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É proibido, proibir - A Voz e o Nó na garganta de Caetano Veloso

de Paula Carrara

O ano é 1968. A paisagem é o pedaço de terra desenhado com linha política imaginaria
chamado Brasil. Um pais território-fabula, que reúne em sua Republica Federativa diversidades do
Oiapoque ao Chuì. A temperatura è amena, típico calor do Rio de Janeiro em setembro, com
chuvas esparsas para refrescar o ambiente. O ar è pesado, cheiro de chumbo concentrado dos 04
anos que já duram a ditadura militar. Censura e revolta dividem o mesmo banco de ônibus com o
ócio americanizado e sonho-embalado-à-la-burgues (e sem açúcar, por favor!). O sonho do carro,
do álcool, do petróleo “è nosso” guia parte da população que nem mesmo sabe que a liberdade
esta cerceada, que os tempos de censura extrema se aproximam, que abrir a boca é o mesmo que
abrir-se uma vala.

Nota da autora – O termo ‘vala’ significa escavação destinada


a acomodar canos de água ou esgoto ou gás; ou cova extensa
que nos cemitérios serve para enterro gratuito. Da vala se
escapa cortejando o exílio. Ou simplesmente se cala.

O ano é 1968, e a população brasileira se reúne em torno da TV para ver os grandes


Festivais da Canção. Cabelos curtos e compridos, apoiados em cabeças e corpos jovens se reúnem
nas platéias televisionadas ao vivo, olhos vidrados no palco onde o show acontece. Em preto e
branco a memória dos festivais destila suas notas, timbres e ritmos: musica de entreter, de
dançar, de ‘bossanovar’, de ser Popular e Brasileira, de insistir, resistir e denunciar, dizendo baby
baby, linda, sabià, caminhando e cantando, vou voltar sei que ainda vou, sem lenço sem
documento, olha a roda gigante, oh José, olha, olha, é proibido proibir! É proibido, proibir!

https://www.youtube.com/watch?v=m40Hu10FH74

Caetano Veloso e os Mutantes sobem ao palco. Seus instrumentos saem da convenção


musical aportando os pés no Tropicalismo incomodo, desestruturante, renovador. Caetano se
apresenta um corpo esguio, bahiano, “com um figurino protopunk, combinando uma roupa de
plástico a colares feitos de fios elétricos, correntes grossas e dentes de animais grandes, como um
adereço de macumba futurista”, (WISNIK, 2005). Seu corpo-voz erótico reproduz os movimentos
do encontro sexual, pélvis em movimentos arredondados, alternância entre tensão e relaxamento.
Seu baixo-ventre incita ancestralidade e sua presença desejantemente andrógena canta:

Me dê um beijo, meu amor, Eles estão nos esperando, Os


automóveis ardem em chamas, Derrubar as prateleiras, As
estantes, as estátuas, as vidraças, louças, livros, sim...

‘Eros’, ‘logos’ vísceras e política exalam dos limites de sua pele. A garganta é órgão
profundo, carne que abraça o ar, o timbre, a voz escura que ‘transando’ livremente com a
intransigência – essa fiel descobridora de mudanças – diz:

Eu digo sim! Eu digo não ao não! Eu digo, é probido probir!

é probido probir!

é probido probir!

A platéia já de inicio grita, vaia, joga tomates, objetos, pedaços de madeira. A diferença, a
visibilidade do impulso livre, os cabelos o cheiro o suor de Caetano, irritam, incomodam
aborrecem parte da platéia que dà as costas aos músicos. As guitarras trazem fúria e não diversão,
e nem elas param. Os Mutantes também voltam as costas à platéia, mas a musica não para, não
para, não para, acende. “Eu digo è proibido, proibir”, exala Caetano com sua voz nó na garganta
“Vocês não estão entendendo nada nada nada”. As palavras texto-discurso-canção de Caetano são
plenas da fisicalidade negada à voz desde os metafisicos:

A desvocalização do logos inaugurada por Platão, além de


fixar o primado ontológico do pensamento sobre a palavra,
tende, sobretudo, a liberá-la da corporeidade do sopro e da
voz. Radicada nos órgãos da respiração e fonação, a palavra
alude às vísceras, ao corpo profundo onde fervem os humores
da paixão. Por sua vez, tal como sugere Platão, o pensamento
está na posição bem mais nobre da cabeça, naquela parte
divina do crânio que constitui o cérebro. Para o filósofo, a
centralidade do pensar acaba, assim, orientando o imaginário
fisiológico referente ao falar. Quando é forçada a tratar do
posicionamento corpóreo da palavra, a metafísica propende a
colocá-la na boca, a pouca distância do cérebro, sem se ater a
detalhes relativos à respiração. O papel subordinado da voz
de vocalizar os significados se insere na coerência do desenho.
(Cavarero, 2011)
O ano è 1968 e a voz de Caetano è pulsão, fonação, vísceras e política. É sexo, desejo de
justiça, desrespeito, despeito. A platéia ainda vaia. Outra platéia aplaude. A voz parece que falha,
mas ao que chamar de falha? A transparência sonora que deixa imaginar o músculo da garganta se
enrolando ao som, deglutindo o desapontamento-vaia para recuspi-lo palavra dita sobre a base da
musica:

Mas é isso que é a juventude que diz que quer tomar o poder?
Vocês têm coragem de aplaudir, este ano, uma música, um
tipo de música que vocês não teriam coragem de aplaudir no
ano passado! São a mesma juventude que vão sempre,
sempre, matar amanhã o velhote inimigo que morreu ontem!
Vocês não estão entendendo nada, nada, nada,
absolutamente nada. (...) Mas que juventude é essa? Que
juventude é essa? Vocês jamais conterão ninguém. Vocês são
iguais sabem a quem? São iguais sabem a quem? Tem som no
microfone? Vocês são iguais sabem a quem? Àqueles que
foram na Roda Viva e espancaram os atores! Vocês não
diferem em nada deles, vocês não diferem em nada. E por
falar nisso, viva Cacilda Becker! Viva Cacilda Becker!

Caetano discursa, a musica desanda, mas não para. A juventude platéia está dividida,
separada em grupos onde a diferença é fonte de guerrilha e desencontro. O Festival, o concurso, a
melodia já não importam – a obra está no pulsar pela transformação, na afirmação enquanto
acontecimento performativo político – sua voz nó na garganta é mobilizadora. Caetano
posicionou-se um corpo-voz em revolução. Ele não foi o único, não será o único. A platéia vaia.
Vaia ainda, still, ancora. The people ainda, still, ancora. A vala ainda, still, ancora. Mas também o
corpo, a curva, as coxas, garganta, espaços vazios e cheios ainda, still-still-still, ancora. Ela-ele
disse, disse-cantou sim:

Sim eu digo sim! Eu digo não ao não! Eu digo é proibido


proibir!!!

Diz Caetano, ela-ela-tu diz. Diz ainda. Still. Ancora (O som das guitarras vai ficando mais
alto, mais, mais alto, até irradiarem uma dissonância final).

Bibliografia

Wisnik, G. Folha explica Caetano Veloso. Publifolha, São Paulo 2005.

Cavarero, A. Vozes Plurais – Filosofia da Expressão Vocal. Editora UFMG , Belo Horizonte 2011.

Paula Carrara, born in São Paulo, Brazil, is a theatermaker and performer who explores
intercultural theatrical practices and develops new forms of staging, with a focus on voice
practices. As a performer she already worked among Cia.Les Commediens Tropicales, Cia. Das
Atrizes, Georgete Fadel, Joao das Neves. She holds a master degree in Actor’s Studies from the
University of São Paulo and publishes it as a book in 2016 [Body Voice Listening] – reflections
about actor’s parctice. (Lamparina Luminosa) More: paulacarrara.com

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