Você está na página 1de 2

Minhas pegadas...

Em alguns desses que são agora 50 anos do Colégio Equipe

Paula Carrara

Vejo um par, quartetos e mesmo hordas de pés e pezinhos que caminham lado a lado, alguns sobem
saltitando as escadas, outros param em pequenos grupos de conversa. E há ainda os que estacionam
apoiados somente nas pontinhas para fazer encaixar os livros da ultima aula na primeira linha de armários
perto do chão – e esses geralmente geram congestionamentos e acúmulos populacionais no meio do
corredor acompanhados de pequenos atos sonoros de reclamação e risos. O caos, as risadas, os segredos, o
palavrão que escapa inadvertidamente nos corredores da escola – é a vida que pulsa e que move. Levam
alguns instantes para que da presença de dezenas de corpos se faça o espaço, mas não o vazio. Nos
corredores do Equipe não habitam silêncios-imóveis . No armário a intervenção do grupo de estudos
feministas, o jornal do grêmio afixado à parede, e em cada sala aparentemente quieta há uma pergunta,
talvez a mesma que me acompanha desde meu primeiro dia de trabalho no Equipe: “como se ensina a
perguntar”? Meu nome é Paula, e eu sou professora de teatro do Fundamental II.

***

A aula começa, mas geralmente antes do tempo eles já estão na sala (ou na porta, pendurados na janela...
já não sei muito bem... a memória prega cada peça na gente!). Uma parte do grupo senta num ‘quase’
circulo ‘quase’ bem-feito, enquanto a outra parte ainda tira os sapatos antes de entrar na sala e outros
ainda se encontram distantes da porta e perguntam insistentemente se “pode beber água, porque na aula
de educação física teve teste de corrida hoje, e eu to acabada (...)” e.. bem, e nesse momento chega J. para
perguntar pela terceira vez consecutiva “Hoje eu SOU teatro ou artes”, se referindo à divisão das turmas de
um mesmo ano entre as duas disciplinas artísticas. Eu mal tenho tempo de levantar o olhar enquanto digo
“Água, sim, pode” ao mesmo tempo em que O.. diz a J.: “Na terça ERA teatro ou artes? – Teatro. – Então
hoje você É artes! – Ah! Valeu”, e J.sobe as escadas afobado e satisfeito por ter sido ajudado. Finalmente
toca o sinal, os últimos vão caçando seus lugares na roda, sentados no chão, ao que R. pergunta (pelo
quarto ano consecutivo): “Tem que alternar menino e menina”? Por um momento meu pensamento
escapa – é curioso ver R., quase dois metros de altura, timbre grave a gravíssimo recentemente adquirido
dizer “menina/menino”. Novamente, não faço em tempo de responder, e ouço O. que afirma: “Sempre! A
gente tem que alternar inteligências masculinas e femininas!”. Todos riem. Eu também. Aos poucos o riso
vai cedendo à pausa. O silencio se faz para que juntos possamos começar a jogar. Confesso que ainda hoje,
na distancia dos meses que me separam dessa aula, comemoro a construção desse silencio conquistado.

***

A educação não é um ato construído de certezas – e essa è ambiguamente uma certeza que se fez bagagem
no meu corpo de educadora do Equipe. Há caminhos, percursos, há ciência na educação, há a experiência
de quem veio antes, os livros, o estudo, o re-estudo, há o erro, a reflexão sobre o erro, o ajuste e as
tentativas necessárias, há o cansaço no fim do dia, da semana, do semestre, do ano, e há o desejo, a
inquietação, a socialização, o planejamento, o planejamento, o planejamento, e há o estudo sobre como
fazer um planejamento, e a aula, e o intervalo, e a conversa com os colegas (e que colegas! eita povo
arretado admirável porreta que dà orgulho de trabalhar junto), e hà a frustração, a aula que não deu certo
(hoje não deu certo, não deu...), e de novo há o cansaço, mas no ato educativo a gente ta ali, em pé. Pé. A
gente não arreda pé. Porque certeza, certeza mesmo, de fato não da pra ter muita. Não a certeza que
imobiliza, congela, que não deixa imaginar além. Quanto mais certeza, mais difícil é tirar o pé do chão. E a
gente gosta mesmo é de voar, seja em “vida vivida ou vida inventada”, dando passo maior que a perna e
criando mundo e seres e paisagens numa “pasta vermelha”, e de pernas pro alto no grito de guerra de
“Hooligans e Picachoo”(HOOOLIGANS!!!), e de sentir o tremor nas pernas durante as “Olimpiadas de
Matematica”, e de ficar atento a não meter os pés pelas mãos no”Laboratorio de Ciencias” , e de pisar
mansinho nos corredores antes de invadir uma sala para um “Flashmob”. A gente escolhe ‘Problematizar’,
investigar a estrada da pergunta, sabendo que o mundo não é matéria pronta, definida, e que as estradas a
percorrer são inúmeras, além de todas aquelas que podem ser abertas – e que esta é uma construção
solidaria.

***

Confesso - ainda que protegida pela distancia que a letra cria entre eu e você - tenho que ser sincera. Como
educadora do Equipe, cultivei comigo uma outra certeza. Re-vejo na memória os ‘moleques’, as ‘minas’, os
‘caras’, a ‘galera’...Revisito os rostos, as aulas, os discursos, as cenas, as conversas... E confio que, no futuro,
não existirão silêncios-rigidos, mas a potencia do encontro sem palavras. Também acho que não existirão
silêncios-amedrontados, mas palavras coletivas, escutadas, discutidas e, sobretudo, problematizadas. E
mais que tudo, confio cegamente que os silêncios não serão nunca mais imóveis, privados da possibilidade
de se movimentarem, de traçarem caminhos ao infinito, seja guiados pela organização ou mesmo pelo
caos, o mesmo caos que deixa entrever a potencia da vida em cada passo dado pelos corredores da escola.

Você também pode gostar