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Perspectivas políticas e científicas acerca do ensino da sociologia

Adelia Miglievich Ribeiro 1


Flávio Sarandy 2

Apresentação

O ano de 2008 foi marcado por comemorações de boa parte da comunidade dos
cientistas sociais. Afinal, a sociologia reavia seu status de disciplina obrigatória, por força de
lei (Lei n° 11.683, de 2 de junho de 2008). Foi uma conquista há muito desejada. Mas haverá
garantias de que assim permaneça?
A nosso ver, entretanto, a permanência da disciplina no quadro das disciplinas
acolhidas tradicionalmente na matriz disciplinar para o ensino médio ainda demandará
intervenções da comunidade científica. A julgar pela história da disciplina, marcada por
intermitências em sua presença nos currículos escolares (Silva, 2004; Moraes, 2003) e
freqüente suspeição, vivemos um momento de cautela. Não há garantia de que a
obrigatoriedade se mantenha. Uma possibilidade de abordagem do problema é especularmos
sobre as condições para a permanência da sociologia como disciplina do ensino médio
brasileiro. Disciplina legítima, e não somente obrigatória do ponto de vista legal.
Como contribuição ao debate, sugerimos neste texto que a legitimidade da disciplina
advirá do sentido que lograrmos construir para ela. Neste empreendimento, a comunidade dos
cientistas sociais, ou sua parte interessada, com ênfase aos quadros universitários, tem um
papel singular a desempenhar, qual seja, a dedicação às investigações metodológicas que
envolvem seu ensino, num esforço de elaborar teoricamente suas potencialidades
educacionais; o que, vale dizer, significará construir a justificativa para sua presença no
ensino médio, afirmar argumentativamente sua relevância, estabelecer seus fins, seus
desdobramentos, sua metodologia própria. Assim, o sentido da sociologia na escola – ainda a
ser construído discursivamente nas experiências de comunicação entre professores de ensino
médio e pesquisadores das ciências sociais - abrange a fundamentação teórica da mesma e
implica a densificação dos debates acerca de seu ensino que passam a ser protagonizados

1
Doutora em sociologia pelo IFCS/UFRJ. Professora do Departamento de Ciências Sociais e do PPGCSO da
Universidade Federal do Espírito Santo – UFES. Membro da Comissão de Ensino da SBS (Sociedade Brasileira
de sociologia). Email: miglievich@gmail.com.
2
Doutorando na Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo – USP. Email:
flaviosarandy@yahoo.com.br.
2

pelos seus profissionais, quer nas escolas, quer nas universidades e institutos de pesquisa,
nenhum deles unilateralmente.
O projeto político de construção da disciplina e de seu retorno aos currículos escolares
não é decorrente duma necessidade inerente ou essencial à escola ou à própria disciplina. A
julgar pelas justificativas dadas até o presente e pelas resistências advindas da inclusão da
sociologia no quadro das disciplinas oferecidas no ensino médio, não temos sido muito bem
sucedidos em sua defesa – ao menos, não no plano discursivo. Pois que afirmar ser a
disciplina relevante para o desenvolvimento do pensamento crítico e para a construção da
cidadania é nadar na superfície e pouco contribui para esclarecer em quê, exatamente, a
disciplina se diferencia das demais e qual seu papel no sistema educacional. Afinal, os dois
objetivos citados, normalmente elencados quando se trata de justificar a disciplina, podem –
ou deveriam – ser alcançados por todas as disciplinas, objetivos inerentes à própria atividade
educacional que são.
Ora, não é por uma necessidade intrínseca à escola que podemos esperar a
permanência da disciplina na educação básica. Muito menos pelo “natural” interesse da
comunidade acadêmica dos cientistas sociais, como se pela presença das ciências sociais nos
cursos universitários decorresse a obrigação de sua transposição à escola. A legitimidade
social da sociologia como disciplina obrigatória do ensino médio brasileiro, única via para
garantir sua permanência, é projeto político e intelectual; uma construção que depende
essencialmente de nossa capacidade de construí-lo, teórica e politicamente.
Na esperança de colaborarmos com esta construção, retomamos algumas questões que
vêm sendo debatidas há cerca de alguns anos e que, felizmente, parece ocupar cada vez mais
as reflexões sobre o tema 3. Tais podem ser assim expressas: qual a natureza do conhecimento
sociológico? O ensino da sociologia na escola média deve ser o ensino de uma ciência, como
um conjunto de conhecimentos acumulados sobre determinados fenômenos sociais? Ou o
ensino da sociologia se define por promover a emancipação dos sujeitos? Quais os melhores
caminhos para operacionalizar o ensino da disciplina? Tais perguntas dizem respeito
diretamente às questões de ensino e suas respostas são capazes de indicar distintos
direcionamentos para este. É evidente que tais perguntas podem ser apresentadas de outras
formas, tanto quanto outros aspectos, além dos explicitados, poderiam ser postos em foco, o
mais importante sendo o que orienta tais questões. Com a primeira pergunta, tentamos nos

3
Como se multiplicam, hoje, os artigos publicados, produções acadêmicas, seminários e simpósios sobre o tema.
Exemplar disso foi o I Encontro Nacional sobre o Ensino de sociologia na Educação Básica, realizado no
IFCS/UFRJ, em 2009, sob os auspícios da SBS, do qual este livro é um dos frutos.
3

aproximar de uma reflexão sobre a epistemologia das ciências sociais, suas distintas
racionalidades, o tipo de conhecimento que têm produzido e a perspectiva sobre o social que
vêm construindo, como fundamentação de seu ensino na escola média. A segunda e a terceira
perguntas remetem-nos diretamente ao problema da justificativa, isto é, do sentido do ensino
da sociologia. A última pergunta tem por finalidade oferecer orientações metodológicas e
possibilidades práticas para a atuação do docente na escola.
Não é nossa intenção, neste texto, darmos respostas às questões apresentadas, muito
menos seremos arrogantes ao ponto de almejarmos as respostas definitivas. Todos nós
sabemos que estas se tratarão de deliberações, fruto de uma construção coletiva, com base em
investigações que ainda se iniciam e de sinceros e bem-intencionados embates e acordos entre
os que valorizam a sociologia também como saber escolar. Para fomentar os debates é que
expomos aqui algumas de nossas reflexões acumuladas em felizes encontros 4.
Nossa contribuição se limitará a analisar a importância e as justificativas para o ensino
da disciplina, com o intuito de refletirmos sobre as condições de possibilidade para a
permanência da sociologia como disciplina na educação básica e, para tanto, propomos
caminhos para a construção teórica e política deste projeto. Este texto tem início com a
discussão do que é seu foco principal, o problema a legitimidade, após o que tentará
demonstrar possibilidades para o que é sugerido como nossa tarefa mais urgente, na esperança
de contribuir para a justificação da disciplina. Para isso, recorreremos à Teoria Social e aos
resultados de pesquisa realizada na cidade de Campos dos Goytacazes e à produção mais
recente sobre o tema. Encerramos com considerações sobre as incertezas que pairam sobre a
disciplina, notadamente no que diz respeito ao ENEN. Ao avançarmos nas respostas às
questões, com sorte, estaremos enfrentando o tema da construção de um projeto para a
disciplina e alargando o consenso em torno dela, como disciplina legítima na educação básica.

1. A legitimidade da disciplina como projeto político e científico

Algumas disciplinas, a exemplo da história e da geografia, para citarmos as mais


próximas, provavelmente devido à longa tradição no meio escolar, estão comparativamente
bem estabelecidas; possuem, como disciplinas escolares, um discurso construído sobre a
realidade, relativamente aceito e amplamente disponível para todos os professores. A

4
Os autores se viram juntos em desafios comuns de falar sobre o tema da sociologia na Escola em distintos
eventos regionais e nacionais, em escolas e universidades. O I Encontro Nacional sobre o Ensino de sociologia
na Educação Básica sedimentou a decisão do texto a quatro mãos.
4

sociologia conta com este agravante, qual seja, construir um saber organizado que torne viável
sua introdução no nível médio de ensino. Parece mesmo que o estudo sobre o ensino tem tido
maior atenção em outras áreas do que nas ciências sociais, nas quais ainda carece de seu lugar
institucional bem definido.
Weber nos alertara, porém, em seu “A ciência como vocação” (2002) que, na defesa
científica, as várias esferas de valor no mundo estão em conflito inconciliável entre si.
Noutros termos, atribuir legitimidade aos saberes sociológicos, como a outros saberes, é uma
escolha que, como tal, podemos sugerir, é objeto de construção por um projeto político e
intelectual. Também, considerar legítimo o ensino de sociologia na educação básica, tanto
quanto a investigação das questões de ensino em âmbito acadêmico, é uma opção coletiva.
Não poucos tomaram esta decisão, que ganhou realidade com sua inclusão nos currículos. O
que tentamos demonstrar, porém, é que sua permanência e seu melhor proveito ainda
dependem do empenho no alargamento do debate em torno da identidade da disciplina no
contraste com as demais.
Habermas (1989; 2004) inspira-nos em seu pressuposto de que as pretensões de
validade para um certo argumento só podem ser obtidas em situações de discussão que são
sua garantia para a universalização. Assim, a vontade de fazer presente a sociologia como
disciplina nas matrizes curriculares há de se pautar em interesses passíveis de serem
compartilhados de modo comunicacional. Tomar a situação de fala ideal como uma direção
normativa dos debates é imputar a estes, como sua condição, a aposta na veracidade, na
responsabilidade, na correção e na verdade dos interlocutores e de seus postulados, então,
confrontados, visando, na competência auto-crítica, ao chamado consenso mais estável, isto é,
aquele capaz de assegurar aos argumentos sua dose de objetividade e de verdade propriamente
dita. Assim, a ação em torno da defesa da disciplina sociologia se dá por sua (re)construção
discursiva, e não somente no interior do campo das ciências sociais, entre os pares
acadêmicos.
Disciplinas possuem fronteiras dadas, antes de tudo, por divisões políticas internas e,
em se tratando de ensino médio, é preciso criar essas diferenças e afirmar uma identidade para
a sociologia se desejamos sua presença nesta dimensão de ensino. Não se faz isso
legitimamente se não na comunicação intersubjetiva pela capacidade de se expressar as
distintas experiências e aproximar pontos de vista acerca das questões e polêmicas postas,
tendo por suposto demandas comuns, no caso, a consistência mesma do enunciado acerca da
relevância da sociologia como disciplina na educação básica. Disso decorre que, ao tentarmos
justificar a presença da disciplina, precisamos demonstrar em que exatamente ela se distingue
5

de outras disciplinas afins – e isso a história recente, ao tempo dos PCN’s (Parâmetros
Curriculares Nacionais), nos ensinou 5.
Talvez, a dificuldade em se perceber a necessidade de justificarmos a disciplina da
parte de alguns decorra de equívocos alimentados pelas narrativas sobre a história da
disciplina, bem como da percepção de sua intermitência, em sua inclusão ou exclusão dos
currículos escolares. No Brasil, tem-se afirmado que o retorno da disciplina aos quadros de
conteúdos próprios do ensino médio é um resgate histórico em face do período ditatorial
militar recente da história de nosso país, que a havia excluído. Nossa percepção é a de que tal
narrativa serve a uma visão de tipo missionária e se, por um lado, instiga os ânimos em sua
defesa, por outro, distorce em algum grau sua história e obsta o aprofundamento de sua
necessária investigação.
Sabemos, a partir de alguns estudos que abrangeram a história da disciplina (Machado,
1987; Giglio, 1999; Santos, 2002; Moraes, 2003; Rêses, 2004 e 2005; Sarandy, 2004-a e
2004-b; Silva, 2004, dentre outros) – e mesmo de outros que não a tinham por foco (Meucci,
2000) – que o ensino da sociologia deixou de ser obrigatório de 1942, com a Reforma
Capanema, até 2008, com a alteração da Lei de Diretrizes e Bases de 1996. Portanto, desde
antes do golpe de 1964 e mesmo após a redemocratização 6. E mais, mesmo durante o regime
ditatorial militar, a disciplina sobreviveu nos cursos secundários para o magistério, como
sociologia da educação, e a maior perda, no plano legal, no período, somente veio com a Lei
5692, de 1971, por meio da qual se aprofundou o caráter tecnicizante do ensino, como é
sabido.
Conforme os trabalhos referidos, de fato, houve intermitência no plano das políticas
governamentais, ou seja, em diferentes reformas educacionais, ora a disciplina encontrou
acolhida, ora foi excluída – e nem sempre sob a nomenclatura de “sociologia”. Relembremos:
em 1882 a disciplina foi proposta num projeto de reforma, por Rui Barbosa; em 1891, ela foi
apresentada no projeto de Benjamin Constant, tendo sido criada a cátedra “Sociologia e
Moral”, no ensino secundário; na Reforma Epitácio Pessoa, de 1901, deixou de ser obrigatória
no currículo da escola média, mas até este momento não chegou a ser efetivamente oferecida
em todo o sistema; em 1925, com a reforma do ministro Rocha Vaz, ela retornou ao ensino

5
Em tempo, não entraremos, por razões de escopo, na questão da interdisciplinaridade, apenas observamos que
transformar os saberes científicos em saberes escolares implica algum grau de diferenciação – e criação de
identidades – entre as diversas disciplinas.
6
Devemos ao Dr. Amaury Cesar Moraes (USP) a observação sobre o aparente paradoxo da presença da
disciplina sociologia, na escola média brasileira, durante parte de um período ditatorial, como no caso do Estado
Novo, e a enorme resistência governamental durante um período formalmente democrático, como no caso dos
governos de Fernando Henrique Cardoso.
6

secundário e foi ratificada pela Reforma Francisco Campos, de 1931; em 1942, com a
Reforma Capanema, ela deixo de ser obrigatória novamente e deste período até a Lei 11.684,
de 2 de junho de 2008, que a tornou obrigatória, parece ter ocorrido algum movimento em
torno dela nas décadas de 1940 e 1950 e, principalmente, com os movimentos pela (re)
inclusão da disciplina, a partir de 1982, notadamente em São Paulo e no Rio de Janeiro.
Vemos, portanto, que no plano legal a disciplina de fato foi intermitente, apesar de sempre ter
existido timidamente e de modo acentuadamente dispersivo nos sistemas de ensino, seja como
disciplina da formação em nível médio para o magistério, seja no ensino superior,
notadamente nos bacharelados em direito.
Mas um olhar mais discreto sobre a história da disciplina – algo que ainda está por ser
feito – poderia revelar que em diferentes contextos sua presença ou ausência teve a ver com
uma multiplicidade de fatores do que somente decisões governamentais ou regimes políticos.
Apenas a título de exemplo, pois que este não é o objeto deste texto, observamos que, em fins
do século 19, ainda no Império, quando pela primeira vez a disciplina foi proposta, um fator
relevante que ainda está por ser mais bem discernido, foi a disputa em torno da própria
natureza e viabilidade da sociologia. Tal disputa pode ser exemplificada pelos debates entre
os que viam na sociologia uma ciência legítima, como Sílvio Romero, e os que a
consideravam uma falácia, como Tobias Barreto; o primeiro, em seu “Ensaios de filosofia do
direito”, anotações de seus cursos na Faculdade de Direito, de 1895, e o segundo como autor
de “Variações antisociológicas”, de 1884. O que se esboça nestes textos é um acirrado debate
sobre a possibilidade mesma do conhecimento sociológico, num momento em que a
sociologia estava apenas nascendo na Europa e nos EUA. Ora, não é de estranhar que o
debate sobre o ensino da disciplina tenha ganho adeptos e críticos nos anos que se seguiram,
nem que a reforma proposta por Constant, um positivista, a tenha incluído. Certamente, e para
não nos alongarmos neste ponto, em períodos distintos e contextos particularmente diferentes,
outros podem ter sido os fatores a pesarem sobre as decisões quanto à disciplina, mais que a
simplificadora referência imediata à regimes políticos.
As novas e necessárias investigações a se realizar podem vir a esclarecer, também, as
influências que diferentes atores e movimentos desempenharam quanto à presença ou
ausência da disciplina, ou que ainda desempenham sobre sua, talvez, fragilidade. Para mais
um exemplo, pensemos sobre a distância que o campo acadêmico das ciências sociais tomou
do ensino da sociologia, a partir das décadas que se seguiram à Reforma Capanema, antes um
objeto central, como durante o período de sua institucionalização nos cursos secundários e do
Manifesto dos Educadores Novos. Há a possibilidade de que a institucionalização das ciências
7

sociais, em nível universitário, sobretudo com a consolidação dos programas de pós-


graduação, tenha sido um fator importante para este distanciamento, por um aparente efeito de
insulamento acadêmico e conseqüente invisibilidade da disciplina. As novas agendas de
pesquisa parecem ter se afastado da aposta na Educação na constituição da modernidade.
Aliás, a modernidade está em xeque em críticas mais ácidas ou menos à sua negligência às
vozes de diferentes sujeitos, referidos hoje como grupos subalternos 7. Pensamos, porém, que
estamos diante do desafio de se rever projetos civilizatórios, e projetos pedagógicos, não de
subestimá-los. Ora, não é casual que o discurso dos direitos individuais pareça hoje suplantar
o das políticas de Estado e que haja um rebatimento também nas políticas educacionais,
fragmentando-as num sem número de programas nem sempre passíveis de serem articulados.
Entender as motivações da perda de centralidade da educação e do ensino de
sociologia nas sociedades científicas e em seus debates acadêmicos é condição de se projetar
uma disciplina com maiores chances de legitimidade na escola. Carecemos de resultados de
pesquisas que possam direcionar com mais efetividade a prática docente É neste ponto que a
rejeição existente no interior do campo acadêmico das ciências sociais, no que tange à
pesquisa sobre questões de ensino da sociologia, é fator relevante para a pouca legitimidade
da disciplina, especialmente porque a universidade é o lugar institucional que pode dar origem
aos discursos legitimadores da disciplina como, também, o vazio deixado pela ausência de
debates e pesquisas sobre a questão permitiu a emergência de discursos ideológicos que em
nada contribuíram com a necessária legitimação que se discute aqui 8.
O que parece claro, de todo modo, é que a visão de uma história linear, ordenada por
uma exclusiva lógica a justificar o sentimento de resgate histórico não é verdadeira. Ademais,
a inclusão da disciplina nos currículos escolares após os anos 1980 deu-se diferentemente em
todo o Brasil, nas realidades estaduais e locais 9. Antes, a história das ciências sociais no
Brasil é diversa no território nacional, o que, também, é valioso ser estudado 10.

7
Aos interessados no debate das releituras e dos novos paradigmas na sociologia latinoamericana, por exemplo,
pode-se ler, dentre tantos outros, Miglievich Ribeiro; Veras; Navarrete et. al. “Aspectos do pensamento social
crítico latino-americano ontem e hoje: intelectuais e produção do conhecimento”, 2009.
8
O vazio foi ocupado pelas associações profissionais e sindicais de cientistas sociais e sociólogos, com novas
implicações em termos de disputas internas ao campo e apropriações simbólicas da disciplina. É impossível,
portanto, afirmar que o silêncio em torno do tema se deu nalgum dia. Mais recentemente, a SBS (Sociedade
Brasileira de sociologia) consolidou sua chamada Comissão de Ensino, ligada à diretoria, que, desde seu início é
coordenada pela Dra. Heloísa Martins (USP) e secretariada pela Dra. Ileizi Fiorelli Silva (UEL), à qual
professores e pesquisadores, em nível universitário, que nunca deixaram de se dedicar à questão do ofício do
sociólogo e/ou de sua prática docente, portanto, também no empenho do retorno da disciplina à escola aderiram
imediatamente.
9
Pode-se citar o caso do Estado do Rio de Janeiro que, através da Associação Profissional dos Sociólogos do
Estado do Rio de Janeiro (APSERJ), viu a sociologia retornar como disciplina obrigatória atestada pela
Constituição Estadual de 1989, tendo sido realizado, após esta, o primeiro concurso público em 1991. Apesar do
8

2. Contribuições para a fundamentação teórico-metodológica do ensino da sociologia

Para compreendermos a importância da sociologia como disciplina da matriz


curricular do Ensino Médio, deveremos, antes de tudo, compreender os objetivos que por
meio dela se pretende atingir. Esses objetivos podem ser divididos em duas classes: os que
são específicos para a disciplina e os que não se restringem a ela, indo ao encontro dos que
foram traçados para o Ensino Médio a partir da Lei n.º. 9.394, de 1996 (Lei de Diretrizes e
Bases da Educação Nacional).
Como foi dito, muitas justificativas normalmente apresentadas para a inclusão da
disciplina não fazem mais que reproduzir, de forma vaga, o exposto na lei ou os efeitos que
supostamente podemos observar com o ensino da disciplina.
A Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, Lei nº 9394, de 20 de dezembro de
1996, que estabelece as diretrizes e bases da educação nacional, determina que o objetivo do
Ensino Médio está expresso no vínculo dessa etapa da educação escolar com o mundo do
trabalho, a prática social, à construção da cidadania. Pretende-se que a disciplina esteja
orientada para a “preparação básica para o trabalho” e para o “exercício da cidadania”. De
fato, a sociologia pode oferecer uma contribuição no que tange à “compreensão das práticas
sociais”, à “preparação básica para o trabalho” e ao “exercício da cidadania”. Ocorre que tais
objetivos são gerais para o conjunto das disciplinas do ensino médio e não nos permitem uma
base sólida, ou não são suficientes, para justificarmos a inclusão da sociologia nesta etapa da
educação básica. Vejamos o que diz a LDB, alterada pela Lei nº 11.684, de 2 de junho de
2008, que estabelece a obrigatoriedade do ensino de sociologia e de filosofia na educação
básica:

imperativo legal, a realidade de não-reconhecimento da disciplina preponderou. Ainda assim, sua presença na
matriz curricular obrigou uma mais permanente vigilância da parte de seus profissionais com um papel eminente
para a APSERJ, na promoção, dentre outros, de encontros e debates entre os professores da rede estadual.
10
Em coletânea organizada por Maria Stella Grossi Porto e Tom Dwyer, sociologia em transformação: pesquisa
social do século XXI (2006), podem ser lidos três artigos da autoria respectiva de Adelia Miglievich Ribeiro,
Alice Plancherel e Tânia Magno que, derivados da mesa “Histórias locais das ciências sociais no Brasil”,
possibilitam ao leitor o conhecimento da trajetória das ciências sociais também no Rio de Janeiro, em Alagoas e
em Sergipe. Também, cabe citar o livro organizado por Marcio de Oliveira sobre “As Ciências Sociais no
Paraná” (2006). As várias pesquisas acerca da história das ciências sociais, de variados ângulos, têm-nos
permitido, também, um olhar mais cuidadoso sobre as singularidades dos processos de institucionalização de
nossa ciência no vasto território nacional, no ensino e na pesquisa, nas instituições de cultura, nas universidades,
nas escolas.
9

Art. 36. O currículo do ensino médio observará o disposto na Seção I deste Capítulo e as
seguintes diretrizes:
I - destacará a educação tecnológica básica, a compreensão do significado da ciência, das
letras e das artes; o processo histórico de transformação da sociedade e da cultura; a língua
portuguesa como instrumento de comunicação, acesso ao conhecimento e exercício da
cidadania;
II - adotará metodologias de ensino e de avaliação que estimulem a iniciativa dos
estudantes;
III - será incluída uma língua estrangeira moderna, como disciplina obrigatória, escolhida
pela comunidade escolar, e uma segunda, em caráter optativo, dentro das disponibilidades da
instituição.
IV – serão incluídas a Filosofia e a Sociologia como disciplinas obrigatórias em todas as
séries do ensino médio.

Verificamos, a partir da leitura do excerto do artigo reproduzido acima, que não há


nenhuma afirmação de princípio ou fundamento apresentado para se justificar a presença da
disciplina. É nada mais que uma determinação normativa e procedimental.
Que a sociologia pode contribuir para ambas as metas, quais sejam, desenvolver uma
consciência crítica e cidadã, não se deve ter dúvida. Mas a pergunta que se pode fazer aqui é
se isso é suficiente para justificar a disciplina. Como dissemos, educar para uma consciência
crítica e para a cidadania é objetivo da escola, portanto, de todas as disciplinas. Voltamos ao
ponto de partida.
Ao que parece, levando-se em conta tais argumentos, a disciplina teria um caráter
político incontestável. E, de fato, para uma parcela dos professores de sociologia no ensino
médio, ensinar a disciplina confunde-se com uma forma de militância com vistas à
emancipação. Entretanto, conforme nos indica Santos (2002), para outros professores do
ensino médio, o ensino da sociologia atenderia ao objetivo de uma formação científica, a ser
somada a outras tantas que compõem o preparo de nossos jovens para a vida adulta em suas
várias dimensões na sociedade moderna. Portanto, o ensino da disciplina é associado ao
ensino de uma ciência, com seu objeto, seus métodos, suas teorias, seu conhecimento
acumulado, enfim.
A questão permanece: nossa disciplina é obrigatória, mas porque ela é relevante? Por
agora, retomemos nosso objetivo inicial, que é tão somente estimularmos a reflexão sobre a
construção de um projeto viável para a disciplina. Neste, consideramos essencial o recurso à
própria Teoria Social.
10

2.1. A teoria social como ferramenta no ensino de sociologia e na construção de sua


metodologia: um breve exercício a partir dos clássicos

Qual o caráter do ensino de sociologia no ensino médio? O que significa dizer que o
ensino de sociologia, na escola média, contribuiria para a cidadania? Vejamos o que Pierre
Bourdieu, em Lições da Aula (1994) nos diz:

Sem dúvida, o sociólogo não é mais o árbitro imparcial ou o espectador divino, o único a dizer
onde está a verdade – ou, para falar nos termos do senso comum, que tem razão –, e isso leva a
identificar a objetividade a uma distribuição ostensivamente eqüitativa dos erros e das razões.
Mas o sociólogo é aquele que se esforça por dizer a verdade das lutas que têm como objeto -
entre outras coisas – a verdade.(...) Cabe-lhe construir um modelo verdadeiro das lutas pela
imposição da representação verdadeira da realidade (...). (Bourdieu, 1994, p 13)

É para nós cara a percepção de Pierre Bourdieu de que uma aula de sociologia há de
ser a expressão da condição do sociólogo enquanto intelectual; condição definida
necessariamente pelo status de cientista cujo objeto é o campo social e a posição dos atores
sociais no infindo processo, cuja base é a interação social, de atualizar este campo – o que
pode significar, ainda, sua transformação, ao mesmo tempo em que, nele, é também formado.
11
Tal concepção que vai ao encontro de sua definição de habitus parece-nos útil em nossa
reflexão num duplo sentido.
Primeiramente, a consideração acima autoriza-nos a dizer que uma aula de sociologia
deveria permitir – e mesmo estimular – uma reflexão sobre a própria aula de sociologia em
sua pretensão de eleger temas e conceitos – uns e não outros – para se trabalhar em sala de
aula. Um professor irremediavelmente faz escolhas, pelas quais há de ser responsável, no
modo como transmite um saber e produz outros (sim, produz!). Damos aulas e aderimos a
valores e a instituições num só tempo. Na impossibilidade de negarmos tal relação, um
compromisso básico assumido pelo docente e por sua comunidade é o de desconfiar de seu
saber, com certa regularidade, para que se possam diferenciar as aulas de sociologia das
pregações dogmáticas. No mínimo, a aula de sociologia é o lócus da dúvida e das buscas
coletivas de novas respostas, na proposição de desenvolver nos alunos a disposição para a
prática do diálogo.

11
Podemos definir habitus como “um conhecimento adquirido e também um haver , um capital (...), o habitus, a
hexis, indica a disposição incorporada, quase postural – mas sim o de um agente em ação (...). espécie de sentido
do jogo que não tem necessidade de raciocinar para se orientar e se situar de maneira racional num espaço”. Cf.
Bourdieu, O poder simbólico, p. 61-62.
11

Trata-se, portanto, de levar ao centro da reflexão as lutas pelo enunciado do


conhecimento verdadeiro. A consideração de sua própria inserção social e dos que, não
necessariamente em posição de igualdade, participam do mesmo campo de relações. Trata-se
mesmo de uma espécie de tomada de consciência. Um projeto que somente se realiza nos
parâmetros de uma racionalidade científica, o que não implica a crença na universalidade do
saber científico. E que se efetiva na afirmação dos interlocutores, os alunos incluídos, da
condição de sujeitos – o que implica na atenção crítica à imposição dogmática.
A intersubjetividade é condição da ciência. Também, das democracias, em seu ideário.
Talvez, seja este um valor a orientar o próprio ensino da disciplina, qual seja, a disciplina não
apenas ofertaria conhecimentos sobre a convivência intersubjetiva nas distintas configurações
sociais mas também ensaiaria, de modo mais sistemático atitudes (a disciplina, pois) propícias
à geração de novas práticas de convívio social, menos violentas, do ponto de vista objetivo e
simbólico. Difícil? Sim.
Num segundo sentido, Bourdieu inspira-nos a fazer das aulas de sociologia um
exercício constante do que a filosofia e a antropologia chamaram de desnaturalização e
estranhamento em face das atitudes cotidianas e das instituições sociais12. Referimo-nos a um
mundo que é dotado de significados que somente permanecem porque nestes acreditamos,
como comunidade de humanos. Nossos clássicos, caso eleitos para sustentarem as aulas e
permitirem a comunicação entre-pares, onde quer que estes dêem aulas, oferecem ricas
ferramentas conceituais para processos cognitivos de desnaturalização do mundo.
Marx, em suas análises acerca da alienação do trabalhador, gerada num modo
determinado de organizar as relações sociais, de trabalho e de propriedade, caracterizado, de
um lado, pela venda da força de trabalho em condições de concorrência as mais injustas no
que concerne às negociações entre assalariado e donos do investimento financeiro e das
tecnologias e – de forma correlacionada - pela insaciável sede de acumulação de capital,
necessária à reprodução estrutural, que move as sociedades burguesas, com ônus de todas as
espécies, é um autor de vasto potencial analítico. Podendo orientar os debates mais atuais
sobre aspectos concernentes à pirâmide da desigualdade – e dos valores desiguais das
ocupações no mercado de trabalho – no país e no mundo, em face da concentração de renda,
Marx, também, autoriza a abordagem da questão ambiental e dos riscos mais incidentes, não
casualmente, sobre as populações mais pobres. A partir dele, no diálogo com a história, pode-

12
Estas questões, no âmbito do ensino da sociologia na escola média, foram objeto de análise minuciosa nas
Orientações Curriculares Nacionais (OCN), redigidas por Amaury Cesar Moraes, Elisabeth Guimarães e Nelson
Dacio Tomazi.
12

se propor ainda o enfoque nos movimentos sociais, do século 19 e de hoje, com destaque às
lutas sociais no Brasil contemporâneo. A percepção de nossa inserção em relações
desumanizadoras, de exploração e dominação, e as contingências de nossa condição de classe,
pode permitir uma compreensão importante do mundo social por parte do aluno. Tendemos,
contudo, a supor que haverá perdas para os alunos em seu direito de acesso a um clássico do
pensamento moderno se o professor optar por valorizar mais nas aulas a solução marxista na
análise da economia capitalista de seu tempo do que as principais perguntas postas por Marx
no conjunto de sua obra, até hoje a produzir novas respostas.
Durkheim também pode ser lembrado em sala de aula. O sociólogo francês expõe,
dentre outros, a problemática da solidariedade moral, das representações sociais e da anomia,
entendida como ausência de normas ou de efetiva regulamentação por parte das instituições
sociais. Mais do que discutir entre alunos da educação básica as contendas da sociologia
funcionalista, há de se atentar, por exemplo, para o fato de que os seres humanos necessitam
de orientações morais em suas condutas, quaisquer que sejam elas. Desta necessidade, nasce a
sociedade e suas instituições. Conflitos dão-se na contestação de tais ordens morais, porém,
visando a criar novas ordens – quer disto os humanos tenham plena consciência ou não - do
contrário, é a própria sociedade – e não apenas suas elites ou grupos dominantes (categorias
menos importantes para Durkheim) – que experimenta a sua dissolução. Noutros termos,
conflitos convivem com a ordem e recriam solidariedades morais – o que há de ser explicado
ao aluno é que isto nada diz sobre ser uma ordem moral boa ou má. Poderá ser péssima. Ou
altamente criativa e geradora de relações sociais libertadoras. Neste item, é sugestivo o debate
da violência urbana e do assim denominado poder paralelo. Também, do trabalho informal e
da geração de renda. Pode-se retomar o tema da coerção social e das pressões sociais sobre
comportamentos individuais e o próprio processo de individualização. Por que não, então,
permitir ao aluno e à aluna questionar os papéis sociais que lhes são atribuídos? 13

13
Em debates havidos no I Encontro Estadual de sociologia no Ensino Médio, promovido em 2008 pela
Faculdade de Educação da UFRJ, uma das professoras participantes, Gabriela de Souza Honorato, narrava a
demanda dos alunos por debates acerca da sexualidade e de como isto a espantou de início. Sabemos que o
espanto há de ser minimizado dada a constatação da exposição permanente dos adolescentes à erotização da
sociedade. Noutro aspecto, quando não se tematizava a sexualidade nada se garantia em termos de experiências
de vida mais harmônicas, haja vista nossa sociedade marcada pela violência doméstica com o maior ônus sobre a
mulher jovem. De fato, a sociologia não há de substituir a educação sexual, sobretudo, porque os conflitos entre
humanos e/ou grupos não se restringem a esta dimensão nem podem ser explicados isoladamente. Exatamente
por isso, os debates de gênero podem ser suscitados, com sensibilidade, aqui. A lembrança de Durkheim pode
surgir na abordagem, por exemplo, das expectativas sociais sobre os papéis feminino e masculino em sociedade,
sobre as resistências aos questionamentos de tais papéis e sobre os mecanismos de punição aos desviantes.
Defendemos que a única maneira da sociologia fazer a boa diferença nestes embates é se o professor puder
conduzir os debates seguro em estudos e conceitos que permitam escapar a um senso comum que tenderia a
subestimar o potencial analítico acumulado pelas ciências sociais.
13

Weber, por sua vez, como sociólogo dos valores com os quais as pessoas e grupos
criam e legitimam a vida em todas as suas dimensões, pode ser também pelo docente relido,
permitindo que se pergunte aos alunos o que é importante para eles e por quê. Também, que
tipo de pessoa, aula, professor, pais, filhos, escola, lazer, profissão, cidade, país, governo,
político eles consideram desejáveis. Quais tipos de relações sociais são para eles indesejáveis?
Como eles vêem os governos nas sociedades? Por que as pessoas votam num político e não
noutro? O que pensariam ao votar? Se não pensam exatamente sobre isto, ainda assim, o que
as faz escolher um nome no meio de outros? Elas votam naquele que mora em seu bairro?
Naquele que os parentes votam? Mas, por quê? Elas votam no que garantirá algo de que
precisam material e urgentemente? Elas votam no candidato que garantiu a ambulância, por
exemplo, de que precisaram numa situação de desespero? Elas votam em quem admiram em
função de atributos tais como a aparência e o modo de falar? Votam porque gostam do sujeito
e não importa o motivo. Será que escolhem de um modo mais calculado: quem não tirará meu
filho do emprego que ele conseguiu na Prefeitura? Será que estudam o perfil do candidato,
analisam sua trajetória e plataforma política? Temos aqui, na análise de distintas
racionalidades, sugestões de aulas sobre a sociologia weberiana dos tipos de dominação
legítimas. Nestas, seria bastante pertinente o debate da difícil apartação entre o público e o
privado no Estado brasileiro, a partir do tipo ideal weberiano de patrimonialismo, por
exemplo, um diálogo pertinente que autores brasileiros renomados trilharam.
Os clássicos, ou os assim considerados, entre outros cientistas sociais importantes para
a constituição do campo, podem ser a fonte a partir da qual construiremos um discurso
apropriado, razoável, e convincente sobre a presença do saber sociológico nas escolas médias.
Entretanto, não se trata aqui de advogar pela leitura dos clássicos pelos alunos do ensino
médio. Isso, por distintas razões que não nos cabe refletir aqui, pode ter algum sentido em
outras áreas, como a filosofia, porém entendemos que o importante não é escolhermos entre
um ensino com ou sem a presença dos clássicos, mas como eles ou outros serão utilizados;
isto é, precisamos desenvolver a mediação necessária entre o saber produzido pela academia e
o universo escolar. Mediação pedagógica que depende de esforço investigativo e produção
criativa, bem como da compreensão que o rigor teórico não se confunde com ensino teórico.
Espécie de cláusula pétrea do estatuto científico, o que normalmente se afirma como rigor
teórico tem sido no mais das vezes disfarce para um ensino quase totalmente conceitual,
teórico, em geral, dogmático. É neste ponto que mais se fazem necessárias as pesquisas
metodológicas para o ensino da sociologia na educação básica.
14

No entanto, insistimos, o fim não é pura e simplesmente o conhecimento dos clássicos,


de seus conceitos e de suas teorias, no sentido de contato com o conteúdo de suas obras; ao
contrário, as obras do pensamento sociológico, elas próprias, tratadas como já mediações para
o saber acerca do mundo social. O fim, portanto, é o tipo de visão ou atitude congnitiva que
desejamos que nossos jovens alunos desenvolvam.

2.2. Por um acréscimo de imaginação sociológica acerca do ensino da sociologia.

Charles Wright Mills escreveu, em A Imaginação Sociológica (1972), que a principal


tarefa intelectual e política do cientista social era deixar claros os elementos da indiferença e
da inquietação reinantes. Para Mills, ameaças a valores estimados numa dada coletividade
levariam à experiência de uma crise, vivida em plano individual, entretanto, a ausência de
consciência desses valores comumente aceitos levaria à indiferença; mas, até a indiferença
poderia ser produzida por um grau de inquietação insuportável para aquele que não é capaz de
sequer pensar sobre eles a fim de fazer as escolhas possíveis. Nossa época, afirmou Mills,
seria uma época de indiferença e inquietação. E é contra a indiferença e a inquietação capaz
de paralisar o pensamento e a ação, ante a afirmação de ou as ameaças a valores, que atuaria
a sociologia. Num exercício de reflexão que permitiria a tomada de consciência sobre a nossa
condição, ao mesmo tempo em que sobre a condição dos homens e das mulheres de nosso
tempo (um exercício constante, para Mills), a sociologia nos permitiria uma maior
compreensão de nossa própria existência relacionada à sociedade da qual participamos.
Para Mills, a base do conhecimento sociológico é a crítica, esta entendida não como
simples negação, mas como imaginação, como a razão e a criatividade em ação. O exercício
de compreender relações e “identificar ligações entre uma grande variedade de ambientes de
pequena escala”, como ele mesmo define a imaginação sociológica. Desenvolvê-la em nossos
alunos seria desenvolver neles a capacidade por enxergar relações entre suas vidas
particulares e as questões públicas, a biografia e a história, o indivíduo e a sociedade. E como
os horizontes de suas vidas, suas possibilidades objetivas de ação, na relação com a estrutura
social, que nos constrange e nos liberta. Trata-se de uma introdução à compreensão também
de nossos limites e potencialidades, e, também, dos limites e possibilidades dos outros.
A nosso ver, a crítica de que fala Mills se realizaria exatamente no momento em que
as adesões primárias, de que nos fala Pierre Bourdieu, em sua aula já referida, fossem
percebidas exatamente pelo que são: adesões a instituições e a valores, nunca naturais; nunca
partes de uma realidade sem sujeito, porém como condicionados pelas experiências históricas
15

humanas que, ainda que não sigam leis tal como num dia se acreditou, apontam regularidades,
permanências e, em suas reconfigurações também, apontam para descontinuidades e rupturas.
Nas palavras de Bourdieu, se

os que tem algo a ver com a ordem estabelecida, seja lá o que for, não gostam nem um pouco
da sociologia, é porque ela introduz uma liberdade em relação à adesão primária que faz com
que a própria conformidade assuma um ar de heresia ou de ironia.

O professor de sociologia não seria, neste sentido, nem um árbitro imparcial da


realidade humana, nem alguém que fala senão a partir de uma posição que permite conhecer.
Sua fala se dá a partir da posição da ciência e é a partir dela que permite a crítica ao
estabelecido como verdade dada, como conhecimento construído, posição que, ao se revelar
aos seus próprios alunos, permite-lhes que assumam, eles próprios, a condição de sujeitos do
conhecimento e sujeitos históricos. Trata-se, portanto, de propiciar a aprendizagem da
imaginação sociológica pela experiência de imaginação sociológica. É aí que as condições da
crítica se farão presentes. A imaginação sociológica é exatamente o tipo de aprendizagem que
pretendemos desenvolver em nossos alunos com o ensino de sociologia.
O saber científico acumulado tem um importante papel a desempenhar neste ensino.
Mas de modo algum é um fim em si mesmo. O ensino da sociologia é relevante exatamente
porque pode revelar aos nossos alunos as intrincadas relações nas quais estão inseridos e
como essa pertença exerce um profundo efeito sobre sua identidade, suas expectativas de
vida, sua visão de mundo, em poucas palavras, sobre quem ele é e qual o lugar que ocupa na
estrutura social. Logo, nada mais equivocado do que negar a importância do conteúdo em si
mesmo. Mas este conhecimento não será aprendido por meio da mera transmissão de
informação ao aluno – e de sua memorização –, mas, ao contrário, só se realizará realmente se
houver a aprendizagem de um tipo especial de raciocínio, uma verdadeira mudança de atitude
cognitiva por parte do aluno. Somente assim o conhecimento científico acumulado passará a
ter sentido para o aluno e ele poderá, de fato, pensar com o conhecimento das ciências sociais.
Sobre a questão se é possível uma aprendizagem significativa da percepção
sociológica por um ensino somente expositivo de conceitos e teorias, sem que o professor
tenha tido em sua formação mesma a experiência do modo sociológico de perceber o mundo,
cremos já ter respondido que não. E nos valemos do argumento de que a aprendizagem de
formas de pensamento somente são efetivas se os alunos têm contato direto com especialistas
da área em questão. O papel do especialista torna-se muito importante neste caso, a não ser
que o objetivo do ensino restrinja-se à transmissão pura e simples de conteúdos conceituais, o
16

que aqui recusamos. A experiência tem demonstrado que o trabalho com a sociologia no nível
médio de ensino causa grande impacto na mente dos alunos, o que faz com que a matéria
precise de tempo para ser bem trabalhada e digerida.
Sabemos, entretanto, que ainda não são os formados em ciências sociais em nível
superior a totalidade, sequer a maioria, dos professores que respondem hoje pela sociologia
em sala de aula. Vemos isto, contudo, como algo a ser progressivamente conquistado sob
pena de se comprometer a qualidade da sociologia a ser ministrada, por mais auto-didatas que
os professores brasileiros tenham aprendido a ser 14.
A pesquisa de caráter extensionista realizada no município de Campos dos
Goytavazes, ao norte do Estado do Rio de Janeiro, intitulada “filosofia e sociologia nas
escolas estaduais de ensino médio da região norte-fluminense I: capacitação e atualização de
15
docentes” , mostra-nos, na codificação feita para as respostas livremente dadas sobre a
importância das disciplinas de filosofia e sociologia na Escola, o encaminhamento do
raciocínio da maioria dos professores no sentido de um afastamento do lugar comum –
formação para a cidadania – em vistas à aproximação de uma perspectiva que conceberia
ambas as disciplinas como relevantes na compreensão da existência humana e da vida social,
respectivamente (50%) e, em segundo lugar, no desenvolvimento do pensamento autônomo
(25%).

I- Sobre a importância das disciplinas de filosofia e sociologia na Escola 16

14
Reconhecemos que o problema da formação docente é grave e de difícil solução. Temos consciência de
distorções ainda mais graves, como no caso da docência em sociologia de profissionais formados em ciências
naturais e exatas, sem qualquer qualificação em ciências sociais, de que nível for. No entanto, opor-se a que
professores formados em outras áreas lecionem a disciplina pode ser ideologicamente relevante, porém de pouco
efeito prático, à medida que esbarramos em questões complicadas relativas a direitos adquiridos e competências
exclusivas dos entes federativos. Neste sentido pactuamos a opção de vários colegas, incluindo membros da
Comissão de Ensino de SBS, quanto à necessidade de formação adequada dos professores que atualmente
lecionam a disciplinas, ou que a lecionarão a partir de 2009, sem prejuízo da luta política para a alteração deste
estado de coisas, a longo prazo. Trata-se, a nosso ver, de assumirmos a responsabilidade integral pelo processo
de (re)inclusão da disciplina, e de sua legitimação.
15
A pesquisa-extensão (Proex-Uenf), iniciada no ano de 2007, congrega hoje os seguintes professores: Dr. Júlio
César Ramos Esteves (Coord.); Dr. Dalton José Alves; Dra. Adelia Maria Miglievich Ribeiro; os sociólogos
Renata de Lourdes Azevedo Saul e Virgílio de Lima Pereira; e os estudantes de Ciências Sociais, Dante
Mendonça Duarte; Andreza Barreto Leitão e Andréia da Conceição Trindade da Silva. Há de se registrar o
pioneirismo da iniciativa do projeto na região, a reunir as áreas de filosofia e de sociologia, contando, também,
com o apoio da SEAF (Sociedade de Atividades Filosóficas) e da APSERJ (Associação profissional dos
Sociólogos do Estado do Rio de Janeiro), nas metas de traçar o diagnóstico do ensino das disciplinas nas escolas
da região e promover cursos de atualização e seminários com os professores do ensino médio em Campos dos
Goytacazes/RJ. Pesquisa que tem sido complementada, a partir de 2009, pelo excelente trabalho investigativo
desenvolvido na UFF, dirigido pelo Dr. Eugênio Soares Carlos de Lemos.
16
A pergunta para o professor entrevistado era: Sobre a importância das disciplinas de filosofia e sociologia na
Escola, o que você gostaria de ressaltar?
17

50% das respostas válidas para esta questão


compreensão da
vida social
ressaltam a importância destas disciplinas
relacionando-as à melhor compreensão da existência
desenvolviment e da vida social que elas possuem a capacidade de
o da cidadania proporcionar ao aluno;

desenvolviment
8,3% das respostas válidas para esta questão
o da capacidade
de reflexão ressaltam a importância destas disciplinas
necessidade de
relacionando-as ao desenvolvimento do exercício
presença no E.F. pleno da cidadania por parte do aluno;

outras 25% das respostas válidas para esta questão


ressaltam a importância destas disciplinas
relacionando-as ao desenvolvimento da capacidade
de reflexão, senso crítico e pensamento independente
por parte do aluno;

6,5% das respostas válidas para esta questão ressaltam ainda a necessidade de que estas disciplinas
façam parte da grade curricular do Ensino Fundamental.

10,2% das respostas válidas para esta questão ressaltam ainda outras diferentes.

Fonte: Esteves; Alves; Ribeiro Miglievich; Saul et. al. “filosofia e sociologia nas escolas estaduais de
ensino médio da região norte-fluminense I: capacitação e atualização de docentes”. UENF.PROEX,
2009.

A discussão iniciada anteriormente e as respostas dos professores aqui retratadas que


remetem à justificativa, à importância e à especificidade da sociologia falam também de
10,2% de respostas válidas que não puderam, contudo, ser desmembradas por sua diversidade.
Talvez, isto nos revele que a questão a respeito da legitimidade da disciplina seja mais
cobrada dos docentes do que fomos capazes de supor. Ao menos, é possível pensar que os
alunos inquiram o professor sobre isto. E que o professor mesmo se faça tal pergunta no
cotidiano escolar.
A especificidade da disciplina pode ser encontrada em sua abordagem especial – que
nenhuma outra disciplina promoveria – e/ou em seus conteúdos – o quadro teórico-conceitual
de nossa ciência. Ambas as percepções atentam à séria necessidade da construção de um
plano curricular que dê sentido ao ensino de sociologia. Para além do ultrapassado debate
acerca de planos de curso que tendem a minimizar as competências do professor na condução
do processo ensino-aprendizagem em cada singular e dinâmico contexto da sala de aula,
parece importante lembrar que a tarefa de definir um programa curricular é imperativa e se
não for feita pelos cientistas sociais caberá aos pedagogos, psicopedagogos e a outros
18

especialistas. Portanto, numa frase, é desejável que a comunidade das ciências sociais no
diálogo com os professores em sala de aula tragam a si a responsabilidade da construção de
um projeto para a disciplina.
Retomando Bourdieu, o conhecimento científico dispõe do poder de libertar os
dominados dos dispositivos da dominação na medida em que novos conhecimentos
produzidos contribuem para a quebra do efetivo monopólio de um único grupo sobre a
determinação das representações sobre a realidade. Assim, o conhecimento sociológico em
sua dimensão científica também comporta uma dimensão política, pois que permite ao
indivíduo a compreensão do sistema de dispositivos que define uma tendência para a sua
conduta, pela delimitação de seus próprios horizontes, valores e representações acerca da vida
social. Ao concordarmos com tal perspectiva, uma aula de sociologia, portanto, que aspire a
participar do esforço para a emancipação humana e social, tanto quanto isso for possível, deve
permitir revelar as posições e mecanismos sociais que perpassam e estruturam as relações
sociais, a começar pela própria escola e a sala de aula. Talvez isso pareça “óbvio” para um
cientista social, mas nos perguntamos, então, por que alguns professores consideram que a
consciência crítica de seus alunos é função do quanto conseguem reproduzir os conteúdos de
autores clássicos, por exemplo, ou de discursos críticos ao capitalismo? A reprodução em si,
que é diferente de reflexão crítica, afasta-se de todo intento de imaginação sociológica.
A aula de sociologia, numa proposta bourdieusiana, é um espaço de investigação,
estudo e reflexão sobre as condições de produção do próprio conhecimento e das práticas
discursivas, compreendidas como definidoras do real. Um espaço no qual o aluno seria tido
por sujeito inserido, tanto quanto o professor de sociologia, no que Bourdieu definiu como um
campo, isto é, um conjunto coerente de princípios estruturantes das posições sociais. A partir
da reflexão das próprias relações estabelecidas na situação de aprendizagem, que não se
restringem a sala de aula, porém ela mesma um lugar de um contexto social global, se
construiria o conhecimento sociológico do social e aí estariam sendo aperfeiçoadas as
condições políticas da emancipação. Neste sentido, falar numa ciência crítica seria
redundância, como falar num ensino de sociologia crítica – o mesmo valendo para distinguir
um aspecto científico e outro político para seu ensino.
O retorno a importantes autores das ciências sociais são ferramentas para os docentes.
Não estamos sugerindo uma aula burocrática a partir de Bourdieu nem a abolição da
autoridade do professor, numa espécie de rogerianismo simplificador. O que está sendo
sugerido aqui é que o caráter político do ensino de sociologia está justamente em permitir que
o aluno compreenda sua inserção no meio social e, para tal, o conhecimento mais
19

especializado é o das ciências sociais que lhe permite desenvolver o pensar sociológico, pelo
qual desvele a si próprio como ser social, sujeito reprodutor e transformador de sua própria
sociedade. Se pretendemos que o ensino da disciplina contribua para a emancipação humana –
esta pergunta precisará ser respondida – comecemos por incluir o aluno como sujeito
participante e crítico dos processos de produção da verdade científica, o que significa que uma
aula de sociologia não pode se permitir ser uma explanação de conceitos acabados ou
dogmas.

3. Dimensões do ensino de sociologia e suas relações com a finalidade de sua presença na


educação básica

Diversos conteúdos da disciplina como, por exemplo, sobre a participação política e o


Estado, mesmo na dimensão da informação, também são importantes para a (possível)
contribuição da disciplina à formação de cidadãos. Além desses conteúdos mais diretamente
relacionados à formação para a cidadania, devemos lembrar que conteúdos que permitem
refletir sobre a questão de gênero, compreender a diversidade cultural e a questão do
etnocentrismo e da alteridade, ou analisar a desigualdade também têm relevância política. E
ainda no nível da informação deveríamos incluir conhecimentos sobre os direitos
fundamentais, presentes em nossa Constituição, tanto quanto sobre a efetividade desses
direitos na sociedade brasileira. No entanto, mais uma vez lembremos Bourdieu quando
sugere que o sociólogo – também enquanto professor de sociologia – não pode falar a não ser
a partir da posição da ciência; não para afirmar verdades inquestionáveis, mas para revelar
posições, relações, interesses e dispositivos de dominação. Este é o caráter político da
disciplina, que se manifesta mais fortemente numa mudança de consciência e de atitude
cognitiva por parte do aluno do que na informação pura e simples. É por seu caráter científico
particular que a disciplina ganha relevância política.
O ensino da sociologia, como sugere as Orientações Curriculares Nacionais para o
Ensino Médio (2008, p. 119), participa da alfabetização científica dos jovens educandos do
ensino médio, o que está relacionado à sociologia em sua condição de ciência, pois afinal ela
possui objeto, teorias e métodos que permitem desvendar a realidade e ir além das aparências
dos fenômenos. A recusa ao caráter científico do saber sociológico perde sua força
argumentativa assim como a acusação de um suposto grau de complexidade muito elevado
para nosso aluno na medida em que podemos fazer da pesquisa, metodologicamente
informada, também uma estratégia didática. Como bem afirma as OCN’s, se aos alunos do
20

ensino médio é garantido o direito de aprenderem sobre fenômenos naturais invisíveis aos
olhos, porque não teriam o direito a aprender sobre o que veem todos os dias? E, como vimos,
este caráter científico da disciplina está relacionado ao seu caráter político.
Mas que o caráter político da disciplina não faça sombra ao fato de que o
conhecimento oferecido pela disciplina em si é importante. Porque integra o saber produzido
no processo civilizador das sociedades modernas e deve estar acessível a todos os membros
de nossa sociedade. Porque permite que o aluno compreenda fenômenos sociais, dos quais
participa diretamente ou que tem relevância para sua vida individual ou familiar, pois, em
muitos casos, fenômenos de seu próprio cotidiano. Este caráter educacional da sociologia é
um dos elementos essenciais para se conhecer a realidade em que vivemos, uma vez que a
educação escolar serve para a adaptação ao mundo e também para a mudança. Um processo
civilizatório, repleto de tensões, humanizador. Quiçá mais libertador?
A sociologia tem, portanto, um conjunto de conhecimentos e de práticas científicas
que devem fazer parte do cabedal de todos os indivíduos para que possam pensar a sua vida e
a sociedade que compõem. Educar é transmitir conhecimentos e valores necessários a
existência de uma sociedade, tanto quanto revelar as condições de produção dos mesmos e os
processos de dominação que perpetuam e que exigem mudança. Além do caráter político e
científico, a disciplina teria um caráter educacional que se expressaria, portanto, tal qual
noutras disciplinas do ensino médio, na socialização do aluno num conhecimento acumulado
pelas ciências sociais – e pela tradição das Humanidades – acerca da realidade social.
Compreender estes três aspectos ou dimensões (científica, política, educacional) do
ensino da sociologia, como demonstra as OCN’s, e a tensão interessante que existe entre elas
é importante para que a disciplina não seja transformada em algo quase puramente técnico ou
num ensino bacharelesco ou em aulas de politização, quase panfletárias. Em outro lugar já foi
apresentado uma sugestão interessante sobre o ensino de sociologia, oferecida por Dumont
(Sarandy, 2004). Ressaltamos, por acréscimo, que a percepção sociológica de que trata
Dumont não é uma habilidade inata, ao contrário, “não é fácil de ser comunicada a um livre
cidadão do Estado moderno que não a conhecesse” (1992, p.52) ainda mais considerando o
predomínio do individualismo que marca o projeto da Modernidade. Vejamos em suas
próprias palavras:

“A idéia que fazemos da sociedade permanece sendo artificial enquanto, como a palavra
convida a interpretar, a tomemos como uma espécie de associação em que o indivíduo
totalmente constituído se empenhasse de forma voluntária num objetivo determinado, como
que por uma espécie de contrato. Pensemos, sobretudo, na criança lentamente levada à
21

humanidade pela educação familiar, pela aprendizagem da linguagem e da moral, pelo ensino
que a faz participar do patrimônio comum - compreendidos aí, entre nós, elementos que a
humanidade inteira ignorava há menos de um século. Onde estaria a humanidade desse
homem, onde sua inteligência, sem esse adestramento, uma criação, para falar mais
propriamente, que toda sociedade compartilha de algum modo com seus membros, que seriam
seus agentes concretos?”. (1997, p. 53)

Como meio sistemático de superarmos os estreitos limites de visão que a existência


social produz em todos os seus membros, Dumont aponta o ensino da sociologia como
fundamental. Ainda, segundo ele,

“a apercepção sociológica do homem pode produzir-se espontaneamente na sociedade


moderna em certas experiências: no exército, no partido político e em toda coletividade
fortemente unida (...). No plano do ensino essa apercepção deveria ser o bê-á-bá da sociologia,
mas já aludi ao fato de que a sociologia, enquanto estudo apenas da sociedade moderna,
freqüentemente faz dela uma questão de economia. Não se pode aqui deixar de sublinhar os
méritos da etnologia como disciplina Sociológica. Não se concebe, em nossos dias, um
trabalho e mesmo um ensino etnológico que não provoque a apercepção em questão. O
encanto, eu diria quase a fascinação, que Marcel Mauss exercia sobre a maior parte de seus
alunos e ouvintes devia-se antes de tudo a esse aspecto de seu ensino”. (1997, p. 55)

Nosso intuito é argumentarmos que a aprendizagem da percepção sociológica, o fim


almejado pelo que Mills denominou por imaginação sociológica, deve ser entendida
exatamente assim: trata-se de uma aprendizagem, necessária e legítima, pois que parte do
patrimônio cultural humano; aprendizagem que não é fruto tão somente do conhecimento
cognitivo de teorias sociais, pois se dá por meio do contato cognitivo do aluno com o pensar
sociológico, por diferentes recursos que permitam a mediação do conhecimento das ciências
sociais e que desenvolvam em nossos alunos sua imaginação sociológica, sua compreensão
sobre as relações sociais nas quais estão inseridos como sujeitos históricos. Trata-se de uma
apropriação, por parte dos educandos, de um modo de pensar distinto sobre a realidade
humana, não pela memorização, pura e simples, de um ou mais quadros teóricos advindos de
uma escola de pensamento, mas pelo contato com diferentes conceitos, e seus quadros
teóricos, que servem como ferramentas da pesquisa sociológica, de seus métodos e da
construção de seus resultados.
Delegando a outra oportunidade a discussão sobre as questões de método, apenas
ressaltamos que seja qual for o conteúdo, ele será sempre um meio para se atingir o fim: o
desenvolvimento da perspectiva e da imaginação sociológicas, mas que diversos recursos
didáticos devem ser investigados, testados e experimentados pelo professor. Nesse sentido, o
objetivo do ensino de sociologia como, aliás, deveria ser o de qualquer ciência, é proporcionar
a aprendizagem do modo próprio de pensar de uma área do saber aliada à compreensão de sua
22

historicidade e do caráter provisório do conhecimento – expressões da dinâmica e


complexidade da vida.

Considerações finais: projeções para o futuro

Neste texto buscamos afirmar que precisamente os três objetivos gerais para o ensino
da sociologia – (1) contribuição para a construção da cidadania por meio da formação dos
cidadãos; (2) preparação básica para o trabalho por meio do entendimento das novas formas
de organização do trabalho e da produção em tempos de globalização, pela capacitação dos
indivíduos para a leitura do mundo social do qual fazem parte; (3) promoção de uma
compreensão sociológica da realidade na qual estamos inseridos especialmente pelo
desenvolvimento de seu modo específico de pensar, em que seja desenvolvida a percepção
sociológica –, constitui a preocupação fundamental a nortear o ensino da sociologia e a
justificar a sua inclusão na grade curricular do ensino médio.
Não esperamos ter resolvido os problemas apresentados até aqui, mas tão somente
provocar o debate, pois consideramos que somente se seguirmos na direção de elaborarmos
teoricamente, discursivamente, um projeto para a disciplina, teremos êxito na legitimação da
disciplina nos currículos da educação básica. A indiferença para com este esforço pode, ao
contrário, trair uma presunção pouco útil num momento de afirmação do olhar sociológico
como necessário e relevante na formação de nossa população jovem: pode espalhar a crença
de que a sociologia, acima do bem e do mal, é legítima em si mesma. Um argumento
facilmente derrubado e, neste sentido, prejudicial aos desdobramentos da conquista legal pela
inclusão da disciplina no ensino médio.
À pergunta: já podemos nós, cientistas sociais, nos aquietarmos quanto à permanência
da sociologia como disciplina do ensino médio? Pensamos que a resposta a tal questão ainda é
negativa. Vejamos, como exemplo da urgência em produzirmos um discurso coerente acerca
do ensino da sociologia para o ensino médio, a questão do novo ENEM (Exame Nacional do
Ensino Médio), no qual a sociologia não está presente no instrumento de avaliação deste ano.
Sabemos, porém, que, segundo o Inep (Instituto Nacinal de Estudos e Pesquisas Educacionais
Anísio Teixeira), o projeto prevê sua inclusão no ano de 2010 e que há até poucos meses não
17
estava definido quem elaboraria tal instrumento para a área . Diante disso, caberiam as

17
Devemos essas informações ao professor Mário Bispo dos Santos, que inicialmente nos chamou a atenção para
o problema, a partir de sua participação em eventos e mesas, em Brasília, para discussão e apresentação das
mudanças que vêm sendo processadas no âmbito do MEC. A informação que temos até o momento dá conta de
que este quadro ainda não foi alterado.
23

perguntas: haverá um suficiente envolvimento da comunidade dos cientistas sociais no


processo de elaboração do instrumento de avaliação? É possível ou mesmo desejável que
instituições científicas do campo das ciências sociais empreendam gestões para intervirem nos
processos decisórios?
Isso deve nos preocupar. Porque, a nosso ver, assumindo para fins de argumentação
que as alterações em curso são irreversíveis, de um ponto de vista pragmático, não se trataria
de combatê-las, mas de tomar o processo em nossas mãos ou, ao menos, conquistarmos algum
grau de influência sobre o mesmo. Estamos suficientemente organizados para isso? Estamos
preparados para a batalha das idéias com sólidos argumentos a apontarem uma alternativa à
hegemonia da pedagogia das competências?
Tal projeto é extremamente problemático. De um modo geral, cremos que há nele
mais reprodução que mudanças necessárias quanto às políticas de governos anteriores. A
orientação para a integração em áreas, que escapa ao escopo deste paper, apresentada do
ponto de vista psicopedagógico, sequer permite sua crítica. Isso porque o que vem sendo
defendido, na esteira do pensamento pedagógico hegemônico, como interdisciplinaridade,
multidisciplinaridade ou transdisciplinaridade tende a ocultar a dinâmica própria dos campos
científicos. E a transposição para o universo escolar dessa ideologia tem, na prática,
acarretado sobretrabalho e confusão ao trabalho do professor. Possivelmente, a tensão que há
entre movimentos de encontro e produções transdisciplinares entre disciplinas ou saberes,
seja no plano da produção científica, seja no plano pedagógico – do ensino, do trabalho
escolar cotidiano –, é menos a manifestação de uma natureza da ciência e mais o resultado de
movimentos internos aos diferentes campos e dos interesses de distintos agentes.
Algo nos exige a atenção neste momento. Lembremos que, à época dos PCN's, num
momento em que a sociologia mal figurava, a não ser como um tímido horizonte ideológico,
nas expectativas das escolas e das políticas governamentais – todas elas a exigirem a
interdisciplinaridade – o maior desafio tático, por assim dizer, era o de nós, cientistas sociais,
escaparmos às armadilhas da pedagogia por projetos e afins, por meio do que se defendia que
a sociologia deveria ser diluída em outras disciplinas. Para além da questão puramente
epistemológica (se é possível falarmos em epistemologia pura), acreditamos que, por razões
táticas, devemos, ainda hoje, recusarmo-nos a aceitar a noção de diluição da sociologia em
outras disciplinas. Isso porque foi assim à época dos PCN's e nós aprendemos a lição.
Analisando as diretrizes do MEC para o instrumento de avaliação do novo ENEN,
constatamos que, nas áreas definidas, sobretudo pelo modo como estão definidas, não
constam as ciências sociais, entendidas aqui como antropologia, sociologia e ciência política.
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Pode-se perguntar se isso é verdade, já que nas diretrizes temos conteúdos relativos a
processos produtivos, Estado e diversidade cultural. Basta que comparemos essas diretrizes
com o que havia antes e se revela, em larga medida, a reprodução de categorias e conteúdos.
Que erro há nisso? A reprodução é algo indesejável por si só? Claro que não. Porém, ainda
assim, há dois problemas: primeiro, que esta reprodução está tendo o efeito de naturalizar a
idéia de que as competências estabelecidas são naturais e bastam. Isto é, que não precisamos
ir além. Do modo como o processo está sendo conduzido até o presente momento resta pouco
espaço para nós, sociólogos, intervirmos e construirmos algo novo a partir da inclusão da
sociologia como disciplina escolar, à conquista efetuada, pois que as competências elencadas
como sendo as que devem ser desenvolvidas simplesmente não contemplam, em boa medida,
nossas tradições discursivas. Somente quando formos capazes, teórica e politicamente –
dimensões indissociáveis – de incluirmos nestes documentos competências e conteúdos
18
consensuais que nenhuma outra disciplina possa assumir , lograremos chance de
permanecermos como disciplina do ensino médio. E talvez, então, possamos rever
criticamente o próprio paradigma das competências.
Em que pesem os desafios a ser enfrentados, ressalta aos olhos o fato de que o esforço
crescente que se vem realizando em torno do pensar o ensino da sociologia impulsiona-nos.
Ainda se, um tanto aborrecidos, quisermos que as demais disciplinas, há tempos presentes na
escola e fruindo de maior legitimidade que a sociologia, também se dêem igual trabalho,
devemos, talvez, pensar sob outro ponto de vista e supormos que estamos tendo a rara chance
da auto-análise em nosso empenho de projetar uma disciplina mais interessante e relevante
para nossos alunos. Portanto, exercemos aqui, por excelência, nosso ofício de sociólogos:
analistas de nossa história, de nosso legado, de nossos intentos, de nossos feitos, num mundo
de valores em permanente luta.

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Se olharmos mais atentamente as competências definidas e seus conteúdos relativos, observaremos que eles
são normalmente os admitidos nas áreas de história e geografia.
25

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