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Título: Pecado em Las Vegas

Autora: Brenda Trent


Ano: 1981
CAPÍTULO I

Cindy correu os olhos escuros e amendoados pelos


pares que rodopiavam e sapateavam sobre o velho
assoalho de madeira do salão de baile, seguindo o ritmo
animado da música tocada pelo violinista. Quase todos
os presentes estavam na pista de dança, e os que não
estavam tomavam parte no divertimento batendo os pés
e mexendo o corpo alegremente.
"É uma delícia dançar numa noite de primavera,
sentindo o cheiro das flores da montanha", Cindy
refletiu. "Nessas ocasiões a gente não pode pensar em
nada, a não ser na melodia e no momento que estamos
vivendo."
As portas de vaivém do velho salão estavam
abertas de par em par, para deixar entrar a brisa fresca
da noite, e o riso alegre dos dançarinos enchia o ar.
Mulheres com saias rodadas e vivamente coloridas,
deslizavam com sapatos sem salto pelas tábuas
envelhecidas pelo tempo, acompanhadas por homens
usando jeans e camisas brancas, que batiam palmas cada
vez que um par passava dançando por entre as longas
alas formadas pelos outros.
Em pé, um pouco além da pista, Cindy teve, de
repente, a impressão de estar sendo observada Era uma
sensação estranha, e ela já estava em guarda quando
fixou os olhos no estranho alto, vestindo roupas caras e
bem-feitas, que estava apoiado no batente da porta. Com
uma das mãos enfiada no cós da calça cinza e a outra
segurando displicentemente o casaco jogado sobre os
ombros fortes, ele tinha uma aparência magnífica, que
fez Cindy se lembrar de um anúncio de cigarros que vira
há pouco tempo, numa revista de modas.
Quando seus olhares se encontraram, o estranho
fitou-a com firmeza por alguns segundos, depois fez um
sinal, chamando-a. Cindy olhou depressa para o outro
lado, torcendo para que ele entendesse a mensagem e
fixasse a atenção em outra garota. Apesar de estar envai-
decida pelo interesse que havia despertado e simpatizar
bastante com ele, ela sabia que o melhor era ignorá-lo,
pois seus irmãos jamais permitiriam que se relacionasse
com um forasteiro desconhecido naquela região
montanhosa da Virgínia.
Manter-se afastado de estranhos era a regra
naquela cidadezinha independente, situada no alto das
montanhas Blue Ridge, e as garotas que a desobedeciam
eram tratadas com desprezo pelos outros cidadãos.
Cindy não queria ser tratada desse jeito e, além do mais,
tinha medo da reação do pai, caso desse motivo a
falatórios. Segundo ele, já houvera escândalos demais na
família, para ainda ter que suportar mais um.
Consciente do olhar do estranho, que percorria
fascinado suas pernas bem-feitas e a cintura estreita,
antes de se deter nos seios arredondados, semi-
encobertos por uma cascata de cabelos escuros e
brilhantes, ela dirigiu toda a atenção para os pares que
dançavam à sua frente, fingindo um interesse que estava
longe de sentir. Depois de alguns minutos, arriscou uma
olhada para a porta e descobriu, meio pesarosa, que não
havia ninguém lá. Talvez tivesse imaginado tudo. A
cidade era isolada, e mesmo com a nova autopista
passando por lá, raramente recebia visitantes.
De repente, um aroma delicioso chegou-lhe às
narinas e Cindy prendeu a respiração. Havia alguém
atrás dela e só podia ser o estranho, pois aquele cheiro
não tinha nada a ver com as flores da montanha. Era de
loção após barba, e das boas!
Dedos fortes pousaram em seu ombro esbelto,
parecendo queimar-lhe a pele com o calor que
irradiavam e forçando-a a virar-se. Ofegante, Cindy
enfrentou o olhar divertido do estranho.
— Senhorita — uma voz sedutora murmurou —,
tive um problema com o meu carro, na estrada, e estou
precisando de um guincho. Sabe onde posso encontrar
um? Este prédio é o único que está com as luzes acesas,
em toda a cidade, e eu segui o som da música, na
esperança de encontrar ajuda. Naturalmente, nunca
pensei que pudesse estar prestes a encontrar uma flor
como você.
"Bem, agora eu sei por que ele estava olhando para
mim," Cindy pensou, achando o sorriso dele irresistível.
"Ele precisa de uma informação e nada mais natural que
pedi-la à pessoa mais próxima, ou seja, eu."
De repente, sem a menor lógica, uma onda de raiva
invadiu-a.
— A única oficina da cidade está fechada, agora —
respondeu friamente. — Ron Geeter, o proprietário, está
aqui, dançando. Mas ele tem um guincho.
O estranho examinou o rosto dela com um olhar
insolente, antes de perguntar, com ar resignado:
— Quem é Ron Geeter?
— Aquele homem alto, do lado de lá.
Um pouco divertida, Cindy observou o simpático
estranho cruzar o salão, na direção de Ron Geeter.
"Não são só as roupas e sapatos caros que o tornam
diferente do pessoal da cidade", pensou. "São principal-
mente seu porte altivo e seu olhar educado que fazem
isso."
Pouco depois, os dois homens abandonaram o
salão e saíram para a noite escura. Cindy suspirou,
sentindo-se, sem a menor lógica, triste. Na certa, nunca
mais veria o estranho. Sua respiração voltou ao normal,
mas logo em seguida alterou-se de novo, quando se
lembrou do toque dele em seu ombro.
Apesar de nunca ter saído de sua terra natal, Cindy
bem podia imaginar o lugar de onde vinha o desconhe-
cido: uma cidade grande, onde as pessoas vestiam
roupas elegantes e assistiam a peças de teatro, óperas e
bales, além de dirigirem carros modernos e
frequentarem restaurantes luxuosos. Como ela gostaria
de conhecer todas essas coisas, de fazer parte delas, nem
que fosse por pouco tempo...
— Cindy!
Seu nome foi pronunciado tão alto, que ouviu-o
mesmo com todo o barulho da dança. Com um suspiro
de desânimo, virou-se para encarar Júnior Parker, certa
de que não existia ninguém mais capaz do que ele para
tirar uma garota de seu mundo de sonhos.
Júnior era bonzinho, mas Cindy sabia que não o
amava. No fim de seus passeios com ele, costumava
fingir que estava ao lado de um homem fino e culto —
como achava que o estranho devia ser — e era isso que a
ajudava a suportar os beijos de despedida dele.
Seus irmãos, Tom, Ralph e Harvey, que eram
amigos de Júnior, viviam lhe dizendo que estava sendo
tola, não aceitando o pedido de casamento dele. Os três
costumavam brincar com ela, chamando-a de velha
solteirona e dizendo que devia agradecer aos céus pelo
fato de Júnior querê-la. Afinal, dentro de pouco tempo
ela completaria vinte e um anos de idade!
Nas montanhas, a maioria das garotas casava-se
jovem, mas seu pai havia desencorajado os rapazes que
dela se aproximavam, decidido a conservar a reputação
da filha intata. Ele mesmo havia escolhido Júnior Parker
como o homem certo para Cindy, mas ela resistia ao
casamento porque queria mais da vida do que anos e
anos sufocantes ao lado dele. No fundo, Cindy sabia que
provavelmente jamais teria chance de encontrar o verda-
deiro amor e que, no fim, acabaria se casando com Júnior
Parker. Mesmo assim, seu coração ainda alimentava a
esperança de amar. Uma esperança frágil e quase
totalmente sufocada, mas que ainda existia.
Depois de ser arrastada rudemente por Júnior
através de todo o salão, durante quatro danças, Cindy já
havia quase se esquecido do estranho. Batendo palmas e
movendo os pés com alegria e descontração, deixou-se
levar pela música e permitiu que seu espírito, por tanto
tempo reprimido por um pai autoritário e três irmãos
superprotetores, voasse nas asas da imaginação.
Depois de mais algumas músicas, o violinista
parou e desceu do palco, sendo substituído por um
grupo de tocadores de banjo e violões, que deram início
a uma seleção de baladas lentas e nostálgicas.
Quando Júnior puxou Cindy desajeitadamente de
encontro ao seu corpo, ela fingiu que estava dançando
com o estranho num lindo salão de baile, ao som de uma
orquestra completa. Em vez do vestido rodado que
estava usando, viu-se num longo de seda vermelha e
brilhante, que tocava o chão cada vez que rodopiava, ao
ritmo de uma valsa. Seus cabelos, negros como a noite,
não pendiam soltos e lisos sobre seus ombros, mas
achavam-se presos na nuca, num coque elegante e
delicado, as sandálias...
Cindy quase caiu sobre o peito de Júnior, coberto
por uma grosseira camisa de algodão, quando ele a
soltou. O movimento interrompeu seus sonhos e ela
abriu os olhos e teve que piscar várias vezes, para se
convencer de que estava realmente nos braços do
estranho. Lançando um olhar rápido e nervoso para
Júnior, que se afastava de cara fechada, tentou acalmar-
se e ignorar as fortes batidas de seu coração, que parecia
querer saltar-lhe do peito.
— Já não nos encontramos em algum lugar? — o
estranho brincou, apertando-a com os braços
musculosos.
— Você me parece deliciosamente familiar.
Cindy ergueu os olhos grandes e luminosos — tão
escuros que até pareciam duas manchas de tinta
nanquim — e encarou-o. Sua expressão ligeiramente
confusa fez um sorriso divertido surgir nos lábios
masculinos.
— Não olhe para mim como se estivesse vendo um
fantasma. — Os braços fortes apertaram-se mais em
volta da cintura dela. — Finja que está contente por me
ver.
— Eu... eu estou. — Cindy disse baixinho. — É que
eu não esperava que você voltasse. — Seus lábios
entreabriram-se num gesto provocante e ao mesmo
tempo inocente, enquanto se esforçava para dominar o
nervosismo.
— Você não achou que eu seria capaz de
abandonar uma beleza como você assim, sem mais nem
menos, achou? — perguntou ele, os olhos percorrendo-
lhe o rosto com franco interesse. Seu olhar era quase uma
carícia, e deteve-se por alguns segundos nos lábios dela.
Cindy sentiu o corpo latejar de excitação.
— Eu... eu não esperava mesmo ver você de novo
— repetiu, esforçando-se para recuperar um pouco de
sua autoconfiança costumeira, que parecia ter
desaparecido por completo, na presença do estranho.
— Qual é o seu nome?
Movendo-se com facilidade ao ritmo da música,
ele puxou-a de encontro ao peito forte e rodopiou pelo
salão. Cindy sentiu o coração bater mais forte ainda, se é
que isso era possível.
— Cindy, Cindy Lancaster — respondeu, com voz
rouca.
— Cindy é apelido de quê?
— Não é apelido de nada.
O estranho sorriu, e pela primeira vez Cindy notou
a leve cicatriz que ia de seu olho direito ao canto dos
lábios. A cicatriz acentuava seu ar atraente e misterioso,
e ela teve que se controlar para não lhe fazer perguntas a
respeito.
— Você tem uma linda voz — murmurou ele,
examinando-a de novo com os olhos frios.
Cindy corou, certa de que estava sendo vítima de
uma brincadeira de mau gosto, e olhou para o outro
lado.
"O pessoal da cidade tem razão em não gostar de
estranhos", pensou. Levantando a cabeça com altivez,
preparou-se para deixar o desconhecido plantado no
meio do salão, mas ele impediu-a, segurando-a com
firmeza.
Cindy sabia que estava chamando a atenção por
dançar com um sujeito de fora, e apesar de estar excitada
pelo toque dele, não viu razão para despertar a raiva do
pai, continuando nos braços de um homem arrogante
como aquele, que parecia se achar no direito de ter o que
quisesse.
— Me solte! — exigiu.
Mas outra música começou e ela se viu de novo nos
braços do estranho, como se aquele fosse seu lugar.
Ainda tentou se convencer de que nada daquilo tinha
significado, no que foi desmentida pelas fortes batidas
de seu coração. Estava tão encantada com o
desconhecido, que não conseguia desprender os olhos
do rosto dele.
— Eu sou Rane Randolph. Rane Dartsfield
Randolph, o terceiro. — Ele sorriu como se aquilo fosse
uma espécie de piada. — Parece que vou ficar preso
nesta cidade por algum tempo e, enquanto estiver aqui,
gostaria de conhecer você melhor. Muito melhor!
— Não! Você não pode — Cindy exclamou, o cora-
ção doendo de tristeza.
— Não?! E por que não?
— Eu... nós... — Um movimento atrás de Rane
chamou sua atenção, e ela viu Júnior se aproximando,
com cara de poucos amigos.
— Minha dança! Minha garota — ele anunciou,
com grosseria.
Apesar de aliviada por não ter que dar uma
explicação embaraçosa, Cindy sentiu-se deprimida.
Mesmo sabendo que algumas danças era tudo que
poderia ter do estranho, não queria se privar desse
prazer. Imperturbável, Rane passou-a para os braços de
Júnior.
— Sua dança, sua garota — comentou, com secura,
piscando o olho para Cindy.
Ela lançou-lhe um breve sorriso, e não foi capaz de
esconder o desapontamento, ao vê-lo sumir de vista.
Rodopiando no salão nos braços de Júnior, sentiu-se
repentinamente grata aos céus, que lhe tinha permitido
partilhar pelo menos aquelas danças com o estranho.
— Não fique se exibindo na frente da cidade inteira
— Júnior avisou-a. — Não gosto de ser feito de tolo.
De repente, zangada com Júnior e com todos que
desejavam que se casasse com ele, Cindy soltou-se e
começou a se afastar, os punhos cerrados de raiva.
Júnior seguiu-a.
— Minha dança.
A voz de Rane impediu Cindy de tomar uma
atitude impensada. Ele se colocou entre ela e Júnior e,
certo de ser bem recebido, tomou-a nos braços.
— Esse rapaz é seu namorado? — perguntou, indi-
cando com a cabeça morena Júnior, que, sentado numa
das cadeiras arranjadas em torno do salão, observava-os
com hostilidade.
— Não exatamente — disse ela, sem achar que
estava mentindo. É verdade que todos na cidade
consideravam Júnior seu namorado, mas seu coração
não aceitava esse fato. E agora, que Rane Randolph tinha
lhe mostrado que existia mesmo outro tipo de homem no
mundo, jamais aceitaria.
No entanto, uma vozinha em seu interior
sussurrou-lhe que, no fim, a solidão seria grande demais
para suportar, e que acabaria aceitando Júnior Parker
como marido.
O olhar pensativo de Rane examinou-lhe o rosto,
enquanto se moviam pelo salão.
— Quantos anos você tem, Cindy?
— Vinte e um.
Cindy só faria vinte e um anos dali a dez dias, mas
no seu modo de ver essa mentirinha não tinha
importância, já que nunca mais veria o estranho, depois
daquela noite.
— E você? Quantos anos tem? — Estava certa de
que ele devia ter pelo menos trinta anos. Rane parecia ser
mais velho que o mais velho de seus irmãos.
— Uma moça bem-educada não pergunta a idade
de um homem — ele brincou, rodopiando com
agilidade.
— Mas você perguntou a minha. Por acaso os
homens têm privilégios que as mulheres não têm, no
lugar de onde você veio? — Cindy sabia que estava
flertando com o estranho, mas que mal podia haver
nisso?
Rane jogou a cabeça para trás e riu abertamente.
— Não — respondeu, afinal. — Na verdade, é bem
ao contrário. Onde você vive?
— Alguns quilômetros montanha acima, além do
riacho.
— Alguns quilômetros montanha acima — ele
repetiu, imitando o jeito dela falar. — E o que vocês
fazem, alguns quilômetros montanha acima?
— Cultivamos a terra.
— Cultivam a terra?! Vocês vivem do que a terra
dá?
— Vivemos — Cindy murmurou, já na defensiva,
com medo de que ele estivesse fazendo pouco do modo
como sua família ganhava a vida. — Onde você mora?
— Será que você é capaz de saber onde fica, se eu
lhe disser? Já saiu dessas montanhas, alguma vez?
Ela corou de leve e levantou o queixo, muito
zangada.
— Eu posso não ter viajado tanto quanto você, mas
não sou uma dessas caipironas que nem sabem dizer que
horas são, como está pensando!
— Que horas são? — Rane indagou, muito sério.
Automaticamente, Cindy olhou em torno, à
procura de um relógio, apesar de saber que não havia
nenhum no salão de baile.
— Não sei — retrucou com aspereza, imaginando
por que ele estaria lhe perguntando isso, se tinha um
relógio caríssimo no pulso.
— Está vendo? Você não sabe que horas são.
Rane riu, o que aumentou ainda mais a zanga de
Cindy. Como é que ele podia ser tão desagradável e atra-
ente, ao mesmo, tempo, ela não fazia ideia.
— Se você não parar de rir de mim, eu... eu paro de
dançar com você — ameaçou, os olhos brilhando como
duas brasas.
O sorriso nos lábios dele diminuiu, mas a
expressão divertida do olhar aumentou.
— Não faça isso! Eu teria que devolvê-la ao seu
amigo grosseirão, e você é bonita demais para ele.
— Então, pare de rir de mim — ela insistiu, os
olhos cheios de indignação. Mesmo não querendo voltar
para Júnior, não ia permitir que aquele estranho caçoasse
dela. — Onde você mora, afinal?
— Onde a noite nunca cai — foi a resposta miste-
riosa que recebeu. — No lugar onde as luzes brilham em
toda a sua glória, por horas sem fim.
Cindy pensou durante alguns momentos.
— Alasca! — exclamou finalmente. — Eu li, uma
vez, que no verão o sol brilha vinte e quatro horas por
dia, no Alasca.
Foi fácil ver o esforço que ele estava fazendo para
não rir.
— Você é um encanto! Tão pura e sem complica-
ções... Mas mesmo assim, está errada. Eu moro em Las
Vegas, no estado de Nevada.
Ela arregalou os olhos. Estava pronta para lhe
dizer que pouco se importava em saber onde ele morava
ou deixava de morar, mas essa resposta, mudou tudo.
— Não.
— Não? — Cindy parou de dançar, mas não se
afastou dos braços dele, quando a música foi
interrompida por alguns momentos.
— Minha família é dona de um hotel, lá.
Automaticamente, Rane voltou a dançar, quando a
música recomeçou. Um olhar sonhador surgiu no rosto
dela.
— Eu adoraria conhecer Las Vegas — confessou.
— Tenho muita vontade de viajar, mas meu pai não quer
nem ouvir falar nisso. Ele acha que viagens despertam o
espírito nômade nas mulheres, e então elas se tornam
incapazes de desempenhar o papel para o qual foram
feitas. — Abaixou os longos cílios e sorriu com
nervosismo. — Para o meu pai, as mulheres nasceram
para se casar e criar filhos.
— Hummm. E sua mãe também acredita nisso?
Cindy sentiu-se embaraçada ao ouvi-lo mencionar
sua mãe, um assunto que a assustava quando era criança
e que, até hoje, achava desagradável.
— Acho que não — murmurou, os olhos escuros
espelhando infelicidade. — Acho que ela tinha espírito
nômade. Eu ainda era uma criança, quando ela nos aban-
donou.
De repente, percebendo que tinha revelado ao
estranho algo íntimo e vergonhoso, virou a cabeça para
o outro lado.
— E você quer fazer o que ela fez, para descobrir
se existe um tipo de vida melhor, além dessas
montanhas?
Cindy levantou os olhos e enfrentou os dele, que
pareciam mostrar um interesse verdadeiro.
— Eu gostaria muito, mas meu pai jamais
permitirá. A música terminou sem que Cindy desse por
conta disso. Foi só quando sentiu os olhares hostis dos
outros que percebeu que estava em pé no meio do salão,
com os braços de Rane em torno de seu corpo.
Entendendo a razão dessa hostilidade, abaixou a cabeça
e, no momento em que um dos músicos deu início a uma
lenta balada de amor, respirou, aliviada.
— Venha cá, Cindy — o músico gritou. — Venha
cantar alguma coisa para nós.
Ela levantou os olhos para Rane e viu que ele a
observava com um novo interesse.
— Esta noite não, Harry — disse, livrando-se dos
braços que a envolviam. Gostava muito de cantar e rara-
mente se recusava a fazê-lo, mas não queria mostrar ao
estranho esse lado secreto de si mesma.
— Deixe disso, Cindy — Harry insistiu, não que-
rendo aceitar a negativa.
— Eu gostaria muito de ouvir você cantar —
murmurou Rane.
Harry mudou para uma melodia lenta, que
contava a história de uma moça que havia trocado seu
lar nas montanhas pela vida na cidade, só encontrando
tristeza. Era uma das favoritas de Cindy e, um pouco
sem jeito, ela foi para o palco. A presença do estranho era
enervante, e foi com uma certa apreensão que parou ao
lado de Harry, esperando sua deixa.
Não havia microfone, e quando Harry lhe deu o
sinal, começou a cantar com sua voz pura, ligeiramente
rouca. A balada era linda e melancólica, e ela cantou com
a inflexão certa, transmitindo a todos uma sensação de
tragédia.
Rane aproximou-se da plataforma para melhor
observá-la, e Cindy tentou não olhar para ele. Uma vez,
sua voz tremeu, o que a deixou embaraçadíssima.
Quando terminou, desceu depressa do palco e
encontrou-o à sua espera, a mão estendida. Aplausos
ressoavam por todos os lados do salão, enquanto
cruzava a multidão com ele. Foi só quando estava perto
da porta, que viu Júnior Parker seguindo-a com os olhos,
furioso.
— Você cantou tão mal assim, que tem que sair
correndo? — Rane brincou, afastando os pensamentos
dela de Júnior.
— Não, é que já é meia-noite. — A ideia de que ele
não havia gostado de seu modo de cantar encheu-a de
dor.
— E à meia-noite todos nós viramos ratos?
— Não. A dança termina à meia-noite — explicou
ela, exasperada. — Um de nós sempre canta a última
canção. Isso nos dá a oportunidade de participar mais.
Depois, a dança termina.
— Você participou lindamente. Sua voz é
extraordinária e considero uma sorte ter podido ouvi-la.
Cindy sorriu, contente com o elogio sincero, apesar
de já ter recebido milhares de cumprimentos do pessoal
local. Nas montanhas, dizia-se que Cindy Lancaster
tinha o dom do canto.
— Bondade sua — murmurou, corando.
— Não, de jeito nenhum — Rane protestou, o que
a deixou mais contente ainda.
Quando Cindy saiu do salão, Rane seguiu-a. Ela
caminhou por alguns momentos sob a lua cheia,
procurando a velha caminhonete vermelha do irmão,
consciente da presença dele a seu lado. Sabia que os
olhos cinzentos estavam fixos em seu rosto, mas não teve
coragem de retribuir o olhar.
Outras pessoas começaram a passar por eles, e, a
princípio, pensou que a mão que estava tocando a sua
era de uma delas. No entanto, logo o instinto lhe disse
que uma pele tão lisa e macia só podia pertencer a Rane.
— Eu gostaria de levá-la para casa — ouviu-o mur-
murar junto à sua orelha —, mas...
— Não é preciso. Meu irmão deve aparecer logo.
— Deu um passo para trás, afastando-se dele.
Rane estendeu a mão e, tomando de novo a dela,
puxou-a para a sombra do velho edifício. Perturbada, o
coração batendo forte no peito, com um pouco de medo
e um pouco de expectativa, Cindy deixou-se levar. Logo
os braços dele fecharam-se em torno de sua cintura e
lábios experientes apossaram-se dos seus, num beijo
apaixonado. Sem a menor vergonha, ela agarrou-se a ele,
saboreando a excitação do momento e o modo louco
como seu corpo estava reagindo à carícia deliciosa.
Trêmula de desejo, cedeu à emoção que a invadira e
correspondeu ao beijo com o ardor que só a inocência e
a paixão recém-despertada são capazes de dar. A
vontade que estava sentindo de acariciar e ser acariciada
era tão grande, que suplantou o medo de ser
surpreendida pelo irmão.
Rane finalmente soltou-a e afastou-a um pouco,
para poder ver a expressão de seus olhos, que brilhavam,
atordoados. Nos olhos dele também havia um brilho es-
tranho.
— Passei a última hora inteira, com vontade de
beijá-la. Valeu a pena esperar — disse, com voz rouca.
"E eu passei a última hora inteira, com vontade que
você me beijasse", Cindy pensou.
Ligeiramente ofegante e ainda atordoada, livrou-
se dos braços dele e olhou em volta, quase certa de
encontrar os olhares desaprovadores de toda a cidade
fixos nela. Uma coisa era trocar um rápido beijo com um
rapaz local, e outra muito diferente trocar uma carícia
profunda com um completo estranho, que acabara de
encontrar.
Rane tentou puxá-la de novo para junto de si, mas,
em nome da honra, Cindy resistiu.
— Não faça isso — protestou, louca de vontade de
provar outro dos beijos dele. Seria delicioso sentir de
novo o contato do corpo rijo e musculoso de encontro ao
seu. — Eu nem conheço você direito e todo mundo vai
falar.
Virando-se, Cindy viu Harvey, seu irmão mais
velho, caminhando na direção deles, e por um momento
imaginou, quase em pânico, se ele não teria visto o beijo
apaixonado de alguns segundos atrás. Mas não, ele
estaria lívido de raiva, se tivesse visto.
— Vamos, Cindy — Harvey grunhiu, agarrando-a
pela mão e arrastando-a para a caminhonete como se ela
fosse incapaz de se mover sozinha.
Cindy libertou-se com um safanão e lançou um
rápido olhar para Rane, antes de seguir o irmão. Na ca-
minhonete, sentou-se no banco alto e apoiou o cotovelo
na janela, cobrindo os olhos parcialmente com a mão.
Desse jeito, podia observar os arredores, à procura de
Rane, sem que Harvey percebesse.
Mas Rane não estava em lugar nenhum, percebeu,
o coração doendo por algo que poderia ter sido, mas que
jamais aconteceria. Aquela noite tinha sido seu único en-
contro com o romance. Durante os longos anos de vida
que estavam por vir, só teria a lembrança daqueles mo-
mentos para aquecer suas noites de inverno e os dias
áridos que partilharia com Júnior Parker, numa casinha
nas montanhas.
CAPÍTULO II

— Um momento!
A voz profunda veio do outro lado da
caminhonete, interrompendo abruptamente os
pensamentos de Cindy. Sua surpresa em ver Rane logo
foi substituída por excitação.
— Vocês poderiam me dar uma carona até o hotel
mais próximo?
— Aqui não há hotel — replicou Harvey.
— Não há hotel?! Eu deveria ter adivinhado. Meu
carro está na oficina de Ron Geeter e, ao que parece, vai
ficar lá a semana inteira. Há alguém na cidade que
poderia me hospedar, durante esse tempo?
— Lucy Wakney às vezes aluga quartos para estra-
nhos — Harvey informou. — Já é tarde, mas acho que ela
não vai achar ruim, se você for até lá.
O coração de Cindy estava quase saltando pela
boca, mas ela mordeu a língua e esperou o irmão falar.
Gostaria de oferecer a casa deles a Rane, mas não disse
nada. Cabia a Harvey oferecer hospitalidade a um
estranho, principalmente um estranho do sexo
masculino. No entanto, para seu desespero, ele não
parecia estar disposto a fazer isso.
— Eu ficaria grato se você me desse uma carona até
lá — Rane pediu, sorrindo para Cindy à luz do luar.
— Naturalmente, eu lhe pagaria pelo serviço
prestado.
— Não é preciso — replicou Harvey. — Suba lá
atrás.
Cindy teve que se controlar, para não convidar
Rane a sentar-se na frente, com eles. Aquela era,
provavelmente, a última vez que o veria, e estava louca
de vontade de fazer a curta viagem até a casa de Lucy ao
lado dele. Não disse nada, porque teve medo da reação
do irmão.
Quando chegaram à cabana de toros onde Lucy
vivia, Harvey encostou à margem da estrada de terra e
Rane desceu. Do chão, ele acenou para os dois irmãos e
caminhou para a porta da frente. Sem esperar que Lucy
atendesse, Harvey arrancou e enveredou pela estradinha
serpenteante, ladeada de árvores, que levava à sua
própria cabana de toros, aninhada no alto da montanha.
— Você poderia ter esperado que Lucy o atendesse
— Cindy queixou-se, olhando para trás para ver se
ainda vislumbrava Rane.
— Nós não temos nada com a vida dele.
— Além disso, poderíamos ter lhe oferecido uma
cama na nossa casa — continuou, fingindo displicência.
— Teria sido um gesto educado.
Harvey lançou-lhe um rápido olhar e depois fixou
a atenção na estrada, mostrando claramente que achava
esse comentário indigno de uma resposta.
Já eram quase meia-noite e meia, quando Cindy
acomodou-se no velho colchão de penas que tinha sido
de sua avó. As noites ainda eram frias, e ela puxou a
colcha de retalhos até o queixo, antes de fechar os olhos
e começar a relembrar os acontecimentos daquela noite.
De novo, sentiu o corpo dele de encontro ao seu,
saboreou a emoção deliciosa do beijo que tinham trocado
e, muito corada, reviveu a sensação das mãos másculas
deslizando por sua pele. De repente, percebeu que estava
imaginando como seria entregar-se inteiramente a ele,
uma coisa que nenhuma mulher deveria fazer, a menos
que estivesse pensando em se casar. Inquieta, virou-se na
cama e tentou afastá-lo dos pensamentos. Estava
começando a adormecer, quando uma forte batida na
porta ressoou pela casa. Logo depois, a voz de Lucy
Wakney chegou-lhe aos ouvidos.
— Desculpe acordar você a esta hora, Willie, mas
este rapaz apareceu na minha casa querendo uma cama,
e já estou com todas alugadas. Houve um acidente na
estrada, e estou hospedando várias pessoas, enquanto
Ron dá um jeito no carro delas. Não queria acordar você
tão tarde, mas não faz parte do código destas montanhas
deixar um visitante ao relento, e este rapaz disse que
conhece a sua Cindy. Cindy e Harvey é que lhe deram
uma carona até a minha casa.
Cindy teve a impressão de que seu coração ia parar
de bater. Rane estava ali, na porta de sua casa, e tinha
dito que ela o conhecia. Seu pai na certa ficaria uma fera,
ao ver um estranho aparecer àquela hora da noite, decla-
rando uma coisa dessas. Apelando para todo seu
autocontrole, sufocou o impulso de se levantar e explicar
em que circunstâncias o conhecera. Então, incapaz de
suportar o suspense por mais tempo, foi até a porta e
abriu-a um bocadinho. Seu quarto era o primeiro no alto
da escada, por isso pôde ouvir, com clareza, a maior
parte da conversa.
— Desculpe termos acordado o senhor, sr.
Lancaster —. Rane disse —, mas dancei com Cindy esta
noite e, como sabia que ela e o irmão tinham acabado de
voltar para casa, vim para cá na esperança de encontrar
alguém acordado. A sra. Wakney me garantiu que ficaria
com a consciência pesada, se deixasse um visitante ao
relento, e quis saber quem tinha me levado até a casa
dela. Naturalmente, eu lhe disse que foi Cindy.
— Lucy tem razão, senhor...?
— Rane Randolph — apresentou-se ele, com uma
segurança que fez Cindy sentir orgulho, só de ouvi-lo.
— Sr. Randolph. — O pai dela repetiu. Apesar de
não estar contente com os acontecimentos, ele não
recusaria hospitalidade ao estranho. — Pode ir para casa,
Lucy — disse, antes de voltar-se para Rane e perguntar,
num tom de voz ligeiramente desconfiado: — Como foi
que o senhor conheceu minha filha?
— Meu carro quebrou na estrada, e eu caminhei até
chegar ao salão de festas, que era o único lugar
iluminado na cidade. Cindy fez a gentileza de indicar o
dono da oficina para mim. Depois da dança, ela e o irmão
me deram uma carona até a casa da sra. Wakney.
— O que era a única coisa decente a fazer. Meus
filhos foram bem-educados. — A severidade havia
sumido da voz dele.
— Tenho certeza de que sim — Rane comentou, e
Cindy achou que havia uma certa zombaria em seu
modo de falar. O sangue subiu-lhe ao rosto.
"Quem é ele, afinal, para se considerar tão impor-
tante?", pensou, indignada.
— O que é que você veio fazer aqui, rapaz?
— Na verdade, estou aqui a passeio. Eu estava
fazendo muitas viagens de negócios, e achei que já era
tempo de tirar umas férias e visitar as montanhas.
— Hum. — Cindy ouviu o pai resmungar. Tendo
trabalhado com as mãos a vida inteira, ele
provavelmente não considerava os negócios de Rane
como um trabalho de verdade, nem entendia a
necessidade dele de tirar alguns dias de férias. — Venha
comigo. Não temos quarto de hóspedes, mas no quarto
dos meus rapazes há uma cama sobrando, onde você
pode se acomodar.
— Muito obrigado. Mais uma vez, eu lhe peço des-
culpas por incomodar o senhor, a esta hora da noite.
— Não é incômodo nenhum.
Ouvindo os passos dos dois na escada, Cindy
fechou depressa a porta. Depressa demais, pois fez um
barulhão, que ecoou por toda a casa. Mais uma vez,
imaginou se o estranho estaria rindo dela. Quase podia
acreditar que ele era capaz de vê-la, atrás da porta, e
sentiu uma vergonha enorme das emoções que a simples
presença dele era capaz de provocar em seu íntimo.
O quarto dos rapazes ficava depois do seu, e eles
cumprimentaram Rane com vozes cheias de sono.
Quando a casa se aquietou de novo, Cindy voltou
para a cama e fechou os olhos, tentando não pensar em
Rane, mas foi inútil. Todo o seu corpo vibrava de
excitação, por saber que ele estava dormindo a poucos
passos de distância. Nunca, antes, conhecera um homem
como ele. Era quase como se Rane Randolph tivesse
saído diretamente de seus sonhos.
A ideia de como seria deitar-se ao lado dele e sentir
aqueles lábios acariciando-a- insinuou-se em sua mente,
e Cindy mexeu-se na cama, inquieta. Nenhuma mulher
decente se deixava levar por pensamentos desse, tipo, e
ela era uma mulher decente. No entanto, sempre que
pensava em Rane, a canção do amor despertava em seu
coração, e era difícil abafar as notas de felicidade. Já era
quase dia, quando finalmente conseguiu adormecer.
Com os primeiros raios de sol, uma brisa gostosa
começou a soprar pela fenda da janela, tocando as faces
de Cindy como uma gentil carícia. Relutante, ela abriu os
olhos escuros e se espreguiçou. Depois, de um salto, sen-
tou-se na cama e envolveu-se na colcha. Vinda do quarto
dos rapazes, ouviu a voz educada de Rane, falando com
Harvey. Era impossível distinguir as palavras e, na ponta
dos pés, ela foi até a porta e abriu-a. Não vendo ninguém,
deslizou para o corredor, vestida apenas com uma indis-
creta camisola cor-de-rosa... e caiu diretamente nos bra-
ços de Rane.
— Oh! — exclamou, surpresa. — Não vi você.
Depressa, cobriu-se com os braços, mas isso só
serviu para chamar a atenção de Rane para os seios que
estava tentando esconder. Seu pulso se acelerou, quando
o olhar dele fixou-se no vale profundo e provocante.
— Não, mesmo?
Muito corada, Cindy fugiu das mãos que a
seguravam, entrou no quarto e trancou a porta.
Encostou-se então na madeira e por vários segundos
ficou lá, esperando o coração se acalmar.
"Oh, por que não olhei direito?", censurou-se. "A
última coisa que queria era que Rane Randolph me visse
com esta velha camisola, descabelada e com o rosto por
lavar!"
Ela continuou no quarto por mais algum tempo,
depois colocou um penhoar e saiu cautelosamente. Desta
vez, o corredor estava vazio e pôde ir, sem perigo, até o
banheiro.
De volta ao quarto, tirou do guarda-roupa uma
saia rodada vermelha e uma blusa branca, estilo
camponesa, que vestiu sem sutiã. Depois de pronta,
examinou-se com cuidado no velho espelho preso na
parede, antes de puxar o decote elástico da blusa, até
expor os ombros e o início dos seios.
— Afinal, por que não? — perguntou a si mesma,
dirigindo-se para o andar de baixo, a fim de assumir a
rotina diária.
Primeiro, foi buscar ovos no galinheiro, alimentou
as galinhas e, antes de voltar para casa, pegou uma
porção de carne de porco defumada, no defumador. Na
cozinha, amarrou um avental vermelho na cintura e
começou a preparar o café da manhã, esforçando-se para
não pensar em Rane.
Enquanto acendia o fogo e coava o café, podia
ouvir as vozes dos homens ressoando pela casa.
Depressa, fez alguns biscoitos de manteiga e colocou-os
no forno. Em seguida, fritou alguns pedaços de carne de
porco defumada e quebrou sobre eles uma dúzia de
ovos. Quando tudo ficou pronto, pôs a mesa para seis e
anunciou, tirando o avental e ajeitando os cabelos:
— O café está pronto!
Seus olhos brilharam, quando Rane entrou na
cozinha. Muito educado e parecendo sofisticadíssimo ao
lado dos outros, que usavam macacões de brim, ele
aproximou-se da mesa e esperou que o sr. Lancaster lhe
mostrasse o lugar onde deveria sentar. Então, com os
olhos fixos em Cindy, acomodou-se.
Ela sustentou o olhar dele com ousadia por um ins-
tante, antes de virar-se. Os dedos tremendo muito,
retirou os biscoitos do forno e colocou-os sobre a mesa,
ao lado dos outros alimentos. Em seguida, pegou os
vidros de geleia de maçã e pêssego e a manteiga feita em
casa.
— Bom dia — murmurou para todos, os olhos es-
curos mais uma vez procurando os de Rane.
Seus irmãos e o pai ainda estavam sonolentos, e
responderam ao cumprimento com gestos de cabeça e
resmungos. Só Rane, totalmente acordado, replicou:
— Bom dia.
E só Rane esperou que ela se sentasse, antes de
começar a comer.
— Sirva-se — Cindy lhe disse, sentando-se na
cadeira em frente à dele.
— O que você faz para viver? — perguntou o sr.
Lancaster de repente, dando início à conversa.
— Meu pai e eu somos donos da maioria das ações
de um hotel em Las Vegas. Também fazemos
investimentos em vários outros tipos de negócios —
Rane explicou educadamente, muito à vontade. — Vim
para cá de férias, mas também para dar uma olhada na
região, estudando novos investimentos. Geralmente faço
isso de avião, mas nas montanhas o único jeito de se ter
uma visão melhor do cenário é de carro. — Balançou a
cabeça. — Os carros são uma ótima invenção, mas de vez
em quando nos colocam em situações bem
inconvenientes — terminou, obviamente referindo-se à
situação em que se encontrava.
— Mas as montanhas são lindas, não são? — Cindy
disse. E, ignorando o olhar de advertência do pai, conti-
nuou: — Eu adoraria conhecer todas elas.
Tom, seu irmão mais novo, de dezessete anos,
olhou pensativamente de Rane para Cindy. Depois,
olhando de novo para Rane, perguntou:
— O senhor já e casado, sr. Randolph? Minha irmã
cozinha bem, não acha?
— Tom Lancaster! — Cindy ficou horrorizada com
o que o irmão estava tentando fazer. Furiosa, deu-lhe um
pontapé por baixo da mesa, mas ele não deu
demonstração de ter sido atingido.
Em compensação, as sobrancelhas de Rane ergue-
ram-se subitamente, o que a fez desconfiar que tinha
chutado a pessoa errada. No entanto, como o rosto dele
não registrou nenhum sinal de dor, achou que havia se
enganado.
— Não, eu ainda não sou casado — respondeu
Rane, com secura, os olhos fixos em Cindy. Não havia
sombra de sorriso em seus lábios, e ela teve a nítida
impressão de que ele havia compreendido a insinuação
de Tom e não estava gostando nem um pouquinho.
— Outro biscoito? — ofereceu, agarrando o prato e
colocando-o na frente de Rane, para distrair a atenção
dele. Levou alguns segundos para perceber que, com
isso, parecia estar participando do complô de Tom. Seus
biscoitos eram os melhores da região, e já haviam
recebido inúmeros elogios da população local.
— Não, obrigado — Rane recusou com delicadeza,
um brilho estranho nos pensativos olhos cinzentos. —
Sua comida é deliciosa, mas estou satisfeito. — Virou-se
então para Tom e comentou, com ar divertido: — Ao que
parece, sua irmã tem muitos talentos: não só é bonita,
como também cozinha bem e canta como um anjo. Tenho
certeza de que poderia transformá-la numa estrela em
pouco tempo, se conseguisse convencê-la a ir para Las
Vegas comigo.
O coração de Cindy disparou. Ela esperou que o
pai e os irmãos dissessem alguma coisa, mas eles apenas
trocaram olhares duros, entre si. Incapaz de aguentar por
mais tempo, ela levantou-se da mesa sem acabar de
comer, zangada e embaraçada. Como Tom pudera fazer
uma coisa daquelas? E como os outros podiam continuar
calmamente sentados, como se nada tivesse acontecido?
O fato de o estranho ter seguido em frente com o jogo e
elogiado sua comida e seu canto não tinha importância.
Na verdade, até tornava tudo pior.
Com os olhos cheios de lágrimas e o rosto corado
de vergonha, Cindy começou a encher a pia de água.
Pela centésima vez em sua vida, sussurrou em seu
coração para a mãe, da qual mal se lembrava:
"Você estava certa em fugir. Tinha razão, ao tentar
encontrar um tipo de vida que lhe desse mais felicidade."
Os homens levantaram-se e, conversando, foram
para a sala. Ela ouviu Harvey oferecendo-se para levar
Rane à oficina, a fim de pegar a mala que estava no carro,
e logo depois a porta da frente bateu. Só quando o
barulho da caminhonete sumiu na distância, é que
deixou as lágrimas de vergonha escorrerem livremente
pelo rosto. Mas esta fraqueza, não durou muito; tinha
trabalho demais a fazer, para perder tempo tendo pena
de si mesma. Tentando recuperar o controle perdido,
sentou-se à enorme mesa de carvalho, com uma xícara
de café na mão. Achou que ficaria contente quando o
estranho fosse embora, pois ele levaria junto seus sonhos
românticos e a vergonha daquela manhã. Seria
impossível encará-lo, depois da tentativa de Tom de
empurrá-la para ele, como se fosse um objeto que
estivesse à venda.
Seus olhos moveram-se para o quadro preso na
parede em frente, um pedaço de pano branco onde
estava escrito, em letras góticas: O amor cura tudo. Ela o
bordara durante o último ano de vida da avó. A velha
senhora achava que não existiam palavras mais sábias
que aquelas e, na época, Cindy tinha acreditado nela.
Agora, já não estava mais tão certa.
Lágrimas de humilhação recomeçaram a escorrer
por seu rosto, mas ela enxugou-as e começou a tirar a
mesa, decidida a não pensar mais naquilo. Seu destino
estava ali, nas montanhas, numa cabana de toros,
lavando pratos, cozinhando, costurando e sonhando
sonhos que se tornariam cada vez mais desbotados pelo
tempo.
Suspirando desiludida, Cindy segurou uma pilha
de pratos sujos e virou-se para a pia. Foi então que seu
coração deu um salto e ela quase deixou cair tudo: em pé
na porta da cozinha, os braços cruzados no peito, os
olhos admirando suas pernas bem-feitas, estava Rane.
— Oh! Pensei que você tivesse saído com papai e
os rapazes. — As pernas de Cindy tremiam tanto, que ela
teve que se apoiar na mesa, para não cair.
— Eles me levaram para pegar a bagagem, depois
me trouxeram de volta — Rane explicou, com um sorriso
insolente. — Seu pai disse que tinham muito trabalho a
fazer, e como eu não tinha o menor desejo de passar a
manhã subindo montanhas, à procura de lenha, vim para
cá.
— Mas as montanhas são gloriosas, nesta época do
ano — Cindy disse, já esquecida do incidente daquela
manhã. — As macieiras estão em flor, a grama está mais
verde do que nunca, as flores já desabrocharam. A paisa-
gem fica de um colorido maravilhoso! Aposto que você
nunca viu uma coisa igual na sua vida.
— Não, mesmo? — Um sorriso indulgente surgiu
nos lábios dele. — Bem, se você me convidar para dar
uma volta pela montanha, aceitarei com prazer. O que
acha? Vai me convidar?
— Será um prazer. Mas primeiro tenho que
terminar de lavar a louça.
Com passos ágeis, Rane atravessou a cozinha e
sentou-se numa das cadeiras, junto à mesa.
— Tudo bem, não há pressa.
Mas foi impossível, para Cindy, ficar à vontade
com ele sentado ali, observando-a. Trêmula da cabeça
aos pés, lavou os pratos o mais depressa que pôde e foi
limpar a mesa. No exato momento em que se inclinou
para recolher os farelinhos de pão, que estavam sobre a
toalha, Rane levantou-se e segurou-a pela cintura.
Cindy levou um susto tão grande, que deixou cair
todos os farelinhos. No entanto, não resistiu quando ele
virou-a de frente para si e puxou-a de encontro ao peito.
O coração batendo forte, viu o rosto dele aproximar-se e
logo sentiu os lábios másculos pousarem nos seus, num
beijo gentil e suave.
A ideia de que estava tendo um procedimento
terrível, ao deixar que um estranho a beijasse na cozinha
de sua casa, passou-lhe pela mente, mas foi logo abafada
pelo êxtase que a carícia apaixonada despertou em seu
íntimo. Erguendo os braços, envolveu o pescoço de Rane
e moldou o corpo ao dele, esquecida de tudo, a não ser
da necessidade de corresponder àquele beijo.
Finalmente, com o corpo em chamas e atordoada
pela virilidade que emanava do corpo forte colado ao
seu, jogou a cabeça para trás e olhou-o. De imediato,
percebeu que não poderia dizer nada, pois tinha gostado
tanto do beijo, quanto Rane. Confusa e envergonhada,
deu um passo para trás e, quando ele largou-a, inclinou-
se para terminar de limpar a mesa.
— Ande depressa — ouviu-o murmurar, a voz
rouca de desejo.
— Es... está bem — respondeu, afastando-se um
pouco mais. Seu rosto estava vermelho como um
pimentão, e, sentindo que precisava de alguns minutos
sozinha, para pôr em ordem as emoções, sugeriu: — Não
quer me esperar na sala da frente? Não vou demorar, e
lá é muito mais confortável.
— Não demore.
Com um sorriso agradável, Rane virou-se e foi
para a sala.
Cindy varreu a cozinha como um furacão, e o exer-
cício físico ajudou-a a recuperar o controle das próprias
emoções, criando forças em seu íntimo para resistir ao
toque dele. Quando terminou, tirou o avental, passou a
mão pelos cabelos e foi atrás de Rane. Encontrou-o sen-
tado no sofá, examinando uma cesta de palha trançada,
que ela enchera de flores secas, amarelas, vermelhas e
marrons.
— Estas cestas são feitas à mão? — perguntou ele,
indicando a cesta que estava examinando e as outras,
alinhadas junto à parede. — São muito bonitas.
— Obrigada. Fui eu quem as fiz.
— Tenho uma amiga que coleciona cestas. Ela tem
cestas de todos os lugares possíveis e imagináveis, mas
poucas são tão bonitas quanto estas.
Cindy sentiu-se inchar de orgulho. Sua mãe e sua
avó tinham lhe ensinado tudo que sabia sobre tecelagem
de cestas, e apesar de já ter recebido vários
cumprimentos por sua criatividade, era a primeira vez
que ouvia um elogio tão rasgado.
— Você é uma garota e tanto — continuou Rane,
fitando-a com olhos brilhantes. — Sabe cozinhar, tecer,
cantar e é linda. Além disso, é meiga e ardente nos braços
de um homem. Sujeito de sorte, o rapaz que conseguir se
casar com você! — Examinou-a de alto a baixo, de novo,
e recolocou a cesta no lugar, antes de se levantar.
Muito excitada, Cindy deu alguns passos para a
porta da frente. Estava certa de que os elogios dele só
tinham um objetivo: vencer sua resistência.
— Pronto para uma caminhada? — disse, tentando
aparentar calma e frieza.
O sorriso que surgiu nos lábios de Rane, quando
ele lhe estendeu a mão, fez seu coração dar um pulo no
peito. Nunca mais, em toda a sua vida, veria um homem
tão simpático e excitante. Disso, não tinha a menor
dúvida.
Enquanto caminhavam ao longo da estradinha de
terra que levava ao topo da montanha, Cindy viu Rane
olhar para trás e examinar a estrutura da casa. Sentiu
vontade de saber o que ele achava de seu lar, pois estava
certa de que a casa dele devia ser muito diferente da
velha cabana de toros, que já fora aumentada inúmeras
vezes, sem o menor planejamento, por várias gerações de
habitantes. Sua avó lhe contara que a cabana havia
começado com apenas um cômodo; as outras salas, o
banheiro e o andar superior tinham vindo depois. De um
modo geral, era uma estrutura feia, que não tinha
melhorado nem com todas as mãos de tinta branca e os
vasos cheios de flores coloridas que ela havia colocado
nas jardineiras, junto às janelas pequenas e estreitas.
Os olhos de Rane foram da cabana para a cerca em
volta, rachada em vários pontos, e, para distrair sua aten-
ção, Cindy apressou o passo e começou a apontar as
belezas do cenário. A encosta da montanha estava
coalhada de azáleas rosa e vermelha, mas ela logo notou
que o olhar dele estava mais em seu rosto que na
paisagem, e sua excitação cresceu.
Quando entraram numa trilha que dava a volta na
montanha, Cindy mostrou a Rane moitas de hera e louro
mais altas que um homem, e às vezes tão cerradas que
era impossível andar no meio delas. Atravessando a
floresta, ela levou-o até um grupo de cornisos,
totalmente floridos.
— Você sabia que, antigamente, os cornisos eram
árvores altas e fortes, e que a cruz de Cristo foi feita do
tronco de um deles? — perguntou. — É por isso que as
flores do corniso são como são. Olhe, dá para ver nelas o
desenho dos cravos que foram enterrados nos pés e nas
mãos de Cristo. — Pegou uma das pétalas rosadas e
estendeu-a para Rane. — Depois da crucificação de
Cristo, os cornisos nunca mais foram altos e fortes.
Rane sorriu com indulgência, os olhos brilhando,
divertidos.
— Você é um encanto — murmurou, segurando a
mão que lhe estendia a flor. — Tão meiga e natural!
— Mas o que estou dizendo sobre o corniso é
verdade — Cindy insistiu, certa de que ele não havia
acreditado em uma palavra do que dissera. — Dê uma
olhada nessa pétala, e verá por si mesmo.
Rane pegou a pétala e revirou-a entre os dedos
bem cuidados, examinando as quatro manchas verde-
escuras na superfície rosada.
— Tem razão — concordou, mas havia um sorriso
em seus lábios e sua voz parecia a de um adulto conspi-
rando com uma criança.
Decidida a ignorar o ar condescendente dele e a
raiva que estava começando a sentir, Cindy anunciou:
— Esta é a melhor época do ano, para se conhecer
as montanhas. Veja só aquelas macieiras. — Saindo do
meio dos cornisos, apontou para o agrupamento de ma-
cieiras totalmente cobertas de flores rosa e brancas.
— Elas são lindas, mesmo — admitiu Rane,
segurando-a de novo pela mão e caminhando para lá.
Contente com essa resposta, Cindy começou a se
descontrair e, alguns minutos depois, já estava
acreditando que a vergonha daquela manhã nunca tinha
existido. Cada vez que olhava para Rane, sua imaginação
criava asas, e logo pôs-se a fingir que era a mulher dos
sonhos dele, e ele, seu amor. Era emocionante estarem
tão perto um do outro, e, quando ele apertou sua mão e
depois levou-a aos lábios, não protestou, trêmula de
excitação.
— As flores daqui são quase tão bonitas quanto
você, minha linda flor das montanhas — Rane
murmurou de repente, os olhos procurando os de Cindy.
Então, largou a mão dela e, com um movimento ágil,
soltou os cabelos que ela havia prendido na nuca e
enterrou os dedos nos fios sedosos e brilhantes.
Paralisada por esse toque, Cindy mal conseguia
respirar. Sua vontade era capturar aquele momento nas
mãos e guardá-lo no coração, para todos os dias de sua
vida. Quando Rane pousou os dedos em sua nuca e
puxou-a de encontro a si, foi a perdição total; estava tão
aflita para ser acariciada por ele, que teve que se
controlar para não tomar a iniciativa e abraçá-lo. Agindo
numa espécie de transe, entreabriu os lábios para receber
os dele e entregou-se à paixão que a estava consumindo.
Não demorou a sentir a mão de Rane em seus seios, e foi
incapaz de protestar, quando ele empurrou-a para a
grama macia, coberta de flores de macieira. Também não
protestou quando os lábios dele desceram por seu
pescoço e encontraram o início de seus seios. Sua blusa
deslizou para baixo então, expondo-a aos olhos
cinzentos, ardentes de desejo, mas foi só quando a boca
máscula pousou num mamilo intumescido que
conseguiu reagir.
— Oh, você não deve fazer isso — murmurou,
tomando consciência do perigo da situação.
No entanto, antes que Rane pudesse dizer alguma
coisa, um barulho chamou sua atenção, e ambos
levantaram a cabeça para ver Júnior Parker a poucos
passos, montado num garanhão castanho.
— Vagabunda! — ele rosnou para Cindy, os olhos
brilhando de raiva. — Esse estranho não a ama. Você é
igualzinha à sua mãe, impressionada com essa gente de
cidade grande. — Sem esperar por uma resposta,
esporeou o cavalo e sumiu, montanha acima.
Reconhecendo a verdade nas acusações de Júnior
Parker, Cindy empurrou Rane para longe de si.
Lágrimas de humilhação vieram-lhe aos olhos, e ela
abaixou a cabeça, envergonhada.
— O que foi, minha flor? — Rane perguntou. —
Nós só trocamos um beijo! Uma coisinha à toa, sem a
menor importância.
— Pode não ter importância para você — Cindy
replicou, zangada e magoada —, mas para mim tem, e
muita. Quando você for embora, eu continuarei aqui,
marcada para sempre.
— Marcada?!
— Marcada como uma mulher perdida. Ela
sentou-se e Rane imitou-a, sorrindo divertido.
— Você está fazendo uma tempestade num copo
d'água. Imagine, alguém ficar marcada como uma
mulher perdida, só por causa de um beijo roubado!
— Um beijo dado livremente a um estranho — cor-
rigiu Cindy. — Além disso, a orgulho de Júnior Parker
está ferido. Ele quer... ou queria... se casar comigo, e
louco de raiva do jeito que saiu daqui, não sei do que será
capaz.
— Ele provavelmente não vai fazer nada.
Com ar ligeiramente aborrecido, Rane observou a
lágrima solitária que estava tremendo na ponta dos cílios
de Cindy. Cada vez mais enraivecida e magoada com ele,
ela secou a lágrima com um gesto brusco.
— Você não conhece Júnior Parker — murmurou,
virando-se para o outro lado —, e muito menos esta ci-
dade. Além disso, Júnior tem razão, você não me ama.
Rane estendeu as mãos e tentou puxá-la para junto
de si, mas Cindy resistiu.
— Júnior Parker não sabe o que eu sinto — disse
ele, e desta vez conseguiu puxá-la para perto de si.
— Você me ama?!
Antes que Rane pudesse responder, ela ouviu o
barulho de cascos de cavalo ecoando pela montanha, e
afastou-se depressa. Quase em pânico, pôs-se a arrumar
as roupas e os cabelos, passando as mãos pelo pescoço
como se estivesse com medo de ter ficado com a pele
marcada pelos beijos dele.
Os cavalos pararam abruptamente na frente deles
e Rane levantou-se, devagar e com calma. Desesperada,
Cindy viu o pai e os três irmãos, ao lado de Júnior Parker,
fixarem os olhos acusadores em seu rosto. E seu pai
estava com um rifle debaixo do braço, bem à vista! Ela já
o. vira em muitos acessos de raiva, mas nunca com os
olhos brilhando tanto, de ódio, como naquele momento.
Arrepiada de medo, virou-se para Rane, que
estava enfrentando a situação com uma dignidade
extraordinária.
— O senhor deseja alguma coisa? — ouviu-o
perguntar, demonstrando com essa simples frase sua
superioridade, arrogância e total falta de intimidação.
O sr. Lancaster ficou em silêncio por um momento,
depois disse, a voz mais parecendo um rosnado,
tamanha sua fúria:
— Você abusou de minha hospitalidade e tirou
vantagem de minha filha, estranho. Nestas montanhas,
não deixamos passar em branco esse tipo de ofensa. Tem
alguma coisa a dizer a seu favor?
Doente de medo, Cindy deu um passo para a frente
e colocou a mão sobre a perna do pai.
— Papai, ele não fez nada de errado...
Mas o sr. Lancaster empurrou a mão dela como se
tivesse sido tocado por algo sujo e impuro, e
interrompeu-a:
— Saia daqui, mocinha. Eu sempre soube que um
dia passaria vergonha, por sua causa. Você é igualzinha
à mãe, e era evidente que, por melhor que fosse a
educação que eu lhe desse, mais cedo ou mais tarde essa
semelhança iria aparecer. De hoje em diante, não quero
ter mais nada a ver com você, mas vou providenciar para
que este sujeito pague pelo que fez. — Olhou de novo
para Rane. — Você se divertiu com minha filha, e agora
vai pagar por isso. A justiça será feita. A menos que
tenha uma ideia melhor, estranho, vai salvar a honra de
minha filha: vai se casar com ela.
— Papai! — Cindy estava chocadíssima. — Nós
não fizemos nada que dê motivo a um casamento.
— Cale a boca, menina, antes que eu a feche para
você!
Os olhos cheios de lágrimas e o corpo rígido de
descrença e raiva, ela voltou-se para Rane, cujo rosto
mais parecia uma máscara de granito.
"Por que ele não diz alguma coisa?", pensou. "Por
que ele não diz ao meu pai que não fizemos nada vergo-
nhoso, que só trocamos um beijo?"
Seus olhares se encontraram por um rápido
segundo, e nos dele havia um desprezo que a gelou.
— Bem, estranho, estou esperando — o sr.
Lancaster declarou. — Não tem nada a dizer a seu favor?
Os olhos de Rane moveram-se, devagar e sem
medo, pelo grupo de homens da montanha. Cindy achou
que a expressão deles havia mudado quando se
detiveram por um momento em Tom, como se
estivessem cumprimentando seu irmão pelo sucesso do
plano deixado tão evidente, aquela manhã. Logo em
seguida, os olhos frios fixaram-se de novo no rosto de
seu pai.
— Creio que vamos ter um casamento na família,
sr. Lancaster — disse ele, num tom de voz ligeiramente
provocante.
Cindy sentiu-se atordoada. Aquilo não poderia
estar acontecendo!
— Não! — gritou. — Não vai haver casamento
nenhum!
— Cale a boca, menina! Ele vai salvar a sua honra...
por bem ou por mal.
— Mas papai, nós não... — começou de novo, ten-
tando fazê-los entender, mas a um sinal de seu pai Tom
desceu do cavalo e parou a seu lado, ameaçador. Doente
de vergonha, ela se calou.
— Então, você está admitindo que tenho razão.
Não é, menina? — perguntou o sr. Lancaster, com ar
ardiloso e satisfeito.
Rane olhou-a rapidamente e, vendo que ela não ia
responder, disse, com um sorriso forçado:
— É claro que ela está admitindo!
A surpresa de Cindy ao ouvir isso só foi superada
pela horrível percepção de que seu pai iria forçá-la a se
casar com um homem que mal conhecia, só por causa da
acusação feita por Júnior Parker, num ataque de ciúmes.
É lógico que não se importaria com isso, se soubesse que
Rane a queria, pois já estava apaixonada por ele, mas não
era esse o caso. No fundo de seu coração, tinha certeza
de que ele só havia se interessado por ela porque
desejava uma distração, enquanto estava preso nas mon-
tanhas.
Satisfeito com a resposta de Rane, o sr. Lancaster
fez outro sinal e todos desceram dos cavalos, menos
Júnior Parker, que, parecendo surpreso e descontente
com o resultado de sua intriga, desceu a montanha a
galope.
Foi um grupo solene que começou a caminhada de
volta para a cabana, com Cindy e Rane na frente, e o pai
e os irmãos dela atrás, puxando os cavalos pelas rédeas.
Já na cabana, os homens sentaram-se na sala e
começaram uma conversa formal e tensa, enquanto
Cindy era mandada para a cozinha, para preparar o
almoço.
Ela obedeceu, chorando e lamentando
amargamente o dia em que tinha posto os olhos no
estranho. Em menos de vinte e quatro horas, ele havia
arruinado sua vida, e, antes que a semana terminasse,
seria seu marido!
Três dias depois, à uma da tarde, Rane e Cindy se
viram na frente de um pastor na sala da cabana, com o
pai e os irmãos dela atrás. Desde o momento em que con-
cordara com o casamento, Rane não tivera uma única
chance de conversar com Cindy, e agora, quando ela se
posicionava a seu lado, examinava-a da cabeça aos pés,
com ar zombeteiro.
— De branco, minha flor? — murmurou.
Sem saber o que ele queria dizer com esta frase,
Cindy baixou os olhos para o vestido de noiva que estava
usando, que tinha sido de sua avó. Era uma confecção de
renda, delicada e fora de moda, que havia sido
cuidadosamente guardada durante anos, na velha arca
de madeira em seu quarto.
No entanto, apesar do encantador vestido branco,
ela não estava se sentindo uma noiva. Disfarçadamente,
lançou um olhar para Rane. Com um terno cinza e uma
camisa branca, ele parecia uma estátua a seu lado. Mas,
quando seus olhares se encontraram, Cindy viu nos
olhos cinzentos um sorriso amargo, que não entendeu.
Depressa, olhou para as cestas que tinha enchido de
flores do campo, amarelas, brancas e lilás. Era o dia de
seu casamento, e gostaria que ele fosse o mais parecido
possível com um casamento normal, mas não havia
alegria em seu coração. Geralmente, nas montanhas, um
casamento era comemorado com uma festança, com
todos os vizinhos presentes, mas o seu seria apenas uma
cerimônia discreta, com o testemunho só do pai e dos
irmãos.
Seus olhos procuraram Rane de novo, quando o
pastor começou o breve ritual que os transformaria em
marido e mulher. Foi feita uma oração pela felicidade
deles, mas Rane, sério e ereto, não olhou nem uma vez
em sua direção. Sem saber o que ele estava sentindo, ela
se viu presa de emoções contraditórias: alegria por estar
se casando com ele e desespero pelo modo como isto
estava acontecendo.
"Ele sabe que não fizemos nada de errado e que
não precisaria casar-se comigo, se não quisesse. Ele
poderia ter enfrentado meu pai com firmeza e se livrado.
Se não o fez, foi porque não era contra nosso casamento",
dizia ela a si mesma.
Para sua própria paz de espírito, Cindy tinha que
se convencer de que Rane já estava pensando em se casar
com ela, quando tudo acontecera. Que, como ela, ele
também sentira, à primeira vista, aquela atração incrível
e atordoante. Afinal, ele não tinha falado em levá-la para
Las Vegas, logo na primeira manhã, para fazer dela uma
cantora? Não lhe dissera que seria uma ótima esposa?
Não a tinha beijado, desejado e chamado de minha flor,
a voz doce e acariciante?
No entanto, por mais que tentasse se convencer de
que seu amor era correspondido, Cindy sentia a
vergonha crescer em seu coração. Se pelo menos Júnior
Parker e seu pai não os tivessem interrompido, ela agora
saberia se Rane a amava ou não. Não saber era uma
agonia grande demais, que acabaria por deixá-la louca!
Quando o pastor começou a pronunciar as
palavras familiares dos votos de casamento, a atenção de
Cindy voltou-se novamente para a cerimônia. Sua
vontade era levantar a cabeça e ver o amor brilhando nos
olhos de Rane, mas não se atreveu a mover um dedo,
quando o pastor perguntou:
— Você, Rane Dartsfield Randolph, aceita esta mu-
lher, Cindy Cheylonne Lancaster, como sua legítima
esposa, por sua livre e espontânea vontade?
O coração de Cindy, que estava batendo com a
força de um tambor, parou abruptamente, quando
nenhuma resposta se ouviu. Absolutamente nenhuma!
Seus olhos voaram para o rosto de Rane, encontrando os
dele fixos nela.
"Por que ele não responde?", pensou. "Será que
quer me transformar no motivo de riso de toda a
cidade?" Gotas de suor umedeceram sua testa e uma
onda de desespero invadiu-a. Os segundos continuaram
a passar e, não suportando mais o silêncio, ela exigiu,
num sussurro tenso e agoniado:
— Fale alguma coisa! Diga sim ou não, mas fale
alguma coisa!
Depois de mais alguns segundos, que lhe
pareceram uma eternidade, ouviu-o dizer, num tom
cortante:
— Aceito.
Ela não sabia se deveria sentir alívio ou desespero,
mas não teve tempo de analisar nada, pois o pastor já
estava exigindo sua atenção.
— Você, Cindy Cheylonne Lancaster, aceita este
homem, Rane Dartsfield Randolph, como seu legítimo
esposo, para honrar, amar e obedecer?
Seu coração disparou, quando a palavra obedecer
foi pronunciada. Gostaria que ela tivesse sido
substituída por "cuidar", mas ninguém havia se
preocupado em lhe perguntar o que queria.
— Aceito — sussurrou, e a cerimônia continuou.
Quando o pastor declarou-os marido e mulher,
Cindy viu Rane virar-se para encarar seu pai. Ele não
disse nada, mas sorriu com cinismo, e ela não teve que
se esforçar para descobrir o significado daquele sorriso.
Cindy sabia que ela e Rane estavam na boca de
toda a população da cidade. Todos os tinham visto na
dança, e a maioria contava sua própria versão dos fatos,
algumas bem embelezadas. Mesmo que quisesse fugir
para evitar o casamento, ela sabia que ninguém a
acolheria, e que o melhor seria aceitar a situação. No
entanto, agora, contemplando o rosto de Rane, estava
começando a duvidar de ter tomado a decisão certa.
Ron Geeter, tendo finalmente recebido as peças
que faltavam, havia consertado o carro de Rane. Naquela
manhã ele o mandara, exigindo pagamento imediato,
por medo de que o estranho inescrupuloso tentasse fugir
sem saldar a dívida. Os pertences de Cindy haviam sido
apressadamente enfiados no porta-malas do elegante
carro esporte azul e, com tanta facilidade quanto se
varria o chão, todos os traços de sua existência tinham
sido apagados da casa dos Lancaster. Agora, só lhe
restava partir e, em pé ao lado de Rane, ela esperava que
ele fizesse o primeiro movimento. Só seu irmão Tom
olhou-a com tristeza, quando o pastor foi embora,
deixando claro que o casamento havia acabado. Logo, ela
estaria a caminho de Las Vegas.
Las Vegas! As palavras tinham um gosto amargo
em sua boca. Las Vegas seria seu lar! Agora, era a sra.
Rane Dartsfield Randolph! Mas esses pensamentos só
lhe trouxeram dor, pois não tinha mais certeza de querer
conhecer o mundo além das montanhas. No entanto, que
alternativa lhe restava?
— Pronta? — perguntou Rane, olhando-a com
olhos duros e frios.
Cindy percebeu que não havia nada da
exuberância costumeira no rosto dele, e seu coração se
contraiu, quando tornou consciência de que ele ainda
não a beijara. Ninguém tinha beijado a noiva!
— Estou — respondeu. O que mais poderia dizer?
— Então, é melhor trocar de roupa. Temos um
longo caminho a percorrer.
Cindy esforçou-se para descobrir um pouco de ter-
nura na voz dele, mas foi em vão. Por um momento, seus
olhos caíram sobre o vestido que estava usando. Desde
criança, tinha sonhado em tirar um retrato no dia de seu
casamento, um retrato especial, que conservaria para ale-
grar os dias de sua velhice. Este casamento não teria
retratos, mas não tinha importância, pois não era mesmo
o casamento de seus sonhos. A cerimônia tinha sido
rápida e fria, e era essa a imagem que guardaria para
sempre na mente: uma imagem tão feia e dolorosa que
jamais poderia ser esquecida.
— Está bem — murmurou, virando-se e subindo a
escada, em direção a seu antigo quarto.
Uma onda de recordações invadiu-a, assim que
entrou lá. Tinha passado toda a sua vida naquele quarto,
e os troncos escuros e pesados que formavam as paredes
lhe eram tão familiares quanto seu próprio corpo. A arca
onde costumava guardar seus poucos tesouros ainda
estava ao pé da cama, só que vazia, tão vazia quanto seu
coração. Como seus sonhos, sua vida ali tinha acabado, e
agora todos os seus pertences estavam no porta-malas do
carro de um estranho, jogados numa caixa de madeira,
que costumava servir para armazenar lenha para o fogo.
O quarto onde tinha rido e chorado, dançado e sonhado,
vivido alegrias e tristezas, não era mais seu. No curto
espaço de três dias, seu pai a empurrara para os braços
de um estranho, banindo-a de sua casa, de seu quarto e
forçando-a a sair de seu mundo de sonhos e enfrentar a
realidade. Daquele dia em diante, pertencia a Rane, o
estranho.
Cindy tirou o vestido branco e jogou-o sobre a
cama. Ele não era mais um vestido de sonhos, e não
havia razão para levá-lo e guardá-lo para uma filha que
pudesse ter. Depressa, ela vestiu uma saia de algodão
branco e uma blusa azul-claro, que tinha feito no dia
anterior. Nos pés, conservou os sapatos brancos com que
havia se casado.
Olhando a imagem refletida no espelho da parede,
viu uma garota de cabelos escuros, com olhos que
pareciam duas manchas de tinta nanquim. Eram os
mesmos olhos e o mesmo rosto que tinha visto todas as
vezes que se olhara no espelho, mas uma coisa havia
mudado: agora, era uma mulher casada, uma mulher
casada com um homem que nem mesmo a queria.
Essa ideia era insuportável e, virando as costas
para o espelho, Cindy pegou a velha bolsa e voltou para
a sala, onde seu marido e sua família continuavam se
olhando com frieza e desconfiança.
— Vou embora, então papai — murmurou,
hesitante, olhando do pai para Rane. Ele retribuiu seu
olhar com indiferença e, incapaz de aguentar isso, ela
virou-se depressa para os irmãos. — Até qualquer dia
Tom, Ralph, Harvey — disse, sorrindo para eles.
Os três responderam, mas nenhum deles se
aproximou para abraçá-la. Reunindo coragem, Cindy
deu um passo para a frente e beijou o pai, recebendo em
troca um frio cumprimento de cabeça.
— Cindy!
A voz cortante às suas costas era tão impaciente
que ela sentiu o coração dar um pulo no peito. Muito
vermelha, voltou-se para encarar as feições duras do
marido.
— Vamos embora, Cindy.
Rane saiu sem dizer uma palavra para o sogro e os
cunhados, e Cindy seguiu-o com esforço, lançando
olhares furtivos para os rostos impassíveis dos
familiares.
De repente, ela girou nos calcanhares e entrou de
novo, sem saber por quê. Meio desesperada, olhou em
volta por alguns momentos e correu para a cozinha,
como se estivesse sendo atraída para lá por uma força
maior. Seus olhos caíram sobre o quadro que proclamava
que o amor cura tudo, e instintivamente ela soube que
precisava dele, que precisava continuar acreditando na
verdade daquelas palavras. Com mãos trêmulas, tirou-o
da parede e foi se juntar ao marido.
Rane, que já estava no carro, perguntou, desin-
teressado:
— Está pronta, agora?
Cindy fez que sim e acomodou-se no banco ao
lado. Em silêncio, eles enveredaram pela estradinha
serpenteante, que levava à cidade. Logo passaram pela
casinha de Lucy Wakney e Cindy não pôde deixar de
imaginar o quanto as coisas teriam sido diferentes, se
Rane tivesse encontrado lugar lá, aquela primeira noite.
Seus olhos moveram-se pelo cenário que conhecia
de cor, reparando nas árvores frondosas, nos campos
recém-arados e nas flores de cores vivas. "É a última vez
que vejo meu lar", pensou, o coração apertado. Sempre
sonhara em sair dali, em conhecer outros lugares, mas
não daquele jeito. Não com um homem que se casara
com ela há trinta minutos, e desde então não lhe dissera
mais que meia dúzia de palavras.
Uma brisa agradável começou a soprar pela janela.
Olhando para Rane, Cindy pensou que nunca o vira tão
frio e indiferente. Ele parecia estar totalmente
concentrado nos próprios pensamentos e no carro e,
reparando no modo como um músculo contraía-se a
todo momento no queixo dele, repuxando a cicatriz que
lhe marcava a face, ela teve medo de ser a primeira a
quebrar o silêncio.
No entanto, quando um segundo depois Rane
virou a cabeça e pegou-a observando-o, Cindy esqueceu-
se de tudo e perguntou, sorrindo levemente:
— Rane, você está zangado comigo?
— Não, por que eu haveria de estar zangado com
você? Diga-me, Cindy, por quê?
Apesar de soar normalmente, a voz dele tinha um
tom cortante e amargo, que a fez estremecer e morder o
lábio inferior, enquanto tentava pensar numa resposta.
— Diga-me, Cindy — ele insistiu —, que motivo
teria eu para estar zangado com minha esposa, tão meiga
e inocente?
— Você está falando de um jeito tão amargo! Além
disso, está tão quieto... — Cindy olhou para as mãos, que
estava apertando com força, no colo. — E nem me beijou,
depois do casamento.
Ela estava preocupada com a falta de um beijo,
mas, assim que terminou de falar, percebeu que tinha
cometido um erro, ao mencioná-lo.
— Ah, é isso que você está querendo?
Rane parou o carro no acostamento e, com um
gesto brusco, puxou-a para si e beijou-a com aspereza,
forçando-a a inclinar a cabeça para trás.
Confusa e sem saber como reagir, Cindy
permaneceu rígida, os olhos bem abertos e cheios de
mágoa. Então, inesperadamente, os lábios dele perderam
a dureza e o beijo tornou-se mais suave e caloroso,
fazendo-a perceber que, por mais que tentasse resistir,
no fim acabaria cedendo e correspondendo à carícia. Não
era o que queria, mas quando estava perto de Rane,
perdia toda a capacidade de raciocinar.
Exatamente quando seus braços fecharam-se em
volta do pescoço dele e seus lábios tornaram-se mais
calorosos, Rane afastou-a bruscamente de si. Cindy não
conseguiu decifrar a expressão que viu nos olhos
cinzentos, mas soube, por instinto, que ele estava mais
zangado agora do que antes.
Arrependida de ter pronunciado a frase que dera
início àquilo, virou-se para a janela, lutando para se acal-
mar, enquanto Rane dava a partida, com um palavrão.
"Que tipo de futuro posso ter com esse homem?",
pensou. "A hostilidade dele me assusta. Rane Randolph
é um homem sem coração."
Quando passaram pela velha mercearia que ficava
numa curva da estrada, Rane brecou subitamente o
carro, deu marcha à ré e estacionou na frente do edifício.
Surpresa, Cindy perguntou:
— Por que estamos parando aqui? O que foi que
aconteceu?
Sem responder, ele saiu do carro e caminhou para
a mercearia. Sentadas por ali estavam várias pessoas que
Cindy conhecia, e ela sentiu as orelhas queimarem,
quando os cochichos começaram. Na certa, estavam
falando de seu casamento apressado. Que sorte para
aqueles mexeriqueiros Rane ter parado bem ali! Agora,
teriam assunto para pelo menos uma semana.
Depois de alguns minutos, que lhe pareceram uma
eternidade, Rane voltou com uma cesta trançada, feita de
bambu e gravetos de carvalho, pintada de verde e
marrom. Enquanto ele a guardava no porta-malas, ela
pensou, com tristeza, que não havia necessidade de ele
comprar uma cesta. Poderia ter lhe dado uma das que
fizera. Só que ele não pedira...
Rane continuou a dirigir. Milhas e milhas se passa-
ram, o sol se pôs no horizonte e uma escuridão
aveludada caiu sobre eles. Uma nova cidade surgiu e ele,
ainda sem dizer nada, começou a olhar em volta, como
se estivesse procurando alguma coisa. Cindy, cansada e
dolorida, sentiu vontade de lhe pedir para parar, mas
não teve coragem.
Vendo um hotel, Rane desviou o carro para lá. O
coração de Cindy disparou; era ruim não saber se o
marido tinha se casado com ela porque a queria ou por
considerá-la o menor de dois males. Mas... pior ainda era
não saber se ele pretendia exigir seus direitos de marido,
aquela noite. O silêncio dele não lhe dava a menor pista,
e foi com um certo nervosismo que ela o viu descer do
carro. Como nunca estivera num hotel, não sabia se
devia segui-lo ou não; acabou achando que não, pois
Rane fechou a porta e caminhou para a recepção, sem
sequer lhe lançar um olhar.
Com os olhos fixos na porta do hotel, Cindy
esperou, ansiosa, pela volta do marido. Estava ficando
terrivelmente cansada do silêncio dele. Se ele não queria
se casar com ela, deveria ter tido a coragem de dizer.
Mas, se queria, por que estava se comportando como se
ela não existisse?
Logo depois Rane voltou com a chave de um
quarto — e o seu futuro — nas mãos. Quando ele parou
em frente a um chalezinho encantador, Cindy começou
a transpirar. E seu nervosismo aumentou mais ainda,
quando o viu caminhar para lá, deixando-a onde estava.
"Será que ele espera que eu o siga?", pensou. "Pois
bem, se espera, vai ter uma bela surpresa. Já aguentei
demais!"
— Você quer que eu o acompanhe ou não? — per-
guntou, irritada, a paciência a ponto de estourar.
Rane não respondeu imediatamente, mas mesmo
na fraca claridade fornecida pelas luzes de néon do hotel,
deu para ela ver seu rosto crispar-se de raiva.
— Você não é minha esposa?
O tom cínico atingiu Cindy como uma bofetada.
— Sou — disse. E teve vontade de acrescentar: "De
nome, pelo menos", mas o bom senso impediu-a.
— Então, é claro que quero que me acompanhe!
Afinal, esta é a nossa noite de núpcias.
Um sorriso frio surgiu nos lábios dele, e uma onda
de dor invadiu-a. Voltando, ele abriu o porta-malas,
pegou uma malinha de mão e perguntou, indicando a
caixa de madeira, que fazia um contraste absurdo com
sua mala luxuosa:
— Quer alguma coisa daqui?
— Minha camisola, por favor. — Ela tinha posto os
artigos de toalete na bolsa, com medo de que eles se
perdessem ou se quebrassem.
Rane lançou-lhe um olhar zangado.
— Dela, você não vai precisar — declarou, com
uma grosseria que fez Cindy corar.
— Eu quero minha camisola — insistiu ela. E,
depois de pensar um pouquinho, acrescentou: — Por
favor...
Remexendo no conteúdo da caixa, ele achou a
camisola cor-de-rosa e jogou-a na direção dela.
— É isto aqui?
— É, sim.
Embaraçada, Cindy enrolou a camisola e colocou-
a embaixo do braço. Ainda não sabia o que Rane
esperava dela nesse casamento, mas estava descobrindo,
bem depressa, que o estranho romântico podia ser tão
frio e cruel quanto seus irmãos. Só que, com ele, era pior,
pois sendo seu marido, tinha direitos legais sobre sua
pessoa. Além disso, ela havia prometido obedecê-lo.
Tentando conter o nervosismo, Cindy entrou com
Rane no quarto. O lugar era um encanto! Ela nunca vira
algo assim, e sentiu-se transportada para um outro
mundo. As paredes eram cobertas de papel cor-de-rosa;
no chão, havia um tapete espesso e macio, todo branco;
cortinas de um rosa pálido pendiam da janela larga.
Várias poltronas, forradas de veludo rosa, achavam-se
espalhadas pelo ambiente, e, num canto, sobre uma
mesinha de madeira, estava o maior aparelho de
televisão que ela já vira. Mas o que mais a surpreendeu
foram as duas camas espaçosas, colocadas lado a lado e
cobertas por colchas de veludo rosa, que ocupavam a
metade do quarto.
— O banheiro é ali — disse Rane, olhando-a com
ar de pouco-caso. — Pode usá-lo primeiro.
— Obrigada.
Cindy tentou reprimir a irritação que estava lhe
causando a atitude do marido. Rapidamente, entrou no
banheiro e fechou a porta atrás de si. Depois de abrir as
torneiras para encher a banheira cor-de-rosa de água
morna, voltou, relutante, para pegar a camisola que
deixara sobre a cama.
Rane estava sentando numa das poltronas, vendo
notícias na TV, e nem se preocupou em tirar os olhos de
lá, quando ela entrou. De volta ao banheiro, Cindy tirou
as roupas e deslizou para dentro da água quentinha,
onde ficou de molho um longo tempo, depois de se lavar
com um perfumado sabonete cor-de-rosa, fornecido pelo
hotel. A verdade é que não estava com coragem de sair
dali, pois não sabia o que a esperava em sua noite de
núpcias.
Finalmente, com um suspiro resignado diante do
inevitável, saiu da banheira, enxugou-se com uma toalha
também cor-de-rosa, vestiu a camisola, escovou os
dentes, penteou os cabelos e, após uma ligeira hesitação,
passou um pouquinho de brilho nos lábios. Com as mãos
escondendo o decote da camisola, voltou para o quarto,
onde Rane ainda estava na frente da televisão. Só a luz
que vinha do banheiro e o brilho da tela iluminavam o
ambiente, e Cindy sentiu-se aliviada por ele não poder
vê-la bem.
— Acabou? — perguntou Rane, num tom que
passava por civilizado.
— Acabei, sim.
Rapidamente, ela deitou-se na cama mais próxima
e puxou as cobertas até o pescoço, pondo-se a esperar,
rígida e com coração batendo forte, que ele fizesse o
próximo movimento.
Rane desligou a televisão, pegou a malinha de mão
e foi para o banheiro, fechando com firmeza a porta atrás
de si. Logo depois, o barulho de água correndo chegou
aos ouvidos de Cindy, e pensamentos confusos enche-
ram-lhe a mente.
Rane tinha se casado com ela, mas nada lhe dissera
a respeito de seu futuro juntos. Ainda não sabia se ele
pretendia reclamar seus direitos de marido, e era essa a
dúvida que mais a atormentava. É verdade que ele havia
dito que não precisaria de camisola, aquela noite, mas
fora isso, nada mais tinha sido mencionado.
Cindy fechou os olhos e, aos poucos, sua ansiedade
e nervosismo foram sendo vencidos pela escuridão agra-
dável e pela cama gostosa. Estava começando a
adormecer, quando Rane desligou o chuveiro e fechou a
porta do boxe com estrondo. O barulho assustou-a e,
reagindo por instinto, ela apertou as cobertas em volta
do corpo.
O cheiro já familiar da loção após barba do marido
chegou-lhe às narinas, quando ele abriu a porta do ba-
nheiro. Uma réstia de luz invadiu o quarto, iluminando
a cama onde estava. Absolutamente imóvel, quase sem
respirar, os ouvidos aguçados, o coração disparado,
esperou.
O barulho do interruptor de luz sendo desligado,
ressoou pelo ambiente. O som atingiu-a como um tiro,
abalando ainda mais seus nervos, que já estavam à flor
da pele.
"Ele vem vindo", pensou, tomada por uma mistura
de medo e excitação.
Seus olhos seguiram a figura delineada contra as
cortinas rosadas, que atravessou o quarto e passou por
sua cama, em direção à seguinte.
"Fui rejeitada!", percebeu, aliviada e ao mesmo
tempo zangada. De certo modo, isso era pior que a
sensação que havia experimentado até alguns segundos
atrás, quando ainda não sabia se teria ou não que
cumprir com seus deveres de esposa.
Rane acendeu a lâmpada de cabeceira e olhou-a.
— Está com sono? — murmurou.
Na fraca claridade, Cindy viu que ele tinha apenas
uma toalha enrolada na cintura; gotinhas de água
brilhavam no peito largo, e os cabelos escuros e crespos
ainda estavam úmidos. O físico dele parecia-se com o de
um deus pagão, que vira uma vez num livro, quando
ainda estava na escola.
— Está com sono? — repetiu Rane, mais alto. Seus
olhos examinaram o corpo feminino, delineado pelas
cobertas, passando em seguida pelos cabelos brilhantes
e sedosos e detendo-se nos lábios entreabertos.
— Não — ela sussurrou afinal, forçando-se a olhar
para outro lado.
— Está com fome agora ou prefere comer mais
tarde? Posso pedir que mandem alguma coisa para cá.
— Não... não, não estou com fome, obrigada.
Até aquele momento, Cindy não havia percebido
que tinham perdido o jantar. Muitas sensações
agitavam-se em seu íntimo, mas fome não era uma delas.
Sem dizer mais nada, Rane desligou a luz e, na
penumbra que ficou, Cindy viu-o tirar a toalha da
cintura e atravessar o quarto de novo, desta vez em
direção a sua cama. O som estranho e irregular de uma
respiração, que só podia ser a dela, chegou-lhe aos
ouvidos.
Na escuridão, Rane encontrou a cama e deitou-se
em silêncio. Todos os músculos do corpo de Cindy
enrijeceram, e ela prendeu a respiração. Tinha sido
gostoso trocar alguns beijos com ele antes, quando
achava que nunca mais o veria, mas agora que os beijos
seriam substituídos por intimidades muito maiores,
estava com medo dele. Afinal, mal o conhecia, e nunca
estiver a numa cama com um homem.
Rane estendeu a mão e começou a acariciá-la com
lentidão. Por alguns momentos Cindy continuou rígida,
gelada pelo medo e pela incerteza, mas quando os lábios
dele encontraram os seus, uma pequenina chama
acendeu-se em seu íntimo. Aos poucos, o calor do corpo
másculo foi se transmitindo ao seu, e quando mãos
experientes despiram seu corpo da velha camisola rosa
que o cobria, ela não protestou.
Livres da barreira de tecido, as mãos de Rane per-
correram todo o corpo de Cindy, excitando-a e
acariciando-a até ela achar que não seria mais capaz de
suportar tanto prazer. Todo o seu ser estava latejando de
desejo e, pela primeira vez em três dias, ela sentiu que o
marido a queria.
"Isso prova que ele me ama e que, apesar de meu
pai ter apressado um pouco as coisas, pretendia se casar
comigo", pensou, o coração estalando de alegria.
No entanto, apesar dessa certeza, quando os lábios
dele desceram por seu pescoço, beijando aqui e ali, uma
necessidade profunda de ouvi-lo dizer que a amava
invadiu-a.
— Você me ama, Rane? — perguntou num
sussurro, a voz rouca de amor e desejo. — Você queria
se casar comigo?
As mãos e os lábios que a acariciavam enrijeceram.
Mesmo sem ver os olhos cinzentos, Cindy soube que eles
deveriam estar exatamente iguais a duas pedrinhas de
gelo, e nos poucos segundos que se passaram, antes de
Rane responder, seu coração encheu-se de medo.
O riso cruel que ressoou pela escuridão atingiu-a
como uma chicotada.
— Que jogo você está fazendo agora, sua feiticeira
do mato? Não se finja de inocente. Você sabe, tão bem
quanto eu, que armou aquela história toda para
conseguir sair das montanhas, como sua mãe já tinha
feito.
Cindy estremeceu e deixou escapar um gemido de
dor, jogando-se para longe dele como se tivesse acabado
de ser atingida fisicamente.
— Eu... eu não fiz nada disso! — protestou, os
olhos ardendo de vontade de chorar. — Não fiz!
Chocadíssima, ela não se conformava com o que
acabara de descobrir. Rane estava certo de que ela havia
armado uma cilada para pegá-lo, usando
deliberadamente o casamento como um meio de sair das
montanhas. Como pudera ser tão tola e cega?
"Preciso ir embora", pensou, lutando para se livrar
das cobertas. Teria escapado, se Rane não a estivesse
segurando com tanta força.
— Aonde você pensa que vai? Você é minha
esposa, não se esqueça disso. Casou-se comigo para sair
daquela montanha e conseguiu. Eu a tirei de lá e
pretendo receber meu pagamento aqui e agora. Não
tente subir o preço no último momento, que você não
vale tanto. Assim que chegarmos a Las Vegas, vou dar
um jeito para que esse casamento seja invalidado.
Casamentos na ponta de um rifle estão um pouco fora de
moda, mas, até lá, somos marido e mulher.
Agarrando-a pelos ombros, ele a puxou de
encontro a si.
Cindy enrijeceu o corpo, lutando contra as
lágrimas amargas que ameaçavam jorrar a qualquer
momento. Como havia sido tola! Ele nunca a quisera.
Júnior Parker tinha razão!
Rane apossou-se novamente de seus lábios, a
paixão exacerbada pela raiva. Desesperada, ela tentou
livrar-se dos braços que a prendiam como barras de
ferro.
— Não! Não! Assim, não! Não vou deixar! Assim é
errado! — sussurrou aos trancos, o coração explodindo
de dor, mágoa e decepção.
Rane sacudiu-a com rudeza.
— Por que tipo de tolo me toma, hem? Não venha
se fazer de inocente, nessa altura dos acontecimentos.
Desde o momento em que pus os pés no salão de danças,
aquela noite, você vem se oferecendo a mim. Eu poderia
tê-la possuído sem o menor problema, mas como você
parecia tão desesperada para escapar daquela montanha
e seu pai e seus irmãos estavam tão ansiosos para ajudá-
la, entrei no jogo e deixei o barco correr.
Puxou-a de novo contra si, como se não estivesse
percebendo a resistência dela, e mais uma vez envolveu-
a num abraço apaixonado.
Apesar de estar decidida a não corresponder,
Cindy não conseguiu sufocar um gemido de prazer, e já
ia levantando as mãos para acariciar os cabelos dele,
quando se lembrou de tudo que havia acontecido e
virou-se para o outro lado, rígida de raiva.
Rane, no entanto, não deu a menor importância à
sua reação, e ali, na amarga escuridão, sem cuidado ou
gentileza, tomou-a como esposa e fez dela uma mulher.
Por muito tempo depois disto, Cindy permaneceu
deitada na escuridão, ferida de corpo e alma. Estava
zangada, mas também estava muito, muito magoada.
Como pudera o estranho gentil, que a tinha beijado entre
as flores de macieira, ter se transformado no homem frio
e duro daquela noite? Um homem cruel, que havia piso-
teado seus sonhos com o maior desprezo, como se não
valessem absolutamente nada.
Ela ouviu-o levantar-se e pouco depois tropeçar na
escuridão. Um palavrão ecoou pelo ar, seguido pelo
barulho de objetos sendo remexidos. Logo, Rane estava
a seu lado de novo. O riscar abrupto de um fósforo
assustou-a, fazendo-a estremecer, e quando ele acendeu
um cigarro, ela viu, à fraca luz fornecida pela brasa, que
as feições dele tinham um ar sombrio e fechado. No
entanto, a sensação que se registrou em seu cérebro,
naquele momento, foi de surpresa. Surpresa por nem
saber que ele fumava! Mas também, ela não sabia nada a
respeito dele, sabia?
— Por que não me disse? Eu não tinha ideia. — A
voz dele soou áspera e cortante.
"Não tinha ideia! Não tinha ideia do quê?", Cindy
pensou, cansada demais para responder e desiludida
demais para se importar com isso.
Depois de alguns segundos, Rane apagou o cigarro
no cinzeiro ao lado da cama e inclinou-se para ela. Cindy
estremeceu da cabeça aos pés, com medo de que ele
estivesse querendo possuí-la de novo, e, encolhendo-se,
tentou fugir dos braços fortes e musculosos.
— Cindy, não! — murmurou Rane num tom de
voz estranhamente suave e consolador, puxando-a para
junto de si.
O coração batendo forte de encontro ao peito dele,
Cindy permaneceu rígida e imóvel até que, finalmente,
ele a soltou. Depressa, ela se virou para o outro lado da
cama e afastou a cabeça com um gesto brusco, quando
sentiu a mão dele pousar em seus cabelos e acariciá-los
de leve.
Isto aparentemente acalmou o ardor de Rane, pois
ele se levantou e foi para a outra cama. No entanto, já era
dia claro quando os pensamentos amargos deixaram de
torturar Cindy e ela se convenceu de que o marido estava
dormindo e não a procuraria de novo. E foi lá, naquele
quarto de hotel, que jurou a si mesma que nunca mais
um homem seria capaz de magoá-la.
CAPÍTULO IV

O sol já ia alto, quando Cindy acordou. Assustada,


ela levou um minuto inteiro para perceber onde estava e
olhar em volta. Vendo a cama ao lado vazia, levantou-se
apressada, procurando timidamente por Rane. Mas não
o encontrou em lugar nenhum!
— Rane! Rane! — chamou, a voz ecoando pelo
quarto vazio. — Rane! Rane! — repetiu mais alto, dei-
xando transparecer em seu tom toda a mágoa e
frustração que estava sentindo. Mas não recebeu
nenhuma resposta. Seu marido de uma noite, o homem
que tinha jurado livrar-se dela assim que pudesse, havia
desaparecido!
Desanimada, Cindy deixou-se cair de novo na
cama. E pensar que na noite anterior, achara que já havia
atingido as profundezas do desespero! No entanto, que
importância podia ter um sonho desfeito ou uma
desilusão a mais, para quem já tivera tantas?
Não sabia o que fazer, em seguida. Seu pai não a
receberia de volta, depois do escândalo de seu
casamento apressado. Seu nome devia estar na boca do
povo, e ela quase podia ouvir os mexericos da cidade
comparando seu comportamento com o da mãe e
chamando-as de "farinha do mesmo saco". Se voltasse,
uma esposa abandonada depois de um dia apenas de
casamento, as más línguas jamais parariam de falar. De
qualquer modo, mesmo que fosse tola o bastante para se
colocar à mercê da fúria do pai, como poderia voltar para
lá, sem dinheiro e sem um meio de transporte? Não,
definitivamente, não voltaria para as montanhas.
Resistindo à vontade de enterrar o rosto no
travesseiro e chorar até não poder mais; tentou pensar
num modo de sair da situação em que se encontrava.
Como tinha sido cruel, aquele marido que não a queria!
Ele não só a tirara das montanhas com a intenção de se
divorciar dela, como também tomara seu corpo e seu
orgulho, deixando-a sem absolutamente nada. Nem
mesmo as poucas coisas que trouxera, na caixa de
madeira, tinham ficado. De repente, uma onda de
vergonha invadiu-a.
"Meu Deus! Mesmo tendo sido maltratada e
abandonada por ele, eu ainda o amo! Como posso ser tão
tola?"
Olhando em volta, sentiu uma dor profunda
crescer em seu íntimo.
"Bem", refletiu, "já é um pouco tarde para chorar
sobre o leite derramado. Estou acostumada a me arranjar
sozinha, e vou ter que fazer isso mais uma vez. Sei limpar
e cozinhar. De algum modo, tenho que arranjar um em-
prego, para ganhar dinheiro. Depois, decido o que
fazer."
Passou a mão trêmula pelos cabelos e levantou-se.
Só o soluço abafado que escapou de seus lábios traiu a
intensidade de seu medo e a dor que estava lhe
consumindo o coração. Teria que pôr as roupas que
havia usado na noite anterior, pois, com a ida de Rane,
não tinha outras. Como lera em algum lugar que o vapor
de água quente tirava as rugas das roupas amassadas,
colocou-as num cabide e levou-as para o banheiro,
pendurando-as no suporte de toalhas.
Em seguida, tirou a camisola e entrou no chuveiro.
A água estava quente e estimulante, e seu desespero
diminuiu um pouquinho. Saiu do banho refrescada e
ligeiramente mais animada.
Depois de vestir a saia e a blusa, que estavam
quase tão amarrotados quanto antes, enxugou os longos
cabelos o melhor que pôde e completou a toalete. Então,
examinou-se no enorme espelho do banheiro. Achou-se
mais velha e triste, mas disse a si mesma que ainda
estava bonita e que na certa poderia persuadir alguém a
contratá-la. Tinha que conseguir abrigo e comida. Mas
onde e como? Isso, não sabia. Só sabia que, no curto
espaço de uma semana, perdera um pai, três irmãos e um
marido.
Sentindo-se mais solitária do que nunca, naquele
quarto estranho, juntou as poucas coisas que ainda tinha
e enfiou-as na bolsa. Não tinha ideia do que fazer com a
camisola cor-de-rosa, que caíra numa poça de água no
meio do banheiro. Não queria deixá-la para trás, pois era
a única que possuía, mas também não podia guardá-la
na bolsa, molhada como estava. Suspirando
desanimada, torceu-a no chuveiro e jogou-a no cesto de
lixo que ficava num canto. Agora, as roupas que vestia
eram, literalmente, tudo o que tinha.
Caminhou então para o quarto e, pela primeira
vez, desde que se levantara, olhou pela janela. Foi um
choque ver o carro esporte azul estacionado junto ao
chalé, exatamente como na noite anterior. Incapaz de
acreditar nos próprios olhos, abriu a porta e saiu... dando
de frente com o olhar de Rane, que estava sentado numa
lanchonete, a poucos passos do quarto que tinham
ocupado.
O rosto espelhando claramente a surpresa que
estava sentindo, fez um movimento para diante e...
parou subitamente, invadida pela raiva, ao ver o sorriso
zombeteiro que apareceu nos lábios do marido.
Usando calças marrom e pulôver amarelo, de
algodão, que realçava seu peito musculoso e a pele
morena, Rane levantou-se da cadeira e foi abrir a porta
da lanchonete.
— Bom dia! Você se levantou cedo. Venha tomar
café — disse.
"Exatamente como se nada estivesse errado!",
Cindy pensou. "Exatamente como se não tivesse me
deixado morta de medo de ter sido abandonada! Como
se não tivesse me possuído com tanta brutalidade, ontem
à noite, e desaparecido esta manhã, sem uma palavra!"
Mais aliviada do que queria admitir, ela levou
alguns segundos decidindo se aceitaria o convite ou
daria um tapa na cara dele. Rane ainda era seu marido
— pelo menos por enquanto — mas estivera tão certa de
ter sido abandonada, que já não se considerava mais
ligada a ele. Mesmo assim, só de vê-lo ali, tão bonito e
atraente, sentiu o coração bater mais forte. Apesar de
zangada e envergonhada do que se passara entre eles,
ainda o amava!
Seu estômago roncou, fazendo-a lembrar-se de que
não comera desde o almoço do dia anterior. No entanto,
uma coisa estava decidida: não aceitaria mais nada
daquele homem!
Enquanto Cindy vacilava, Rane cruzou
rapidamente a distância que os separava e tomou-a nos
braços. A proximidade e o cheiro gostoso de limpeza que
ele estava exalando deixaram-na aturdida e ligeiramente
excitada, mas o corpo forte de encontro ao seu lembrou-
a da noite anterior, e uma sensação de pânico invadiu-a.
— Tire as mãos de mim! — exigiu ela, libertando-
se com um safanão e dando alguns passos para trás.
Pensativo, Rane estudou-a por um longo
momento, depois murmurou, num tom de voz grave
que, em outras circunstâncias, Cindy teria achado
sedutor:
— Eu só queria levá-la para tomar café, minha flor.
— Eu não sou sua flor! Não sou nada sua!
Os olhos escuros expressavam uma mistura de
mágoa e ódio, que aumentou ainda mais quando ele
fitou-a de alto a baixo com insolência e disse, irônico:
— Que memória curta, a sua! Você é minha esposa.
Era isso que você queria e é isso que vai continuar sendo,
até eu resolver o contrário.
— Só sou sua esposa até chegarmos a Las Vegas e
você poder invalidar nosso casamento. Mas acho que
não é preciso irmos até lá, para isso. Tenho certeza de
que um homem importante como você pode divorciar-
se de mim aqui e agora, sem o menor problema. Afinal,
eu já lhe paguei tudo que devia, ontem à noite.
— E o que você faria, se eu me divorciasse de você
aqui? Arranjaria outro homem para levá-la alguns quilô-
metros adiante?
É claro que ela não faria nada disso! Poucos
minutos atrás, estava louca de medo de ter sido
abandonada, mas jamais o deixaria saber disso.
— Talvez — retrucou, desafiante.
Agarrando-a com força pelos ombros, Rane
puxou-a para junto de si. Depois, num movimento
rápido e inesperado, enfiou uma das mãos nos cabelos
escuros e ainda molhados, e beijou-a na boca, com uma
violência alarmante.
Apanhada de surpresa, Cindy não protestou de
imediato, mas quando ele a soltou, levantou a mão e
esbofeteou-o com toda a força. A marca vermelha de
seus dedos desenhou-se na pele morena, realçando a
cicatriz esbranquiçada que corria ao longo da face dele.
Ao mesmo tempo a expressão dos olhos cinzentos
endureceu, e um músculo começou a se contrair no
queixo rígido. Apavorada, Cindy manteve sua posição
com valentia, apesar de estar certa de que teria se
encolhido, se por qualquer razão Rane tivesse levantado
a mão. O longo silêncio que os envolveu pareceu-lhe
interminável, mas não deve ter durado mais que um ou
dois minutos.
Então, ele apertou os dentes e disse, num tom
ameaçador:
— Entre nessa lanchonete! Agora!
Por um momento, cheia de rebeldia, Cindy pensou
m. desobedecer, mas os olhos dele disseram-lhe que era
melhor não fazer isso. Rígida, a cabeça erguida, marchou
para a lanchonete e sentou-se na cadeira que lhe foi indi-
cada. Tinha prometido obedecê-lo durante a cerimônia
de casamento, porque pensava que ele também a queria,
mas agora que estava sabendo da verdade, só obedeceria
quando obrigada.
Nervosa e inquieta, fixou os olhos na janela. As
palmas de suas mãos estavam molhadas de suor, e a que
havia esbofeteado Rane parecia queimar.
Disfarçadamente, enxugou-as na saia, escondendo-as
depois sob a mesa. Quando a garçonete chegou com o
cardápio, pegou-o educadamente e abriu-o, mas foi
incapaz de distinguir uma letra sequer.
— O que você vai querer? — perguntou Rane,
quando a moça se afastou.
Pela primeira vez, desde que tinham entrado na
lanchonete, Cindy olhou para ele.
— Nada.
— A viagem que vamos fazer é longa e você vai
comer alguma coisa.
A voz dele tinha o tom de comando que um adulto
geralmente usa para dar ordens a uma criança
desobediente. Cindy passou a ponta da língua pelos
lábios e limpou a garganta.
— Não estou com fome — mentiu —, e não vejo
razão para continuarmos a viagem juntos. Sua posição já
ficou muito clara você acha que eu armei uma cilada,
para obrigá-lo a se casar comigo. Pois bem, já paguei meu
débito ontem à noite e isso encerra nosso
relacionamento. Não quero continuar casada com você!
Fizemos um trato; você cumpriu a sua parte, tirando-me
da montanha, e eu cumpri a minha, na noite de ontem.
Isso é tudo!
— Eu nunca lhe disse que queria continuar nosso
casamento — murmurou Rane, com uma franqueza
cruel —, mas você vai comer alguma coisa e vai para Las
Vegas comigo.
— Não vou.
Cindy apertou os lábios, decidida a hão ceder. Não
sabia o que faria, se ficasse ali sozinha, mas, em vista da
disposição dele, achou que nada seria pior que
continuarem a viagem juntos.
Rane pôs-se a tamborilar a mesa com os dedos, e a
garçonete, achando que o gesto de impaciência era
devido à sua demora, aproximou-se rapidamente.
— Já escolheram?
— Já, sim. Queremos ovos mexidos, presunto,
torradas e café preto. — Os olhos dele nem por um
momento se afastaram do rosto de Cindy. — Duas
porções.
Zangada, Cindy olhou para a garçonete decidida a
suspender o pedido de uma porção, mas a mulher se
afastou antes que tivesse tempo para isso.
— Eu já lhe disse que não estou com fome!
Os olhos faiscando, ela virou-se para Rane, que a
observava com um ar distante e enigmático. Sem
responder, ele continuou o exame até Cindy não
aguentar mais e desviar os olhos.
"Pois bem", ela disse para si mesma, "ele que coma
as duas porções sozinho, que eu não vou comer
nenhuma!'"
No entanto, só de ver as duas canecas de café preto
e fumegante que a garçonete trouxe, logo depois, Cindy
sentiu a boca encher-se de água e fraquejou em sua
decisão.
"Tomarei só o café", prometeu-se, e, quando a gar-
çonete chegou com o resto do pedido, recusou-se
terminantemente a tocá-lo.
Se ela esperava que Rane insistisse para que
comesse, teve uma decepção, pois ele limitou-se a comer
sua parte em silêncio, ignorando-a por completo.
Quando terminou, levantou-se e, depois de colocar uma
generosa gorjeta sobre a mesa, perguntou:
— Pronta?
Lançando um olhar pesaroso para seu prato, onde
a comida continuava intocada, Cindy seguiu-o.
— Você deixou alguma coisa no quarto? —
indagou Rane, quando já estavam do lado de fora.
Ela pensou na camisola que tinha colocado no
cestinho de lixo, mas não teve coragem de lhe falar a
respeito.
— Não.
Ao entrar no carro viu a cesta trançada que ele
tinha comprado, no banco de trás, e sentiu vontade de
saber para quem era. No entanto, assim que ele se sentou
a seu lado, olhou para a frente e fingiu desinteresse.
— É um longo caminho até Las Vegas, Cindy. Não
acha que podemos tentar ser civilizados um com o outro,
pelo menos durante a viagem?
Cindy percebeu que o marido estava tentando
encurtar a distância que os separava, mas o orgulho não
permitiu que cedesse.
— Não — replicou com frieza —, não acho. Eu não
quero ir para Las Vegas de jeito nenhum, muito menos
com você!
— Interessante comentário para uma recém-casada
fazer, dirigindo-se ao marido. — A voz máscula tinha
um tom irônico, e os olhos cinzentos brilhavam, duros.
— No entanto, cinco dias atrás você daria a vida para ir
a Las Vegas, não daria?
A indignação de Cindy estava aumentando cada
vez mais.
— Eu nunca quis ir para este ou para aquele lugar,
em particular, e com certeza, nunca desejei a sua com-
panhia!
— Não?! — Uma risada cínica escapou dos lábios
de Rane. — Pois olhe, não foi essa a impressão que tive!
Você gostou dos meus beijos, não negue! Ou foi tudo
parte da armadilha que preparava, para qualquer
homem com meios suficientes para tirá-la das
montanhas? Meu erro foi não perceber a que ponto você
seria capaz de chegar, para garantir sua saída de lá. Eu
senti pena de você, apesar de nunca ter acreditado que
fosse tão inocente quanto fingia ser. Seria impossível
uma moça inocente se atirar para cima de um homem,
do jeito que você fez comigo. E agora, eu me sinto
responsável por você! Na verdade, sou tão tolo, que
ainda estou com pena de você!
— Pena de mim! Você sentiu pena de mim?! — Ela
estava tão indignada, que teve que se controlar para não
esbofeteá-lo. — Pois não me pareceu que fosse pena o
que você estava sentindo por mim, do lado de fora do
salão de dança ou debaixo daquela macieira!
— Bem, admito que senti uma certa atração por
você, lá nas montanhas. E você fez de tudo para que eu
perdesse a cabeça. Foi uma pena eu não ter percebido,
logo de cara, o desespero em que você estava, para sair
de lá. Mas também, eu ainda não tinha visto a sua
família!
— Mas você é convencido, hem? A minha família
é tão boa quanto a sua, e não recorremos a nenhuma
cilada para pegar você. — Desejando que não tivesse se
casado com ele e que tivesse outra alternativa, que não
fosse acompanhá-lo até Las Vegas, Cindy continuou, ás-
pera: — E não precisa se sentir responsável por mim. É
melhor tomar conta de você mesmo; um homem adulto,
que se deixa enganar e ser apanhado na armadilha do
casamento, contra a vontade, precisa, se cuidar
realmente.
Com o rosto em chamas, virou-se para a janela e
fixou os olhos na paisagem. Teve a impressão de ouvir
um riso baixo e divertido, o que aumentou sua raiva. Era
insuportável que ele risse dela. Se pelo menos tivesse um
pouco de dinheiro, poderia aproveitar a noite e fugir
quando ele estivesse dormindo.
Pensar na noite que estava por vir fez seu coração
disparar. Dormiriam juntos de novo, e, como esposa,
teria que ceder aos desejos dele. Mas não, não suportaria
ser possuída como na noite anterior, sem o menor
carinho e afeto. No entanto, não estava presa a ele
legalmente? Não prometera obedecê-lo? Como gostaria
de saber mais sobre assuntos legais! Tendo se casado
com ela, Rane tornara-se responsável por sua pessoa?
Era por isso que a estava levando para Las Vegas? Ele
dissera que se divorciariam, assim que lá chegassem...
Procurando não pensar mais nisso, Cindy tentou
controlar a própria respiração. De vez em quando, sentia
que estava sendo examinada, mas conservou o olhar fixo
na paisagem e ignorou totalmente o homem a seu lado.
Durante quilômetros e quilômetros, ambos
viajaram em silêncio. Mesmo quando pararam para um
breve descanso, não se falaram. Foi Rane quem cedeu em
primeiro lugar, perguntando, depois de um longo
tempo:
— Quer almoçar?
Cindy gostaria de responder que não, mas sabia
que não poderia continuar sem comer. Por isso,
concordou, e Rane dirigiu o carro para o estacionamento
de um restaurante à beira da estrada.
Para sua surpresa, o almoço foi um acontecimento
breve, agradável e civilizado. Rane parecia decidido a
chegar o quanto antes a Las Vegas, e dentro de meia hora
já estavam de novo no carro...
Assim que se acomodaram, ele tirou um lenço do
bolso e, delicadamente, passou-o pela blusa que ela
estava usando.
— Você deixou cair farelinho de pão em sua blusa
— explicou, quando Cindy olhou-o, assombrada. E, com
uma calma enfurecedora, moveu o lenço para baixo,
passando-o sobre os seios dela.
Cindy sentiu o coração disparar, e desprezou-se
por isso. O fato de Rane ser seu marido aos olhos da lei
não tinha importância, porque aos olhos do amor ele era
um homem que nunca deveria ter se unido a ela. Ele se
casara com ela por causa da insistência de sua família, e
também para satisfazer os próprios desejos. Rane
Randolph era o homem que a seduzira com beijos
apaixonados, e depois tivera o atrevimento de achar que
ela estava disposta a usar o corpo para comprar sua saída
das montanhas. Ele estava enganado, horrivelmente
enganado, e ela o odiava!
— Não! — disse finalmente, afastando a mão dele
com um tapa.
Rane sorriu com cinismo e dobrou
cuidadosamente o lenço, guardando-o de novo no bolso.
Certa de que ele havia percebido sua reação e estava
rindo dela, Cindy virou o rosto vermelho para a janela.
Pouco depois, recomeçaram a viagem.
Já era noite fechada quando Rane entrou no pátio
de estacionamento de um hotel. O coração disparado, a
boca seca e as emoções num verdadeiro turbilhão, Cindy
tentou pensar numa desculpa — qualquer desculpa —
para livrar-se dele. Não tinha nem mesmo uma camisola
para vestir e, se por acaso ele descobrisse sua nudez sob
as cobertas, na certa acharia que estava sendo aberta-
mente convidado para outra sessão de... de amor!
— Gosta de frango frito? — perguntou Rane, en-
quanto destrancava a porta do quarto e afastava-se um
pouco, para deixá-la entrar na frente.
Surpresa com a pergunta, Cindy respondeu que
sim.
— Posso encomendar frango frito para o nosso
jantar, então?
Ela concordou de novo e, para seu espanto, mal
tinham acabado de se acomodar — em outro quarto com
duas camas —, chegou um garçom com o frango en-
comendado.
Depois do jantar, Rane tomou um banho de
chuveiro e foi dormir, deixando-a em paz. O medo de
Cindy, de que ele a forçasse a se submeter a seus desejos
de novo, fora totalmente em vão.
Bem cedo, na manhã seguinte, eles recomeçaram a
viagem. Cindy entreteve-se observando a paisagem lá
fora, onde as colinas e florestas densas cediam lugar,
lentamente, a terras mais planas e vegetação mais
rasteira. Rane, parecendo bem mais descansado e com
um humor muito melhor, abandonou o mutismo do dia
anterior e começou a fazer alguns comentários leves e
agradáveis.
"Estamos nos portando como dois estranhos que,
por acaso, se veem juntos", Cindy pensou, imaginando
quanto tempo Rane levaria para se divorciar dela, depois
que chegassem a Las Vegas. Na verdade, até parecia que
eles nem eram casados. Parecia impossível que já haviam
se tocado com intimidade! Mesmo assim, ela não
conseguia se esquecer do modo brutal como Rane a
possuíra, em sua noite de núpcias. Provavelmente,
jamais seria capaz de se esquecer daqueles momentos, e
foi a lembrança deles que a manteve em silêncio, por
quilômetros e quilômetros de estrada. Seu futuro com
Rane Randolph era tremendamente incerto, mas seu
passado com ele estava gravado a fogo em sua memória.
As maneiras civilizadas que Rane tinha adotado
tomaram a viagem bem mais agradável, e Cindy
descobriu que, desse jeito, as horas passavam mais
depressa. No entanto, ainda não se sentia ligada a ele
como esposa quando, dois dias depois, entraram nas
terras áridas e secas do deserto do Novo México.
— Logo estaremos em casa — anunciou Rane.
— Em casa! Em casa para você, mas não para mim
— Cindy murmurou com amargura, observando-o
cuidadosamente, na esperança de ouvi-lo negar essas
palavras. Seu coração se apertou, quando ele fitou-a com
ar sombrio. Naturalmente, sabia que a intenção dele era
divorciar-se o mais rápido possível, mas mesmo assim
irritou-se por não receber uma resposta. — Las Vegas
nunca vai ser o meu lar. Vou embora daqui, assim que
puder. Não sei por que você me arrastou até aqui, só para
se divorciar de mim.
— Era isso que você queria, Cindy. — Rane ficou
em silêncio por alguns momentos, depois acrescentou, a
voz estranhamente suave: — E, se quiser, poderá fazer
de Las Vegas o seu lar.
— Mas eu não quero! — ela respondeu, de
imediato. Não suportaria ficar em Las Vegas, com Rane
morando lá. Seria doloroso demais!
Os pensamentos num verdadeiro caos, Cindy
lutou para concentrar a atenção no cenário lá fora. Tudo
sugeria solidão, isolamento e vazio, o que se
assemelhava bastante aos sentimentos que abrigava no
coração.
"Vou ficar contente quando chegarmos a Las
Vegas", disse para si mesma. "Estou cansada disso tudo,
e quanto mais cedo Rane me libertar, mais cedo poderei
juntar os pedaços do meu coração e recomeçar a vida."
Passaram também aquela noite num hotel, e foi
com alívio que Cindy viu Rane ir se deitar, sem tentar
tocá-la. No dia seguinte, cruzaram o Arizona e,
finalmente, entraram em Nevada.
— Lá está — Rane anunciou, quando a noite caía.
Aquelas luzes à distância são de Las Vegas.
Cindy não pôde deixar de imaginar o que o destino
lhe teria reservado, naquela cidade de tantas luzes.
Curiosamente, Rane foi se tornando cada vez mais
quieto, à medida que se aproximava de sua cidade natal.
Na penumbra do carro, Cindy notou que ele estava
imerso em pensamentos, e passou-lhe pela cabeça que o
marido na certa estava tentando decidir o que fazer com
ela e como explicar sua presença. Naturalmente, ela seria
um embaraço e uma surpresa, pois, pelo que sabia, Rane
não havia telefonado para casa, comunicando seu
casamento.
De repente, ocorreu-lhe que ele não a apresentaria
como esposa, e uma onda de raiva e vergonha invadiu-
a, deixando-a intensamente corada. Recomeçou a pensar
em sua situação, e a incerteza tornou-se insuportável.
— Bem, agora que já estamos quase chegando,
quero saber o que você pretende fazer comigo —
perguntou, escondendo a insegurança e a mágoa por trás
de uma fachada de raiva.
Rane fitou-a, os olhos cinzentos mais frios do que
nunca.
— O que você quer que eu faça com você, Cindy?
Cindy encarou-o, mas logo, não querendo que ele
percebesse o quanto era vulnerável, olhou para o outro
lado.
— Cindy, o que você quer que eu faça? — ouviu-o
repetir.
Será que ele estava brincando com ela? Será que
estava sendo cruel de propósito, divertindo-se em tortu-
rá-la?
— Já não decidiu o que vai fazer de mim, Rane?
Pois bem, eu quero que você me dê o divórcio, como
disse que daria. Afinal, você já cumpriu a sua parte,
trazendo-me até aqui. Não foi isso que combinamos?
Rane olhou-a, com um ar mais sombrio ainda.
— Foi — admitiu, rindo friamente. — E isso é tudo
que lhe importa, não é? Chegar a Las Vegas?
— Claro que é!
Cindy não seria tola a ponto de confessar que o
amava e que, na época do casamento, tinha pensado que
seu amor era correspondido. Nunca seria tão tola, a
ponto de deixá-lo saber que a enganara tanto assim.
Rane ficou em silêncio de novo e ela virou-se para
a janela. Ainda não sabia o que ele faria de seu futuro,
mas essa era uma dúvida que logo seria esclarecida.
Apesar de deprimida, Cindy prendeu a respiração,
quando se aproximaram mais de Las Vegas. Como um
diamante solitário, que com suas inúmeras facetas
refletia milhares de luzes, jogando-as contra o céu que
parecia veludo negro, a cidade iluminava a escuridão do
deserto. Um caleidoscópio de cores vivas e brilhantes,
Las Vegas parecia ter saído de um conto de fadas, e
Cindy, maravilhada, não conseguiu mais desprender os
olhos de sua grandeza e magnificência.
Quando eles deixaram a autopista e entraram na
rua que Rane identificou como The Strip, seu olhar ia
rapidamente de um lado para o outro, incansável. Nunca
pensara que uma visão daquelas pudesse existir. Era
incrível o número de edifícios iluminados de alto a baixo,
que subiam em direção ao céu noturno, as paredes
cobertas de cartazes fulgurantes. Sinais brilhantes
anunciavam atrações, e manchetes circulantes piscavam
suas luzes coloridas, ostentando as últimas notícias. Não
havia fotos, quadros ou descrições em livros que
pudessem fazer justiça àquele playground do deserto.
Las Vegas era simplesmente assombrosa, com um clube
atrás do outro, cada um deles mais atordoante e
espetacular que o anterior, cada um com seu próprio
estilo, e todos eles fundindo-se com motéis, hotéis e lojas.
Seria impossível abafar a excitação que Cindy
estava sentindo. Então, aquilo era Las Vegas! Aquela era
a cidade encantada, um lugar mais fabuloso que a mais
louca das imaginações!
Um arrepio de prazer percorreu-a da cabeça aos
pés, fazendo seus sentidos tinirem de expectativa. Então,
um pensamento insinuou-se em sua mente, estragando
a euforia: aquela era Las Vegas, a cidade natal de Rane e
o lugar onde ele se divorciaria dela. Como seria seu
futuro, ali? De repente, toda a excitação acabou,
substituída por apreensão e nervosismo.
Rane parou o carro na frente de um bonito edifício,
em cuja marquise estava escrito apenas "Randolph's", e
Cindy examinou, pasma, as paredes pintadas de branco
e enfeitadas com aço cromado, onde inúmeras luzes
artificiais brilhavam como se fossem milhares de
estrelas, espalhadas sobre o desenho de um pôr-do-sol
no deserto. Filetes de água, iluminados com lâmpadas
coloridas, erguiam-se de uma belíssima fonte, dando
estranhas tonalidades às pessoas que entravam e saíam
pela enorme porta giratória. Quase de imediato, um
homem uniformizado desceu correndo a entrada
acarpetada de vermelho e aproximou-se deles.
— Sr. Randolph, que bom vê-lo de volta! — disse
ele, abrindo a porta do carro. Seus olhos pousaram por
um breve momento em Cindy, mas seu rosto simpático
não registrou a menor surpresa, por vê-la com Rane.
— Boa noite, Charles — replicou Rane, amigável.
— É bom estar de volta. Muito bom, mesmo. Quer fazer
o favor de guardar o carro para mim? Não vamos mais
precisar dele, esta noite.
— Pois não, senhor — Charles respondeu respeito-
samente. E, dando a volta no carro, abriu a porta de
Cindy e estendeu a mão, para ajudá-la a descer.
— Obrigada — murmurou Cindy, meio insegura,
aceitando a ajuda.
Desta vez, o homem olhou-a interrogativamente,
mas Rane não fez o menor esforço para apresentá-la,
fosse como amiga, esposa ou qualquer outra coisa. No
entanto, quando ela pisou na entrada acarpetada, deu a
volta e segurou-a pelo braço.
Cindy notou que Rane estava com a cesta que com-
prara nas montanhas na outra mão, e mais uma vez
sentiu vontade de saber para quem seria. Mas ele não lhe
deu tempo de perguntar nada; segurando-a com
firmeza, quase ao ponto de causar-lhe dor, guiou-a para
a porta giratória.
O que ela viu, ao entrar, deixou-a embasbacada!
Estavam num luxuosíssimo salão de jogos, onde em
todos os cantos pessoas dos diferentes tipos juntavam-se
em torno de máquinas caça-níqueis, roletas e mesas de
jogos de azar, prontas para fazer suas apostas e arriscar
o futuro nas mãos da sorte.
"Exatamente como eu arrisquei meu futuro",
Cindy pensou amargamente, "aceitando alguns beijos e
uma aliança de casamento".
No meio de todo o barulho do jogo, ela notou que
várias pessoas estavam gritando cumprimentos para
Rane. Rapidamente, a notícia da volta dele espalhou-se
pelo local e as boas-vindas se multiplicaram, tanto por
parte de jogadores e crupiês, quanto de lindas e
elegantíssimas garotas.
Cindy recebeu inúmeros olhares curiosos, que a
tornaram mais consciente do que nunca, dos sapatos
brancos e do velho vestido de algodão verde, que estava
usando. Infeliz, ela viu a curiosidade transformar-se em
desprezo, em alguns desses olhares, e quase foi capaz de
ouvir os risinhos caçoístas e comentários maldosos das
garotas que circulavam entre as mesas, algumas como
freguesas e outras como empregadas da casa.
Rane respondeu aos cumprimentos e fez algumas
brincadeiras bem-humoradas, sempre segurando Cindy
e empurrando-a para a frente. Só a soltou para apertar
um botão, quando entraram num elevador.
Imediatamente a pesada porta se fechou e o sorriso que
ele vinha exibindo desapareceu.
— Para onde estamos indo? — perguntou Cindy.
— Ver meu pai.
Ela abaixou a cabeça, sentindo que devia estar tão
vermelha quanto o tapete que cobria o chão do elevador.
Não tinha nada a dizer, e só conseguia pensar no quanto
seria bom ter algum dinheiro, para poder fugir dali e
evitar o confronto com o sogro. Do jeito que as coisas
estavam, dependia totalmente de Rane, e mesmo que
arranjasse um emprego, ainda precisaria de um lugar
para comer e dormir, até receber o primeiro ordenado.
Se tivesse sido abandonada naquele primeiro hotel,
como temera, poderia ter sobrevivido sozinha, mas
naquela cidade grande e brilhante, sentia-se vulnerável
demais para tentar.
Cindy examinou rapidamente as possibilidades à
sua escolha, e no fim acabou chegando à conclusão de
que o melhor era esperar e ver que destino poderia ter,
ao lado de Rane.
O elevador atingiu o sexto andar e parou
suavemente. Sem dizer nada, Rane agarrou-a pelo braço
e empurrou-a para fora, quase jogando-a de encontro ao
corpo alto e muito sensual de uma ruiva lindíssima,
vestindo uma roupa diminuta, toda verde e dourada.
A ruiva fixou nele os grandes olhos verdes e,
recuperando-se rapidamente do encontrão, enlaçou-o
pelo pescoço e beijou-o em cheio na boca. A última coisa
que alguém seria capaz de imaginar, vendo a cena, é que
a garota esbelta, observando o par com olhos escuros
como a noite, era a esposa daquele homem.
Quando se recuperou do choque, Cindy sentiu-se
humilhada e indignada. Rane, apesar de continuar segu-
rando a cesta, permitira o beijo e até mesmo colocara a
outra mão nas costas nuas da ruiva, num gesto
encorajador.
Foi então que, com um sobressalto, Cindy
percebeu que estava enciumada, terrivelmente
enciumada! Como uma esposa de verdade! Como se
tivesse o direito de estar enciumada! Não queria que
Rane tomasse outra mulher nos braços. Certo ou errado,
estava casada com ele e, queria ser respeitada como uma
verdadeira esposa.
Seus olhos escuros deslizaram pela ruiva,
reparando no corpo sedutor, nas longas pernas envoltas
por meias de seda e nos pés esbeltos, calçados com
sandálias de salto alto.
"É claro que Rane teria que ter uma mulher em Las
Vegas, e é claro que só poderia ser esse tipo de mulher",
pensou, cada vez mais amargurada.
Finalmente, a ruiva soltou Rane, afastando-se
alguns centímetros.
— Fiquei sabendo que você tinha chegado — disse,
numa voz rouca e sensual —, e pedi a uma das garotas
para tomar meu lugar, no palco. Não poderia ir dançar,
você demorou uma verdadeira eternidade. Senti tanto a
sua falta, Rane!
— Você está linda, Rita — exclamou Rane. Depois,
virou-se para Cindy e apresentou: — Esta é Cindy, Rita.
Cindy Randolph.
Cindy achou que as palavras tinham um tom quase
cruel, e olhou para seu marido, que estava observando
Rita com frieza.
— Randolph? — A ruiva estava surpresa e já um
pouco desconfiada.
— A sra. Randolph — explicou ele, os olhos
tornando-se mais frios ainda, enquanto esperava para
ver a reação dela.
Cindy estava horrivelmente consciente do
embaraço que representava para o marido e odiava tudo
aquilo. Ainda não sabia quem ele estava querendo ferir,
se ela ou a ruiva, mas percebeu, por instinto, que uma
das duas teria que sofrer.
Quando Rita deixou escapar uma exclamação
incrédula, Rane tomou-a pelo braço e levou-a para o
outro lado do hall. Desse momento em diante, Cindy não
teve mais dúvidas de quem ele queria ferir. Era ela
mesma o objeto da crueldade dele, que, com toda
certeza, devia estar contando à ruiva como e por que
tinham se casado.
"Pois bem", Cindy prometeu a si mesma, "nenhum
deles terá o prazer de me ver embaraçada".
De vez em quando, enquanto Rane falava, Rita vol-
tava os grandes olhos verdes na direção dela, e Cindy
teve que apelar para toda a sua coragem, para sustentar
os olhares que pareciam querer matá-la. De repente, para
seu maior desespero, ela viu o marido entregar à outra a
cesta que trouxera das montanhas.
"Oh, Deus, como pude ser tão estúpida?", pensou.
"É claro que a amiga a que ele se referiu, e que faz coleção
de cestas, só poderia ser moça e bonita!"
Um largo sorriso apareceu no rosto de Rita e ela
disse qualquer coisa a Rane, antes de beijá-lo de novo e
pegar a cesta. Então, movendo sedutoramente os
quadris, caminhou para o elevador.
Cindy suportou com coragem o olhar de ódio da
outra, e não olhou para o elevador, enquanto a porta não
se fechou. Logo após, Rane aproximou-se como se nada
tivesse acontecido, o que a deixou mais furiosa ainda. Ao
que parecia, sua noite de núpcias não tinha sido mais que
uma simples amostra das grosserias que teria que
aguentar enquanto estivesse com ele.
— Por que você fez isso? — perguntou, incapaz de
conter a raiva por mais tempo. — Por quê?
— Fiz o quê? — A voz dele era pura zombaria. —
Apresentar você como minha esposa? Existe algum
motivo para eu não fazer isso?
— Claro que existe! — Cindy estava certa de que
Rane zombava dela, e isso levou sua raiva ao ponto de
ebulição. — Mas você está se divertindo com isso tudo,
não está?
Ele examinou o corpo dela de alto a baixo, bem
devagar, antes de responder:
— Não sei por que está dizendo isso.
— Sabe, sim! Você deixou aquela... aquela mulher
... beijá-lo como... como se...
— Como o quê? — A zombaria tinha sumido, por
completo, da voz dele.
— Como se ela fosse sua amante! E depois, ainda
teve a coragem de me apresentar como sua esposa...
como... como se eu não tivesse a menor importância!
— E por que você está irritada? Por ela ter me
beijado, ou por ter sido apresentada como minha esposa?
Cindy apertou os punhos.
— Pelas suas coisas — replicou, os olhos faiscando.
— Não diga! Você não está com ciúmes do seu
marido, está, sra. Randolph?
— Claro que não! — Ela estava quase chegando a
odiá-lo. — Você não é... não é melhor que... que Júnior
Parker!
Inesperadamente, Rane agarrou-a pelos braços e
puxou-a para junto de si.
— Mas que coisa para uma esposa recém-casada
dizer a respeito do marido, minha flor — murmurou, os
lábios quase encostados aos dela.
Tomada por um ódio repentino, Cindy levantou a
mão para esbofeteá-lo, mas dedos de ferro agarraram seu
braço, impedindo-a de conseguir o que queria.
— Nunca, nunca mais tente fazer isso! Se tentar,
fique certa de uma coisa: vou reagir do mesmo modo!
Rane empurrou-a para diante com um safanão e,
parecendo uma boneca sem vontade, ela o seguiu. No
fim do corredor, ele parou na frente de uma porta preta,
bateu três vezes e abriu, forçando-a a entrar num
elegante escritório.
Cindy examinou rapidamente o cômodo luxuoso,
forrado por um carpete espesso e com as paredes
recobertas por lambris de madeira, antes de fixar os
olhos na pessoa sentada diante dela, atrás de uma
enorme escrivaninha.
Um homem alto e grisalho, parecidíssimo com
Rane, retribuiu seu olhar.
— Rane! Quando foi que você chegou? —
Levantando-se, ele abraçou o filho efusivamente.
Depois, voltou-se para Cindy e perguntou, sorrindo com
admiração: — E quem é esta beleza?
Cindy achou o sogro — um homem de cerca de
cinquenta anos, mas ainda em excelente forma física —
tão simpático e atraente quanto tinha achado Rane, da
primeira vez em que ele a beijara.
"Há um século", pensou, esperando, em ansiosa
expectativa, a reação dele. Seria apresentada como
esposa? Ele contaria ao pai como e por que tinham se
casado? Seria humilhada na frente daquele estranho, tão
risonho e gentil?
Rane, sentando-se na beirada da escrivaninha,
cruzou os braços e examinou-a dos pés à cabeça, com ar
zombeteiro.
— É, ela é mesmo uma beleza — murmurou afinal,
bem-humorado, como se a estivesse vendo pela primeira
vez.
— Quanto a isso, não há a menor dúvida — o sim-
pático senhor concordou, estendendo a mão para pegar
a de Cindy. — Sou Rane Dartsfield Randolph, o
segundo, naturalmente o pai de Rane. Quem é você?
Cindy ficou sem saber o que dizer e Rane, obvia-
mente divertido com a situação, olhou-a friamente,
desafiando-a a responder. Cada vez mais embaraçada,
ela corou e, afinal, queimando de vergonha e sem saber
o que tinha visto de tão atraente no marido, declarou:
— Sou Cindy Lancaster.
— Oh-oh! — Rane fingiu surpresa. — Como você é
esquecida, minha flor. — Virou-se então para o pai e
apresentou, solene: — Esta é Cindy Lancaster Randolph,
papai. Sua nora.
O sr. Randolph ficou tão surpreso quanto Cindy,
mas, sendo um homem de negócios, dominou-se
rapidamente e sorriu para ela.
— Minha querida, que notícia maravilhosa! Faz
anos que espero ouvir essas palavras. —
Impetuosamente, abraçou-a e beijou-a, girando com ela
pelo escritório.
Cindy estava horrorizada, embaraçada e
envergonhada. O prazer do homem, tão sincero, na certa
se transformaria em desgosto, quando Rane lhe
revelasse as circunstâncias em que fora realizado o
casamento e sua intenção de divorciar-se dela. Pareceu-
lhe absurdo enganar o simpático senhor, mesmo que
fosse apenas por alguns dias, e, nervosa, ela resolveu
contar-lhe a verdade.
— Senhor... — começou, sem jeito.
— Não! Não! — ele interrompeu-a. — Senhor, não!
R.D. ou papai, minha querida, mas senhor, não!
Sentindo a coragem desaparecer, ela recomeçou:
— R.D., acho que o senhor deve saber que...
— Agora não, Cindy. Vamos deixar essa novidade
para mais tarde. — Segurando-a pelo braço, Rane puxou-
a para junto de si. — Sei que você está exausta e precisa
descansar. Vou lhe mostrar nossa suíte.
Cindy tentou se livrar com um safanão e, nesse
momento, seus olhos se encontraram com os de R.D. Ele
estava obviamente confuso e, mais uma vez, ela sentiu a
necessidade de lhe contar a verdade. Seria vergonhoso
demais deixá-lo na ilusão de que aquele era um
casamento normal.
— R.D., eu quero que o senhor saiba que...
Os dedos de Rane enterraram-se na carne macia de
seu braço.
— Papai não está preocupado com os motivos
pelos quais nos casamos, minha flor. Não se torture
desse modo.
O olhar atônito de Cindy fixou-se em R.D., cujos
olhos deslizaram por seu corpo, fixando-se por um breve
instante em seu ventre. Era facílimo imaginar o que ele
estava pensando.
— Você não me deve nenhuma explicação, minha
querida — disse R.D. com delicadeza. — Estou satisfei-
tíssimo com o casamento de vocês e qualquer outra...
ahn... surpresa, será mais do que bem-vinda, se for tão
agradável quanto esta.
— Mas... mas... — Cindy recomeçou, vermelha
como um pimentão.
— Venha comigo, minha flor — murmurou Rane,
todo solícito, levando-a em direção à porta.
Desta vez ela distinguiu, com certeza, uma nota
caçoísta na voz dele, mas não estava em condições de dar
uma resposta à altura. Atordoada e envergonhada
demais para olhar de novo para R.D., foi com ele para o
corredor. Vários segundos se passaram, antes que
conseguisse se recuperar.
— Como pôde fazer uma coisa dessas? Como
pôde? — disse então, louca de raiva.
— Como pude fazer o quê?
— Você sabe muito bem, Rane! Você deixou que
seu pai... Bem, que ele pensasse que... que...
Um sorriso malicioso surgiu nos lábios de Rane.
— Que você está grávida?
— É! Como teve coragem? Além disso, deixou que
ele acreditasse que nosso casamento é normal. Como
pôde fazer uma coisa dessas com seu próprio pai? Não é
justo! Ele vai ficar aborrecido, quando descobrir a
verdade.
— Como você sabe que não está? — perguntou
Rane casualmente, olhando-a de alto a baixo.
— Que não estou o quê?
— Grávida.
— Mas é claro que não estou grávida! Que ideia!
Só de pensar nisso, Cindy sentiu-se mal. Jamais
teria um filho de um homem que não a amava! Na
verdade, nem sonharia com um disparate desses.
— Como sabe? — insistiu ele, destrancando a porta
que ficava no fim do corredor. — Nós fizemos amor.
— Fizemos amor! — Sua voz estava carregada de
sarcasmo. — É assim que você chama o que fez comigo?
De "fazer amor"?
— A maior culpada do que aconteceu foi você
mesma. — Abaixando-se, ele ergueu-a nos braços e
entrou na suíte. — Bem-vinda ao lar, sra. Randolph!
"Ele está caçoando de novo de mim", Cindy
pensou, e exigiu, chutando, empurrando e odiando-o
por querer continuar com aquela farsa:
— Ponha-me no chão!
— O quê?! — Sem a menor cerimônia, Rane
colocou-a em pé no hall de mármore. — Não existe
romantismo em seu coração? Não quer entrar em sua
nova casa nos braços de seu marido, sra. Randolph?
— Não, não há romantismo em meu coração — ela
declarou, irritada com o tom irônico dele. Poderia ter
acrescentado que o romantismo morrera em sua noite de
núpcias, mas o orgulho impediu-a.
Ignorando sua hostilidade, Rane tomou-lhe a mão
e começou a caminhar.
Cindy resistiu, fazendo o possível para se soltar.
— Não precisa se incomodar com isso. Afinal, para
quê? — perguntou com amargura. — Não é melhor você
simplesmente se divorciar de mim e pôr um ponto final
nessa história?
Sem comentários, ele puxou-a com um safanão e
recomeçou a caminhar, arrastando-a junto.
— Esta é a sala de visitas, minha flor — disse,
mostrando a sala mais linda que Cindy já vira.
Ela tentou fingir desinteresse, mas estava
encantada. Sobre um tapete verde, destacavam-se
poltronas e sofás, em tons de marrom e ouro. Mesas
elegantes, de madeira escura, achavam-se espalhadas,
aqui e ali, e uma lareira enorme, encravada numa parede
coberta de espelhos do chão ao teto, dava uma nota
aconchegante ao conjunto. Era uma sala cheia de cores e,
no entanto, com uma inconfundível nota de refinamento.
Sem esperar que Cindy se recuperasse do
esplendor do primeiro cômodo, Rane levou-a para o
próximo.
— Aqui, fica o banheiro. Olhe só para aquilo —
falou, indicando uma banheira luxuosíssima, em perfeita
harmonia com o resto do ambiente. Continuando, em-
purrou-a para dentro de outro cômodo. — Esta é a
cozinha, com uma entrada de serviço para os
empregados.
A cozinha era um lugar amplo e ensolarado, com
as janelas cobertas por cortinas bege, do tipo rolo, e
enfeitadas com vasinhos de violetas africanas, brancas,
roxas e rosa. Cindy estava espantada com o fato de um
homem como Rane, tão duro e implacável, morar num
lugar tão encantador.
Ainda segurando a mão dela, ele seguiu em frente.
— Aqui, temos a sala de jantar.
Na sala de jantar, uma das paredes era totalmente
tomada por janelas, junto às quais viam-se vários vasos
de cactos, arrumados de forma exótica e muito
decorativa. Uma mesa maciça, com oito cadeiras,
dominava o local, e acima dela estava um quadro
reproduzindo o pôr-do-sol no deserto, com uma cadeia
de montanhas ao fundo.
A visão desse quadro fez Cindy se lembrar do
quadro que trouxera de casa, e ela sentiu-se feliz por tê-
lo trazido, mesmo não acreditando mais nas palavras
que nele bordara. Rane mostrou-lhe ainda o bar e um
magnífico aparador, antes de sair de lá.
Subindo uma escada acarpetada, eles deram num
espaçoso hall, para onde se abriam duas portas. Uma
delas era a de um escritório, decorado em tons de cinza
e ouro, e contendo uma magnífica escrivaninha de
carvalho maciço. Rane apertou um botão e um painel
deslizou, revelando uma tela de televisão gigantesca. Ele
apertou o botão de novo e fechou o painel, conduzindo-
a para a outra porta.
— Este é o quarto — anunciou, num tom que
Cindy classificou de triunfante.
Incrivelmente espaçoso, o quarto fora decorado em
tons de cinza e azul, e todo o ambiente era dominado por
uma enorme cama de casal, colocada sobre uma espécie
de plataforma, à qual se subia por meio de degraus
luxuosamente acarpetados. As quatro colunas da cama
erguiam-se até o teto, e uma belíssima colcha azul cobria-
lhe o colchão. Um armário e um bureau ocupavam um
lado do cômodo, e um sofá e duas poltronas, forradas
num tom de azul que combinava com o da colcha,
ocupavam o outro.
Empurrando uma porta de correr, Rane mostrou
outro banheiro, todo de mármore e espelhos. A elegante
banheira, encravada no meio do cômodo, era oval e
dava, com toda certeza, para três pessoas. Havia também
um chuveiro, encerrado num boxe de mármore com
portas de vidro temperado, mas o que mais encantou
Cindy foi o telefone dourado, antigo, que estava sobre
um aparador, também de mármore.
— Charles vai trazer nossas coisas para cá, daqui a
pouco. Enquanto isso, não quer jantar?
Rane voltou-se para sair, como se já tivesse
completado o tour pela suíte, mas Cindy segurou-o pelo
braço.
— Já... já vimos todos os cômodos?
Os olhos cinzentos fixaram-se nela, brilhando,
divertidos.
— Já. Por quê? Ficou desapontada? Não gostou da
suíte? Achou que ela não está de acordo com seus
padrões?
Ignorando o sarcasmo desse comentário, ela
gaguejou:
— É claro que tudo é lindo! Lindo demais, até,
mas... mas onde eu vou dormir?
Ele indicou a cama.
— Tenho certeza, minha flor, que está cama é
grande o suficiente para conter nós dois. Cindy
empalideceu.
"O que mais este homem quer de mim?", pensou,
desesperada. "Ele me quer para esposa, ou prefere o
divórcio?"
— Mas... mas, considerando a situação, você não
pode querer que eu durma aqui — protestou, enrolando
uma mecha do cabelo escuro no dedo indicador. — Você
não tem outro quarto?
Um sorriso irônico surgiu nos lábios dele.
— É perfeitamente legal você dormir comigo,
minha flor...
— Pode ser, mas eu não quero! E você também não
pode querer dormir comigo, se pretende pedir o
divórcio.
Recostando-se no batente da porta, Rane cruzou os
braços sobre o peito.
— Eu nunca disse que não queria dormir com você
— murmurou, olhando-a sugestivamente de alto a baixo.
— Eu só disse que iria invalidar esse arremedo de
casamento.
Cindy, apanhada de surpresa por essa declaração,
levou alguns segundos para conseguir responder. Então,
cheia de raiva impotente, acusou:
— Você é horroroso! Que homem desprezível! É
claro que não vou dormir com você, se vamos nos
divorciar! Foi para acabar com esse "arremedo de
casamento" que você me trouxe para cá, não foi? Pois
então peça o divórcio. Vamos, peça! O que está
esperando?
— Não tenho certeza. — Pensativo, ele
contemplou-a durante algum tempo; depois, segurou-a
pelos braços e puxou-a para junto de si. —Talvez nosso
arremedo de casamento me divirta. Talvez eu goste de
você... do seu fogo e da sua inocência. Pode ser que eu a
tenha julgado mal, afinal de contas.
Antes que Cindy pudesse se afastar, ele inclinou a
cabeça e beijou-a, com brutalidade.
— Não! — Ela jogou a cabeça para trás e empur-
rou-o, tentando pôr alguma distância entre eles. Era
difícil pensar, quando estavam tão próximos. — Não me
importo mais com o que você pensa do nosso casamento
e não vou dormir com você! Agora, quem quer o divórcio
sou eu!
"Que atrevimento o dele, decidir que não me quer,
num dia, e no outro mudar de ideia!", refletiu, indignada.
"E tudo isso com a maior calma, como se eu não tivesse
sentimentos e muito menos opinião!"
O riso áspero de Rane espalhou-se pelo ambiente,
e ele estendeu a mão para acariciar os cabelos dela.
— Nós nos divorciaremos quando eu quiser,
minha flor — declarou, cruel. — E você vai dormir
comigo esta noite. Antes, porém, vamos jantar.
Fumegando de raiva e ressentimento, Cindy
seguiu-o. Que outra coisa poderia fazer? Além disso,
estava morta de fome e não queria dar um espetáculo,
desmaiando de fraqueza.
Num elevador privativo, Rane levou-a para o
luxuoso restaurante que ficava no topo do edifício.
Quando entraram, ele segurou-a pelo cotovelo, num
gesto que qualquer um classificaria de solícito e
carinhoso, mas que ela sabia que não passava de uma
demonstração de domínio.
Um homem vestido de preto, com uma camisa
branca enfeitada de rendas, correu para recebê-los, assim
que os viu.
— Sr. Randolph! Que bom vê-lo de novo!
— Obrigado, Leon. — Rane sorriu da expressão de
surpresa que apareceu no rosto do outro, quando ele
fixou o olhar em Cindy e viu as roupas deselegantes que
ela estava usando. — Queremos uma mesa para dois.
— Pois não, senhor. Venha por aqui, por favor. —
Com o rosto já totalmente inexpressivo, Leon conduziu-
os para uma mesa junto à janela.
Cindy arregalou os olhos, ao ver Las Vegas lá em-
baixo, multicolorida e toda iluminada. Agora, entendia
perfeitamente por que aquela cidade atraía tanta gente.
— Impressionante, não é? — Rane perguntou, a
mão apoiada nas costas dela.
— Ê, sim.
Com esta resposta seca, Cindy acomodou-se na
cadeira forrada de veludo, que o maitre tinha se
apressado a puxar. Em vez de dar a volta na mesa e
sentar-se de frente para ela, Rane escolheu a cadeira ao
lado.
— Quer tomar vinho, durante o jantar?
A um sinal de Leon, um garçom aproximou-se. Ele
então pediu licença e, desejando-lhes uma boa refeição,
afastou-se.
— Boa noite, sr. Randolph, senhora — o garçom
cumprimentou-os, todo sorridente.
Cindy retribuiu o sorriso gentil e olhou para o
marido.
— Podemos tomar vinho, se é isso que você quer
— murmurou, meio atordoada pela elegância do
ambiente.
Seu romantismo, que julgara morto para sempre,
estava começando a se manifestar de novo, e ela.
lembrou-se dos sonhos que costumava ter, sobre os
lugares maravilhosos que visitaria e os restaurantes
luxuosos onde comeria, acompanhada pelo homem
amado.
Enquanto seu olhar vagava pelo salão, seu coração
tentava convencê-la de que todos aqueles sonhos tinham
se tornado realidade. Mas era tolice fazer castelos no ar.
O ambiente romântico de seus sonhos realmente
existia, mas junto dela não estava o companheiro ideal, e
sim seu bonito marido de alguns dias, que cruelmente se
divertia em lhe mostrar como as coisas poderiam ter sido
entre eles, enquanto planejava divorciar-se dela.
Rane pediu o vinho, e quando o garçom
perguntou-lhe se estavam prontos para jantar,
respondeu que sim. Virando-se então para Cindy, disse:
— Posso escolher para nós dois? Conheço bem
todas as especialidades da casa.
Cindy não sabia se ele estava tentando evitar que
se sentisse embaraçada ou apenas pensando em si
mesmo, mas concordou com alívio, sorrindo-lhe
agradecida. O cardápio era dividido em seções, cada
uma com tipos diferentes de pratos, oferecidos nas mais
variadas combinações, e ela se sentiria totalmente
perdida se tivesse que escolher um deles.
Rane retribuiu o sorriso e ela quase acreditou que
ele estava tentando ser bom e gentil, mas os
acontecimentos do passado já a tinham ensinado a não
ser tão ingênua e confiante.
Depois de fazer o pedido ao garçom, ele começou
uma conversa leve, que ela fez o possível para manter.
No entanto, continuou tensa, e foi com alívio que viu o
vinho chegar, pois o álcool faria com que se
descontraísse e diminuiria a hostilidade que estava
sentindo pelo marido.
— O que está achando de Las Vegas? — ouviu-o
perguntar, de repente.
— É... é simplesmente magnífica! Só que eu não
esperava que ela estivesse localizada no meio do deserto.
Não sei onde, adquiri a ideia de que, em Las Vegas, havia
montes de plantas e água.
— Ah, mas nós temos água e vegetação, e até
mesmo neve, em certas áreas. Nevada não é só deserto.
A palavra Nevada é espanhola e significa coberta de
neve. Foi usada, em primeiro lugar, para denominar a
cadeia de montanhas que limita o estado a oeste, a Sierra
Nevada. Nossa área, que está localizada ao sul do estado,
é de uma variedade surpreendente: não só temos o
deserto, como também as Montanhas Spring, onde
podemos praticar esportes de inverno, e os lagos Mead e
Mohave. — Ele parou de falar, para estudá-la
pensativamente. Depois, continuou: — Eu amo esta área.
Não existe, no mundo, um lugar igual. E você? Não acha
que Las Vegas é, pelo menos, cativante?
Se Cindy não o conhecesse tão bem, teria jurado
que ele estava esperando sua resposta com ansiedade.
— Não é que eu não goste daqui — respondeu,
apressada. — É que... é tudo tão diferente das montanhas
da Virgínia!
— É claro que é, mas a beleza desta área é única. A
atração do deserto é extraordinária, principalmente de-
pois que a gente aprende a conhecê-lo. E eu gosto de
lugares onde um homem pode ver quilômetros e
quilômetros, ao redor. — Um sorriso caloroso surgiu-lhe
nos lábios.
Cindy sorriu também, com doçura, pensando que
o marido era um homem de muitas contradições. Tomou
outro gole de vinho e ele pegou a garrafa, despejando
mais um pouco do líquido claro em seu copo. De novo,
ela levou o copo aos lábios e bebeu, permitindo que o
vinho atordoasse sua mente e diminuísse sua mágoa e
insegurança, fazendo, ao mesmo tempo, com que se
esquecesse da incerteza do futuro. Estar sentada ali, ao
lado de um Rane tão charmoso e gentil, era o mesmo que
voltar no tempo e reencontrar o estranho atraente, por
quem se apaixonara.
De repente, Cindy percebeu que desejava gostar de
Las Vegas, ver na cidade, a beleza que Rane via. Para seu
horror, percebeu também, consumida pela vergonha,
que queria continuar casada com ele.
Essa revelação foi tão dolorosa, que ela quase
gemeu de desespero. Era crueldade do marido conservá-
la naquela situação indefinida, quando tinha a intenção
de pedir o divórcio. É verdade que poderia ir embora por
conta própria, mas... para onde? E o que faria? Além
disso, por mais difícil que fosse, para seu orgulho, aceitar
a realidade, tinha que admitir que não desejava ir, que
queria ficar junto de Rane o máximo possível. Nem
mesmo as grosserias dele e o medo que sentia, de passar
por outra experiência como a de sua noite de núpcias,
poderiam abafar a horrível verdade: ela o amava.
— Está com fome? — ouviu-o perguntar,
interrompendo seus melancólicos pensamentos.
Como que obedecendo a um comando telepático,
o garçom aproximou-se com o primeiro prato. Cindy
fitou o alimento verde à sua frente, imaginando o que
poderia ser.
— É salada de espinafre com pedacinhos de bacon
— Rane explicou. — Experimente! É uma delícia.
Ela experimentou e achou uma delícia, mesmo.
Rane, atencioso, serviu-a de mais vinho e ofereceu-lhe
um pedaço de pão de centeio, no qual passara manteiga.
Em seguida, começou a falar de Las Vegas e dos salões
de jogos, que eram o principal meio de subsistência da
cidade, e nos quais só podiam entrar maiores de vinte e
um anos.
Encantada com a elegância do ambiente e
descontraída pelo vinho, Cindy não tirou os olhos dele
por um só momento. Quando a lagosta à Newbourg
chegou, rodeada por aspargos feitos na manteiga, ficou
boquiaberta. Nunca tinha visto um alimento tão bonito,
e provou logo um pedacinho. De novo, Rane encheu seu
copo de vinho.
Após a lagosta, ele selecionou a sobremesa: bolo
Alasca para ela e Jubileu de cerejas para si mesmo.
Esquecida do cansaço da viagem e da preocupação com
o futuro, Cindy riu quando o viu pegar uma porção de
seu bolo, para experimentar.
— Delicioso! — Então, pegando uma garfada do
Jubileu de cereja, Rane ofereceu a ela.
— Igualmente delicioso — declarou Cindy, com
um sorriso alegre. Ficou surpresa ao ver o marido
inclinar-se e beijar seus lábios, de leve.
Cedo demais, para Cindy, a refeição terminou.
Rane levantou-se e estendeu-lhe a mão, que ela aceitou,
sentindo-se um pouco tonta, pois nunca bebera tanto,
antes. É verdade que estava acostumada a tomar vinho
de maçã desde criança, mas jamais passara de um ou
dois copos, pois, nas montanhas, não se permitia que as
mulheres bebessem muito.
Rane, sorrindo com indulgência do rubor que lhe
coloria as faces, tomou-a com firmeza pelo braço e levou-
a em direção à saída. Quando entraram no elevador,
Cindy viu as paredes girarem em torno de si e não
conseguiu conter um riso baixo e rouco. Pela primeira
vez, naquela semana, estava se sentindo totalmente
desinibida, sem a menor preocupação com o futuro.
Depois de seu casamento forçado, dos maus-tratos que
sofrera nas mãos do marido e da viagem que fizera em
direção a um destino incerto, estava, de repente, com a
sensação de ter chegado a um porto seguro. Tinha até se
esquecido de que só havia uma cama na suíte do
marido... uma única cama que, ele garantira,
partilhariam aquela noite.
Sorrindo, Cindy permitiu que Rane conservasse o
braço em volta de sua cintura, no elevador. No íntimo
estava ciente do modo estranho com que ele a observava,
mas, estranhamente desligada de tudo, não se importou.
No sexto andar, Rane ajudou-a a descer e caminhar
até a suíte.
— "Entre na minha casa", disse a aranha para a
mosca — murmurou ele, destrancando a porta, e Cindy
não conseguiu decifrar a expressão estranha dos olhos
cinzentos.
Erguendo o rosto, ela riu alegremente e sentiu a
mão dele aumentar a pressão em sua cintura.
Com a maior gentileza, foi guiada até uma varanda
larga, aconchegante e romanticamente decorada com
cadeiras e mesinhas de cor clara, que brilhavam à luz do
luar. Em pé atrás dela, Rane envolveu-a nos braços e
puxou-a de encontro ao peito. Cindy tinha consciência
de que deveria sair dali, mas seu coração desejava ficar,
e não ouviu os conselhos de seu cérebro.
— Olhe lá — ouviu-o sussurrar, os lábios bem
junto à sua orelha —, aquelas são as montanhas de onde
você veio. Aqueles picos pertencem às Montanhas do
Francês, è a lua suspensa entre eles, como se fosse uma
bola de ouro, é uma lua para amantes, feita para você e
para mim e bem própria para esta noite.
De repente, Cindy teve vontade de ser beijada pelo
marido, com carinho e paixão, e quando ele afastou seus
cabelos e encostou os lábios em sua nuca, arrepiou-se de
prazer. Sem sentir, girou nos braços másculos, a boca
entreaberta pedindo um beijo.
Rane abraçou-a então, com força, moldando cada
curva suave de Cindy à sua carne firme, às coxas
musculosas, aos quadris estreitos. Seus lábios deslizaram
pelo pescoço fino, beijando, mordiscando e incendiando
os sentidos femininos de tal modo que ela se viu
desejando que aquele momento não tivesse mais fim.
— Minha flor, minha doce flor das montanhas —
ele murmurou, o peito movendo-se contra os seios dela,
num gesto sensual, um segundo antes de erguê-la nos
braços e começar a caminhar em direção ao quarto e à
cama larga, de quatro colunas.
Percebendo para onde iam, Cindy quis protestar.
Precisava protestar, tinha que protestar! Seu orgulho e
seu cérebro exigiam isso, mas o vinho, o jantar, a
delicadeza de Rane e, principalmente, o amor que sentia
por ele, tinham enfraquecido suas defesas, amortecendo
seu ódio e sua mágoa.
— Cindy, você é a criatura mais provocante que
conheço — escutou-o dizer. — Deixe-me fazer amor com
você! Deixe que eu lhe mostre como deve ser um ato de
amor! Quero que seja minha, totalmente minha.
Pretendia dizer que não, pois estava com medo de
sentir de novo a dor daquela primeira noite e era isso que
sua mente lhe ordenava, mas quando Rane começou a
despi-la, com toda a delicadeza, não teve forças para
empurrá-lo. E quando os lábios dele desceram sobre os
seus, com um ardor que afastou a lembrança do passado,
não conseguiu pronunciar as palavras que o mandariam
embora. Deitou com ele sobre a cama macia e não o
repeliu. Ao contrário, perdeu o controle das próprias
emoções. Os lábios másculos fizeram renascer a vida nos
seus, e as mãos que deslizaram por suas costas,
acariciantes, trouxeram-lhe à mente a lembrança do
primeiro beijo que haviam trocado, tão cheio de encanto
e ternura. Foi então que, em seu desejo de pertencer a ele,
Cindy esqueceu-se do medo.
CAPÍTULO VI

Quando Cindy acordou na manhã seguinte, o


quarto estava iluminado pelo mais belo sol que já vira.
Ainda um pouco tonta, ela olhou em torno, depois
deixou-se cair sobre os travesseiros macios, com um
sorriso nos lábios. Aquele era o quarto de Rane,
naturalmente. Era a esposa dele, e, na noite anterior,
havia conhecido seu amor. Maravilhoso! Alegre!
Excitante! Seus olhos procuraram o outro lado da cama,
vazio agora.
— Rane — chamou timidamente, pensando que, se
estivesse vivendo um sonho, não queria acordar. —
Rane?
— Aqui, minha flor — veio a resposta, dando-lhe a
certeza de que estava mesmo vivendo o sonho.
Uma onda de amor invadiu-a, e desta vez não se
sentiu revoltada. Rane amara-a na noite anterior, estava
certa disso, e recusava-se a pensar no fato de que ele
ainda não havia desistido do divórcio. Afinal, ele não
deixara o pai acreditar que seu casamento era sólido, e a
vinda de filhos uma possibilidade? Não a apresentara
como esposa àquela antipática Rita? Não lhe dissera que
talvez a tivesse julgado mal? E não lhe confessara, na
noite anterior, que queria que fosse dele?
Vestindo calça branca e uma camisa escura, que
acentuava sua boa aparência, Rane apareceu na porta e
recostou-se no batente. Estava com uma xícara de café
nas mãos e, com um sorriso largo, ofereceu-a a Cindy.
— Tome, minha flor. Está na hora de levantar.
Hoje, você vai fazer compras.
— Compras?!
Mas ela não queria deixar aquele quarto, aquela
cama, aquele homem. Tinha medo de que a felicidade se
acabasse, se por acaso se afastasse dali.
— Ê. Você precisa comprar algumas roupas. —
Observando-a cuidadosamente, ele se aproximou da
cama e deu-lhe a xícara, sentando-se em seguida a seu
lado e acariciando-lhe a mão com ternura, enquanto ela
tomava o líquido fumegante. — Não posso permitir que
minha linda esposa ande por aí, sem estar vestida com o
que há de melhor, em matéria de roupas.
Cindy levantou os olhos para o marido e um
sorriso de rara beleza surgiu em seus lábios. '"Minha
linda esposa", ele dissera. E queria que ela tivesse o que
havia de melhor!
— Tenho que tratar de alguns negócios, mas você
pode ir se vestindo, enquanto isso. Amanhã é seu
aniversário, não é? Talvez possamos comemorá-lo. A
caixa com suas coisas está na frente do bureau. Charles
trouxe-a para cá ontem à noite, quando estávamos
jantando. O dia está quente e bonito, por isso é melhor
pôr uma roupa leve. Vejo você daqui a pouco, certo?
— Certo. Vou me aprontar bem depressa.
Cindy seguiu Rane com os olhos, maravilhada com
a ideia de que ele era seu marido. E ele a amava. Tinha
que amar! A noite anterior era uma prova disso. Não
deixaria que dúvidas a respeito do futuro ou o fato de ele
não ter se declarado com palavras estragassem sua
alegria. Hoje, ia fazer compras com ele, como esposa
dele, e não pensaria em nada além disso.
Terminou de tomar o café e saiu da cama. Pegou
na caixa a roupa menos amassada que encontrou, uma
saia bege e uma blusa marrom, e estendeu-as sobre a
cama. Em seguida, tomou um banho e maquilou-se. Não
ficou contente com a imagem que viu nos espelhos do
banheiro, mas não tinha outra escolha; de todas as
roupas que trouxera, aquela era a melhor.
Na cozinha, encontrou um copo de suco de laranja
e duas torradas com manteiga, ao lado de um bilhete que
dizia que eram para ela. Sorrindo da consideração de
Rane, sentou-se à mesa da sala de jantar e comeu tudo,
apesar de não estar com fome, depois do* jantar delicioso
da noite anterior.
Algum tempo se passou, antes que ouvisse a cam-
painha da porta. Ansiosa, correu para atender,
imaginando por que Rane estaria tocando a campainha,
se tinha a chave da porta. Foi um choque ver-se frente a
frente com Rita.
A ruiva entrou com a maior desenvoltura, e ficou
evidente que ela conhecia muito bem a suíte.
— Vim pegar você, para irmos fazer compras —
anunciou com uma certa afetação, jogando a bolsa sobre
o sofá.
— Você?! Mas é Rane que vai me levar para fazer
compras!
— Rane tem negócios a tratar. Não me diga que ele
nem mesmo lhe falou nisso?
— Eu... ele... ele falou, mas eu pensei... Bem, eu vou
esperar, até ele poder me levar.
Cindy não queria ter nada a ver com a ruiva, e
estava se sentindo meio traída. Achou que Rane poderia
ter-lhe explicado a situação melhor, pois do jeito que ele
se despedira, ficara com a impressão de que iriam juntos
fazer compras, Como ele pudera mandar Rita pegá-la,
era algo que não entendia. No dia anterior, já havia
deixado a ruiva beijá-lo e, agora, queria que a
acompanhasse por toda Las Vegas!
"O que Rane está tentando fazer comigo?", pensou,
magoada e com vontade de chorar.
Rita, muito elegante num vestido branco, que
realçava suas curvas e as longas pernas, sentou-se no
sofá e olhou para Cindy.
— Você não vai se fazer de difícil, não é? — per-
guntou, petulante. E, sem esperar resposta, levantou-se,
tirou o fone do gancho e discou um número, tomando
todo o cuidado para não estragar as unhas, esmaltadas
de vermelho vivo. — Rane Randolph, por favor. — Um
breve intervalo, depois: — Oi, Rane. Estou aqui na sua
casa, como lhe prometi, mas a sua... sua esposa se recusa
a ir comigo... Hum... Está bem. Até logo. — Olhando
Cindy com desprezo, Rita passou-lhe o fone. — Tome.
Rane quer falar com você.
Cindy atendeu, sentindo de novo todas as velhas
frustrações tomarem conta de seu ser. Que jogo Rane
estaria fazendo? Como podia entregá-la àquela mulher
antipática, que não fazia o menor esforço para esconder
o que sentia por ele?
— Alô?
— Oi, minha flor! Não está querendo ir fazer com-
pras? Quero ver você com a melhor aparência possível, e
pensei que estivéssemos de acordo, quanto à
necessidade de comprar algumas roupas novas.
A voz dele tinha um tom extremamente
persuasivo, e, se não fosse pela presença de Rita, Cindy
teria cedido de imediato.
— Prefiro esperar e ir com você — murmurou,
dando as costas à ruiva, para que ela não visse a
decepção em seus olhos escuros.
— Não se faça de difícil, Cindy. Rita sabe muito
mais a respeito de roupas de mulheres do que eu. Ela se
veste muito bem, e me garantiu que vai deixar você com
a aparência que uma esposa minha deve ter. É muita
delicadeza, não acha? Ela quer mesmo ajudá-la.
Cindy sentiu os olhos se encherem de lágrimas.
Estava sendo tratada como uma criança, como uma
pessoa sem vontade, e sua irritação cresceu. Rane na
certa havia falado com Rita antes, a respeito das
compras, e nem se preocupara em lhe dizer. Quanto a
querer ajudá-la, isso nunca estivera mais longe da cabeça
da ruiva que, cada vez que a olhava, parecia querer
matá-la.
— Está bem, Rane — murmurou, recolocando,
devagarinho, o fone no gancho.
— Vamos, então? — perguntou Rita, acendendo
um cigarro, com gestos elegantes. Depois, pegou a bolsa
e dirigiu-se para a porta.
Cindy pegou a própria bolsa e foi atrás, certa de
que seu dia estaria bem longe de ser agradável.
Para sua surpresa, a primeira coisa que Cindy viu,
ao entrar no carro de Rita, foi a cesta que Rane comprara
nas montanhas. Era evidente que a ruiva fizera aquilo de
propósito, para provocá-la, mas, decidida a não mostrar
o quanto estava enciumada, Cindy ignorou a cesta por
completo.
Fora da área de jogos, Las Vegas era muito
parecida com as outras cidades americanas que ela havia
conhecido, durante a viagem com Rane. Havia shopping
centers, áreas residenciais, escolas, parques e as
atividades normais de uma cidade qualquer. Rita não
estava disposta a conversar e, aliviada, Cindy
concentrou-se no cenário.
Quando chegaram à primeira butique, Rita estacio-
nou o carro e desceu, anunciando resoluta:
— Vamos parar aqui, primeiro. Conheço a dona
desta butique, a sra. Wissler, e ela sempre tem roupas
boas.
Cindy seguiu-a em silêncio, sentindo-se uma
caipira ao lado da elegância da outra. Na verdade, estava
ansiosa para fazer aquelas compras, pois tinha certeza de
que se sentiria mais à altura da rival, se estivesse bem
vestida.
Elas foram recebidas por uma elegante senhora de
cabelos grisalhos e sorriso afetado, que com um rápido
olhar avaliou Cindy dos pés à cabeça.
— Bom dia, Rita — disse ela. E depois, curiosa,
perguntou: — Quem é esta mocinha?
Cindy quase se encolheu, ao sentir de novo o olhar
da mulher em sua saia e blusa, feitas em casa. Sua
vontade era se esconder nó primeiro buraco que achasse,
mas ergueu o queixo e aguentou firme.
Rita sorriu, sem a menor sinceridade.
— Ela é parenta de Rane, e ele me pediu para aju-
dá-la a escolher algumas roupas. A senhora deve lhe
mostrar o que tiver de melhor, sem olhar despesas, e
colocar tudo na conta dele.
— Entendo — retrucou a sra. Wissler, mostrando
um novo interesse por Cindy. — Que manequim você
usa, minha querida?
Cindy hesitou. Geralmente fazia suas próprias
roupas, e poucas vezes estivera numa loja de roupas
femininas.
— Quarenta e dois, eu acho — murmurou,
odiando o jeito como as duas mulheres trocaram um
rápido olhar entre si
Era evidente que Rita estava querendo dar a enten-
der à outra que estavam com uma caipira nas mãos, mas
a sra. Wissler, percebendo que poderia ter um bom lucro,
mudou logo de atitude.
— Bem, isso não tem importância, minha querida.
Vamos provar algumas coisas e ver qual é o seu
manequim. Tenho um vestido que chegou há pouco, que
ficará maravilhoso em você!
A sra. Wissler sumiu no interior da butique e
voltou, pouco depois, com um vestido rosa, de saia
rodada, cintura marcada e decote acentuado. Cindy
entrou no provador que lhe foi indicado e colocou-o,
virando-se para o espelho. O que viu deixou-a
boquiaberta: o vestido estava simplesmente devastador
em seu corpo, transformando-a de uma garota bonita em
uma mulher lindíssima!
Atrás dela, a sra. Wissler sorriu e ajeitou o vestido
aqui e ali, antes de perguntar:
— E então? Não ficou um encanto?
Se estivesse sozinha com a mulher, Cindy não teria
conseguido conter uma exclamação de prazer. No
entanto, ao encontrar os olhos frios e verdes de Rita no
espelho, seu entusiasmo diminuiu e ela disse apenas:
— Ficou, sim. Ficou muito bom.
Os outros vestidos que a sra. Wissler lhe mostrou
também eram lindos, feitos em cores e modelos que real-
çavam às mil maravilhas sua beleza, e, aos poucos, seu
entusiasmo aumentou de novo. Com o coração
dançando de felicidade, não conseguiu conter um riso
deliciado, quando a mulher lhe trouxe um conjunto de
saia e blazer brancos, enfeitados com laranja,
complementados com uma blusa e um chapeuzinho
também laranja. Encantada, rodopiou na frente do
espelho, e foi só quando surpreendeu o olhar de ódio de
Rita fixo em sua imagem, que se dominou e voltou a
concentrar a atenção nas roupas que a sra. Wissler
continuava a trazer.
— Acho que chega — exclamou finalmente. — As
roupas que me mostrou são tão lindas, sra. Wissler, que
não consigo escolher entre elas
— Vamos levar todas, então — disse Rita,
categórica.
— Ah, não! Experimentei pelo menos quinze ves-
tidos. Não posso levar todos.
Sem ligar para seu protesto, Rita virou-se para a
sra. Wissler e ordenou:
— Embrulhe tudo e mande a conta para Rane.
Revoltada com aquele tratamento autoritário,
Cindy decidiu enfrentar a ruiva.
— Estes vestidos são para mim e não posso deixar
Rane pagar urna conta tão alta — disse, com frieza.
Rita sorriu meio sem graça, aparentemente
surpresa, com o fato de a caipira ter tido coragem de
enfrentá-la.
— Rane disse que você deveria comprar um
guarda-roupa inteiramente novo, Cindy. Não podemos
desobedecê-lo, não acha?
A sra. Wissler, ansiosa para fazer uma boa venda,
já estava tomando nota dos preços, e Cindy, resignada,
acabou aceitando a situação. Mesmo tentando agir com
indiferença, foi com o coração quase arrebentando de
alegria que ela saiu da butique, carregada de pacotes. Os
vestidos eram lindos, e mal podia esperar que Rane os
visse! Estava certa de que ele ia gostar.
Antes de dar a partida no carro, Rita pôs a cesta
entre elas, como se estivesse querendo mostrar que ela
também era importante para Rane, mas Cindy ignorou o
gesto. Rita então desceu a rua mais alguns quarteirões,
parando em frente a outra butique. Desta vez, Cindy
recusou-se terminantemente a comprar mais roupas.
— Não quero mais nada! Nem sei o que vou fazer
com essas. Nunca tive tantas roupas, em minha vida!
Ela não pretendia contar isso à ruiva, mas, em sua
agitação, deixou escapar. Na mesma hora Rita virou-se
para encará-la, os olhos verdes lançando chispas de ódio.
— Eu sei tudo sobre a sua situação anterior... e
sobre o seu casamento forçado com Rane, sra. Randolph
— falou, enfatizando o sra. Randolph com crueldade.
— Eu sei que você não passa de uma garota
ignorante, que se acha muito esperta. Pois bem, eu, se
fosse você, compraria todas as roupas que pudesse
agora, enquanto Rane está disposto a pagar por elas. Ele
quer prepará-la para...
Rita parou de falar abruptamente, e Cindy sentiu o
coração disparar no peito.
Prepará-la para... Para quê? Então, soube! Rane
ainda estava querendo pedir o divórcio, e boas roupas a
ajudariam a conseguir um emprego com mais facilidade,
livrando-se de qualquer responsabilidade em relação a
ela. E ele fora cruel o suficiente para explicar a situação
àquela... àquela mulher, e mandá-la providenciar tudo!
Lágrimas amargas inundaram-lhe os olhos. Na
noite anterior, Rane a tinha seduzido, e ela deixara! Na
noite anterior, ele a cortejara com vinho e romance, e ela,
tonta que era, caíra na armadilha como um patinho! Ele
não a possuíra por amor, aquela noite, mas apenas para
receber algo em troca do dinheiro que estava gastando!
Para Rane, tudo se baseava em troca. Ele a possuíra
em sua noite de núpcias, porque a tirara das montanhas
e se julgava com direito a ser pago. E agora a tomara de
novo, porque estava lhe comprando roupas novas!
Como fora ingênua, acreditando que era amada e
entregando-se a ele, mais uma vez, por amor. O que para
ela era a realização de um sonho, para ele não passava
de um acerto de negócios. Que ironia do destino!
Rapidamente, virou a cabeça para o outro lado.
Não queria que Rita visse que estava prestes a chorar.
— Bem — Rita falou com ironia, satisfeita com o
resultado de suas palavras —, vamos continuar com
nossas compras, sra. Randolph?
O primeiro impulso de Cindy foi exigir que Rita a
levasse de volta à butique da sra. Wissler, para devolver
o que comprara, mas depois uma ideia melhor passou-
lhe pela cabeça.
— Claro que sim, srta. Rochelle — disse, piscando
para afastar as lágrimas. — Vamos continuar com nossas
compras. Não podemos desapontar meu marido, não é?
E foi o que fizeram. Decidida a receber, ela
também, seu pagamento, Cindy comprou mais dez
vestidos na segunda butique.
"Mostrarei a Rane!", pensou, escolhendo tudo num
ímpeto vingativo e ignorando completamente o olhar di-
vertido de Rita. "Ele não é o único capaz de se sair bem
em joguinhos cruéis. Se ele quer receber algo em troca do
dinheiro que está gastando comigo, eu também quero ser
paga pelo que estou lhe dando!"
Ela e Rita saíram da segunda butique carregadas
de embrulhos e seguiram em frente. Cada vez que via a
cesta no carro, o desejo de vingança de Cindy
aumentava, levando-a a maiores extravagâncias. Depois
de escolher mais uns dez vestidos em outra butique, ela
entrou numa loja de lingerie e comprou conjuntos de
calcinhas e sutiãs dos mais variados tipos e cores, em
tecidos finíssimos. Em seguida, comprou meias,
camisolas e roupões em quantidade suficiente para
durar, no mínimo, dez anos.
Na hora do almoço, as duas pararam numa lancho-
nete para um rápido lanche, e continuaram. Agora,
Cindy estava procurando sapatos e, levada por seu
desejo irracional de vingança, escolheu pares e pares de
sandálias, sapatos, mocassins, chinelos e até tênis.
Voltando a atenção para as bolsas, ela separou inúmeras,
cada uma delas combinando com um par de sapatos.
Rita, que a princípio estava se divertindo com a
história, agora estava cansada e insistia:
— Tenho certeza de que você já gastou mais do que
Rane pretendia lhe dar, Cindy, e nós duas sabemos que
vai ser praticamente impossível usar todas essas roupas.
É melhor pararmos com isso.
Ainda magoada e cheia de raiva, Cindy lançou um
rápido olhar à ruiva.
— Diga-me, foi ideia sua vir comigo, fazer estas
compras?
Rita hesitou por um momento, depois respondeu,
desafiante:
— Foi, sim. Eu sei muito mais a respeito de lojas e
roupas femininas que Rane, embora ele já tenha feito
algumas escolhas excelentes, para mim.
— Verdade? — Cindy perguntou baixinho,
recusando-se a mostrar a mágoa que estava sentindo.
— Claro que é!
— Sendo assim, srta. Rochelle, vamos continuar
nossas compras. Ainda não estou nem perto do fim!
O dia passou com Cindy entrando e saindo de lojas
e butiques, comprando mais e mais roupas, até que;
finalmente, quando estavam de novo no carro, Rita
exclamou:
— Pelo amor de Deus, vamos voltar para casa! O
carro está tão cheio de pacotes, que já nem consigo en-
xergar pelo espelho retrovisor. Não cabe mais nada, aqui
dentro. Até o porta-malas está cheio! O que você está
fazendo é um absurdo, e eu me recuso a parar em outra
loja!
Cindy virou-se para trás e examinou as compras
que fizera, com um sorriso.
— Bem — murmurou —, acho que agora podemos
ir para casa.
Sem esperar por mais nada, Rita arrancou à toda
velocidade, indo parar apenas em frente ao Randolph's.
— A sra. Randolph quer que você leve estes
pacotes para a suíte — disse a Charles, assim que ele se
aproximou.
O porteiro concordou respeitosamente e abriu a
porta de Cindy, dando depois a volta para abrir a dela.
— Deixe o carro aqui mesmo. Não vou demorar.
Rita entrou no edifício por uma porta lateral, que levava
diretamente ao elevador privativo, e, seguindo-a, Cindy
imaginou por que Rane não viera por ali na noite
anterior, em vez de passar pelo cassino. É verdade que
gostara de ver o cassino, mas, mesmo assim estava admi-
rada por ele ter usado a entrada principal, quando havia
outra, bem mais discreta. Afinal, que importância tinha
para ele, o fato de ela gostar ou não de uma coisa?
Com um suspiro, Cindy percebeu que estava
cansada, muito cansada. Assim que chegasse à suíte,
entraria num banho quente e demorado, para se
descontrair, e depois vestiria uma das roupas novas.
Enfrentaria Rane nas melhores condições possíveis.
Qual seria a reação dele, quando visse o que havia
comprado? Acharia três mil dólares um preço justo, por
uma noite de amor? Três mil dólares! Só em sapatos,
gastara quatrocentos dólares! Um arrepio percorreu-lhe
a espinha e, enquanto entrava no elevador ao lado de
Rita, sentiu uma pontinha de medo invadi-la. E se Rane
ficasse furioso? Já o vira zangado uma vez e não gostaria
de vê-lo assim de novo, muito menos por sua causa.
À medida que o elevador subia, as batidas do
coração de Cindy aumentaram, as palmas de suas mãos
foram ficando suadas e ela começou a repetir para si
mesma que o marido merecia tudo que lhe fizera e muito
mais. Se bem que, provavelmente, ele não seria da
mesma opinião.
Assim que o elevador parou, Rita saiu e caminhou,
confiante pelo corredor, só se detendo para esperar
Cindy, quando chegou à porta da suíte. Então, com um
sorriso falso, deixou-a passar à frente, para que abrisse a
porta.
"E por que não?", Cindy perguntou a si mesma. O
próprio Rane não dissera que aquele era o lar deles? Se-
gurando a maçaneta com firmeza, ela abriu a porta e
entrou... caindo diretamente nos braços do marido.
— Ora, ora — murmurou ele, afastando-a alguns
centímetros de si. — Tão ansiosa assim para me ver,
minha flor?
— Não! — Cindy respondeu, a voz áspera. Não
estava mesmo ansiosa para vê-lo, e tinha a nítida
impressão de que ele também perderia totalmente a
vontade de vê-la, assim que descobrisse o que fizera, —
Solte-me! — ordenou, tomada por um súbito desejo de
correr de volta às lojas e devolver tudo que tinha
comprado. Mas agora não havia mais jeito, e só lhe
restava aguentar as consequências de sua atitude
impensada.
— Meu Deus — comentou Rita, entrando na suíte
—, o casal de pombinhos já está brigando? Não é cedo
demais para isso?
Rane sorriu e soltou Cindy.
— E você, que me desejou tudo que há de melhor
na vida! Hem, Rita?
A ruiva sorriu.
— Desejei mesmo, e, para provar minha
sinceridade, levei sua... sua esposa para fazer compras.
Passamos o dia inteiro percorrendo lojas e butiques.
Tenho certeza de que você vai ficar... ahn... espantado
com as compras que ela fez. — Sorriu de novo. — É, acho
que espanto é a palavra certa para descrever a reação que
você vai ter.
Cindy olhou de Rita para Rane, e classificou de
conspiratório o olhar que os dois estavam trocando. Eles
não haviam desistido de seu joguinho sujo e, mesmo
depois de Rita ter lhe contado a verdade, continuavam a
tratá-la como se fosse uma criança ignorante. Pois bem,
podia ser ingênua e confiante demais, mas não era tão
ignorante assim. Mostraria a eles que também era capaz
de fazer o mesmo jogo!
Mesmo sabendo o quanto Rita era impiedosa,
Cindy ficou chocada quando a viu tirar uma série de
notas fiscais da bolsa e entregá-las a Rane.
— As contas que você vai ter que pagar — disse a
ruiva, acomodando-se confortavelmente no sofá.
Apesar de ter decidido ir até o fim com o jogo do
marido, Cindy assustou-se. Ela sabia que fizera despesas
absurdas e, como que para confirmar isso, Charles abriu
a porta e entrou, carregando inúmeros pacotes. E aquilo
era só o começo!
Um rápido olhar para Rita mostrou-lhe que a ruiva
estava com um ar satisfeito e superior, e ficou logo evi-
dente que, dali, não teria a menor ajuda. Seus olhos
voltaram-se então para Rane; ele havia mudado
totalmente de expressão, enquanto estudava as notas
fiscais e, agora, estava se virando para encará-la.
— Você se sentiu feliz gastando três mil,
novecentos e noventa e oito dólares, minha flor?
Estranhamente, o olhar dele tinha um brilho
divertido, mas Cindy não se deixou enganar por isso; os
olhos escuros lançando chispas de raiva, permaneceu em
silêncio.
Rita, certa de que uma briga eclodiria dentro de
poucos instantes, levantou-se do sofá e saiu da sala,
fingindo pressa.
— Bem, já é hora de eu ir — exclamou, sorrindo. E
acrescentou por cima do ombro, dirigindo-se a Cindy: —
Divirta-se, minha querida! Eu conheço o gênio deste ho-
mem!
Cindy ignorou a saída da outra. Achando cada vez
mais fácil fazer seu papel naquele jogo enfrentou o olhar
do marido, desafiante.
— Eu lhe fiz uma pergunta, minha querida —
repetiu ele devagar, examinando o rosto dela com uma
estranha expressão. — Você se divertiu, fazendo estas
compras?
Cindy sentiu-se tomada por diferentes emoções.
Queria agredi-lo fisicamente e contar-lhe, aos gritos, que
Rita já a tinha feito ver o quanto fora tola na última noite,
entregando-se a ele por amor, mas o orgulho impediu-a.
Por mais magoada e insultada que se sentisse, por ele ter
contado à outra a verdade a respeito de seu casamento,
não se queixaria.
— Você se divertiu fazendo amor comigo, ontem à
noite? — perguntou, a voz fria e o coração batendo forte
no peito.
Um riso súbito escapou dos lábios de Rane,
enquanto ele estudava o rosto pálido, os olhos escuros e
a boca sensual da esposa.
— Claro que sim! — murmurou, depois de algum
tempo. — Quanto a isso, não há a menor dúvida!
Então, ele agora estava rindo dela! Ele havia
achado divertido fazer amor com ela, principalmente
porque, desta vez, tivera colaboração!
— Pois bem, fico contente com isso — disse Cindy,
por entre dentes. — Pode considerar a noite passada
como o pagamento das coisas que comprei hoje.
Girou nos calcanhares, decidida a se afastar, mas
foi impedida pelas mãos que se fecharam em seus
ombros.
— Por que está dizendo isso? — O rosto de Rane
tinha uma expressão confusa, e a voz, um tom tenso e
estranho.
— O senhor sabe muito bem por que estou dizendo
isso, si. Rane Randolph! O jogo entre nós continua, não
é? Ainda estamos trocando cartas e fazendo apostas!
— Fazendo apostas?! — De repente, o rosto dele
mudou novamente de expressão. — Entendo... Tenho
que pagar pelas horas que passamos juntos ontem à
noite, não é isso? E você acha que uma noite de amor vale
quase quatro mil dólares? Acha, minha querida esposa?
Comprimindo os lábios por causa da dor que as
mãos de Rane estavam causando em seus ombros, Cindy
recusou-se a responder.
— Acha? — ele repetiu, asperamente.
— Você não?
— Não, eu não acho. Vai ser preciso mais que uma
noite de amor, para pagar o dano que você causou!
Com um gesto brusco, Rane puxou Cindy para
junto de si e colou os lábios aos dela, num beijo longo e
punitivo. Ela conseguiu soltar um dos braços no
momento exato em que Charles chegava, trazendo um
novo carregamento de pacotes, e, com toda força,
esbofeteou-o no rosto.
— Oh, desculpem! — Sem esperar para ver mais,
Charles deixou cair os pacotes e sumiu.
— Fora daqui! Fora daqui! — Rane gritou, quando
o porteiro ainda estava fechando a porta atrás de si.
Aproveitando a distração momentânea do marido,
Cindy tentou escapar. Não tinha ideia de para onde
poderia ir, mas, mesmo assim, correu cegamente para a
cozinha. Virou-se a tempo de vê-lo, por entre lágrimas,
estender a mão para agarrá-la.
— Solte-me! — soluçou. — Por que não me deixa
em paz? Se não me quer, por que não pede logo o
divórcio e acaba com isso? Por que continua fazendo esse
jogo sujo comigo?
— Eu, fazendo jogo sujo com você?!
Rane examinou-a por um longo e perigoso
momento, durante o qual Cindy ficou em dúvida se ele
pretendia bater nela ou beijá-la. Desesperada, gritou:
— Por que não pede logo esse divórcio?
— Pedir divórcio de você, minha flor? —
murmurou ele com amargura, os lábios quase colados
aos dela. — Pedir a separação quando, ao que parece,
você ainda não acabou comigo? — Colocou a mão sobre
o rosto, fazendo-a lembrar-se subitamente da promessa
que lhe fizera de revidar, caso o agredisse de novo. —
Deixe-me ver... Você usou seu corpo para sair das
montanhas, e agora ele lhe comprou um guarda-roupa
digno de uma rainha... Não pretende usá-lo de novo?
Não há mais nada que queira de mim? Ainda acho seu
corpo muito desejável!
Essas palavras cruéis atingiram Cindy em cheio, e
ela lutou para se livrar das mãos que a seguravam como
se fossem garras.
— Eu não quero nada de você! Só o divórcio. Solte-
me! Oh, por que não me deixa ir embora?
— Ir embora? Para onde? Para quem? Como iria se
arranjar — novamente Rane levou a mão ao rosto. — Ah,
é mesmo! Como pude esquecer tão cedo? Você tem seu
corpo, não é?
A ponto de romper em lágrimas, Cindy respirou
fundo.
— Vou arrumar um emprego! — gritou. De que
modo horrível ele estava falando com ela! Como pudera
pensar que ele a amava? Nenhum amor merecia ser
jogado na lama e pisoteado sem piedade, como o seu
tinha sido!
— Enquanto estiver usando o meu nome, não vai,
não. Quando me interessar, eu lhe darei o divórcio.
Antes disso, nem precisa ter esperança! E agora, vou
cumprir a promessa que lhe fiz.
Apavorada com a ameaça que viu nos olhos dele,
Cindy livrou-se com um safanão e recuou, mas Rane
tornou a agarrá-la e, jogando-a sobre o ombro, marchou
para a sala. Apanhada de surpresa, ela não reagiu e,
quando percebeu, ele já estava sentado no sofá,
segurando-a de bruços sobre o colo.
— Rane! — exclamou, ao sentir a primeira
palmada. — Não! Pare com isso!
Depois de três palmadas bem dadas, Rane
obrigou-a a se levantar e empurrou-a para o meio dos
pacotes que Charles trouxera.
— Agora, mostre-me as roupas que seu corpo lhe
comprou. Quero ver se meu dinheiro foi bem gasto,
afinal!
Quando viu que ela não se movia, ele arrebentou a
caixa mais próxima e jogou-lhe o vestido que estava
dentro.
— Experimente este — ordenou.
Vermelha de humilhação, Cindy tirou as roupas,
ficando apenas de calcinha e sutiã, e colocou o vestido.
Rane estudou-a criticamente, como um possível
comprador num leilão de escravos, e passou-lhe outro
vestido. E assim continuaram, peça após peça sendo
vestida, apressadamente abotoada ou fechada com zíper,
examinada e depois descartada. Cindy já estava exausta
e mais do que convencida da própria estupidez, quando
o último vestido foi experimentado. Rane virou-se,
então, para as caixas contendo lingerie.
— Não! — ela gritou revoltada, lutando contra
novas lágrimas. — Isso, não! Essas roupas eu não vou
experimentar!
Um sorriso cínico surgiu nos lábios de Rane, e por
um momento Cindy pensou, apavorada, que seria
obrigada a experimentar as peças íntimas. Morreria de
vergonha, se isso acontecesse, mas, para seu alívio, Rane
afastou as caixas com um gesto brusco, espalhando as
delicadas criações pelo chão.
— Uma pena — ele murmurou. E pegando o
elegante vestido rosa que, junto com outros, estava
amontoado numa poltrona, ordenou: — Vista este aqui,
amanhã. Quero que esteja com a melhor aparência
possível, minha flor das montanhas.
— Para quê?
— Rita não lhe contou? Vou dar uma festa em sua
homenagem aqui no hotel, amanhã à noite. Todas as pes-
soas importantes desta cidade virão, para conhecer
minha esposa. Parece piada, não acha? Eu até
providenciei para que você conheça um professor de
canto! Quanto acha que isso vale? — A voz dele, agora,
era cheia de desprezo. — E quem vai receber o
pagamento?
Sem esperar por uma resposta, Rane foi para o
quarto, voltando logo em seguida, com um cobertor e
um travesseiro, que jogou sobre o sofá. Caminhou então
até a porta da frente, abriu-a e saiu.
Física e mentalmente exausta, Cindy deixou-se cair
no meio de uma pilha de roupas descartadas.
"O que mais ele quer de mim?", pensou. "Por que
não pede logo o divórcio e me deixa em paz?"
Foi com alegria que Cindy viu o sol nascer, no dia
seguinte. Dormira mal aquela noite, acordando várias
vezes para reviver a humilhação a que fora submetida
por Rane. Podia não ser verdade que à luz do sol as
coisas melhorassem, mas pelo menos o mundo não
parecia tão desolador.
Enquanto se levantava, todos os acontecimentos
da noite anterior voltaram-lhe à mente: a reação de Rane,
o modo como ele lhe batera, a vergonha, a raiva que
havia sentido. Tinha mesmo acabado com qualquer
chance de um bom relacionamento entre eles!
"Se bem que a culpa não é só minha", pensou. "Este
casamento estava destinado a ser um fracasso, antes até
de ser realizado. Só eu não sabia!"
Agora, ali estava ela, numa das mais fascinantes
cidades do mundo, recém-casada, prestes a se tornar
uma divorciada, e com apenas... vinte e um anos de
idade! E hoje era seu aniversário! Finalmente, era uma
mulher adulta, emancipada, e não havia uma única
pessoa que soubesse disso! Ninguém lhe daria os
parabéns nem lhe desejaria felicidades. Que diferença
das montanhas, onde a maioridade de uma garota era
comemorada com uma enorme festa, que começava ao
raiar do sol e terminava quando anoitecia.
Com um suspiro de desânimo, Cindy caminhou
descalça até a porta do quarto, onde parou, atenta ao
menor som. Tinha tido a impressão de ouvir Rane voltar,
no meio da noite, mas podia estar enganada.
Devagarinho, abriu a porta e, na ponta dos pés, foi
para a sala. O cobertor e o travesseiro amassados, que
estavam sobre o sofá, eram uma evidência muda de que
alguém dormira lá e, ao que parecia, bem mal. As lindas
roupas que comprara no dia anterior, num ímpeto de
vingança, continuavam espalhadas pelo ambiente, e as
palavras amargas e acusações duras que Rane lhe
lançara, cheio de raiva, voltaram à sua memória. "E o
pior é que eu nem mesmo queria estas roupas", pensou,
os olhos enevoados pelas lágrimas.
Ainda na ponta dos pés, percorreu os outros
cômodos, chegando à cozinha sem encontrar ninguém.
Abriu então a geladeira e serviu-se de um copo de suco
de laranja. Estava começando a sentir a cabeça pesada.
Tudo era tão confuso! No dia anterior, tinha achado que
só queria uma nova imagem para enfrentar a vida
sozinha, como ex-esposa de Rane, mas agora, tudo que
desejava era voltar à sua vida de duas semanas atrás.
Mas isso era impossível, do mesmo modo que era
impossível continuar se escondendo na casa do marido.
Lágrimas amargas começaram a escorrer por suas
faces. Achava-se num território estranho e não sabia
como sobreviver em tal lugar. Também não sabia como
lidar com Rane, apesar de ele ainda ser o estranho por
quem tinha se apaixonado e que a tratara com tanta
gentileza e carinho, nas montanhas. No entanto, sem
amá-la, ele havia se unido a ela do modo mais íntimo que
um homem pode se unir a uma mulher. Era tudo tão
confuso! Por que ele simplesmente não se recusara a
casar? Teria sido duro aguentar a desilusão, mas pelo
menos ainda lhe restaria uma certa dignidade.
Cindy enxugou as lágrimas com as mãos e foi para
o banheiro, lavar o rosto. Chorar não ia resolver nada.
Fora tola o suficiente para se apaixonar pelo marido,
mas, também, como pode uma pessoa controlar o
próprio coração? Fungando, abriu a porta do banheiro e
entrou. E lá estava Rane diante do espelho, fazendo a
barba, sem nem ao menos uma toalha para cobrir o corpo
magnífico!
— Seu pai não a ensinou a não entrar num lugar,
sem antes bater na porta? — Zombeteiros, os olhos
cinzentos encontraram-se com os dela, no espelho
embaçado.
Cindy empalideceu.
— Des... desculpe. Não pensei que você estivesse
aqui. Não, no banheiro! Na... na suíte.
— Eu moro aqui.
— Claro que sim. O que eu quis dizer foi que...
Bem, ontem à noite... — Por que estava parada ali, com
ele daquele modo? Era ridículo! — Desculpe — murmu-
rou, saindo depressa e fechando a porta atrás de si.
Quase correndo, fugiu para o quarto, ouvindo o
riso zombeteiro dele ressoar pelo ambiente. Rane era
horrível! O pior homem sobre a face da Terra! Indignada,
entrou no quarto e bateu a porta. Sentou-se então na
beirada da cama, imaginando o que fazer em seguida.
Na verdade, o que estava fazendo ali, com aquele
estranho? Por que estivera tão pronta a abandonar seu
lar nas montanhas, para segui-lo? Vários minutos se
passaram, antes que ouvisse o barulho dos passos dele
se aproximando.
— Cindy!
— Vá embora!
A porta abriu-se bruscamente e Rane entrou.
— Minhas roupas estão no armário daqui. Você
não vai se importar, se eu pegar alguma coisa para vestir,
não é? Ou será que me prefere do jeito que estou?
Cindy olhou rapidamente a toalha que ele havia
enrolado em torno da cintura.
— Claro que não! — respondeu, áspera.
Ele era um monstro! Mas então, por que sentira o
coração disparar ao vê-lo enrolado naquela toalha, com
o peito forte e as pernas musculosas à mostra? Involunta-
riamente, seus olhos buscaram os dele, iluminados,
agora, por um brilho irônico. Quase morta de vergonha,
deu-lhe as costas e caminhou até a janela.
— Marquei hora para você no salão de beleza do
hotel, às onze e meia — disse Rane, abrindo o armário.
— Você o quê?!
— Marquei hora para você no salão de beleza, às
onze e meia. Você só tem que ir até lá e dar o seu nome.
Já está tudo combinado.
— Mas não há necessidade disso. Eu sempre
arrumo meu cabelo sozinha.
Será que Rane nunca pensaria em pedir sua
opinião a respeito de nada?
— Pois eu acho que há. Não deixe de ir! — Com
esta recomendação, feita num tom duro, que não admitia
réplicas, ele pegou uma calça escura e uma camisa de lis-
tras e saiu do quarto.
"Então, agora ele não gosta mais da minha
aparência", Cindy pensou, revoltada. "Que homem
impossível! E como se atreve a falar comigo como se
fosse o único dono da verdade? Tenho vinte e um anos e
nenhuma obrigação de seguir as ordens que ele me dá.
De hoje em diante, mesmo casada com ele, sou uma
mulher emancipada."
"Não irei ao salão de beleza", decidiu. "Não irei
nem à festa dele. Por que deveria? Só de pensar em ser
apresentada aos amigos e parentes dele, fico arrepiada.
Seria horrível comparecer a essa festa ao lado dele,
sabendo como ele se sente a meu respeito. Não tenho
motivo nenhum para ir!"
Então, o rosto de Rane, cheio de fúria como o vira
na noite passada, surgiu em sua mente, e ela reconheceu
que tinha uma ótima razão para ir. Jamais teria coragem
suficiente para enfrentar outra cena daquelas.
Minutos depois, a porta da frente bateu. Mais
cautelosa desta vez, Cindy olhou todos os cômodos,
antes de se convencer de que estava sozinha. Voltou
então para a cozinha e preparou o café da manhã,
sentando-se para comer. Não estava com fome, mas
precisava de algum alimento para encarar o dia. Porque
iria ao salão de beleza, do mesmo modo que iria à festa
daquela noite. Qualquer coisa era melhor do que
despertar de novo a fúria de Rane.
Quando terminou de se alimentar, voltou relutante
para a sala e, pegando as roupas espalhadas pelo chão e
pelas cadeiras, jogou-as sem o menor cuidado na parte
que estava vazia, no armário de Rane. Acabando este
dever repugnante, durante o qual só tivera a
preocupação de manter uma boa distância entre as
roupas dele e as suas, procurou a caixa de madeira, que
trouxera de casa, e esvaziou-a numa das gavetas. Por
cima de tudo, colocou o quadro que havia bordado.
"O amor cura tudo! Mas que mentira deslavada!",
pensou. "O amor só causa mágoas, isso sim!"
Seus olhos caíram sobre o despertador que ficava
na mesinha-de-cabeceira e ela lembrou-se da hora
marcada no salão de beleza. Apesar de não querer gastar
mais um centavo do dinheiro de Rane, não tinha outra
escolha senão ir. A última coisa que desejava era vê-lo
zangado por sua causa.
Examinando os vestidos encantadores que com-
prara no dia anterior, não conseguiu encontrar um que
lhe agradasse; todos faziam com que se lembrasse do
quanto fora tola, julgando-se capaz de vencer Rane.
Como pudera pensar, por um minuto que fosse, que o
estranho rico e sofisticado a queria?
Vendo uma velha blusa azul, que trouxera de casa,
sentiu vontade de vesti-la, mas logo desistiu. Seria muita
infantilidade! Além disso, Rane aparentemente tinha
tido vergonha de suas roupas. Esse pensamento trouxe-
lhe de novo à cabeça a ideia de não ir ao salão e
comparecer à festa com suas velhas roupas. Se o marido
sentia vergonha dela, o azar era todo dele.
Mas não, era melhor não se arriscar, pois nada de
bom conseguiria com isso. Rane provavelmente a
despiria e forçaria a colocar o vestido rosa. Só de pensar
nisso, Cindy sentiu-se mal e desistiu totalmente de
qualquer atitude rebelde. Colocando a mão na cabeça,
que agora estava latejando, pegou um vestido branco,
que tinha um cinto vermelho e com o qual usaria sapatos
e bolsa da mesma cor, para combinar, e estendeu-o sobre
a cama. Em seguida, passou o conteúdo de sua velha
bolsa para a nova. Foi um gesto simbólico também,
significando que deixava para trás sua antiga vida,
ingressando em outra, completamente diferente. Só
então, foi tomar banho.
Era a primeira vez que Cindy saía da suíte sozinha,
e foi com uma leve sensação de insegurança que ela
entrou no elevador. Além disso, não sabia o que deveria
fazer, ao chegar ao salão, pois jamais entrara num em
toda a sua vida.
O elevador parou no andar térreo e ela saiu,
olhando de um lado para o outro. Logo encontrou o
salão, e, reunindo toda sua coragem, abriu a porta e
entrou.
— Oi! — A recepcionista, uma mulher grande e
simpática, sorriu para ela. — Deseja alguma coisa?
— Eu... eu tenho hora marcada para as onze e meia.
Sou a sra. Rane Randolph.
— Oh! — a mulher exclamou, depois de examiná-
la por um momento. Voltando-se então para as outras
moças do salão, bradou: — Ela está aqui, meninas. Nossa
cinderela chegou!
Cindy entrelaçou as mãos e tentou, em vão,
impedir que o sangue lhe subisse ao rosto. Vendo seu
embaraço, a mulher pediu desculpas.
— Oh, sinto muito, não me leve a mal. É que é
difícil acreditar que uma garota de sorte tenha,
finalmente, conseguido agarrar Rane. Ele jurou que só se
casaria com uma mulher extraordinária... e aqui está
você! — Um sorriso alegre iluminou-lhe o rosto. — Rane
é um homem e tanto! É tão rico e sofisticado! Há anos
que fazemos apostas sobre quem seria a garota capaz de
agarrá-lo, e agora, de repente, ele se casou.
Para maior embaraço de Cindy, as outras moças
reuniram-se em volta dela, examinando-a e dando-lhe os
parabéns. Ela se sentiu ridícula, em pé ali, sendo cumpri-
mentada por uma farsa.
— Eu sou Angie — uma das moças se apresentou
— e vou cuidar de você. Rane disse para não poupar des-
pesas. — Ela riu. — Ele disse também que nem sabia por
que estava fazendo esta recomendação, pois se há uma
coisa que você é incapaz de fazer é economia.
"Ah, ele disse, não disse?", Cindy pensou irritada,
apertando os punhos. "Isso é bem próprio dele! Não con-
tente em submeter-me às piores humilhações quando es-
tamos sozinhos, tem também que falar mal de mim para
a cidade inteira!"
Fazendo o possível para não mostrar sua raiva, ela
seguiu a moça até uma outra sala e sentou-se na cadeira
que lhe foi indicada.
— O que quer que eu faça com seus cabelos? —
Angie perguntou, levantando os longos fios escuros.
Incerta, Cindy olhou para o espelho à sua frente. A
verdade é que não tinha a menor ideia do que poderia
querer.
— Vou... vou deixar que você faça o que achar
melhor. Meu... meu marido vai dar uma festa esta noite,
e quero estar com a melhor aparência possível.
Angie sorriu.
— Isso não é difícil. Você já é bonita, meu bem, e
com um pouquinho de ajuda ficará linda. Nós estamos
sabendo da festa. Todas as pessoas importantes da
cidade foram convidadas: donos de cassinos, atrizes,
amigos da família Randolph e até mesmo um xeque
árabe e suas garotas. Vai ser a festa do ano! Estamos com
hora marcada até as seis da tarde.
Cindy foi se sentindo cada vez pior, à medida que
Angie ia falando. Era assustador saber que seria apresen-
tada a tanta gente importante. Já estava tão nervosa, que
seria capaz de gritar, se aquela conversa continuasse por
muito tempo.
Mas, enquanto trabalhava, Angie continuou a
tagarelar, fazendo comentários e citando fofocas a
respeito murmurou, junto ao ouvido de Cindy:
— É verdade que Rane conseguiu aquela cicatriz
que tem no rosto duelando por uma garota, na Europa?
Cindy virou-se para encará-la, surpresa.
— Não, não precisa responder, meu anjo — Angie
continuou, apressada. — Isso não é da minha conta. Eu e
minha mania de perguntar tudo que me vem à cabeça!
Desculpe, sim?
— Quem... quem era a tal garota?
— Rane não lhe contou? Ouvimos dizer que era
uma princesa, mas ninguém sabe ao certo. Não que uma
princesa seja algo fora do comum, para Rane. Ele já saiu
com algumas das mulheres mais ricas do mundo, e
também com algumas das mais pobres. Seu marido
sempre foi um playboy. Você deve ter mesmo alguma
coisa especial, para ter conseguido fisgá-lo.
Cindy ficou vermelha como um pimentão. "Tenho
sim", sentiu vontade de dizer, "tenho uma coisa muito
especial: três irmãos e um pai bravíssimos". Como fora
estúpida pensando que Rane se casara com ela porque
queria, apesar de seu pai ter forçado um pouco a
situação! Rita estava certa: era uma ignorante. Lágrimas
subiram-lhe aos olhos e ela abaixou a cabeça, para
impedir que Angie visse sua infelicidade.
E a festa daquela noite? Teria sido arrumada
apenas para lhe mostrar o quanto era tola, com seus
sonhos e orgulho? Com seus biscoitos feitos em casa e
cestas trançadas à mão? Que casamento ridículo era
aquele, entre uma garota simplória e um famoso
playboy! Por que Rane não a punha para fora de casa de
uma vez e acabava logo com aquilo? Por quanto tempo
ainda ele pretendia continuar a envergonhá-la?
— Que acha deste comprimento? — Angie
perguntou.
Cindy olhou para o espelho e deu com a imagem
de uma garota estupenda, que nunca vira antes; levou
alguns segundos para perceber que era ela mesma. Seus
cabelos, que iam quase até a cintura, tinham sido
cortados um pouco abaixo das orelhas, e as pontas
viradas no que Angie chamou de estilo chinês. Cindy
nunca tinha pensado em usar franja, mas agora uma
parte dos fios negros fora aparada de modo a terminar
exatamente sobre as sobrancelhas escuras, realçando
seus olhos e tornando-os maiores e mais brilhantes. O
efeito era incrível!
Quando terminou com os cabelos, Angie quis
saber a cor do vestido que Cindy iria usar. Cindy
descreveu o vestido rosa e então ela lhe mostrou que tipo
de cosméticos deveria usar e como delinear os olhos com
lápis preto, para deixá-los ainda mais escuros e
sedutores. Depois disso, Cindy foi entregue a uma
manicure, para fazer as unhas dos pés e das mãos.
Quando finalmente Angie considerou-a pronta e
levou-a para diante de um espelho, Cindy não pôde
deixar de imaginar qual seria a reação de Rane, ao ver
sua nova imagem. As outras moças do salão também
ficaram maravilhadas com a transformação e, querendo
fugir dos comentários e elogios que elas estavam lhe
fazendo, Cindy despediu-se e saiu, apressada.
A suíte estava vazia, quando chegou, mas alguém
deixara um prato de frios para ela, sobre a mesa da
cozinha. Pensando em como as coisas eram fáceis para
os ricos, ela sentou-se e começou a comer.
As horas seguintes passaram vagarosamente.
Cindy ocupou-se vendo revistas e televisão, sempre com
o maior cuidado para não desmanchar os cabelos e a
maquilagem. Às cinco, tomou um banho, colocou o
elegante vestido rosa e foi se olhar no espelho. Achou
que, com o novo sutiã, o decote ficara mais ousado que
na loja, revelando uma boa parte de seus seios. Tentou se
cobrir um pouco, mas não conseguiu e, no fim, acabou
desistindo e indo para a sala, esperar Rane.
Mas o tempo passou e nada de Rane. Às sete horas,
quando Cindy já estava começando a duvidar de sua
vinda, ele finalmente chegou e, sem lhe dirigir uma
palavra que fosse, subiu a escada e entrou no quarto. Ela
não sabia o que estava esperando, mas com certeza não
era aquela total indiferença.
Rane ficou no quarto quase uma hora. Quando
saiu, usando um terno azul-marinho e uma camisa azul-
claro, deixou Cindy maravilhada com sua aparência.
Mais uma vez, ela se lembrou do estranho gentil, por
quem se apaixonara e, tentando quebrar o clima hostil
entre eles, murmurou, sorrindo:
— Como você está bonito!
— Obrigado.
O olhar de desdém que ele lhe lançou fez Cindy se
arrepender de ter falado e, principalmente, de ter lhe
sorrido.
— Está pronta? Podemos ir?
Se ela esperava que ele dissesse alguma coisa a res-
peito de sua aparência, ficou desapontada. Os olhos cin-
zentos a examinaram da cabeça aos pés, como se
estivessem examinando um objeto, e nenhum
comentário foi feito.
— Não vai me dizer se estou bem ou não? — mur-
murou ela, já um pouco zangada com o desinteresse
dele.
Um sorriso cínico surgiu nos lábios de Rane.
— Quanto vai me custar, se eu lhe disser que está
linda?
Agarrando a bolsa de noite, que estava no sofá a
seu lado, Cindy levantou-se e caminhou para a porta da
frente. Mas Rane agarrou-a antes que saísse, puxando-a
para junto de si com um safanão.
— Não vou admitir esse tipo de comportamento,
minha doce esposinha — rosnou, por entre dentes. —
Trate de ser o mais encantadora possível. A maior parte
dos meus amigos vai estar aqui, e não quero que eles a
vejam se comportando como a mercenária barata que, na
verdade, você é.
Cega de raiva, Cindy levantou a mão para
esbofeteá-lo, mas lembrou-se a tempo do que lhe
acontecera, na última vez que o agredira, e interrompeu
o gesto.
— Sem resposta, minha flor? — indagou Rane,
agarrando-lhe a mão com dedos que pareciam de aço. —
As coisas não estão saindo de acordo com seus planos?
Você não queria deixar as montanhas, ver o mundo, ter
aventuras excitantes com os ricos? Pois bem, a sua hora
chegou. Pode ligar o seu charme! Todas as pessoas
importantes da cidade estarão aqui esta noite, só para
conhecê-la.
Com esse comentário cruel, ele empurrou-a para
fora da suíte e Cindy, rangendo os dentes de ódio, não
teve outro remédio a não ser acompanhá-lo. Seu pai e
seus irmãos não eram homens fáceis de conviver, mas ela
nunca os vira mostrar a raiva cruel e vingativa que Rane
vinha exibindo desde seu casamento. Sua única
esperança era que, depois daquela noite, ele a deixasse
partir. Não poderia suportar, por mais tempo, tanta
crueldade.
Depois de uma eternidade, o elevador parou no
andar do salão de festas e Rane, agora com um largo
sorriso, ajudou-a a sair.
— Dawn e Roger Meagan! — exclamou ele, ao ver
um casal em pé, a poucos passos. — Que bom ver vocês
de novo! — E, puxando o corpo rígido de Cindy de
encontro ao seu, apresentou: — Esta é a minha esposa. A
garota que procurei a vida inteira. Não é linda?
— Parabéns! Ela é mesmo linda! — Dawn estendeu
a mão para Cindy. — É um prazer conhecê-la, meu anjo.
A notícia do seu casamento abalou esta cidade. Afinal,
Rane era o solteirão mais cobiçado de Las Vegas.
Roger Meagan riu.
— Finalmente foi fisgado, nem, Rane, meu velho!
E posso muito bem ver por quê!
Cindy corou, contente, pela primeira vez, por ter o
marido ao lado. Logo depois, os quatro entraram no
imenso salão de festas, ricamente decorado, sendo
recebidos pelo entusiasmado R.D.
— Rane, Cindy, meus queridos, finalmente vocês
chegaram! Eu estava começando a ficar com medo de
que tivessem se esquecido do resto do mundo,
encantados um com o outro. — Sorrindo calorosamente,
ele voltou-se para Cindy. — Tive pouca chance de vê-la,
desde a sua chegada, mas você está mais bonita do que
quando fomos apresentados. Está lindíssima, minha
querida! Tenho certeza de que meu filho e nossa cidade
concordam comigo.
— Boa noite, R.D. — Cindy cumprimentou, sorri-
dente. Era bom encontrar alguém que parecia gostar dela
e notava sua nova imagem.
— Mas venham comigo, venham!
R.D. começou a abrir caminho entre a alegre
multidão de convidados, que tinha se aproximado para
ver de perto a garota que, finalmente, conquistara Rane.
Sentindo-se como se estivesse em exibição, Cindy
seguiu-o olhando em torno e sorrindo, até localizar Rita
Rochelle. Abruptamente, seu sorriso desapareceu. Não
era muita ousadia de Rane, ter a esposa e a amante no
mesmo local?
O nervosismo que sentiu foi logo substituído por
um terrível embaraço, quando o sogro puxou-a, junto
com o filho, para o palco onde um conjunto musical
estava tocando. De imediato, fez-se silêncio no salão.
— Parentes e amigos, eu lhes apresento a nova sra.
Randolph, minha adorável nora Cindy — disse ele. E
acrescentou: — Finalmente!
A multidão riu, e Cindy sentiu as pernas bambas,
de medo de ter que dizer alguma coisa. Mas R.D.
simplesmente ofereceu um brinde à felicidade do novo
casal e a música recomeçou.
Rane, com ar solícito e a mão segurando-lhe o coto-
velo como se fosse uma garra, dedicou-se então a apre-
sentá-la aos amigos com quem costumava viajar. Eram
todas pessoas ricas e sofisticadas, e Cindy logo se viu
pensando no quanto ele devia ter rido da vida que ela
levava com a família, naquela cabana de toros nas
Montanhas Blue Ridge. Que tola ele devia tê-la achado,
subindo a encosta da montanha, para mostrar-lhe
algumas árvores! Como ele devia ter se divertido, com a
facilidade com que fora para os braços dele! Como devia
ter lhe parecido tola e ingênua, acreditando nos
cumprimentos que havia recebido. Seus mundos jamais
teriam se tocado, se o carro dele não tivesse quebrado
aquela noite, nas montanhas.
Se só o fato de estarem no mesmo cômodo já era
ridículo, que dizer então de seu casamento? Rane se
casara com ela por pena e porque ela o divertia, e estava
continuando com a farsa pelos mesmos motivos.
Um garçom ofereceu-lhes champanhe e Rane
pegou duas taças.
— Só uma para você, minha flor — disse baixinho,
dando-lhe uma.
Cindy, que estava com os nervos à flor da pele e
não sabia se aguentaria a noite até o fim, aceitou a bebida
com alívio. As apresentações e os sorrisos continuaram
até que, algum tempo depois, todos começaram a se
encaminhar para a sala ao lado, onde várias mesas
tinham sido arrumadas. Confusa, ela ergueu os olhos
para Rane, à espera de uma explicação.
— Jantar — sussurrou ele, levando-a para a mesa
central.
Lá, sentaram-se entre um senhor de meia-idade,
que ficou à esquerda de Cindy, e uma moça loira, que
ficou à direita de Rane.
— Simone, esta é minha esposa, Cindy — disse ele,
sorrindo. — Cindy, esta é Simone Artwach.
— Muito prazer — Cindy murmurou,
educadamente.
— O prazer é todo meu — respondeu Simone Art-
wach, virando-se então para Rane, como se ela tivesse
deixado de existir.
"Bem", Cindy disse para si mesma, "logo ele será
todo seu, srta. Artwach. Se conseguir tirá-lo de Rita, é
claro. Rane não vai levar muito tempo para se cansar do
joguinho que está fazendo, e então, num piscar de olhos,
eu serei a ex-sra. Randolph".
O homem do outro lado puxou prosa, e ela passou
a maior parte da refeição conversando com ele e sendo
ignorada pelo marido, que não tirava os olhos da srta.
Artwach. No entanto, quando a sobremesa estava para
ser servida, Rane voltou-se novamente para ela e
perguntou, sorridente e solícito, se gostara do jantar.
Confusa por esta mudança de atitude, Cindy fitou-o com
ar interrogativo.
Foi neste exato momento que um enorme bolo de
aniversário chegou e a multidão começou a cantar, em
coro, parabéns a você. A orquestra acompanhou e Cindy,
atônita, percebeu que estava ficando vermelha como um
pimentão. Rane tinha se lembrado de seu aniversário!
Fazendo então um grande show, ele tirou do bolso
do casaco uma caixinha e entregou-a a ela.
— À mais linda das esposas!
Só Cindy percebeu a zombaria por trás das
palavras amorosas, mas, como os convidados estavam à
espera, não teve outra alternativa a não ser abrir a
caixinha. Uma exclamação de surpresa escapou-lhe dos
lábios, quando viu o magnífico solitário de diamante e a
aliança de ouro, cravejada de pequenos diamantes. Era
impressionante o que Rane era capaz de fazer, para
continuar com aquela farsa, e ela sentiu uma vontade
louca de perguntar o que teria que dar em troca por
aqueles anéis, antes de jogá-los na cara dele.
Mas foi apenas uma vontade momentânea, pois
estava bem ciente do brilho duro que havia no fundo dos
olhos cinzentos, fixos em seu rosto. Forçando um sorriso
trêmulo, conseguiu murmurar:
— Muito obrigada. São lindos.
— Experimente, minha flor.
A voz era terna, mas a expressão dos olhos dele
tinha se tornado mais dura ainda. Quando a viu hesitar,
ele tirou os anéis da caixinha e enfiou-os no dedo dela.
Para surpresa de Cindy, os dois anéis serviram
perfeitamente. Rane então forçou-a a erguer a mão, para
que todos pudessem ver a beleza do presente que lhe
dera. Os convidados aplaudiram e, pouco depois,
voltaram a conversar entre si.
Assim que viu que não eram mais o centro das
atenções, Cindy retirou a mão da de Rane e escondeu-a
no colo. "Como ele tem coragem de me presentear com
anéis de casamento, quando tem intenção de pedir o
divórcio?", pensou, indignada.
Como se estivesse obedecendo a um sinal, a
orquestra começou a tocar uma romântica canção de
amor e Rane levantou-se, convidando-a para dançar.
Não tendo uma alternativa, a não ser concordar, Cindy
deslizou para os braços dele, o coração batendo forte e a
mente cheia de lembranças da primeira vez em que
tinham dançado juntos, no salão de danças de sua
cidadezinha natal. Uma eternidade tinha se passado,
desde aquela noite, e ela agora estava se sentindo como
se tivesse duas vidas separadas, sendo a atual cheia de
desilusões e, aparentemente, interminável.
Rane inclinou a cabeça, encostando a boca à orelha
dela.
— Sorria, minha flor — sussurrou. — Você é a
rainha da festa.
Obediente, Cindy fixou um sorriso nos lábios e
levantou os olhos para ele.
— Por que você me deu estes anéis, Rane? Por quê?
Rane ergueu uma das sobrancelhas escuras e, por
um momento, examinou com atenção o rosto da esposa.
Então, num tom de voz curiosamente terno, explicou:
— Estes anéis são o negócio que eu tinha para
resolver ontem.
— Mas por que resolveu dá-los para mim? Foi para
se exibir, perante seus amigos? Para que eles pudessem
ver o quanto você é generoso?
Rane riu baixinho, como se ele e Cindy estivessem
partilhando um instante de alegre intimidade.
— Claro que foi, minha flor! Que outra razão
poderia haver? Eu não poderia deixar que meus amigos
pensassem que sou um pão-duro, não é mesmo? — Seu
riso transformou-se num som áspero e amargo.
— Não, é claro que não poderia — ela concordou,
irônica.
Rane encostou a coxa musculosa à dela e girou ao
som da música, o tempo todo sorrindo ternamente.
Cindy quase perdeu o equilíbrio com o movimento
brusco, e ele puxou-a de encontro ao corpo, segurando-a
com mais firmeza.
— Mas não se desespere, minha querida — disse
com selvageria —, você vai pagar por estes anéis.
Cindy sentiu o coração bater mais forte, quando o
peito másculo pressionou seus seios e, tentando manter
a compostura, lutou para pôr alguma distância entre
eles.
Nesse momento, R.D. bateu no ombro de Rane.
— Não vai dividir sua linda esposa com os menos
afortunados que você, meu filho?
— Claro que vou, papai, mas tenha muito cuidado.
Cindy pode ser uma beleza, mas também é astuciosa. Se
não for cauteloso, ela é bem capaz de roubar seu coração.
— Com uma leve inclinação de cabeça, Rane soltou
Cindy e afastou-se.
R.D. sorria abertamente, enquanto girava com a
nora pelo salão. Cindy estava se sentindo bem mais à
vontade nos braços dele, do que nos do próprio marido.
— Gostou dos anéis que meu filho lhe deu, minha
querida?
Ela forçou um sorriso.
— Muito! São lindos. Eu... eu não estava esperando
por eles.
— Rane pode ter sido um playboy, mas agora que
vocês se casaram, tenho certeza de que ele vai sossegar.
E, cá entre nós, meu bem, você não pode imaginar o
quanto estou contente, por ele tê-la encontrado. Eu já
estava quase perdendo a esperança de ter um neto.
Vendo o brilho de alegria nos olhos do sogro,
Cindy teve que se conter para não dizer que não estava
grávida, como ele parecia acreditar. O rosto em chamas,
olhou em torno, dando com Rita e Rane dançando a
poucos passos. Os dois formavam um par fabuloso e,
apesar de sua nova imagem, ela se sentiu feia, perto da
outra. Seus olhos encheram-se de lágrimas e ela abaixou
a cabeça, tentando se controlar.
— Você está bem, minha querida? —perguntou
R.D., preocupado. — Quer sentar-se um pouco? — Com
o braço em torno da cintura dela, guiou-a para a cadeira
mais próxima. — Talvez isso tenha sido demais para
você, considerando a viagem cansativa e... ahn... o resto.
— Talvez — Cindy concordou, grata por ele estar
arranjando desculpas para seu descontrole.
Seria horrível se rompesse em lágrimas, na frente
de estranhos. Mas, realmente, tudo tinha sido demais: o
casamento, o rompimento com a família, a paixão fria de
Rane na noite de núpcias, a viagem e, agora, aquela
mulher que ele abraçava com tanta intimidade, sem ligar
para sua presença no mesmo local. Um soluço de deses-
pero escapou-lhe dos lábios, e R.D. começou a dar-lhe
tapinhas encorajadores no ombro, enquanto ajudava-a a
se sentar. Ela sabia que, daquele jeito, acabaria
chamando a atenção do marido, mas não estava
conseguindo se controlar. Por isso, não ficou surpresa
quando viu Rane e Rita se aproximando.
— Sua esposa não está se sentindo bem — explicou
R.D., quando o filho parou junto dele. — Considerando
as circunstâncias, acho que é melhor você levá-la para a
suíte.
Os olhos de Rane encontraram-se com os de Cindy,
e ela teve a impressão de ver um brilho divertido neles,
mas não ligou. Estava mesmo querendo ir para a suíte.
— Claro que sim, papai. Vamos então dar boa-
noite a todos, minha flor? — ele perguntou, num tom
zombeteiramente solícito. E, estendendo-lhe as mãos,
acrescentou: — Quer ajuda para se levantar?
— Não! — Cindy afastou as mãos dele com um
gesto brusco e ficou em pé. — Sou capaz de me levantar
sozinha, obrigada.
Se R.D. ou Rita acharam o comportamento dela pe-
culiar, não o demonstraram. Rane segurou-a pelo
cotovelo, assim que terminaram de se despedir, e
caminhou para a saída.
— Um ataque de ciúme, minha flor? — murmurou
ele quando já estavam na porta.
— Não, mesmo?
— Não! — Levantando o queixo, Cindy olhou para
trás, até localizar Rita. — Por que não se casou com ela?
Ou com a garota que provocou o duelo no qual você
arranjou esta cicatriz?
— Eu arranjei esta cicatriz num acidente de
infância, e pode ser que eu ainda me case com Rita.
A voz dele parecia um rosnado, e Cindy quase
gemeu de dor, ao sentir os dedos másculos se fecharem
com mais força em volta de seu cotovelo.
— Mas o que é isso? A festa já acabou, ou sou eu
que estou atrasado demais? — um homem alto
perguntou, saindo do elevador e dirigindo-se a eles.
— Ora, ora, o professor de canto! Dave, quero lhe
apresentar minha esposa, Cindy. Eu telefonei para a sua
casa hoje, para pedir-lhe que a aceite como aluna. Cindy
tem um potencial ilimitado. Não é mesmo, minha flor?
— Zombeteiros, os olhos de Rane fixaram-se nos dela,
escuros e sombrios.
David examinou rapidamente o corpo e a beleza
exótica de Cindy.
— Não há dúvida, ela tem um potencial ilimitado
— declarou, rindo da expressão aborrecida de Rane.
— Para o canto, Dave.
— Mas é claro, meu amigo. Para o que mais
poderia ser? Quando quer começar as lições, sra.
Randolph?
Cindy olhou para o marido, esperando que ele
dissesse alguma coisa, mas Rane permaneceu em
silêncio.
— Amanhã, então — decidiu. — Quanto mais
cedo, melhor.
— Ótimo! — David concordou. — Adoro entusias-
mo. E já estou gostando da sua voz. Você é sulista, não
é?
— Sou. Da Virgínia.
— Maravilha! Isso pode ser exatamente o que vai
transformá-la num material quente.
— Material quente?!
— É, um material muito quente.
— Acredite em mim, Dave, ela já é um material
quente. — Com um gesto brusco, Rane empurrou Cindy
para dentro do elevador, afastando-a do outro, que não
tirava dela os olhos cheios de admiração. — Já está na
hora de irmos para a cama.
Cindy sentiu o estômago se contrair. Ainda não
tinha descoberto se Rane pretendia receber o pagamento
pelos anéis aquela noite, mas, se era essa a intenção dele,
podia ir mudando de ideia.
— Quando vai pedir o divórcio, Rane? — quis
saber, assim que a porta do elevador se fechou.
Ele fixou os olhos duros em seu rosto, descendo
depois por seu corpo bem-feito e sensual, realçado pelo
vestido rosa.
— Quando me for conveniente, minha flor. Só
quando me for conveniente.
Quando o elevador parou no sexto andar, Rane
saiu e foi para a suíte, sem se dar ao trabalho de esperá-
la. Cindy seguiu-o e, surpresa, viu-o jogar-se vestido no
sofá e acender um cigarro. Apressada, ela subiu a escada
e entrou no quarto, fechando a porta atrás de si.
Durante muito tempo, ficou deitada, tensa, à
espera do som dos passos dele ressoando pela escada,
mas nada quebrou o silêncio do ambiente e ela acabou
caindo num sono leve e agitado.
Na manhã seguinte, quando foi para a cozinha,
Cindy encontrou um bilhete sobre a mesa, dirigido a ela.
Rane já tinha saído!
Tristes, seus olhos fixaram-se no maravilhoso
brilhante que enfeitava sua mão esquerda. Se Rane não
estava conseguindo suportar sua presença, por que não
a deixava ir embora? Já era maior de idade, e com certeza
ele poderia ajudá-la a encontrar um emprego e um lugar
para viver, tendo tantos conhecimentos. Mas
provavelmente o problema era esse: o grande Rane
Randolph não gostaria que seus amigos vissem sua
esposa fazendo um serviço comum — que era a única
coisa para a qual Cindy Lancaster estava habilitada.
Um suspiro escapou-lhe dos lábios. Que grande
confusão! E onde Rane passava o tempo, afinal de
contas? Na realidade, não queria saber. Seria horrível ver
suas suspeitas confirmadas e ter certeza de que ele
passava os dias na companhia de Rita, pois ainda o
amava. Se fosse sincera consigo mesma, admitiria que
quase chegara a desejar que ele a procurasse na noite
anterior. Mas não queria encarar a verdade de frente...
Tentando mudar o rumo dos pensamentos, Cindy
pegou o bilhete e leu-o. Com palavras secas, Rane dizia-
lhe para estar pronta às dez horas, que Charles passaria
para levá-la à primeira aula de canto.
Bem, não se podia negar que ele estava ansioso por
vê-la começar as lições. No dia anterior, quando havia
sugerido começar logo as aulas, não pensara que tudo
pudesse ser arranjado com tanta rapidez. Mas então,
Rane era um homem influente e decidido a se livrar dela
o mais rápido possível. E que jeito melhor poderia haver,
do que dar-lhe um meio de ganhar a vida? Como não
havia pensado nisso antes? Afinal, transformá-la numa
cantora tinha sido a ideia original dele.
Esse pensamento fez com que se sentisse, de
repente, triste e vulnerável. Era evidente que, de um jeito
ou de outro, Rane ia mesmo se livrar dela. Mas algum
dia, de algum modo, devolveria a ele tudo que fosse
gasto. Não ficaria devendo a ele um único centavo!
Olhou para o relógio da cozinha; já eram quase
nove horas. Se não se apressasse, Charles chegaria antes
de estar pronta. Um sorriso surgiu em seus lábios. Ima-
gine, um chofer para Cindy Lancaster... Randolph,
acrescentou mentalmente, gostando do novo nome. Se o
pai e os irmãos pudessem vê-la...
Usando um vestido azul-claro, que realçava às mil
maravilhas seu corpo e sua beleza morena, Cindy já
estava pronta e à espera, quando Charles chegou.
Nervosa e ao mesmo tempo excitada, ela foi abrir a porta.
Nunca fora conduzida por um verdadeiro chofer, antes,
e além disso estava preocupada com as lições de canto. E
se David lhe dissesse que não tinha voz? O que iria fazer?
Rane lhe dissera que cantava bem, mas teria ele sido
sincero, ou tudo não passara de falsidade?
Charles bateu de novo na porta e ela caminhou
mais depressa, para lá. Já era tarde, e agora não tinha
outra escolha a não ser ir. Inconscientemente, girou o
anel de diamante no dedo anular. Se pelo menos tivesse
alguém em quem confiar, alguém que a ajudasse a
decidir o que devia fazer...
Quando Charles deixou-a em frente ao estúdio de
música, Cindy estava cheia de dúvidas. Devagarinho,
bateu na porta do escritório de David e sentiu-se melhor,
quando ele mesmo atendeu. Vestindo uma camisa
florida e jeans desbotados, o rapaz era a imagem da
descontração e da alegria.
— Sra. Randolph, entre! Estava trabalhando, e não
percebi que já eram dez horas. — Examinou-a de alto a
baixo. — Como você é linda! Eu sempre admirei o gosto
de Rane para mulheres.
Esse comentário magoou Cindy, mas, mesmo
assim ela sorriu. David Wyatt não era muito mais velho
que ela e, observando-o sentar-se de novo à
escrivaninha, começou a ficar mais confiante.
— Se me der licença, vou terminar de anotar essas
quantias no livro-caixa, antes de irmos para o estúdio.
Cindy concordou e pôs-se a olhar em volta,
enquanto esperava. Finalmente, David levantou-se.
— Pronto! Vamos começar?
Ela o seguiu até o estúdio, um cômodo espaçoso e
moderno, pintado cm cores que iam desde o mais vivo
laranja até o mais pálido azul. Nas paredes viam-se foto-
grafias de cantores, histórias de artistas bem-sucedidos,
recortes de jornais e várias placas.
— Alguns dos meus alunos chegaram ao topo, no
difícil mundo do canto — ele explicou, percebendo a
curiosidade dela. — Espero que consiga o mesmo, sra.
Randolph.
— Não quer me chamar de Cindy? — perguntou
ela, achando que a esperança dele era absurda.
— Com prazer. Sabe? Eu detesto formalidades.
David parou em frente a um velho piano, sorrindo
para ela. Vendo seu ar de menino, Cindy não conseguiu
se conter e perguntou:
— Quantos anos você tem?
Ele ergueu as sobrancelhas e um brilho divertido
surgiu em seus olhos intensamente azuis.
— Está duvidando da minha capacidade, por
causa da minha idade, meu bem?
— Não, de jeito nenhum! É que você parece tão
jovem, e de vez em quando é gostoso estar ao lado de
pessoas jovens.
— Hummm. Seu marido não é exatamente
decrépito. — Um sorriso largo iluminou-lhe o rosto. —
Ou é?
Instintivamente, Cindy percebeu a que David
estava se referindo e, muito corada, exclamou:
— Não, claro que não! Não foi isso que eu quis...
"Oh", ela se censurou, "quando vou aprender a ficar de
boca fechada?"
— Relaxe, Cindy! — David bateu-lhe de leve no
ombro, num gesto de conforto. — Você está nervosa. Eu
só estava brincando, e sou mesmo jovem. Tenho vinte e
cinco anos e, segundo dizem por aí, sou um garoto
prodígio no que faço.
— Entendo — Cindy murmurou, sem graça. Mas,
nem cinco minutos tinham se passado, e ele já a havia
colocado à vontade, de novo.
— Quanto treino você já teve?
— Não muito. Cantei no coro da igreja, enquanto
estava na escola, e várias vezes nas festas de sábado, que
o pessoal da minha cidade costuma dar.
— Isso é ótimo! Geralmente, a parte mais difícil de
um treinamento é fazer o cantor se acostumar com a
ideia de aparecer em público. Muitos são extremamente
tímidos e têm verdadeiro pavor de palcos.
Naturalmente, você pode ser um dos sortudos, que não
liga para o fato de ter que subir a um palco.
— Eu provavelmente vou morrer de medo. Cantar
na frente de estranhos é muito diferente de cantar na
frente de pessoas que conheci a vida inteira.
— Depois que terminar seu treinamento você não
terá medo de se apresentar na frente de plateia nenhuma.
Vou transformá-la numa grande estrela. Agora, mostre-
me o que é capaz de fazer. — Pegou uma letra de música
de uma pasta e entregou-a a Cindy. — Vamos começar
por esta. Eu dou início ao acompanhamento, e você entra
quando achar que está pronta.
Nervosa, Cindy correu os olhos pela letra e notas
da música. Era uma balada romântica, do tipo que
cantava melhor, e quando David deu início ao
acompanhamento, entrou como se fosse uma
profissional. Estava no meio, quando ele parou de tocar
e ficou ouvindo, em silêncio.
— Lindo! Simplesmente lindo! — ele exclamou,
quando a última palavra da canção ressoou pelo ar. —
Estou impressionado com seu jeito de cantar e a
qualidade de sua voz. É um som puro, harmonioso, que
você solta de um jeito provocante e ao mesmo tempo
sensual. Vou mesmo fazer de você uma estrela! Em dois
tempos, estará rica. Ou melhor, aquele seu marido estará
mais rico do que já é.
O sorriso de Cindy diminuiu um pouco. Ê claro
que David não podia saber como estavam as coisas entre
ela e Rane, mas seria melhor se ele não tocasse mais nesse
assunto. Não poderia dar o melhor de si mesma, se não
se esquecesse do marido.
David começou a explicar o melhor modo de
respirar e Cindy, decidida a não pensar em Rane, fixou a
atenção no que ele estava dizendo. Achou graça e riu
gostoso, quando ele lhe falou que vinha respirando há
vinte e um anos, e do jeito errado. Para mostrar-lhe o
jeito correto, David se colocou atrás dela e, com ambas as
mãos, pressionou-lhe o estômago.
A intimidade do gesto fez Cindy prender a respira-
ção, e ela teve que resistir à vontade de dar um passo
para a frente.
— Respire fundo. Para ser bem projetado, o ar deve
vir do fundo dos pulmões. Mas não de jeito tão óbvio!
Tem que ser um processo natural.
David bateu-lhe de leve no estômago e Cindy foi
invadida por uma sensação esquisita. Não lhe parecia
certo estar nos braços do rapaz, sendo casada com Rane.
Se bem que ele era seu professor de canto e a atenção que
estava lhe dedicando só podia ser puramente
profissional.
Ela fez como ele queria e logo estava respirando de
modo satisfatório. David começou então a falar de respi-
ração, projeção e outros aspectos técnicos do canto, e
quando Cindy viu, a aula estava terminada. Depois de
lhe dar alguns exercícios para fazer em casa, David
acompanhou-a até a porta.
— Ah, outra coisa, Cindy — disse ele, quando ela
já estava saindo. — Você vai precisar de um bom gra-
vador, para ouvir o que estiver praticando. Peça a Rane
para lhe comprar um, e volte amanhã, no mesmo
horário.
Feliz com a lição e os comentários dele a respeito
de sua voz, Cindy caminhou rapidamente para onde
Charles estava, esperando ao lado do carro.
"É incrível", pensou sorrindo, "ter um chofer só
para mim!"
Mas seu sorriso morreu logo, quando se lembrou
do que David tinha dito, sobre a necessidade de ter um
bom gravador. Não poderia pedir mais nada a Rane; ele
já estava gastando demais, pagando as aulas de canto, e
um pedido desses na certa acabaria piorando a situação
entre eles, além de ser humilhante. Teria que se arranjar
sem o gravador.
A suíte estava vazia quando chegou, mas isso não
a surpreendeu. Nem o almoço, sobre a mesa da cozinha,
causou-lhe espanto. Sua vida ali estava começando a cair
numa rotina, da qual a ausência de Rane fazia parte. Mas
enfim, o importante era que tinha o que comer e um
lugar para morar, além da chance de poder se tornar
uma cantora de nome. De um homem que não a amava,
o que mais poderia querer? Se seu coração disparava,
sempre que o via; se seus lábios ansiavam pelo contato
dos dele; se seus ouvidos doíam de vontade de ouvir-lhe
a voz, enrouquecida pelo desejo; se seu corpo ardia,
querendo se ver novamente entre os braços musculosos,
a culpa não era dele. Ela é que teria que aprender a
suportar aquela agonia, até o divórcio ser concedido e
poder fugir para longe.
Com o resto do dia para si mesma, Cindy começou
a imaginar o que os ricos ociosos costumavam fazer para
se distrair. "Mas a verdade é que eles têm amigos,
parentes e hobbies, e eu, só um marido que não me quer",
pensou, já deprimida.
Quando Rane finalmente chegou, às sete, ela
estava praticando os exercícios que David lhe dera e
imaginando se o jantar apareceria de forma tão
misteriosa quanto o almoço.
— Como foi a aula? — perguntou ele, mas Cindy
não acreditou que estivesse interessado em saber. Trans-
formá-la em cantora era apenas o melhor modo que ele
havia encontrado para se livrar da esposa indesejada,
sem fazer papel de tolo perante os amigos.
— Bem. Gostei de David. — Mal acabou de falar,
ela percebeu que tinha cometido um erro.
— É claro que você gostou dele! David é um
homem, não é?
Foi só com muito esforço que Cindy conseguiu se
controlar e não responder à ofensa. Já falara demais, ao
que parecia.
Rane deixou-se cair no sofá, de onde tinham
sumido, também misteriosamente, os lençóis usados na
noite anterior. Aparentemente, uma criada estivera ali
para fazer a limpeza, quando não havia ninguém em
casa.
"Outro dos serviços eficientes que os ricos parecem
ter a seu dispor", Cindy pensou, olhando o marido. Ele
estava com ar de cansaço, e uma estranha sensação de
culpa invadiu-a. Ela é que deveria estar dormindo no
sofá, e não na cama. Afinal, aquela era a casa dele!
Mas a sensação de culpa logo passou, quando uma
vozinha em seu íntimo sussurrou-lhe que Rane não
estaria tão cansado, se não passasse tanto tempo na
companhia de Rita Rochelle.
— O que acha de jantarmos no restaurante lá em-
baixo? — Rane perguntou.
— Não precisa se incomodar por minha causa.
— Eu não estou me incomodando por sua causa.
Afinal de contas, somos casados e temos que manter as
aparências. E isso inclui deixar que meus conhecidos nos
vejam juntos, de vez em quando.
— Ah, sim!
Que tolice a sua, achar que Rane se incomodava
com seu bem-estar! Naquele jogo, só ele tinha
importância.
Apesar de tudo, Cindy achou o jantar agradável,
pois Rane foi muito atencioso, oferecendo-lhe
pedacinhos de pão com manteiga, enchendo seu copo de
vinho e lançando-lhe olhares de admiração. Seu coração
logo começou a bater mais depressa, e ela teve que se
controlar, para não fazer papel de tola. Foi com alívio
que terminou de jantar e levantou-se para ir embora, pois
quando estivessem a sós, Rane voltaria a ignorá-la e teria
paz. Era por demais doloroso, quando ele se mostrava
tão atencioso e simpático.
No elevador, Rane fitou-a por um longo momento,
com ar pensativo. Cindy achou que ele estava querendo
lhe dizer alguma coisa e ficou à espera, o coração aos
pulos. Mas o elevador chegou ao sexto andar e ele
ajudou-a a sair, sem nada dizer.
— Você sabe que só tem que levantar o fone do
gancho e pedir à telefonista que ligue para a copa, se
quiser comer alguma coisa aqui em cima, não sabe,
Cindy? — Rane perguntou, quando já estavam de novo
na suíte.
Não, ela não sabia, e ficou contente por ele lhe
dizer.
— Obrigada, Rane — murmurou, olhando-o nos
olhos. Teve então a impressão de surpreender uma leve
contração de dor no rosto simpático, e foi invadida por
uma súbita vontade de consolar aquele estranho que, por
incrível que pudesse parecer, era seu marido. Mas como?
Desanimada, virou-se para ir para o quarto, mas foi im-
pedida antes que pudesse dar o segundo passo.
Segurando-a pelo pulso, Rane puxou-a para junto
de si e abraçou-a.
— Cindy — sussurrou, roçando-lhe os cabelos com
a boca.
Confusa, Cindy olhou-o e viu-o inclinar a cabeça,
até encostar os lábios nos seus. Num gesto automático,
abraçou-o também e sentiu-o apertar os braços com mais
força, em torno de sua cintura. O beijo aprofundou-se, e
ela correspondeu com ardor à paixão inesperada do ma-
rido, cujas mãos agora percorriam suas costas de alto a
baixo, numa carícia terna e delicada. Quando finalmente
os lábios deles se separaram, ele enterrou a cabeça na
curva de seu ombro e murmurou:
— Se pelo menos as coisas fossem diferentes...
Cindy afastou-se com um safanão. As coisas não
eram diferentes, e seria uma tola se o deixasse fazer o que
estava querendo.
— Mas não são, são? — gritou, lutando contra a
vontade de chorar. Como ele podia ser tão insensível a
ponto de abraçá-la e beijá-la, e depois lembrá-la da situa-
ção em que se achavam? Principalmente quando só ele
tinha o poder de mudar o rumo dos acontecimentos e, ao
que parecia, não estava com a menor intenção de fazer
isso.
— Não, não são — Rane replicou friamente, o rosto
sombrio. E então, para surpresa de Cindy, tirou a carteira
do bolso e estendeu-lhe algumas notas. — Tome, fique
com este dinheiro, para o caso de querer comprar
alguma coisa. Charles está à sua disposição. Quando
quiser sair, basta pedir à telefonista para avisá-lo. Eu
esperava que Rita...
Cindy empurrou a mão dele para longe. Natural-
mente, Rita tinha que ser mencionada!
— Não quero o seu dinheiro! E, também não quero
ter nada a ver com a sua namorada!
— Não seja ridícula! Além do mais, você não tem
dinheiro e...
— E não quero o seu!
Oh, será que ele não era capaz de ver? Será que não
era capaz de entender? Tudo que queria era ele! No
entanto, todas as vezes que começava a achar que seu
casamento tinha uma chance de dar certo, ele se encarre-
gava de destruir suas ilusões, sem a menor piedade.
Rane olhou-a, zangado e, com um gesto brusco,
jogou o dinheiro no chão e saiu. Os olhos de Cindy
encheram-se de lágrimas. Ele não passaria a noite com
ela. Aparentemente, mal podia suportar sua presença! E
já tinha desaparecido de novo, deixando-a a sós com sua
infelicidade e solidão. Pelo menos, de agora em diante
teria as lições de canto para se ocupar.
Suspirando, Cindy pegou o livro de música e
passou uma hora praticando, antes de tomar um banho
e ir para a cama espaçosa, que havia partilhado com o
marido uma única noite.
No dia seguinte, o dinheiro tinha desaparecido do
chão e o bilhete de costume estava sobre a mesa da cozi-
nha. E a rotina da vida de Cindy continuou: de manhã,
os bilhetes de Rane e as aulas de canto; à noite, os jantares
em público e os olhares ternos e amorosos. Ao fim de
uma semana, um gravador apareceu ao lado do bilhete
de sempre, mas nenhuma explicação foi dada a respeito,
e ela não perguntou nada.
As visitas ocasionais de R.D. quebravam a monoto-
nia dos dias, e Charles estava sempre à disposição, para
levá-la aonde quisesse, mas isso não diminuía sua
solidão e a falta que sentia de Rane. Fechada na casa de
seus sonhos e casada com o homem que sempre
imaginara, Cindy era mais infeliz do que tinha sido nas
montanhas, quando achava que passaria o resto da vida
ao lado de Júnior Parker. E assim, à medida que os dias
e as noites solitárias iam passando, ela reafirmou seu
juramento de que não deixaria mais nenhum homem
feri-la, como Rane havia ferido. Quando ele não a
quisesse mais, começaria a vida como cantora, cantando
românticas baladas de amor para os outros, mas sem
jamais ceder de novo aos anseios do próprio coração.
Semana após semana, ela se concentrou apenas nas
lições de canto, indo ansiosa ao encontro de David, que
a tratava de um modo totalmente diferente do de Rane,
sempre frio e cada vez mais distante. Deliciado com sua
dedicação e progresso, David não lhe poupava elogios, e
um dia, depois de quatro semanas de aulas, não conteve
o entusiasmo, ao vê-la cantar com perfeição uma balada
extremamente difícil.
— Você conseguiu! — exclamou, abraçando-a com
força. — Era exatamente isso' que eu queria! Como re-
compensa, vou levá-la para almoçar.
Cindy afastou-se, sentindo-se culpada e
detestando-se por isso. "Que piada!", pensou, com
amargura. "Eu, me sentindo culpada e com a sensação de
estar traindo Rane por permitir um simples abraço
quando, neste exato momento, ele pode estar fazendo
amor com Rita Rochelle!"
De qualquer modo, ela estava certa de que o gesto
não havia significado nada para David. O rapaz tinha
uma personalidade alegre e calorosa, e provavelmente
tratava desse modo todos os alunos. Era tolice dar
importância a um simples abraço, dado num momento
de entusiasmo.
— Obrigada — disse, abaladíssima por dentro, em-
bora aparentasse calma. E se Rane os visse juntos?
Eles só poderiam ir almoçar quando o último aluno
de David saísse, e Cindy começou a ficar inquieta, por
manter Charles à espera. No fim, acabou não
aguentando e falando nisso com o rapaz, que lhe disse
para mandar o chofer embora. Foi o que ela fez. Para sua
surpresa, Charles obedeceu prontamente.
David escolheu um restaurante próximo dali e eles
foram caminhando. Quando a surpreendeu olhando ao
redor, ao entrar, ele riu e perguntou, sorrindo, enquanto
passava o braço em torno de sua cintura:
— O que há? Está nervosa, temendo que Rane a
veja comigo?
— Não, claro que não! Por que haveria de estar?
Mas ela estava nervosa, e muito, e não queria
contar-lhe que temia as explosões de Rane, caso ele
viesse a saber que estavam almoçando juntos. Por isso,
sacudiu os ombros e sorriu, com naturalidade. Mas ficou
feliz quando o almoço acabou. Estava muito
desassossegada para apreciar a companhia agradável de
David ou a comida.
Cindy voltou para casa logo depois, e, é claro, não
encontrou Rane. À medida que as horas passavam, ela se
perguntava por que tivera pressa em deixar David.
Afinal, Rane provavelmente não pretendia jantar com
ela e nem se preocupara em avisá-la. Revoltada, pediu
alguma coisa ao serviço de copa e sentou-se para comer,
jurando a si mesma que, dali em diante, almoçaria com
David todas as vezes que fosse convidada.
Cindy dormiu pouco e mal aquela noite, e
levantou-se na manhã seguinte totalmente enjoada. No
entanto, como não estava com febre nem apresentava
outro sintoma de doença, acabou decidindo que o mal-
estar era consequência do nervosismo do dia anterior. É
verdade que não era dada a ter ataques de nervos, mas
com a vida tensa que estava levando ao lado de Rane,
tudo era possível. Porém, foi só depois da aula de canto
que o estranho mal-estar passou, e, para seu horror,
tornou-se, daquele dia em diante, um acontecimento
constante de suas manhãs.
A primavera cedeu lugar ao verão e Las Vegas foi
invadida por um calor seco e intenso, que Cindy nunca
vira. A cidade inteira parecia dormir durante o dia, só
acordando à noite, quando a temperatura caía alguns
graus. Muitas vezes ela sentiu vontade de dar um mer-
gulho na piscina do hotel, mas como não tinha maio nem
queria pedir dinheiro a Rane, sufocou essa vontade e os
pensamentos depressivos, que às vezes a assaltavam,
dedicando-se de corpo e alma aos estudos de canto.
Aos poucos, Cindy começou a passar mais tempo
no estúdio de David, observando as aulas que se
seguiam às suas e, depois, almoçando com ele. Apesar
de não se sentir à vontade nesses almoços, sua solidão
não a deixava recusar os convites de David, que estava
cada vez mais entusiasmado com seu rápido progresso.
Através dele, ela ficou conhecendo várias pessoas que
viviam da música, e essa convivência serviu para
aumentar sua autoconfiança, dando, ao mesmo tempo,
um pouco mais de significado a seus dias.
Rane continuava a levá-la para jantar com
frequência, mas era evidente que só fazia isso para
manter as aparências, e não porque gostasse de sua
companhia. Nessas ocasiões, no entanto, ele sempre se
mostrava amável e atencioso.
Outra coisa que ela logo notou foi que Rane estava
fumando cada vez mais; observando-o disfarçadamente,
achou-o mais tenso e irritado que no início de seu casa-
mento. Provavelmente isso era uma consequência da
vida anormal que estavam levando, tentando não deixar
ninguém perceber o fracasso de sua união. No entanto, a
culpa de estarem naquela situação era inteiramente dele;
se dependesse dela, já estariam divorciados há muito
tempo.
Cindy estava certa de que o marido continuava a
se encontrar com Rita, mas tentava não pensar nisso.
Obviamente, Rane não era homem capaz de passar sem
mulher, e ela não fazia o tipo dele, dizia-se sempre,
escondendo a desilusão. A única testemunha de sua
infelicidade era seu travesseiro que, todos os dias,
amanhecia molhado de lágrimas.
Como se só sua intensa solidão não bastasse, Cindy
ainda não havia se livrado do enjoo que sentia, todas as
manhãs. E foi no dia em que estava completando sete
semanas em Las Vegas, que se lembrou da pergunta que
Rane lhe fizera, pouco depois de apresentá-la ao pai:
"Como você sabe que não está grávida?" Então, todas as
coisas que vinha atribuindo a um estado de nervosismo
tornaram-se claras: ia ter um filho!
"Um filho de Rane!", pensou, voltando para a cama
de onde acabara de sair. Naturalmente, agora que estava
grávida, teria o bebê e o amaria, mas, se tivesse podido
escolher, isso jamais teria acontecido. Imagine! Um bebê
concebido entre planos de divórcio.
Cindy levou muito tempo criando coragem para se
levantar, aquela manhã, tão desanimada estava. Sua
única esperança era que conseguisse se estabelecer como
cantora, antes da gravidez se tornar aparente, pois assim
não teria que contar nada a Rane. A última coisa que
desejava era que ele se sentisse preso a ela, por causa do
bebê.
Foi com o coração pesado que entrou no estúdio de
David, uma hora mais tarde. Fazia algum tempo que eles
vinham ensaiando uma balada triste e romântica, sem
sucesso, e foi exatamente essa canção que ele escolheu
para começar a aula.
Depois de várias tentativas inúteis, David
finalmente perdeu a paciência e explodiu:
— Pelo amor de Deus, Cindy, eu sei que você é
uma recém-casada apaixonada, que ainda está vivendo
no mundo dos sonhos, mas bote a imaginação para
funcionar! Esta canção conta a história de uma mulher
que foi abandonada pelo homem amado, e que agora
está desesperada. Você tem que expressar dor, menina!
Tem que fazer a plateia chorar! Nunca se sentiu
desesperada? Nunca teve sensação de perda? Dor de
cotovelo? Nunca encontrou algo que sentisse vontade de
ter e que não pôde conseguir? Puxe pela memória,
Cindy!
Os olhos de Cindy encheram-se de lágrimas. Se
David soubesse como era amargo seu amor por Rane,
jamais diria uma coisa dessas. Desnudando a alma,
começou tudo de novo, expressando com as palavras da
canção seu próprio desespero ao ser rejeitada pelo
homem amado.
David continuou em silêncio muito tempo depois
de ela ter acabado. Finalmente, com lágrimas brilhando
nos olhos intensamente azuis, adiantou-se e abraçou-a.
— Eu sabia que você era capaz — murmurou. —
Eu sabia!
Cindy não resistiu, apoiando a cabeça no ombro
dele, desfez-se em lágrimas, gemendo baixinho.
— Ei! — David sussurrou, abraçando-a com mais
força. — Mas o que é isso? Está tudo bem. Você foi
grande, meu anjo! Desculpe o que eu lhe disse antes,
mas, se eu não tivesse feito isso, jamais saberíamos a que
ponto você é capaz de chegar.
Sem desconfiar da verdadeira razão daquele
choro, ele deixou-a desabafar à vontade, consolando-a
com delicadeza. Quando afinal os soluços dela
começaram a diminuir, beijou-a de leve na testa e falou:
— Enxugue esses olhos, vamos! Você é bonita
demais para chorar. Além disso, está pronta para cantar
na frente de uma plateia, e isso não é motivo para choro.
Todas as semanas, um dos clubes locais promove uma
Noite de Calouros, para cantores, e a semana que vem
você vai participar. Contente?
— Mas... mas... Não faz nem dois meses que estou
estudando!
— Isso não tem importância. Você é uma cantora
nata, e está pronta para começar sua carreira.
Sem a menor lógica, Cindy foi tomada por uma
horrível depressão.
"Mas não é isso que quero?", pensou. "Conseguir
me estabelecer antes que a gravidez se torne evidente e
divorciar-me de Rane? Não é isso?"
— Mas eu nunca cantei diante de uma plateia —
insistiu, certa de que ainda não estava pronta. — Às
vezes em que me apresentei nos bailes de sábado, nas
montanhas, não podem ser levadas em conta. Eu
conhecia todo mundo!
Gentilmente, David terminou de enxugar-lhe o
rosto.
— A modéstia não tem lugar no mundo da arte,
Cindy. A determinação e o espírito de competição sim,
mas a modéstia não. Precisa se convencer disso, desde o
início. Você tem um talento natural, e pode usá-lo ou
deixar que sua falta de confiança o destrua. A escolha é
sua, e eu lhe garanto que já está pronta. Se não queria
começar uma carreira, por que concordou em ter aulas?
Só desperdiçou o meu tempo, o seu e o dinheiro do seu
marido.
David não poderia ter sido mais franco ou
escolhido palavras que atingissem Cindy melhor do que
essas, pois se havia uma coisa em que ela não queria nem
pensar, era desperdiçar o dinheiro do marido.
— Eu vou participar do concurso, David — mur-
murou. Afinal, o que mais poderia fazer?
— Ótimo!
Inesperadamente, ele empurrou a cabeça dela para
trás e beijou-a nos lábios.
— Isso também está incluído no preço da aula ou
tem que ser pago à parte?
A voz áspera que veio da porta, assustou Cindy
mais do que a carícia de David. Com o coração batendo
forte, ela se afastou do rapaz e virou-se. Aquele beijo não
poderia ter sido dado em pior hora, pois, recostado no
batente da porta, os braços cruzados no peito e os olhos
cinzentos examinando-a com frieza, estava Rane.
— Não precisa ser pago de jeito nenhum; o prazer
foi todo meu — respondeu David, perfeitamente à von-
tade. Afinal, não era ele que estava casado com Rane. —
Estávamos celebrando. Sua esposa está pronta para o
grande momento; vai participar da Noite dos Calouros,
no próximo sábado.
— Você me disse isso, na semana passada — co-
mentou Rane, a voz ainda fria.
— Eu sei, mas na semana passada eu ainda não
tinha falado com Cindy.
David tinha dito a Rane, na semana anterior, que
ela já estava pronta? Cindy estava achando difícil
acreditar nos próprios ouvidos. Então, de repente, tudo
se encaixou! Não era de admirar que ele estivesse sendo
tão exigente durante as aulas, nem que tivesse falado em
estarem desperdiçando o dinheiro de Rane. Rane estava
ansioso para se livrar da esposa indesejada, e David fazia
parte da conspiração.
— Onde está Charles? — Cindy perguntou,
zangada, incapaz de se lembrar de qualquer outra coisa
para dizer. — Por que você está aqui, Rane?
De certo modo, ela estava se sentindo traída por
David. Não que duvidasse do fato de estar pronta para
iniciar a carreira; o rapaz era um profissional, e jamais
arriscaria a própria reputação dando uma opinião
errada.
Sua queixa era não ter sabido que ele e Rane
estavam se comunicando e fazendo comentários a
respeito de seu desenvolvimento. Não era de admirar
que o gravador tivesse aparecido de modo tão
misterioso, exatamente quando David o pedira. E ela,
que sempre o considerara um amigo!
— Charles tem outras coisas a fazer, hoje. Está
pronta? Ou você e David têm mais... negócios a tratar?
David entregou-lhe o livro com as canções que
tinham estado praticando.
— Repasse as canções que marquei e volte amanhã,
certo?
Cindy seguiu Rane com passos rígidos, com medo
até de imaginar o que ele estaria pensando a respeito do
beijo que David lhe dera. Que ele estava zangado era
óbvio, mas se isso era devido ao fato de ter sido obrigado
a ir buscá-la ou por ter surpreendido o beijo de David,
ainda não sabia.
Rane dirigiu em silêncio para o hotel, mas, antes de
sair do carro, virou-se para ela e disse asperamente:
— Você não precisa pagar as lições de canto com o
seu corpo; o que estou pagando por elas já é mais do que
suficiente. Tente se controlar até obtermos o divórcio,
está bem?
Sem lhe dar tempo para responder, desceu do
carro e caminhou para a porta do hotel. Cindy conseguiu
alcançá-lo no hall privativo.
— Não... não foi o que você está pensando, Rane!
Ele não parou de caminhar, mas, por um breve mo-
mento, seus olhos examinaram o rosto dela.
— Quer almoçar, Cindy? — perguntou, mudando
bruscamente de assunto.
Vendo a expressão dele, dura e remota, Cindy
pensou que há muito tempo não o via sorrir. Há muito,
muito tempo! Ela certamente não o fizera feliz e, de certa
forma, era bom saber que estava pronta para deixá-lo e
começar uma carreira. Tinha que vencer o concurso de
calouros de qualquer maneira, por ela, por Rane e pelo
bebê. Só assim ele poderia pedir o divórcio, sem dramas
de ciência.
— Não — murmurou —, não estou com vontade
de comer.
Na verdade, estava com vontade de lhe dizer que
preferia conversar, para chegarem a um acordo sobre o
divórcio e acabarem logo com aquela agonia, mas tudo
que fez foi continuar caminhando ao lado dele, em com-
pleto silêncio.
— Até amanhã — Rane disse abruptamente,
deixando-a em frente ao elevador e seguindo para os
salões de jogos.
No momento exato em que o elevador chegou, Rita
saiu do salão de beleza. Por um instante, seus olhos
verdes examinaram Cindy, sem dar o menor sinal de tê-
la reconhecido. Então, quando as portas do elevador
estavam se fechando, Cindy ouviu-a gritar:
— Rane! Rane, querido! Espere por mim.
Cobrindo o rosto com as mãos, Cindy apoiou-se na
parede. Tinha mentido para si mesma. Precisava do
divórcio e, de muitos modos, ele seria a melhor solução
para o impasse em que se encontrava, mas ainda amava
Rane e, só de pensar em deixá-lo livre para se casar com
Rita, sentia o coração sangrar de dor.
Depois de seu último encontro com Rane, Cindy
ficou mais decidida do que nunca a iniciar uma carreira,
e só um pensamento enchia-lhe a mente: vencer o
concurso. Durante três dias, dedicou-se de corpo e alma
ao estudo da canção que David tinha selecionado para
ela, mas, quando a noite anterior ao grande dia chegou,
foi tomada por um nervosismo intenso, que não a deixou
relaxar. Tanta coisa dependia de sua habilidade que,
mesmo depois de David ter-lhe garantido que seria a
vencedora, não estava conseguindo dormir.
Inquieta, cansada, preocupada, percorreu o quarto
de ponta a ponta inúmeras vezes, e finalmente decidiu
que, talvez, um copo de leite quente a ajudasse a dormir.
Procurando não fazer barulho, saiu do quarto e desceu a
escada, dando com Rane deitado no sofá, totalmente ves-
tido e fumando um cigarro. De imediato, mudou de ideia
a respeito do leite quente e voltou para a cama, onde
ficou virando e revirando de um lado para o outro, a
maior parte da noite.
Quando a luz do sol acordou-a, na manhã
seguinte, teve a nítida impressão de que havia acabado
de adormecer, tão cansada estava se sentindo. A náusea
familiar não demorou a invadi-la e, levantando-se,
desceu a escada em silêncio, para ver se Rane ainda
estava dormindo. Ainda não eram oito horas, mas ele já
tinha desaparecido, o que a deixou aliviada. Não
desejava outra confrontação com ele, seus nervos não
aguentariam, e precisava estar em boa forma para o
concurso.
Durante a manhã, praticou um pouquinho, pois
não queria cansar a voz, e passou o resto do dia sem fazer
nada. As horas estavam se arrastando e, todas as vezes
que ouvia um barulhinho, logo pensava que era Rane
chegando. Naturalmente, não era. Afinal, por que ele
haveria de voltar para a suíte? Ele não gostava de sua
companhia, e aquele dia não seria uma exceção.
Na hora do almoço, ainda estava se sentindo meio
enjoada e pediu apenas um lanche leve. Depois, resolveu
selecionar o vestido que usaria, aquela noite. O rosa, que
tinha usado na noite de seu aniversário, foi logo
descartado, pois Rane havia gostado demais dele e não
queria que ele pensasse que o escolhera para agradá-lo.
No fim, acabou se decidindo por um longo de seda
vermelha, que havia comprado porque ele a fizera
lembrar-se da primeira vez em que dançara com Rane.
Ela estava nos braços de Júnior Parker, sonhando que
rodopiava ao ritmo de uma valsa num luxuoso salão de
festas, envolta por um longo de seda vermelha e
brilhante, quando ele surgira e a tomara nos braços,
fazendo-a acreditar que o sonho havia se tornado
realidade.
Mas a verdade é que os sonhos raramente se
transformam em realidade e, apesar de já saber disso
quando comprara o vestido, não conseguira deixar de se
imaginar dançando com ele, nos braços de Rane. Agora,
como já estava certa de que isso jamais aconteceria,
resolvera usá-lo naquela noite, para marcar o início de
sua carreira como cantora e o fim de seus sonhos de uma
vida ao lado do marido. Além disso, precisava mostrar
aos juizes que tinha classe suficiente para cantar num
cassino de Las Vegas, mesmo sendo de origem humilde.
Tendo escolhido o vestido, Cindy foi até o salão de
beleza, ver se conseguia uma hora para arrumar os
cabelos. Angie atendeu-a de imediato, dizendo que ela
nem precisava marcar hora, pois estariam sempre à sua
disposição. Mais uma vez, o efeito da maquilagem bem-
feita e dos cabelos bem penteados foi maravilhoso, e isso
ajudou-a muito, aumentando sua autoconfiança.
O telefone estava tocando com insistência quando
voltou para a suíte, mais ou menos às três horas da tarde.
— Como está você? — perguntou David, assim que
ela atendeu. — Pronta para a grande noite?
Cindy riu, nervosa. Mesmo magoada pelo fato de
ele ter sido cúmplice de Rane, ficou contente com o
telefonema.
— Acho que sim.
— Bem, não se esqueça de que não tem motivos
para ficar nervosa. Ah, e ponha um vestido bem bonito,
esta noite. Algo sofisticado, está bem? Uma boa
aparência sempre ajuda.
— Escolhi um vestido vermelho, de seda. O que
acha?
— Desde que não seja formal demais, está ótimo.
Ah, antes que eu me esqueça: Rane está por aí? Preciso
falar com ele.
— Ele... ele saiu.
— Rane saiu, no seu grande dia?! Bem, quando é
que ele volta?
— Não sei — murmurou Cindy. Sua vontade era
contar que o marido nunca estava em casa e nunca lhe
dizia quando ia voltar; mas não teve coragem.
— Mas ele vai estar aí hoje à noite, não vai? —
David perguntou, com um estranho tom na voz.
— Não sei — ela respondeu com franqueza,
sentindo-se a última das mulheres. — Você não vem me
pegar?
— Claro que vou, mas estou estranhando porque
pensei que Rane fosse conosco. Vocês brigaram, por aca-
so? E logo hoje?
— Eu... nós... não!
Cindy quase confessou que ela e Rane sempre
brigavam, quando conversavam, mas que isso não
acontecia com frequência, porque passavam pouco
tempo juntos. O orgulho, no entanto, impediu-a.
— Bem, isso não tem importância. Eu estarei lá, ao
seu lado, e você vai vencer.
— Obrigada, David. Até a noite, então.
Poucos minutos depois, a campainha tocou. Como
a única pessoa que a visitava era R.D., Cindy abriu a
porta esperando encontrá-lo, e ficou surpresa ao deparar
com um homem uniformizado, trazendo nas mãos um
buquê de rosas vermelhas.
— Sra. Cindy Randolph?
— Sou eu mesma.
— Estas flores são para a senhora. — O homem
entregou-lhe as rosas e se despediu, voltando para o
elevador.
Cindy estava pasma. Era a primeira vez que via
rosas tão grandes e perfeitas. E eram para ela!
"Quem pode ter tido um gesto tão delicado?",
pensou, cheirando as flores. "Preciso colocá-las num
vaso".
Mas não havia nenhum vaso à vista e, depois de
procurar um pouco, resolveu colocá-las num copo alto e
grande, que estava no armário da cozinha.
Desembrulhou-as e já ia começar a separá-las, quando
viu um cartãozinho branco cair no chão. Inclinou-se para
pegá-lo e descobriu, surpresa, que havia uma mensagem
escrita nele.
"Que você seja muito feliz, esta noite. Com amor,
Rane."
Cindy virou e revirou o cartãozinho, na mão. Se
pelo menos a palavra amor tivesse significado, e ele
estivesse lhe desejando felicidades porque queria vê-la
contente...
Ela se lembrou então da criança que estava
gerando e desejou que Rane não lhe tivesse mandado
aquelas rosas. Tudo que queria era que ele pedisse o
divórcio e a deixasse esquecer o quanto o amava. Por que
ele continuava a fazer coisas daquele tipo, se pretendia
livrar-se dela, assim que tivesse oportunidade? Para
torturá-la? Para puni-la?
Cega pelas lágrimas, Cindy jogou as rosas na pia e
correu para o quarto, atirando-se na cama. Como
gostaria de jamais ter encontrado Rane! Talvez assim não
estivesse agora naquela suíte, sozinha e desesperada,
esperando um filho de um homem que não a amava.
O sol de Nevada já estava se pondo no horizonte,
quando finalmente ela se recuperou o suficiente para sair
da cama e colocar uma compressa de água fria sobre os
olhos inchados. Aquela noite, precisava estar com a
melhor aparência possível. Fora uma tola, deixando que
Rane a aborrecesse de novo. Já se prometera tantas vezes
que isso não voltaria à acontecer, mas mais uma vez,
havia falhado.
Pensando no quanto precisava vencer o concurso,
reuniu a coragem que ainda lhe restava e começou a se
preparar. Depois de um banho morno de imersão,
sentiu-se mais calma e vibrante. Retocou então a
maquilagem e pôs o vestido de seda vermelha. Ficou
contente com o resultado: estava parecendo atraente e
sofisticada. Ninguém, olhando-a, seria capaz de
adivinhar a dor que a consumia; até os traços de lágrimas
haviam desaparecido. David na certa lhe diria que estava
linda, que a seda vermelha acentuava sua beleza exótica
e que as sandálias de salto alto, também vermelhas,
realçavam a forma elegante de seus tornozelos. Ao
contrário de Rane, ele estava sempre pronto a elogiá-la.
Quando desceu para esperar David na sala, Cindy
deparou, surpresa, com o marido sentado no sofá,
fumando um cigarro.
— Vejo que recebeu minhas flores — ele disse com
secura, os olhos percorrendo-a de alto a baixo, de forma
íntima e possessiva — e não gostou delas. Seria melhor
ter jogado o buquê inteiro na lata do lixo, em vez de
deixá-lo na pia, como deixou. Mas você deve ter achado
que não valia a pena, tanto esforço.
"As flores!", ela lembrou-se, horrorizada. Em sua
infelicidade, tinha se esquecido delas.
— São... são lindas — murmurou, desejando der
falar sobre toda a agonia e a emoção que as rosas
vermelhas tinham lhe causado, e por que as deixara na
pia. — Eu... eu pretendia colocá-las num copo de água,
mas... mas depois tive que me arrumar e...
— É claro! — A voz dele estava carregada de
ironia. — E devo reconhecer que fez um belo trabalho!
Ultimamente, eu mal a reconheço.
Cindy achou melhor ignorar o comentário, pois era
evidente que ele estava zangado.
— Este vestido está bem? — perguntou, querendo
saber e ao mesmo tempo odiando ter que pedir a opinião
do marido. Se houvesse algo de errado com sua
aparência, tinha pouco tempo para se trocar, antes da
chegada de David.
— Está bem?! Está maravilhoso, e você sabe disso.
Mas deve ter sido exatamente por este motivo que você
o escolheu, não é? Se sua voz não vencer o concurso, seu
corpo vencerá!
Ela se sentiu como se tivesse sido agredida
fisicamente. Apesar de já ter sido atingida pelo ódio dele
inúmeras vezes, ainda não estava preparada para
suportá-lo com indiferença.
— Eu te odeio, Rane! — gritou de repente, os olhos
cheios de lágrimas. — Eu te odeio! Se pudesse, nunca
mais o veria. Desde que nos casamos, você não me deu
nada, além de tristezas e humilhações!
— Ora, vamos, minha querida! É claro que agora
você me odeia. Já conseguiu tudo que queria de mim,
não é? Saiu das montanhas, veio para a cidade dos seus
sonhos e, depois desta noite, estará com sua carreira de
cantora bem lançada. Tenho certeza de que, amanhã
mesmo, podemos entrar com o pedido de divórcio.
— Podemos, e eu quero que ele seja concedido
logo. Aí, não quero nunca, nunca mais ver você de novo!
Rane riu, um riso áspero e breve, sem a menor
alegria.
— Não duvido. Que motivo você poderia ter, para
me ver de novo?
"Vários", Cindy sentiu vontade de gritar. "Eu te
amo, estou esperando um filho seu, e sou sua esposa."
No entanto, seu orgulho tinha sido pisoteado tantas
vezes, que não teve coragem de se expor novamente.
— Nenhum — falou baixinho, cheia de amargura.
De repente, Rane apagou o cigarro com violência,
levantou-se e agarrou-a pelo braço puxando-a para junto
de si com um safanão.
— Depois de hoje você pode não querer mais me
ver, mas antes disso, vou lhe dar mais uma razão para se
lembrar de mim.
— Pare com isso, Rane!
Mas ele não parou. Inclinando a cabeça morena, to-
mou posse dos lábios dela, num beijo ardente e cheio de
selvageria. Cindy debateu-se, tentando se libertar, o que
só serviu para fazê-lo segurá-la com mais violência,
forçando-a a encostar seus quadris nos dele e
aumentando a intensidade do beijo. Ela sentiu-se
amolecer; nunca fora capaz de resistir-lhe, e aquela vez
não seria diferente. Queria estar nos braços dele, e
parecia-lhe que nunca fora beijada com tanto ardor, que
nunca fora tocada com tanta ternura! Seu corpo inteiro
estava doendo de amor e desejo.
Totalmente esquecida do vestido vermelho e do
concurso, agarrou-se a ele gemendo baixinho, certa de
que, depois daquela noite, nunca mais sentiria o calor do
corpo ou o toque dos lábios dele. No instante seguinte,
Rane ergueu-a nos braços e subiu a escada, pulando os
degraus de dois em dois.
Cindy sabia que não deveria se submeter
novamente, mas fazer amor com ele era o que mais
queria naquele momento, e por isso fechou os olhos e
encostou a cabeça no ombro dele. Seria a última vez, e
não teve coragem de negar-se mais uma lembrança doce-
amarga, para guardar no coração.
No entanto, quando Rane colocou-a sobre a cama,
virou o rosto para o outro lado, envergonhada por estar
fazendo, mais uma vez, papel de tola.
— Cindy — ouviu-o murmurar com voz rouca —,
olhe para mim.
Os olhos escuros brilhando por causa das lágrimas
que os enchiam, olhou para ele. Rane retribuiu o olhar e,
deitando-se a seu lado, abraçou-a e começou a explorar,
com os lábios, seu rosto, as orelhas, o pescoço.
Cindy entregou-se por completo, e não protestou
quando o zíper de seu vestido foi aberto e o tecido macio
deslizou ao longo de seu corpo. Os olhos brilhando
intensamente, Rane acabou de tirar suas roupas e ficou
em pé. Ela então se permitiu o prazer de vê-lo despir-se
pela última vez.
Logo ele deitou-se de novo, o rosto rígido de desejo
e antecipação, os lábios famintos procurando os dela.
Cindy correspondeu com ardor, o corpo vibrando e o co-
ração transbordando de carinho. Quando seus corpos se
tornaram um só, ela fechou os olhos e entregou-se à
glória de pertencer, mais uma vez, ao homem amado.
No momento em que a paixão que os unia
amainou e eles tomaram consciência de que estavam
vivendo os últimos instantes nos braços um do outro,
Cindy e Rane tornaram-se estranhos novamente. Um
pesado silêncio envolveu-os e ela virou-se para o outro
lado, lutando contra as lágrimas e fazendo o possível
para ignorar a dor que estava sentindo. Agora, que havia
conseguido que ela se entregasse de novo a ele, Rane
voltava a assumir a atitude fria e remota de antes.
— Cindy...
A voz dele ressoou baixinho pelo quarto, e ela enri-
jeceu, Não precisou virar-se, para saber que ele havia
acendido mais um cigarro.
De repente, a campainha da porta tocou.
— Deve ser David — Cindy murmurou,
sobressaltada. Tinha se esquecido totalmente dele, nos
braços de Rane.
Movendo-se depressa, para esconder a vergonha
que estava sentindo, saiu da cama, pegou o vestido
vermelho e correu para o banheiro, lamentando não ter
tempo para saborear sua última união com o marido.
A campainha tocou de novo, um som longo e
impaciente, e ela ouviu Rane andar pelo quarto durante
alguns momentos, antes de descer para atender. Com as
mãos tremendo, por causa da pressa, retocou a
maquilagem, penteou os cabelos e vestiu-se de novo.
Estava descendo a escada, quando ouviu a voz de David.
— Mas o que é isso, Rane?! Fumando de novo?
Pensei que tivesse largado de fumar para sempre.
— Não se preocupe com isso. O problema é meu
— respondeu Rane, obviamente irritado.
— Desculpe, não quis me intrometer — disse
David, com frieza, mas mudou de tom, assim que viu
Cindy. — Minha cantora! — exclamou. — Você está
linda! Absolutamente linda! — Adiantando-se, segurou
a mão dela e inclinou-se, numa mesura; em seguida,
beijou-lhe cada um dos dedos, desejando-lhe toda sorte
do mundo.
Cindy olhou para Rane e viu que um músculo
havia começado a se contrair em seu queixo.
— Você não perdeu tempo, hem, Cindy? — ele
rosnou, os olhos cinzentos brilhando perigosamente.
— Não sei por que está dizendo isso! — disse ela,
indignada, tentando tirar a mão da de David.
David soltou-a e virou-se para Rane.
— Você tem que aborrecer Cindy, logo hoje?
— Eu o paguei para lhe dar aulas de canto, David,
mais nada. A sua vinda aqui se deve pura e
simplesmente a negócios, e é bom você não se esquecer
disso. Já está na hora de irmos, não acha?
— Acho.
Virando-se de novo para Cindy, David ofereceu-
lhe o braço. Sem olhar para o marido, ela deu um passo
na direção do rapaz.
Dedos de aço fecharam-se em torno de seu pulso.
— Eu sou perfeitamente capaz de acompanhar
minha própria esposa — Rane rugiu para David.
Antes que Cindy tivesse noção do que estava
acontecendo, seu braço já estava no de Rane e David
contemplava-os, muito corado. Ela sentiu pena dele, mas
sentiu mais pena de si mesma. Um simples toque do
marido bastava para deixá-la emocionada, e foi
tremendo da cabeça aos pés, que o acompanhou para
fora da suíte. David seguiu-os em silêncio.
O concurso seria realizado num clube famoso, e
Cindy estremeceu, quando Charles parou em frente do
luxuoso edifício. Rane ajudou-a a descer, e ela teve a
impressão de surpreender um brilho preocupado nos
olhos cinzentos, quando colocou a mão gelada na dele.
Naturalmente, se ele estava preocupado, só poderia ser
por medo de ela falhar e terem que adiar o divórcio.
Eles foram conduzidos a um salão com um palco,
onde vários homens já estavam esperando.
— Aqueles são os encarregados da parte recreativa
de vários hotéis da cidade — Rane explicou-lhe. — Cante
para eles. A audiência lá atrás só vai ter importância,
quando você estiver contratada.
Nervosa, Cindy fez que sim. Queria agradecer-lhe
pelo aviso, mas foi impossível; sua voz estava presa na
garganta. Ele então entregou-a a David, que a levou para
uma área atrás do palco, onde os concorrentes deveriam
esperar sua vez de se apresentar.
O primeiro a ser chamado foi um rapaz; em
seguida, foi uma garota que Cindy havia conhecido no
estúdio de David. Ela subiu ao palco tremendo, mas,
assim que começou a cantar, portou-se como uma
profissional. Quando voltou, David abraçou-a e
cumprimentou-a, dizendo estar certo de que ela seria
contratada.
Cindy foi a próxima a ser chamada. Com o coração
batendo forte e os joelhos moles, ela subiu ao palco
tentando aparentar a maior calma possível. Nunca usara
um microfone, mas David lhe dissera para agir com
naturalidade e não colocar a boca muito perto dele, por
isso segurou-o a alguns centímetros do rosto e esperou a
orquestra começar. Depois, lembrou-se do restante das
instruções de David e fez um sinal para o maestro que,
já sabendo a canção que ela havia escolhido, levantou a
batuta para dar início à música. No momento exato,
Cindy entrou, e sua voz pura ressoou pelo ambiente,
contando a história trágica da moça que havia perdido o
homem amado.
Rane estava sentado entre os representantes dos
outros hotéis e, seguindo o conselho dele, Cindy cantou
apenas para aquele grupo de homens, em especial para
ele. Aquela era a última vez que estariam juntos, e ela
desnudou a alma, declarando seu amor com as palavras
da canção, numa voz que expressava toda a tristeza de
um amor não correspondido.
Quando a última nota da romântica balada ressoou
pelo ar, Cindy abaixou a cabeça para esconder as
lágrimas e esperou, trêmula e ansiosa. Por um ou dois
minutos, nada se ouviu. Apavorada de medo de ter
falhado, ela olhou para a audiência, que se levantou
como se fosse uma só pessoa, aplaudindo-a delirante de
entusiasmo.
— Bis! Bis! — eles gritavam, e ela virou-se para
David, apreensiva. Não tinha preparado outra canção,
mas quando ele lhe fez sinal para continuar cantando,
deu à orquestra o nome de uma balada conhecida e o
maestro começou.
Mais uma vez, Cindy expressou com o canto toda
a mágoa e o amor que sentia, lutando para conter as
lágrimas que faziam seus olhos brilhantes como pedras
preciosas. No fim, o aplauso foi ensurdecedor, e ela não
precisou que ninguém lhe dissesse, para saber que sua
carreira estava lançada. Mais triste que triunfante, olhou
para onde Rane estava, exatamente a tempo de vê-lo
levantar-se e sair. Ele também sabia que sua carreira fora
lançada, e provavelmente estava se sentindo aliviado;
agora, poderia livrar-se dela sem remorsos.
Virou-se então para David, mas ele também havia
conseguido o que queria e, já totalmente esquecido dela,
dedicava toda a atenção a outra aluna, que deveria se
apresentar em breve.
Quase cega pelas lágrimas, Cindy recolocou o
microfone no suporte e caminhou para a escada.
Exatamente no momento em que ia pisar no primeiro
degrau, o salto de sua sandália soltou-se e ela caiu para
a frente.
— Meu bebê! — gritou, assustada, levando as mãos
ao ventre.
No instante seguinte os braços de Rane fecharam-
se em torno de seu corpo.
— Cindy, você está bem?
Envergonhada e aliviada, ela encarou-o, ao mesmo
tempo em que a audiência rompia num aplauso
delirante.
— Eu... eu estou bem. Não precisa se preocupar.
Você agora é um homem livre. Pode se divorciar de mim.
— Eu, livre?! Eu nunca conseguirei me livrar de
você.
— Ponha-me no chão por favor — Cindy pediu
baixinho, embaraçada por causa dos olhares curiosos
que estavam recebendo.
Abruptamente, Rane colocou-a no chão. Nesse
instante outro concorrente foi chamado. A atenção do
público desviou-se para o palco e, agarrando-a pelo
braço, ele levou-a para fora.
— Solte-me — murmurou ela, os olhos fixos nas
pessoas que passavam ao lado deles, na calçada
barulhenta e brilhantemente iluminada pelas luzes de
néon. — Tenho que voltar para saber o resultado do
concurso.
— Você vai vencer, pode estar certa. Só que, por
um bom período, acho que só vai cantar para mim. Sua
preciosa carreira terá que esperar. O que foi mesmo que
você disse quando estava caindo, a respeito de um bebê?
Atônita, Cindy olhou-o. Não se lembrava de ter
dito alguma coisa, só de ter sentido um medo horrível de
perder o bebê. O bebê do qual não queria que ele tomasse
conhecimento. O bebê que era a única coisa que dele lhe
restava e que agora queria com todas as forças de seu
coração.
Mas o bebê era dele também e, apesar de nunca ter
tido a intenção de lhe falar sobre isso, agora não tinha
outra alternativa. Além disso, mesmo que mentisse, ele
logo descobriria a verdade.
— Eu estou esperando um filho... um filho seu —
confessou, a voz cheia de amargura. — Mas não precisa
se preocupar. Isso não fazia parte do nosso trato, e não
tentarei usar meu filho para prender você. Vou amá-lo e
criá-lo sozinha. Pode pedir o divórcio quando quiser e...
e... e casar-se com Rita.
— É claro que eu não lhe darei o divórcio nessas
circunstâncias. Não seja tola! Está fora de cogitação, com
um bebê a caminho.
— Não vai me dar o divórcio? Você é quem quer o
divórcio, por isso não finja que está me fazendo um
grande favor! E também não deixe que um bebê que
ainda nem nasceu atrapalhe os seus planos!
— Mas ele está atrapalhando os seus, não está? —
Rane quase gritou, agarrando-a pelos ombros com
violência. — Você saiu das montanhas, chegou a Las
Vegas e quase conseguiu iniciar sua carreira de cantora.
Pensou que todos os seus sonhos tinham se realizado, e
agora... Agora, o bebê de um homem que você nem ama
apareceu! Isso arruinou os seus planos, não foi?
Cindy livrou-se com um safanão, e foi só com
muito esforço que conseguiu impedir-se de esbofeteá-lo
ali mesmo, em plena rua.
— Os meus planos? Os meus planos?! Você deve
estar louco! Eu nunca quis nada, além de você. Que
grande tola eu era! Meu sonho era ter alguém que me
amasse, mas você só riu de mim, o tempo todo. Pois bem,
eu agora vou lhe contar uma coisa realmente engraçada:
eu nunca quis ser cantora. Nunca, entendeu? Eu só
queria ser sua esposa. E era tão tola, que pensei que você
tinha se casado comigo por amor. Já ouviu tolice maior,
em toda a sua vida? Mas agora eu não me importo mais.
Pode ir em frente e casar-se com Rita. Está me ouvindo,
sr. Rane Randolph? Eu não me importo mais!
O rosto banhado em lágrimas, ela virou-se e
começou a correr pela rua, tropeçando várias vezes, por
causa do salto do sapato que havia se soltado. Passos
fortes logo ecoaram atrás dela e, em poucos segundos,
Rane alcançou-a e segurou-a, forçando-a a encará-lo.
— Quer ouvir mais alguma coisa a respeito de
tolos, sra. Randolph? Pois eu vou lhe falar a respeito de
um grande tolo: eu mesmo! Eu nunca tive intenção de
me casar com Rita, e fui estúpido o suficiente para achar
que poderíamos fazer nosso casamento dar certo. Já
ouviu tolice maior? E outra coisa: eu te amo!
— Não é verdade. Você não me ama! Na noite do
meu aniversário você me disse...
Rane abraçou-a com força.
— Aquela noite você me deixou tão zangado, que
eu seria capaz de dizer qualquer coisa. Nunca houve
nada sério entre mim e Rita. Nós crescemos juntos e
gostamos muito um do outro, mas sempre soubemos
que nunca passaríamos de bons amigos. Nunca senti por
ela o que sinto por você.
Cindy piscou, para afastar as lágrimas.
— Você deveria ter dito isso a Rita. Acho que ela
não sabe. Ela me disse que você lhe fez confidencias a
respeito de nosso casamento, contando que foi forçado a
se casar.
— Contei mesmo, mas só para que ela pudesse
entender como tudo seria difícil para você. Eu queria que
Rita se transformasse em sua amiga e confidente, pois
sabia que seria difícil, para você, enfrentar sozinha a
transição entre a vida nas montanhas e a vida em Las
Vegas, como minha esposa.
— Então... então você não lhe disse que pretendia
se divorciar de mim?!
— Claro que não! Quando chegamos a Las Vegas,
eu já sabia que queria que nosso casamento durasse. O
que foi que Rita lhe disse?
Cindy tentou se lembrar da conversa que tivera
com a ruiva, no dia em que saíram para fazer compras.
Rita tinha sido fria e hostil, mas, na verdade, não lhe
dissera que Rane pretendia pedir o divórcio. Ela mesma
é que tinha imaginado toda a história, a partir de uma
leve insinuação da outra.
Rane abraçou-a de novo.
— Logo depois que nos casamos, eu pensei mesmo
que queria o divórcio. Quando a conheci, achei-a tão
meiga e delicada, que fiquei encantado! Eu estava
cansado de mulheres experientes e pretensiosas, e você
foi uma agradável surpresa. Depois, quando fomos
surpreendidos pelo seu ex-namorado, achei que você
tinha armado uma cilada para se casar comigo e sair das
montanhas, e fiquei furioso. Estava cheio de ódio
quando a possuí em nossa noite de núpcias, mas daí em
diante comecei a achar que a tinha julgado mal e quis dar
uma chance ao nosso casamento. Foi por isso que fiz
amor com você na suíte e dei-lhe os anéis. Então você fez
aquela loucura de gastar quatro mil dólares em roupas,
e disse que as tinha pago com seu corpo. Achei que havia
sido feito de tolo, novamente, mas mesmo assim não tive
coragem de mandá-la embora. A verdade é que eu não
podia suportar a idéia de vê-la nos braços de outro
homem, do mesmo modo que não podia suportar viver
ao seu lado e não tê-la. Lançá-la como cantora foi a única
solução que encontrei para o problema, principalmente
porque estava certo de que era isso que você queria.
— Oh, Rane, temos sido tão tolos! Eu pensei que
você havia se casado comigo para se divertir, mas
mesmo assim continuei a amá-lo. E fui tola o bastante
para deixar que fizesse amor comigo pela segunda vez,
porque tinha esperança de conquistá-lo. Então, você me
mandou fazer compras com Rita no dia seguinte, e eu
achei que estava querendo me pagar pela noite anterior,
para poder se divorciar de mim, sem sentir remorso.
Cindy recomeçou a chorar e ele beijou-a na testa,
murmurando palavras de carinho.
— Não chore, querida. Nosso amor vai curar todas
as mágoas.
Seus lábios tocaram-se de leve, e Cindy lembrou-
se do quadro que havia jogado numa gaveta do armário,
com tanto desgosto. Eram verdadeiras as palavras que
nele tinha bordado: o amor realmente é capaz de curar
tudo.
"Preciso pendurá-lo em nossa casa", ela pensou,
um momento, antes que os beijos apaixonados de Rane
bloqueassem sua capacidade de raciocínio,
transportando-a para o mundo mágico do amor.

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