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A culinária na obra de Lévi-Strauss

Lecticia Cavalcanti
Do Recife (PE)

Claude Lévi-Strauss estaria fazendo neste sábado, 28 de novembro, 101 anos. O


sentimento de perda com sua partida, no último 31 de outubro, é grande especialmente
no Brasil, por ter aqui se dado parte de sua formação como antropólogo. Tudo começou
quando, entre 1935 e 1939, conviveu com as tribos Kadiweu, Nambikwara, Tupi-
kawahib e Bororo, na região central do Brasil. Ali conheceu bem nossos índios: de
acordar com eles aos primeiros raios de sol, de conversar sobre seus deuses, de comer
carne crua (seca ao sol) com pau puba, de sofrer com os mosquitos de todo fim de tarde,
de ver com seus próprios olhos um céu escuro e brilhante que os habitantes das cidades
grandes jamais conhecerão.

A partir dessa experiência compreendeu não haver diferença entre o pensamento do


índio e do homem civilizado. Para ele, "não se trata do pensamento dos selvagens e sim
do pensamento selvagem. Uma forma que é atributo de toda a humanidade e que
podemos encontrar em nós mesmos" (em "Pensamento Selvagem", 1962). Para a visão
européia, então dominante, que considerava esses "selvagens" como intelectualmente
inferiores, acabou sendo uma revolução. Aos poucos, foi então sedimentando seu
método estruturalista - pelo qual todos os homens (pessoas simples ou doutores
letrados) têm uma forma de raciocinar que funciona da mesma maneira; passando do
estado "natural", ao "cultural", quando começam a "usar a linguagem, construir objetos
e aprender a cozinhar".

Os hábitos alimentares estão presentes por toda sua obra. Sobretudo em "Mitológicas"
(escrito entre 1964 e 1971), em que analisa 813 mitos de diferentes povos indígenas do
continente americano, definindo seu grau de desenvolvimento a partir do uso dos
alimentos - o "cru" (natural), transformado em "cozido" (culturais), que depois volta à
natureza sob a forma de "podre", em uma relação que denominou "triângulo culinário".
O trabalho é dividido em quatro volumes. "O Cru e o Cozido" (vol. I) fala da origem da
culinária, do fogo, da cocção dos alimentos, da carne de caça, das plantas cultivadas.

"A vida civilizada não requer apenas o fogo, mas também as plantas cultivadas que esse
mesmo fogo permite cozinhar"; e assim "começamos a compreender o lugar realmente
essencial que cabe à culinária na filosofia indígena: ela não marca apenas a passagem da
natureza à cultura; por ela, e através dela, a condição humana se define com todos os
seus atributos, inclusive aqueles que - como a mortalidade - podem parecer os mais
indiscutivelmente naturais". "Do Mel às Cinzas" (vol. II) trata das origens e do uso do
mel e do tabaco, no livro representado por "cinzas". "A Origem dos Modos à Mesa"
(vol. III) fala de receitas, dos modos de consumo, das regras de educação - próprias não
apenas do ato de comer, mas também do viver em sociedade.

"Saber portar-se à mesa é saber portar-se socialmente", e isso diz comparando as figuras
da canoa (que aproxima culturas distantes) e do fogo (essencial na formação cultural de
um povo). Finalmente, em "O Homem Nu" (vol. IV) ensina que "dentre todas as
técnicas culinárias, o forno de terra se apresenta como a que manifesta de modo mais
pleno uma homologia formal e íntima entre a infra-estrutura e a ideologia ... a cada vez
que é acendido, ele comemora majestosamente o conflito inicial, imagem antecipada de
todos os que viriam a seguir, e cujo resultado foi a conquista do fogo". Depois
confessaria que essa obra "mobilizou meu espírito, meu tempo, minhas forças, durante
mais de vinte anos ... eu realmente vivi em um outro mundo".

Lévi-Strauss dizia em 1955 ("Tristes Trópicos") que "não há mais nada a fazer: a
civilização já não é essa flor frágil que se preservava". Agora, perto do fim, se
confessava desiludido. Por se considerar vivendo em "um mundo ao qual já não
pertenço. O que eu conheci, o que eu amei, tinha 1,5 bilhão de habitantes. O mundo
atual tem 6 bilhões de humanos. Já não é mais o meu mundo". Afinal, e bem visto, não
era mesmo. Era agora um mundo melhor, precisamente por conta de sua luz.

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