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E é desse poder que se investe Macabéa ao receber do pai, Judas, uma máquina
de escrever antiga. Em cena seus dedos ‘atiram’ letra a letra seu próprio nome, M-A-C-
A-B-É-A. Em sua ação, a personagem anuncia uma tentativa de fugir ao anonimato que
generaliza as pessoas em números sem rosto, em categorias uniformizantes como a dos
“pobres de sempre”, diz o texto, “que os jornais e as novelas perfuram as mãos com
pregos toda sexta-feira santa”. A personagem – que cabe notar, leva o mesmo nome do
grupo – se dedica a datilografar cartas a quem precisa, inclusive aos seus. Cada carta se
anuncia com uma espécie de princípio: “Uma dose de chuva basta para que se diga da
tempestade toda”. Ou, ao menos, parte dela. As teclas batidas em cena automaticamente
remetem aos sons de tiro, mas aqui eles não partem das armas da nossa polícia
militarizada, não miram na distância os estudantes secundaristas mobilizados, os
trabalhadores em greve ou os usuários de crack que se concentram no centro da cidade.
Esses são os sons das batidas que insistem em se afirmar como singularidade, que
defendem a importância do sujeito (principalmente o economicamente excluído) e que
vêem no reconhecimento da unicidade de cada história um importante sinal de
resistência. Nas cartas, o registro da nostalgia de quem deixa sua terra não por desafeto,
mas na peregrinação pela plenitude da vida, promessa que jamais se completa. A vida
segue nesse contínuo arribar.
Como essa narrativa se faz viva em cena? O ato de narrar traz consigo um
constante desafio: trazer a público a palavra de um outro, presentificar o que pertence a
outro tempo, outro lugar e até outra pessoa. E, nesse exercício, o narrador não persegue
a ilusão da presença de um personagem, mas direciona sua própria presença às palavras
dos que estão ausentes. Não é a toa que algumas histórias fixem mais à nossa mente – a
presença do narrador imprime no que diz seu próprio caráter e, acredito, está aqui
maior riqueza e o maior desafio de narrar: dar-se a ver enquanto revela o outro.
Assistindo ao espetáculo, fui revisitada por perguntas que comumente visitam a cena
teatral, especificamente o trabalho do ator, por exemplo: Quando eu (ator) permito que
o dizer do texto seja um dizer sobre mim? Onde aparecem as impressões que o texto
escrito deixou sobre o meu corpo (corpo do ator)? Que perguntas esse texto me faz (a
mim, ator)? Onde minha história e minhas ideias ressoam no encontro com as histórias
ouvidas das pessoas do Boqueirão? Como o texto se faz palavra viva no encontro com o
espectador? Durante a peça, há momentos em que o texto flui – pessoalmente os detecto
quando me percebo diretamente conectada ao que o ator diz, como se justeza do
conjunto de elementos da cena e a palavra do ator me prontificassem à escuta. Foram
momentos em que me senti convidada a aproximar olhos e ouvidos da cena e
compartilhar, especificamente nessa peça, da sutileza da experiência humana. Mas ainda
há momentos em que o dizer do ator me distancia– momentos em que o grito e a
intensidade emulam um envolvimento com o presente ou sinalizam uma determinada
dor ou indignação. O trabalho do ator sobre a palavra é de uma artesania constante,
sobretudo quando ela se dá num território desafiante como é esse de dar voz poética a
uma situação violenta e atual.