com deze- Vamos complicar um pouco. E se não soubéssemos
nas de bolinhas de gude cada. Um bilhete diz: “Um dos quantos potinhos contêm bolinhas de gude falsas?
potinhos contém bolinhas de gude falsas, pesando 10,1 gra A ideia anterior não funciona imediatamente, pois, se ti-
mas cada. Os outros nove potinhos contêm bolinhas ver vermos bolinhas falsas no primeiro e segundo potinho, o re
dadeiras, pesando 10 gramas cada. Descubra qual potinho sultado final seria 550,3 gramas, que é compatível com a pos
tem as bolinhas falsas… com uma pesagem apenas. Por quê? sibilidade de apenas o terceiro potinho conter bolinhas falsas.
Por que não? Hahaha”. Mas a ideia pode ser adaptada. Temos que descobrir
Fiquei intrigado. Desafio do passado? Delírio? Um bom quantas bolinhas teríamos que tirar de cada pote, para que
problema, isso sim. a pesagem final nos mos
Primeiramente, é fácil trasse diretamente quais
se convencer de que é potinhos contêm as falsas.
DESAFIO
possível encontrar o pote Uma maneira de fazer
com as bolinhas falsas. isso é retirando uma bo
Se pesarmos apenas uma Como resolver o linha do primeiro potinho,
bolinha de um potinho de mesmo problema duas bolinhas do segundo;
cada vez, em algum mo supondo que a quatro do terceiro; oito do
mento nos depararemos bolinha de gude quarto – ou seja, sempre
com uma bolinha falsa. falsa é mais leve, dobrando – até 512 boli
No melhor cenário, acha pesando nhas do décimo potinho. O
mos a falsa na primeira 9,9 gramas? número final nos permitirá
pesagem. No pior... só descobrir quais potinhos
depois da nona pesagem têm bolinhas falsas. Por
– afinal, se as primeiras exemplo, se o peso for
nove pesagens derem 10 gramas, o potinho com as bolinhas 550,5 gramas, a única possibilidade é ter bolinhas falsas no
falsas tem que ser o último. primeiro e no terceiro potinhos.
Mas, com uma balança – digamos, digital –, podemos fazer Por quê?
melhor e resolver o mistério com... uma pesagem apenas! A explicação é tão interessante que… sim, merece uma
Para isso, vamos fazer o seguinte: marcamos os potinhos coluna só para ela! Dica: números binários. Se ficou
de 1 a 10 e pegamos uma bolinha do pote 1; duas do pote 2; curioso(a), ótimo! Na próxima coluna, continuamos.
e assim por diante. Ao todo temos 1 + 2 + 3 + … + 10 = 55 Mas mistério mesmo é… quem escreveu aquele bilhetinho? |
bolinhas de gude. Se todas fossem ‘bolinhas honestas’, te
ríamos 550 gramas.
Mas, como há bolinhas mais pesadas, o peso será 550 + SOLUÇÃO DO DESAFIO PASSADO > Partindo da
alguma coisa. Quanto é esse ‘alguma coisa’? Se a bolinha fal- suposição de que existe um quadrado vermelho que
sa veio do primeiro pote, é 0,1 de grama; se do segundo po- satisfaz a nossa equação geométrica, podemos
tinho, 0,2 de gramas. E assim por diante. analisar quadrados de lados 1, 2, 3…, e assim por
Então, basta ver o quanto o peso passou de 550 gramas diante, até encontrar a primeira solução.
para sabermos qual potinho contribuiu com a bolinha de Por construção, essa é a menor possível. Por isso,
gude falsa! Por exemplo, se a pesagem fosse 550,7 gramas, podemos supor que começamos nosso argumento
isso significaria que o pote número sete é o que contém as usando esse ‘quadrado mínimo’.
bolinhas falsas.