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O ISIS e a “Revanche de Dieu”: a demonização do secularismo e o

Jihad como estabilizador da cultura Islâmica1

Yasmin Calmet2

The spark has been lit here in Iraq, and its heat will
continue to intensify - by Allah’s permission - until it
burns the crusader armies in Dābiq.
Abu Mus’ab az-Zarqāwī.

Resumo
A revitalização religiosa no Oriente Médio durante as décadas finais do século XX,
puseram em questionamento o modelo de secularização ocidental, assim como abriu
margem para o surgimento de grupos fundamentalistas islâmicos, tais quais al-Qaeda e
o Estado Islâmico do Iraque e Sham. O choque ideológico político entre ambas as
culturas, fortaleceu a ideia desses grupos fundamentalistas que uma reforma estrutural
dos Estados árabes era necessária, sendo estritamente alicerçados em leis da Shari’a
e livres do domínio das leis do Ocidente. Desse modo, a luta contra o ocidente se
intensificam recriando novas formas de entendimento do jihad, sendo uma delas o de
ação político-religioso para expandir o Dar al-Islam (casa do Islã). Assim, o objetivo
deste artigo será analisar o jihad dentro da perspectiva do ISIS como ferramenta
política. A metodologia de pesquisa está baseada no levantamento hemerográfico de
documentos oficiais do Islã e documentos produzidos pelos ISIS. Os resultados
parciais da pesquisa apontam que o jihad, embora visto pelo ISIS como uma
ferramenta de violência política, também se constitui uma ferramenta de segurança e
austeridade no fortalecimento do resgate dos valores religiosos do islã.

Palavras- Chave: ISIS, Jihad, Secularização, Terrorismo.

1
Artigo elaborado para a disciplina SPO510091 – Tópicos Especiais: Abordagens Contemporâneas na
Ciência Política, ministrada pelo Prof. Dr. Julian Borba e Prof. Dr. Tiago Daher Borges
2
Aluna de Doutorado do Departamento de Sociologia Política da Universidade Federal de Santa
Catarina.
Introdução
O processo de secularização no ocidente se deu como forma de separar os
valores e os misticismos religiosos do âmbito da política. Esta separação criou duas
instituições, uma ligada à razão e ao conhecimento científico, e a outra ainda vinculada
aos valores divinos. Essa separação entre a esfera política e a religiosa foi uma
característica que se desenvolveu no Ocidente, criando uma visão de mundo de que a
razão seria a única a trazer desenvolvimento para a humanidade. Essa crença fez com
que os países ocidentais impusessem essa ideologia para outras civilizações, tratando-
as como não racionais, não civilizadas e, por tanto, não seculares.
Nesse contexto, as nações ocidentais estabeleceram governos em alguns dos
países árabes. Entretanto, tais governos sofreram incessantes desgastes, entre outros
motivos, devido às ambiguidades de valores culturais e da percepção da realidade
plural muçulmana. Isto possibilitou o movimento de revitalização religiosa e,
consequentemente, o ressurgimento islâmico a finais da década de 1970, abrindo
espaço para o aparecimento de grupos fundamentalistas, os quais questionavam a
secularização, tais como os valores políticos, sociais e o sistema de exploração da
matéria prima – especificamente o petróleo – impostos pela visão de mundo ocidental.
A ideia de união e de fortalecimento da cultura e valores muçulmanos perante a
hegemonia do ocidente abriu espaço para o surgimento de grupos como a al-Qaeda.
Apesar da al-Qaeda não ter sido o primeiro grupo a aparecer durante o ressurgimento
islâmico, foi o primeiro a perpassar as barreiras transnacionais no mundo moderno,
assim como foi matriz para a criação, no decorrer das primeiras décadas de 2000, de
grupos fundamentais mais radicais contra o secularismo ocidental.
A luta estabelecida pelos grupos fundamentalistas revelou-se em ações
inesperadas contra Estados cujos sistemas de Defesa eram considerados
invulneráveis. Os atentados de 11 de Setembro de 2001, Madri em 2004 e Londres em
2005, foram considerados os maiores atentados terroristas 3 na história do mundo.
Em consequência a esses atentados, a luta do ocidente contra os grupos
fundamentais islâmicos se intensificaram, revelando-se em intervenções militares,

3
Neste artigo não me deterei a trabalhar com a noção de terrorismo. Contudo, é importante explicar que
o conceito é amplamente divergente entre as esferas política e acadêmica, não conseguindo se chegar a
um consenso adequado sobre a sua possível conceitualização.

2
promulgações de leis de segurança internacional, assim como bloqueios econômicos a
países que apoiassem estes grupos.
Entretanto, novos ataques ao ocidente e o surgimento de outros grupos
fundamentalistas, tais como Al-Shabaab, Al-Nusra e o Estado Islâmico do Iraque e da
Síria (ISIS), tem demonstrado que todos os esforços dos países ocidentais em conter a
corrente ideológica radical islâmica tem sido um embate desgastante e pouco eficiente.
Dentre estes novos grupos, o ISIS é, atualmente, o que representa uma real
ameaça não só para o ocidente como para o Oriente Médio. Isto porque, sua
percepção sobre o islã e sobre a execução das leis da Shari’a4 (Lei divina) evidencia
uma corrente muito mais radical do que os outros grupos fundamentalistas.
Atrelada a essa interpretação, surge o fenômeno do jihad como um instrumento
de ação político-religioso contra o secularismo e direcionado para expandir o Dar al-
Islam (Casa do Islã). A minha hipótese é que o jihad é visto pelo grupo enquanto uma
ferramenta estabilizadora da cultura islâmica, sendo não só percebido enquanto
conotação religiosa – o da terra prometida por Alá – senão que também engloba
aspectos geopolíticos, culturais e econômicos.
Diante do exposto, o objetivo deste artigo será analisar o jihad dentro da
perspectiva do ISIS. Para cumprir esse objetivo, o artigo foi estruturado, além da
introdução e conclusão, em três capítulos: a) a secularização e a reinvenção da
religião, b) o ressurgimento da religião islâmica e a ideia de Jihad e, c) o Jihad segundo
os olhos do ISIS.
Por sua vez, a metodologia usada foi baseada em levantamento hemerográfico,
no qual foram utilizados documentos oficiais do Islã, tais como Al-Qur’an, Sunnah e
Shari’a e as revistas Dabiq e Rome produzidas pelo ISIS. O motivo para usar essas
revistas é porque observei que são ferramentas importantes de propaganda e
cooptação de novos membros, proporcionando importantes reflexões sobre a sua
ideologia, a religião e o seu entendimento sobre jihad e política.
Finalmente, especifico que este artigo traz alguns aspectos centrais que serão
abordados na minha tese de doutorado, a qual está em processo de construção.
Portanto, este artigo apresentará conclusões parciais sobre a temática, e espera-se
4
No decorrer do artigo, os termos árabes estarão escritos conforme a sua fonética original e em itálico,
seguido do seu significado entre parêntesis.

3
que com o desenvolver da pesquisa possam surgir novos questionamentos e
pesquisas que possam ajudar a compreender de melhor maneira o fenômeno da
violência política estabelecida pelo ISIS.

1. A secularização e a reinvenção da religião


Religião e razão são dois binômios que, aparentemente, não combinam na
civilização ocidental. Questionamentos sobre como é possível desenvolver a
humanidade sem a intervenção do divino sempre estiveram no imaginário do homem.
A religião é – e foi – a base das civilizações, nela encontram-se alicerçados
valores morais, a construção da identidade e da cultura, conotando uma forte coesão
social. Concomitantemente, essas bases serviram para definir a noção do que é certo e
errado, deslegitimando qualquer outro tipo de comportamento ou cultura que se
opusesse à visão de mundo ditada por uma determinada religião.
Civilização, cultura e religião refletem o estilo de vida de um povo em geral.
Estas envolvem os valores, as normas, as instituições e os modos de pensar aos quais
sucessivas gerações numa determinada sociedade atribuíram uma importância
fundamental (Huntington, 2001, p.46).
Durante muito tempo as religiões dominaram todas as esferas humanas. Nelas,
os interesses dos “representantes” de Deus, podiam sem entendidos como vontades
ou desejos do próprio Deus, designando reis, leis, tipos válidos de conhecimento, e,
sobretudo, guerras e invasões como uma forma de espalhar o domínio e a salvação
divina.
Entretanto, esse poder ilimitado tornou-se, em determinado momento para a
civilização ocidental, uma ameaça para o desenvolvimento e valorização de novos
conhecimentos, assim como para a (r)estruturação do sistema judiciário e político. Os
questionamentos provocados pela reforma religiosa de Lutero, Henrique VIII e Calvino,
permitiram com que novas premissas sejam pensadas sobre o valor da religião no
ocidente, assim como se estabelecesse a racionalização jurídica, a dessacralização do
direito (Pierucci, 1998) e a criação do Estado laico como detentor do domínio da lei. Ou
seja, as pessoas dirigiriam as suas vidas por ações ético-racionais e não mais pela
magia ou misticismo de um valor religioso.

4
Comte (1978) afirma que o desenvolvimento da civilização ocidental se deu pela
necessidade que os homens tinham em buscar novas explicações para fenômenos que
ainda não tinham sido esclarecidos; possibilitando o desenvolvimento da razão e,
assim, a organização das estruturas sociais, das instituições e do conhecimento
científico. Destarte, a ideia de que a sociedade e o Estado podem ser organizados
através da razão, e sem a intervenção da religião e a igreja, é uma das bases para se
pensar na secularização.
Segundo Connolly (2000) a secularização implica no sucesso da separação
entre igreja e Estado, permitindo com que houvesse uma aceitação geral da razão no
domínio público. Em outras palavras, a secularização, nos seus próprios termos,
combina uma organização diferente do espaço público com uma compreensão
genérica de como o discurso e o julgamento ético prosseguem nesse espaço
(Connolly, 2000, p.20, tradução minha).
Por conseguinte, a secularização implica no abandono, redução, subtração do
status religioso e emancipação em relação à própria religião (Pierucci, 1998, s/n).
Assim, com o uso e domínio da razão, a secularização, ao retrair o sagrado, criou uma
realidade pública autossuficiente que promove liberdade e governança sem recorrer a
uma fé religiosa (Connolly, 2000, p.21, tradução minha).
Destarte, a secularização é um reflexo da visão e a relação que nós ocidentais
temos com o mundo. A objetividade racional e a desvalorização da religião encontram-
se alicerçadas na ideia de progresso, o qual procura dominar praticamente o mundo
mediante a descoberta das suas próprias regularidades impessoais (Weber, 2006,
p.151).
No âmbito político, a secularização permitiu a organização do Estado moderno,
gerando instituições que pudessem ser gerenciadas pelo próprio poder político e não
mais pela vontade de Deus ou de um monarca. As regras e leis estatuídas no estado
seriam elaboradas, desde o ponto de vista jurídico, de forma abstrata, baseadas em
considerações científicas e contrapondo-se ao imperium5 (Weber, 2009), ou seja, a

5
Segundo Weber (2009) o imperium era o poder e o direito divino de castigar e/ou vencer à
desobediência por meio da violência e ameaça de desvantagens. Essa pratica jurídica era comum entre
monarcas e representantes da religião cristã.

5
racionalização do Estado traria consigo a criação do direito objetivo e suas formas de
aplicação desde uma perspectiva técnica e racional.
No que concerne à ciência, a secularizado permitiu com que a mesma
prosperasse na construção de novos conhecimentos, o que, por sua vez, levou ao
desenvolvimento de novas ciências. O avanço da medicina, da física, da matemática,
da tecnologia e o surgimento das ciências humanas marcavam a vitória da razão na
vida e no desenvolvimento humano, ao mesmo tempo em que secularistas
modernizadores aplaudiam o grau com que a ciência, o racionalismo e o pragmatismo
estavam eliminando as superstições, os mitos, as irracionalidades e os rituais que
constituíam o cerne das religiões existentes (Huntington, 2001, p. 116).
Contudo, o grau de desvalorização religiosa não é idêntico ao grau da sua
rejeição prática (Weber, 2006, p.152). A secularização pode ter afastado a religião do
âmbito do público, porém não a afastou da esfera doméstica, ocasionando
contradições no plano epistemológico, pois se por um lado se pregava ações baseadas
em questões ético-racionais, pelo outro as ações eram motivadas por valores cristãos
ainda fortemente inseridos no imaginário humano.
Consequentemente, essa ambiguidade trouxe sérias críticas à secularização,
pois se percebeu que o mesmo não conseguiria chegar aos termos de moralidade que
a maioria de seus cidadãos endossa; por tanto, o secularismo em si deriva na direção
de orientações públicas que desafiam a sensibilidade moral de muitos de seus
cidadãos (Connolly, 2000, p. 23, tradução minha).
Ao mesmo tempo, a sensibilidade moral arraigada nos cidadãos permitiu com
que o processo de dessecularização, ou reinvenção da religião, tomasse dimensões
não “esperadas”, sobretudo, a partir das últimas três décadas do século XX, no qual a
religião se revitalizou, expandiu e multiplicou consideravelmente, adentrando-se
novamente em esferas das quais supostamente ela tinha sido neutralizada.
A secularização e a modernidade estão, segundo alguns autores (Kepel, 1991;
Huntington, 2000), em colapso, já que o mundo moderno foi criando mecanismos de
desencaixe que permitiram aos indivíduos procurar novas formas de inserção social. E
isto permitiu com que as religiões se recomponham nos alicerces sagrados nos quais
elas se constituíram antes da secularização. Dito de outro modo, em vez de se adaptar

6
ao sistema secular, as mesmas procuraram se reformar na sua própria essência,
negando, assim, os valores seculares vigentes e até mesmo questionando-os.
Isto significa que, no nível individual, a modernização gera sentimentos de
alienação e anomia, à medida que os laços tradicionais e relações sociais são
rompidos, e conduz a crise de identidade, para as quais a religião dá uma resposta
(Huntington, 2001, p. 91); o que por sua vez tem se constituído um reflexo no âmbito
geral da sociedade.
A religião, sobretudo, os valores religiosos reconfigurados, tem adquirido
novamente poder sobre as questões políticas. Porém não só na civilização ocidental,
senão principalmente na civilização muçulmana. As intervenções políticas dos
governos ocidentais em sociedades tidas como não secularizadas, fez com que se
implantasse uma visão de mundo diferente da sua, na qual os valores dessas culturas,
vistas enquanto bárbaras, fossem categorizados enquanto defasados e não racionais.
Consequentemente a esta percepção, observaremos a formação de uma
crescente resistência contra os valores ocidentais e seculares, promovendo a luta pelo
reconhecimento e restituição da sua identidade e da sua cultura.

2. O Ressurgimento da religião islâmica e a ideia de Jihad


No capítulo anterior fiz menção à revitalização das religiões no ocidente como no
mundo muçulmano. O ressurgimento religioso redundou em que as pessoas voltassem
para as religiões tradicionais das suas comunidades, revigorando e dando novo
significado a essas mesmas religiões (Huntington, 2001, p.116).
No caso da religião islâmica, veio como uma forma de contestação aos valores
ocidentais, procurando restituir a legislação islâmica enquanto forma de fortalecimento
de uma identidade cultural que estava se perdendo pelos desencaixes causados pela
secularização e intervenção de governos ocidentais nos assuntos internos dos países
árabes.
Se bem podemos entender a revitalização islâmica como um amplo movimento
intelectual, cultural, social e político, devemos perceber que a mesma trouxe consigo
percepções diferentes de resgate da cultura árabe: a moderada, guiada por

7
movimentos pan-arábicos que pregava o diálogo com as sociedades ocidentais, e, a
fundamentalista, que insistia na ruptura total e radical das relações e interferências do
ocidente. Ambas as visões conquistaram, dentro e fora da sua sociedade, novos
adeptos, porém num grau muito maior do que o imaginado.
No entanto, a revitalização fundamentalista ganhou mais ênfase em
determinados setores da cultura islâmica. Embora existam divergências teóricas e
históricas sobre em que momento o fundamentalismo se expandiu, é importante
ressaltar três períodos que constituíram e possibilitaram a maturação e a expansão da
ideologia fundamentalista islâmica, sendo estes: a) revolução iraniana em 1979, b)
resistência muçulmana contra a invasão russa no Afeganistão em 1979, ou chamada
guerra do Afeganistão e, c) a guerra do Golfo Pérsico em 1990-1991.
A revolução iraniana colocava os dogmas da religião islâmica acima de todos os
valores democráticos praticados em outras sociedades. As objeções contra o regime
do xá Reza Pahlevi estavam pautadas sobre a forma de governo e o estreitamento de
laços com o ocidente, os quais provocaram, segundo os rebeldes, a desestabilização
dos valores e tradição muçulmana, por esse motivo os rebeldes exigiam reformas
sociais, políticas e econômicas no país.
Com a queda do xá, o aiatolá Ruhollah Khomeini, líder da rebelião, estabeleceu
um estado teocrático, alterando a estrutura social do Irã, rompendo com a cultura
ocidental e estabelecendo doutrinas religiosas como base de organização do Estado;
demonstrando que a religião tinha mais apelo político do que o ethos revolucionário
predominante (Rapoport, 2002, p.26, tradução minha).
Simultaneamente, no Afeganistão, a resistência de grupos contrários à
intervenção russa nos assuntos políticos do país, criou as bases necessárias para o
fortalecimento e surgimento de novos grupos fundamentalistas, tais como o Talibã e a
Al-Qaeda.
A guerra do Afeganistão durou quase dez anos, e tornou-se um assunto
internacional, pois envolveu países como a China, Estados Unidos, Irã, Paquistão e
Arábia Saudita. Estes países deram apoio às forças revolucionárias contra a Rússia, já
que estavam tentando deter a expansão socialista no Oriente Médio e, por sua vez,
obter algum tipo de influência tanto no âmbito político quanto econômico.

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Entretanto, uma vez finalizada a guerra, o Talibã repudiou qualquer integração
política entre grupos étnicos e religiosos no país. Em 1996 se estabeleceu no poder
formando um governo fundamentalista extremamente rigoroso, gerando guerrilhas
internas e a formação de novos grupos radicais islâmicos contrários ao governo Talibã.
Finalmente, a guerra do Golfo Pérsico teve uma conotação islâmica
surpreendente, já que a maioria dos governos árabes se alinhou com o Ocidente pra
deter os desejos expansionistas de Saddam Hussein. Não obstante, o posicionamento
e os discursos do governante iraquiano contra a influência dos países ocidentais
fizeram com que este ganhara o apoio das camadas populares, quem o comparavam
com Saladino6, assim como ganhou o aval de autoridades islâmicas no mundo árabe.
Apesar de a guerra ter resultado desastrosa para o Iraque, a autoridade de
Hussein não ruiu. Mesmo acabada a guerra, a resistência das camadas populares
fomentou o fortalecimento de grupos fundamentalistas islâmicos e do islã político, os
quais incitavam a resistência e violência contra qualquer tipo de intervenção ou
intromissão político militar no país.
É importante destacar que 1979 foi um ano de rupturas significativas para o
mundo árabe, não só porque se iniciava um novo século no calendário muçulmano,
senão porque a redenção tão esperada estava se firmando com a supressão da
influência ocidental e com a elevação dos valores do islã como um meio de
reconstrução de uma identidade que tinha se tornado amorfa e alienante (Kepel, 1991).
A exaltação e revitalização da religião islâmica e as constantes resistências
estabelecidas pelos movimentos fundamentalistas tiveram, segundo Huntington (2001)
um impacto político significativo, já que

o “fundamentalismo” islâmico, comumente concebido como o Islamismo


político, é apenas um dos componentes numa revitalização muito mais
intensa das ideias, práticas e retórica islâmicas e no reengajamento no
islamismo pelas populações muçulmanas. (Huntington 2001, p. 135).

Assim, o surgimento de grupos como al-Qaeda, o ISIS, entre outros, possibilitou


a reformulação da religião islâmica e o estabelecimento do califado através da
perspectiva do Jihad.
6
Saladino, líder e guerreiro muçulmano, é conhecido e venerado por ter libertado o islã da influência
cristã e por ter resgatado Jerusalém dos domínios da igreja católica.

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O Jihad provém da raiz árabe jhd (batalha), entretanto, a mesma também
remete para outras conotações, tais como esforço, superação e luta para alcançar a
perfeição em tarefas difíceis (MARRANCI, 2006). Mencionado no Qu’ran (Corão) e na
Sunnah, o jihad é visto como uma obrigação religiosa, remetendo a elementos
espirituais do islã, porém a sua interpretação contém elementos flexíveis que podem
ser adaptados por diferentes interesses e contextos políticos. Ou seja, o jihad pode ser
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entendido como “Guerra Santa” interpretada a partir do viés do “empenho em busca
com o equilíbrio ao serviço do criador, empenho traduzido como esforço de defesa dos
valores da fé islâmica” (PROCOPIO, 2001, p. 70), ou como a luta militar religiosa contra
todos os inimigos de Alá.
Embora o Qu´ran permita a luta, em circunstâncias de autodefesa e pelo direito
de culto, percebe-se que não há elementos consistentes que remetam à batalha militar
contra os não muçulmanos, e sim no hadid, livro de normas e costumes no qual
encontra-se essa sugestão controversa dos aspectos espiritual (batalha) e militar
(guerra) do jihad (MARRANCI, 2006).
Por sua vez, o entendimento e reconhecimento dessas duas conotações de
jihad, permitiu a categorização de dois tipos de jihad – e jihadistas – al-jihad al-akbar (o
maior jihad) e o al-jihad al-asghar (o menor jihad) (BAKKER, 2006; MARRANCI, 2006).
Ambos são obedientes aos ensinamentos de Alá e de Maomé, porém o primeiro tem
como missão espiritual levar e implementar os ensinamentos de Alá pelo mundo,
enquanto o outro tem a missão militar, podendo usar a violência contra governantes
injustos, muçulmanos ou não muçulmanos, podendo a violência ser um meio de ação
de luta política e social.
A partir dessa perspectiva, as lutas ideológicas entre os grupos fundamentalistas
tem se intensificado. Um exemplo disso é o surgimento de grupos fundamentais
extremamente radicais, os quais percebem que a transformação da cultura islâmica
está além da não intervenção do Ocidente, senão também na inserção e expansão da
religião islâmica no mundo inteiro.

7
Existem divergências com respeito ao termo guerra santa. Segundo líderes da comunidade islâmica o
Jihad é traduzido como guerra santa pelos cruzados como forma de deslegitimar o termo religioso,
havendo uma interpretação muito restrita do que realmente este significaria.

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3. O Jihad segundo os olhos do ISIS
O ISIS é um grupo fundamentalista islâmico que prega o estabelecimento do
califado e da religião islâmica como figura central de governo. O grupo é uma vertente
de al-Tawhid wal-Jihad, que por sua vez se anexa à al-Qaeda no Iraque (AQI) e, após
desacordos ideológicos religiosos, em conjunto com o grupo sírio Jabhat al-Nusra
forma, em 2014, o Islamic State of Iraque and Sham (Estado Islâmico do Iraque e da
Síria).
A ruptura com a al-Qaeda se deu por conjunturas da interpretação do Islã. O Islã
tem dois textos religiosos centrais, o Qu’ran - no qual estaria contida a palavra literal de
Alá, revelada ao profeta Maomé - e a Sunnah, que congrega as memórias verbalmente
transmitidas de geração em geração, a respeito das palavras, ações ou hábitos de
Maomé, em forma de vários Hadith (relatos). Ambos os documentos são considerados
as principais fontes de revelação da Shari’a (VOGEL, 2000).
Se bem é certo que o islã político combina a ideologia religiosa com a ideia de
Jihad, as percepções de enfrentamento do ISIS não aceitavam a estratégia e postura
“passiva” que o Jihad de al-Qaeda tinha perante o Ocidente e, sobretudo, no próprio
mundo árabe.
Para o ISIS, a formação natural estatal se perdeu com a secularização -
separando elementos como política e religião. A visão secularizada, baseada na moral,
transpõe elementos cristãos para as normas que regem o Estado e regem a sociedade
ocidental - laicidade do Estado. O contraponto defendido pelo ISIS, parte do intuito da
não separação dessas duas instituições, desenvolvendo toda a estrutura estatal e suas
ramificações de forma conjunta a religião.
Por este motivo, o jihad deve ser mais enfático, sobretudo dentro do próprio
mundo muçulmano, pois se encontra ainda corrompido pelos resquícios dos valores
ocidentais estabelecidos antes das revoluções reformistas. Desde essa perspectiva, o
ISIS coloca-se na posição de al-jihad al-asghar (menor jihadista), como forma de ter
legitimidade religioso-política, no qual os mujahidin (combatentes) devem tomar as
armas e usar a violência como forma de castigo contra os tawāghīt (infiéis).

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Para Abu Mus’ab az-Zarqawi, primeiro Emir do grupo, o jihad não só ajudará na
expulsão dos kufr (infiéis), mas também é uma etapa necessária para o
estabelecimento do Khilafāh (Califado). Az-Zarqawi, em seus escritos e
pronunciamentos, incentiva a guerra dizendo: “a centelha foi acesa aqui no Iraque, e
seu calor vai continuar se intensificando – pela permissão de Allah – até queimar os
exércitos cruzados em Dabiq8” (DABIQ MAGAZINE, p.5, 2014, tradução minha).
Por sua vez, o porta voz oficial do ISIS, shaykh Abu Muhammad al-‘Adnani,
descreve o jihad como o acordar a uma nova era, nas palavras de al-‘Adnani,

Chegou a hora para as gerações que se afogavam em oceanos de desgraça,


amamentadas no leite da humilhação e governadas pelo mais vil das pessoas,
depois de seu longo sono na escuridão da negligência – chegou a hora de se
levantarem. Chegou a hora da irmandade de Maomé acordar de seu sono, tirar
as vestes da vergonha, e sacudir a poeira da humilhação e da desgraça, pois a
era da lamentação e gemidos desapareceu, e o amanhecer da honra ressurgiu.
O sol do jihad se levantou. As boas novas do bem estão brilhando. O triunfo
aparece no horizonte. Os sinais da vitória aparecem (DABIQ MAGAZINE, nº1,
2014, p.9, tradução minha).

A apologia ao jihad se constitui como algo fundamental, sobretudo quando se


trata de resgatar a terra prometida por Alá. O ISIS resgata uma das falas de Ibn
Hawālah9 que, segundo Alá, diz

Escolha por mim [a qual exército se juntar] se eu alcançar esse tempo. Vá para
o Sham (Síria), pois é a melhor terra de Alá, e Ele fez seus melhores servos
para isso. Caso você não for, então vá para o Iêmen e beba de seus poços.
Porque Alá me assegurou que Ele velará pelo Sham e pelo seu povo (DABIQ
MAGAZINE, n⁰3, 2014, p.11, tradução minha).

Ao mesmo tempo, se ressalta que a violência motivada pelo jihad carrega, como
observado, uma ideologia que pode ser percebida enquanto “um conjunto de ideias,
valores e crenças direcionadas a orientarem a percepção, as atitudes e o
comportamento dos cidadãos sobre assuntos sociais, políticos e religiosos” (GRASS,

8
Situada no nordeste da Síria e a 40 quilômetros de Aleppo, Dabiq é considerada uma das terras
prometidas por Alá aos muçulmanos.
9
Houve dificuldade em achar informações sobre este personagem, não há indícios específicos na
internet nem em sites jihadistas sobre quem é essa pessoa nem o período em que viveu e que cargo
político ele teve.

12
2009, p.24). Sendo assim, a violência constitui-se e fundamenta um sentido a ação
jihadista, tal como observamos na seguinte passagem

Eles costumavam dizer, ‘alguns amores matam’. Eu não acho que isso seja
verdade, a não ser o amor pelo jihad, porque este amor ou te mata de
arrependimento se tu decides abandoná-lo, ou te matará fazendo de você um
mártir fī sabīlillāh (pela causa de Alá) se você decidir atender o chamado.
Depende de você escolher entre esses dois tipos de morte. [...] {que dá a você
vida} Significa guerra pela qual Alá honrou você depois de humilhações,
penúrias e fraquezas, e defendeu você do seu inimigo depois dele ter te
subjugado. [...] O jihad não só te concede a vida ampla no âmbito da ummah
(irmandade muçulmana), mas também te concede uma vida completa no
âmbito individual. [...] Fazer o jihad fī sabīlillāh, é o portão dos portões do
Jannah (paraíso) no qual Alá expulsa as preocupações e arrependimentos das
almas (DABIQ n⁰3, p.28-31, tradução e grifo meu).

A vitória no jihad se constitui como a vitória do estabelecimento do Estado regido


pelas leis da Shari’a. Deste modo, o Khilāfah é visto como uma maneira de estabelecer
um Estado na terra prometida, sendo este o encarregado por devolver a dignidade, o
poder, os direitos e a liderança que o povo islâmico perdeu com a secularização e
intervenção do ocidente.
Segundo a visão do ISIS, o Khilāfah é

O estado onde árabes e não árabes, homens brancos e negros, do


ocidente e oriente serão todos irmãos. Isto é o Califado, a garantia de
que caucasianos, indianos, chineses, shamis, iraquianos, iemenitas,
egípcios, norte africanos, americanos, franceses, alemães e
australianos, serão todos irmãos. Alá juntará seus corações em um só, e
se tornarão irmãos pela Sua graça, amando-se e sacrificando-se uns
pelos outros, parados numa só trincheira, defendendo e protegendo uns
aos outros, sacrificando suas vidas uns pelos outros. Seu sangue se
misturou e tornou-se um, sob uma única bandeira e objetivo, num só
pavilhão, desfrutando da graça e da benção da fiel fraternidade. (DABIQ
n⁰1, 2014, p.7, tradução minha).

A ideia de formação estatal se mostra presente em diversos recortes. Observa-


se uma ideia de estruturação do Estado baseado em seus componentes básicos,
buscando dar base a construção do Khilāfah. Existe assim a necessidade de formação
de um Estado com ideia de conhecimento e poder estatal, de forma que o grupo faz um
chamado aos profissionais de áreas do direito, engenharia, educação e religião. Tais
segmentos legitimam a figura estatal perante a sociedade, não restringindo seu
reconhecimento a parcela local. Partindo da ideia do aparato estatal, faz-se o chamado

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à população local caracterizando uma forma de centralização da gestão pública e
racionalizando a forma estatal como “burocrática”.
Huntington (2001) especifica que o fato dos grupos fundamentais quererem
romper com o modelo de secularização ocidental, não significa que os mesmo não
tenham uma percepção ideal de Estado. Porém, a busca da formação de estado deve
estar sempre vinculada à religião enquanto política e vice-versa, já que tenta-las
separar seria como tentar separar duas faces da mesma moeda.

Conclusão
Até o presente momento, a pesquisa pode revelar que o jihad tornou-se
instrumento de violência política na contrarreforma dos valores islâmicos no mundo
árabe. Embora, o grupo ISIS tenha uma leitura totalmente diferente do significado do
jihad, o mesmo representa uma ferramenta política, não só de ação violenta, como
também uma ferramenta de segurança contra o inimigo permanente que insiste em
deturpar a lógica da estrutura social, cultural e política alicerçadas no islã.
Assim, o jihad é base para a constituição do califado, vinculado à sensação de
austeridade que o Estado Islâmico traria em relação ao resgate de seus valores
religiosos, oferecendo aos seus cidadãos um Khilāfah estruturado nas bases da shari’a,
livre da falta de moralidade ocidental, livre de criminalidade, permitindo o desenvolver
de uma região ordenada e pacifica.
Por sua vez, o uso da mídia moderna é um elemento fundamental para o
fortalecimento e a expansão do jihad, assim como para cooptar novos integrantes, é
preciso lembrar que os movimentos religiosos, inclusive os que são particularmente
fundamentalistas, são altamente competentes na utilização das comunicações e
técnicas organizacionais modernas para difundir a sua mensagem [...](Huntington,
2001, p. 123).

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