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Adaptação do primeiro capítulo do livro “Guia Politicamente Incorreto da

Economia Brasileira” de Leandro Narloch (São Paulo: Leya, 2015).

Ao escrever o primeiro livro de História do Brasil, em 1627, frei Vicente do


Salvador se mostrou incomodado com o que considerava um tremendo desperdício.
Enquanto as casas e os engenhos passavam a noite às escuras porque não havia óleo ou
graxa para alimentar tochas e luminárias, “uma grande multidão de baleias”, fonte
riquíssima de óleo de iluminação, nadava perto das praias da Bahia durante o inverno.
“Era uma pena como a de Tântalo1 padecer esta falta, vendo nadar as baleias, que são a
mesma graxa, por toda esta Bahia, sem haver quem as pescasse”, escreveu.

“Por graça de Deus”, conta frei Vicente, um pescador basco veio ao Brasil e
ensinou o ofício aos pescadores locais. Em poucos anos, uma pequena indústria de
produtos derivados da baleia se formou na Bahia. Nos meses de junho e julho, os
aventureiros encomendavam uma missa, pediam ao padre que benzesse os barcos e saíam
atrás dos mamíferos. Se conseguissem arpoar algum, caíam no mar para amarrá-lo e
depois o levavam até a ilha de Itaparica. Ali, retiravam a grossa camada de gordura dos
animais e a derretiam para transformá-la em óleo. Caçavam entre trinta e quarenta baleias
por temporada.

O trabalho era hercúleo, mas compensava. O óleo de baleia era uma das poucas
fontes de um luxo da época, a luz artificial. Para obter velas, as famílias pobres tinham de
dedicar alguns dias de trabalho para abater um animal, retirar-lhe a gordura, cozinhá-la e
moldá-la num cilindro, para então adicionar um pavio. O óleo de baleia evitava esse
trabalho todo. A partir do século XVIII, os mais ricos podiam comprar velas de
espermacete, um líquido branco e viscoso como o esperma humano (daí o nome),
encontrado na cabeça da baleia cachalote. Velas de espermacete produziam uma chama
limpa, duradoura e inodora, ao contrário das velas de gordura animal, que exalavam uma
fumaça preta e malcheirosa. George Washington, o primeiro presidente dos Estados
Unidos, gastava 15 mil dólares por ano (em valores de 2015) com velas de espermacete
de baleia.

1
Tântalo é o personagem da mitologia grega que foi condenado a viver num lugar cheio de comida e
fontes de água sem poder nunca se saciar. Quando se aproximava, o vento levava a água e os frutos das
árvores para longe.
Nos dois séculos após o relato de frei Vicente, a caça às baleias se espalhou pelo Brasil.
O local onde se desossavam os animais era chamado de armação – por isso há na costa
brasileira tantas “praias da armação”, como em Salvador, Búzios, Florianópolis e Penha,
praia catarinense ao lado do Beto Carrero World. No século XIX, cerca de 4 mil
cachalotes eram capturados por ano em todo o mundo. As baleias provavelmente teriam
sido extintas se alguns capitalistas americanos não tivessem descoberto uma substância
nova para produzir luz artificial: o petróleo.

O querosene, primeiro combustível destilado do petróleo a ser fabricado em


massa, custava menos e produzia uma luz melhor que o óleo animal. Estava para os
baleeiros como o Uber está para os taxistas no século XXI. Quando ele surgiu no mercado,
a caça às baleias começou a morrer lentamente. “Uma das mais extraordinárias criaturas
do oceano foi poupada porque os seres humanos descobriram depósitos de plantas fósseis
abaixo da superfície da terra”, diz o escritor Steven Johnson2.

O império do querosene duraria pouco, porque no final do século XIX, outro


capitalista americano, Thomas Edison, apresentaria uma inovação ainda mais
revolucionária. A lâmpada elétrica garantiria uma vida melhor não só às baleias, mas aos
pobres que não tinham tempo ou dinheiro para custear iluminação artificial permanente.
Até então, quem quisesse ler ou escrever à noite teria de destinar uma boa parte da renda
para velas ou luminárias. A partir da invenção do querosene e da lâmpada elétrica, a luz
artificial entraria numa espiral sem fim de barateamento e popularização. Em 1800, uma
pessoa com salário médio teria de trabalhar uma hora para adquirir reles dez minutos de
luz para leitura. Hoje, com a mesma hora de trabalho, ela adquire trezentos dias inteiros
de luz artificial3. Dos brasileiros mais pobres, 98% têm em casa lâmpadas que deixariam
boquiabertos frei Vicente do Salvador, o americano George Washington ou qualquer
magnata que viveu até o século XIX.

A luz artificial é um entre tantos exemplos deliciosos de luxos que se


popularizaram no século XX. Quase tudo que temos ao nosso redor já foi motivo de
ostentação um dia. Cariocas do século XIX interessados em conhecer o gelo teriam de
esperar chegar ao porto do Rio de Janeiro navios do americano Frederic Tudor, que fez
fortuna exportando gelo dos lagos congelados do norte dos Estados Unidos para cidades

2
Steven Johnson, Como chegamos até aqui. Rio de Janeiro: Zahar, 2015, página 168.
3
Matt Ridley, The Rational Optimist. Fourth State, 2011, páginas 20 e 21.
tropicais do Caribe e da América do Sul. Quando os frigoríficos surgiram, eram tão caros
que só era possível encontrá-los em fábricas e restaurantes. As primeiras geladeiras eram
um luxo que só magnatas ou sortudos conseguiam ter em casa. Hoje, da quinta parte mais
pobre da população brasileira, 92% têm geladeira4. O primeiro importador de geladeiras
podia cobrar cinco anos de salário-mínimo pelo produto, pois era o único fornecedor no
Brasil. Mas então um vendedor de Joinville conheceu dois engenheiros de Brusque, que
produziam peças de bicicletas e de vez em quando concertavam geladeiras importadas, e
os convenceu a montar uma fábrica de geladeiras movidas a querosene, a Consul. Depois,
um engenheiro boliviano radicado em São Paulo criou a Brastemp, abaixando o preço
ainda mais.

As geladeiras e os navios refrigerados transformaram países distantes, como o


Brasil e a Argentina, em grandes fornecedores de carne fresca para a Europa e os Estados
Unidos. A luz elétrica abundante e barata criou uma deliciosa cultura de viver e aproveitar
a noite. E permitiu que nos déssemos o luxo de nos preocupar com a preservação das
baleias, coisa que frei Vicente do Salvador, há quase quatrocentos anos, jamais
entenderia.

4
IBGE, Síntese de Indicadores Sociais – Uma análise das condições de vida da população brasileira 2014,
tabela 2.

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