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A palavra que nos move

Ou uma leitura da peça Epístola.40, do Núcleo Macabéa

Por Paula Carrara

Meu primeiro contato com Epístola.40 – carta (des)armada aos atiradores se


deu pelo texto escrito. Me deparei com esse trançado de referências míticas –
anunciadas prontamente no título pela presença da palavra ‘Epístola’ – e de
contaminação literária no desvelar de um acontecimento atual: o despejo de moradores
duma favela da Zona Sul de São Paulo. Para tanto, o grupo, que já reside artisticamente
na Favela do Boqueirão há alguns anos, se dedica à coleta de entrevistas dos moradores
e faz da narrativa oral o eixo de sua criação. ‘Deitar em letra’ a experiência transmitida
através das entrevistas traz foco às vozes que nos habituamos a ver excluídas dos anais
da história oficial, sobretudo numa cultura onde o conhecimento é validado por sua
existência enquanto palavra escrita.

O texto registra a violência e a arbitrariedade da expulsão dos moradores de suas


casas, alienando-os o direito à moradia em nome de uma ética que, com desgosto
assistimos, orienta inúmeras ações do estado: o direito à posse e a defesa da
propriedade. O texto se faz denúncia, testemunho de uma opressão que reverbera forte
em épocas de recrudescimento do conservadorismo. E não só. No dizer de seus cinco
personagens, o texto abre mão da coloquialidade cotidiana e assume um complexo
desenho resultado do cruzamento entre lírico, épico e dramático, para dar contorno a
uma experiência de mundo que não é apenas dura, mas também sensível. “Córnea. Íris.
Cristalino. Esclerótica. Retina. Coróide. Nervo óptico. (...) Tudo é olho”, diz Macabéa,
abertura ao mundo que recebe ao mesmo tempo que se revela – olho-testemunha, olho-
janela d’alma, que vê ao mesmo tempo em que é visto.Também o dizer incorre em
possíveis pares de ação, como o simples fato da palavra que emito ressoar em mim ao
mesmo tempo em que procura destinatário no outro. Eu digo e escuto. E o que eu digo
revela um tanto de mim, seja pelo conteúdo, seja pela forma do dizer. E o que se diz e o
como se diz pode comunicar, informar, entreter, ilustrar, até ser banal. A palavra pode
muito: é mediadora entre um ‘eu’, e o ‘mundo’, um ‘eu’ e outro ‘eu’. A palavra-carta-
despejo-documento-oficial manda embora a família que começou a formar raízes, tira o
chão e põe em nova andança quem não tinha escolhido andar. A palavra é essa nervura
entre a pessoa e o mundo – dita o verbo, constrói.

E é desse poder que se investe Macabéa ao receber do pai, Judas, uma máquina
de escrever antiga. Em cena seus dedos ‘atiram’ letra a letra seu próprio nome, M-A-C-
A-B-É-A. Em sua ação, a personagem anuncia uma tentativa de fugir ao anonimato que
generaliza as pessoas em números sem rosto, em categorias uniformizantes como a dos
“pobres de sempre”, diz o texto, “que os jornais e as novelas perfuram as mãos com
pregos toda sexta-feira santa”. A personagem – que cabe notar, leva o mesmo nome do
grupo – se dedica a datilografar cartas a quem precisa, inclusive aos seus. Cada carta se
anuncia com uma espécie de princípio: “Uma dose de chuva basta para que se diga da
tempestade toda”. Ou, ao menos, parte dela. As teclas batidas em cena automaticamente
remetem aos sons de tiro, mas aqui eles não partem das armas da nossa polícia
militarizada, não miram na distância os estudantes secundaristas mobilizados, os
trabalhadores em greve ou os usuários de crack que se concentram no centro da cidade.
Esses são os sons das batidas que insistem em se afirmar como singularidade, que
defendem a importância do sujeito (principalmente o economicamente excluído) e que
vêem no reconhecimento da unicidade de cada história um importante sinal de
resistência. Nas cartas, o registro da nostalgia de quem deixa sua terra não por desafeto,
mas na peregrinação pela plenitude da vida, promessa que jamais se completa. A vida
segue nesse contínuo arribar.

Como essa narrativa se faz viva em cena? O ato de narrar traz consigo um
constante desafio: trazer a público a palavra de um outro, presentificar o que pertence a
outro tempo, outro lugar e até outra pessoa. E, nesse exercício, o narrador não persegue
a ilusão da presença de um personagem, mas direciona sua própria presença às palavras
dos que estão ausentes. Não é a toa que algumas histórias fixem mais à nossa mente – a
presença do narrador imprime no que diz seu próprio caráter e, acredito, está aqui
maior riqueza e o maior desafio de narrar: dar-se a ver enquanto revela o outro.
Assistindo ao espetáculo, fui revisitada por perguntas que comumente visitam a cena
teatral, especificamente o trabalho do ator, por exemplo: Quando eu (ator) permito que
o dizer do texto seja um dizer sobre mim? Onde aparecem as impressões que o texto
escrito deixou sobre o meu corpo (corpo do ator)? Que perguntas esse texto me faz (a
mim, ator)? Onde minha história e minhas ideias ressoam no encontro com as histórias
ouvidas das pessoas do Boqueirão? Como o texto se faz palavra viva no encontro com o
espectador? Durante a peça, há momentos em que o texto flui – pessoalmente os detecto
quando me percebo diretamente conectada ao que o ator diz, como se justeza do
conjunto de elementos da cena e a palavra do ator me prontificassem à escuta. Foram
momentos em que me senti convidada a aproximar olhos e ouvidos da cena e
compartilhar, especificamente nessa peça, da sutileza da experiência humana. Mas ainda
há momentos em que o dizer do ator me distancia– momentos em que o grito e a
intensidade emulam um envolvimento com o presente ou sinalizam uma determinada
dor ou indignação. O trabalho do ator sobre a palavra é de uma artesania constante,
sobretudo quando ela se dá num território desafiante como é esse de dar voz poética a
uma situação violenta e atual.

De fato, a própria peça parece se colocar num grande desafio. Ao adentrar o


espaço sou tomada por uma fragrância, que não sei se propositalmente ou não, me
remete automaticamente ao oriente. Em seguida, vejo os atores com figurinos que nos
remetem mais a um tempo passado que atual. Suas roupas e expressões estão carregadas
por um tom de terra, que me aproximam da imagem de ídolos antigos, ícones de barro,
enfim, imagens de um tempo e de uma tradição que não são exatamente as minhas –
nascida e criada já em ambiente urbano e industrial. Assim, ainda que eu saiba que o
despejo do qual se fala pertence aos nossos dias, o estranhamento com essas escolhas
me leva a uma reflexão: a impossibilidade do direito à terra é uma antiga fábula que se
repete. Ao longo da peça essa ideia é reforçada pelo conjunto de citações religiosas,
inclusive das imagens associadas à via sacra cristã. Os direitos básicos sempre foram
negados aos mais pobres, desde os tempos bíblicos, possivelmente até antes disso.
Nossa história, a da humanidade, conta com inúmeros exemplos de opressão de uns
sobre outros, e não vimos essa necessidade de diferença superada, longe disso. Ao
escolher por esse território mitológico, a encenação sem dúvida nos coloca frente ao
alargamento do problema mas, como em toda escolha, incorre também num risco: a de
fragilização de fricção com o real. Há cruzamentos muito interessantes que, do meu
ponto de vista, apontam uma vinculação que estimula o alargamento da leitura do
trabalho: o som da Tv ao fundo, a música moderna no aparelho eletrônico enquanto tio e
sobrinho conversam, a sombra provocada pelos fios de alta tensão entremeados, e
mesmo o gato do Pessoal do Faroeste que inadvertida e tranquilamente atravessa a cena.
Esses (e sem dúvida outros elementos que me fogem à memória) são como pequenas
âncoras que na oposição ao ambiente fabular dessa família migrante, ajudam a sustentar
o espanto com as situações de opressão também do agora. Para que as palavras nos
movam e mais, nos movam na direção que escolhermos. Seguimos.

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