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O critério quantitativo na distinção entre traficantes e usuários de drogas

Article · November 2019

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Luiz Cardoso
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1

O critério quantitativo na distinção entre traficantes e usuários de drogas


Neste artigo, o colunista Luiz Eduardo Dias Cardoso, a partir do julgamento do STF
quanto à criminalização do consumo de drogas, reflete quanto à adoção de um critério
quantitativo na diferenciação entre usuários e traficantes

Luiz Eduardo Dias Cardoso1

Em 2015, o Supremo Tribunal Federal deu início a julgamento a respeito


da constitucionalidade do tipo penal do art. 28 da Lei de Drogas, que tipifica a
conduta de portar drogas para consumo pessoal. Suspenso em razão de pedido
de vista formulado pelo Min. Zavascki – sucedido, após seu falecimento, pelo Min.
Alexandre de Moraes –, o julgamento deveria ter sido retomado no primeiro semestre
deste ano e, após um adiamento, no dia 6 de novembro, o que não ocorreu em razão
do julgamento das ADCs 43, 44 e 54, sobre a execução em segunda instância. De
todo modo, a Suprema Corte deve voltar à matéria ainda no primeiro semestre de
2020.
No âmbito geral da constitucionalidade da criminalização do consumo de
drogas, pretende-se, aqui, apreciar o aspecto atinente ao estabelecimento de um
limite quantitativo que distinga o tráfico de drogas e o consumo de drogas.
Atualmente, não há parâmetros legais tampouco jurisprudenciais
que permitam distinguir, quantitativamente, essas duas condutas. A Lei de Drogas
apenas estabelece que, “para determinar se a droga destinava-se a consumo pessoal,
o juiz atenderá à natureza e à quantidade da substância apreendida, ao local e às
condições em que se desenvolveu a ação, às circunstâncias sociais e pessoais, bem
como à conduta e aos antecedentes do agente” (art. 28, § 2º). São, como se vê,
critérios eminentemente subjetivos, cujas avaliação fica ao alvedrio da
discricionariedade de agentes de segurança pública, órgãos do Ministério Público e
magistrados.

1
Advogado. Doutorando, Mestre e Bacharel em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina
(UFSC). Especialista em Direito Penal e Processo Penal pela Universidade do Vale do Itajaí (Univali).
Especialista em Direito Penal e Processo Penal pela Academia Brasileira de Direito Constitucional
(ABDConst). Membro da Comissão Especial de Estudos Sobre Mudanças Previstas no Pacote
Anticrime da OAB/SC. Colunista do blog “Consultor Penal” (www.consultorpenal.com.br). Currículo
Lattes: http://bit.ly/LattesLuizEduardo. E-mail: luizeduardo.cardoso@gmail.com.
2

Assim, à míngua de critérios objetivamente pré-estabelecidos, a


diferenciação entre “traficantes” e “usuários” é realizada caso a caso, segundo ampla
discricionariedade confiada a todos os agentes públicos atuantes no processo de
criminalização secundária2 – dos policiais que realizam o flagrante e/ou a investigação
criminal3 até o Judiciário, com participação, ainda, do Ministério Público.
Esse processo de diferenciação tem sido objeto de debates de toda
ordem: da Criminologia à Jurimetria4, são variadas as abordagens incidentes sobre a
matéria.
No livro “A face oculta da droga”5, por exemplo, a criminóloga Rosa Del
Olmo apresenta a “ideologia da diferenciação”, que se assenta sobre “um duplo
discurso sobre a droga, que pode ser chamado de discurso médico-jurídico, por tratar-
se de um híbrido dos modelos predominantes (o modelo médico-sanitário e o modelo
ético-jurídico)”, de forma a distinguir entre consumidor e traficante – ou, como diz a
autora, “entre doente e delinquente”.
Como a sua própria denominação sugere, a forma como se
operacionaliza, na prática, essa ideologia da diferenciação é permeada por
estereótipos a respeito das figuras do traficante e do usuário – estereótipos que, na
distinção entre um e outro, invariavelmente se sobrepõem aos critérios mencionados
pelo art. 28, § 2º, da Lei de Drogas. A propósito, ao discorrerem sobre “as dificuldades
de interpretação envolvendo a dicotomia usuário/traficante”, Mello e Dinu advertem
que “a aplicação do art. 28, p. 2º, da Lei nº 11.343/06, sem o devido cumprimento do
ônus argumentativo, abre margem para verdadeiros autoritarismos na definição de

2
Compreendida como “processo que seleciona e atribui a determinadas pessoas a condição ou
etiqueta de criminosas” (BISSOLI FILHO, Francisco. Punição e divisão social: do mito da igualdade à
realidade do apartheid social. In: ANDRADE, Vera Regina Pereira de (org.). Verso e reverso do controle
penal: (des)aprisionando a sociedade da cultura punitiva. Homenagem a Alessandro Baratta. v. 2.
Florianópolis: Fundação Boiteux, 2002. p. 78).
3
Pesquisa elaborada por Marcelo Semer em relação a sentenças penais alusivas ao crime de tráfico
de drogas apontou que cerca de 89% dos processos têm início com a prisão em flagrante – em 70%
dos casos, por policiais militares. O autor apontou, além disso, que pouco mais de 10% dos casos
tiveram início com investigações prévias, com a realização, por exemplo, de buscas e apreensões
domiciliares ou interceptações telefônicas. A maioria dos casos, pelo contrário, têm origem em ações
de patrulhamento policial ostensivo, cuja seletividade é historicamente conhecida (SEMER, Marcelo;
DIETER, Maurício Stegemann. Sentenciando tráfico: pânico moral e estado de negação formatando o
papel dos juízes no grande encarceramento. Tese (Doutorado em Criminologia), Faculdade de Direito
- Universidade de São Paulo. São Paulo, 2019).
4
Abordagem jurimétrica pode ser conferida no estudo “Avaliação do impacto de critérios objetivos na
distinção entre posse para uso e posse para tráfico: um estudo jurimétrico (disponível em:
https://abj.org.br/wp-content/uploads/2018/12/20190402_abj_criterios_objetivos.pdf), da Associação
Brasileira de Jurimetria.
5
OLMO, Rosa Del. A face oculta da droga. Rio de Janeiro: Revan, 1990. p. 34.
3

quem é traficante, o que reforça a seletividade inerente às práticas penais brasileiras”6,


de forma que fica a “resolução do caso à mercê do enquadramento ou não do réu no
estereótipo de traficante do senso comum jurídico”.
Nesse cenário, a proposta de estabelecer, jurisprudencial ou legalmente,
critérios quantitativos que permitam diferenciar tráfico e consumo é permeada pela
percepção de que tal providência deve facilitar essa delicada distinção, de forma a
mitigar alguns de seus subprodutos perniciosos, tais como os erros judiciários, as
prisões e acusações arbitrárias, bem como a seletividade em que tal diferenciação
invariavelmente se encontra imersa.
Assim, em termos mais específicos, o estabelecimento de limites
quantitativos cria uma presunção, no sentido de que o sujeito flagrado com montante
acima do limite é traficante; se a quantidade de droga que estiver em seu poder for
inferior ao limite legal, presumir-se-á que se trata tão somente de usuário.
As propostas nesse sentido, todavia, não se pretendem absolutas, de
modo que réu eventualmente flagrado com quantidade de drogas inferior ao limite
jurisprudencialmente estabelecido pode ser condenado por tráfico de drogas, assim
como réu surpreendido com quantidade superior àquele limite pode ser condenado
apenas pelo delito de porte para consumo. Seria relativa, portanto, a presunção
quantitativo-jurisprudencial, uma vez que poderia ser derruída de acordo com as
circunstâncias e as peculiaridades do caso concreto.
Muito embora à primeira vista pareça beneficiar os réus, a proposta
esconde um diagnóstico perverso, assim como pode ocultar efeitos deletérios não
apenas para os réus, como também para o sistema de justiça criminal como um todo.
Quanto ao diagnóstico subjacente à proposta, trata-se da percepção de
que o nível de prova de que o Poder Judiciário tem se utilizado para proferir juízos
condenatórios em relação ao crime de tráfico de drogas está muito aquém do
adequado. Já os possíveis efeitos negativos decorrentes da adoção de um
diferenciador quantitativo decorrem da conjectura de que todos aqueles capturados
em posse de quantidade de drogas superior ao limite jurisprudencial seriam
presumivelmente considerados traficantes – já que haveria presunção nesse sentido
–, ao passo que, por se tratar de uma presunção relativa – que, portanto, pode ser

6
DINU, Vitória Caetano Dreyer; MELLO, Marília Montenegro Pessoa de. Afinal, é usuário ou traficante?
Um estudo de caso sobre discricionariedade e ideologia da diferenciação. Revista Brasileira de Direito,
Passo Fundo, v. 13, n. 2, p. 194-214, ago. 2017.
4

ilidida –, nada garantiria que aqueles flagrados com quantidades inferiores


efetivamente seriam considerados meros usuários.
A elaboração desses dois pontos passa por uma breve exposição a
respeito dos standards probatórios e das presunções probatórias.
Quanto aos primeiros, basta recordar, que, em cada processo e em cada
fase processual, há standards de convencimento a serem observados pelos
julgadores, isto é, níveis de prova a partir dos quais se poderá considerar provada
determinada alegação. Para que se formule um juízo condenatório, exige-se a
satisfação do mais rigoroso standard probatório, de forma que deve haver prova além
de qualquer dúvida razoável quanto à culpabilidade do réu; dito de outra forma, não
dever restar qualquer dúvida que se possa reputar razoável.
Já em relação às presunções, particularmente em relação àquelas de
caráter relativo, é necessário ter em mente que o seu estabelecimento tem por objetivo
impor a alguma das partes um ônus probatório superior ao ordinário; em outras
palavras, eleva-se o standard probatório exigido para que se considere provada
determinada alegação.
Embora mais tipicamente utilizadas no direito processual civil, as
presunções não são estranhas ao processo penal. Na verdade, um dos mais
relevantes preceitos do processo penal é exatamente a presunção de inocência, que
permite que se imponha à acusação o dever de comprovar a culpa do réu acima de
qualquer dúvida razoável – o que representa um ônus probatório superior ao ordinário,
materializado no standard da preponderância de evidências. Trata-se, é claro, de uma
presunção relativa, que pode ser derruída por meio da produção de prova além de
qualquer dúvida razoável.
Nesse cenário, como se disse, a utilização de critérios quantitativos para
distinguir consumo e tráfico de drogas implica a adoção de uma presunção relativa.
Como as presunções induzem à exigência de um standard probatório superior ao
usual, a adoção de presunção relativa oriunda da diferenciação quantitativa entre
tráfico e consumo implicaria imputar ao Ministério Público – que detém o ônus da
prova na ação penal – o encargo de satisfazer um nível de convencimento superior
ao da prova além de qualquer dúvida razoável.
Tal standard, todavia, não existe no mundo jurídico ou, se existe, é algo
próximo à certeza absoluta, estado mental subjetivo que por natureza é inatingível em
um processo penal.
5

A partir dessa constatação, é possível traçar duas leituras.


Em primeiro lugar, é possível encarar a proposta de adoção de critérios
distintivos quantitativos como uma medida de “redução de danos” em relação à prática
jurisdicional que tem lugar nas varas e turmas criminais Brasil afora. Diz-se isso
porque prática e pesquisa têm indicado que, em processos atinentes a tráfico de
drogas e delitos correlatos, o nível de prova usualmente verificado é muito baixo, a
sugerir a adoção de um standard probatório inferior àquele imanente ao juízo
condenatório no processo penal.
Nesse sentido, relatório produzido pela Defensoria Pública do Estado do
Rio de Janeiro aponta que 53,79% das condenações pelos delitos relacionados têm
como único fundamento probatório a palavra dos policiais militares que participaram
da prisão do réu. Além disso, em 71,14% dos casos os policiais são as únicas
testemunhas. Quanto às condições socioeconômicas e pessoais dos acusados –
vetores que devem ser observados para a aplicação, ou não, do disposto no § 4º da
Lei de Drogas –, somente 9,84% das decisões as mencionam em suas
fundamentações7.
No mesmo norte, pesquisa elaborada por Marcelo Semer em relação a
sentenças penais alusivas ao crime de tráfico de drogas apontou que cerca de 89%
dos processos têm início com a prisão em flagrante – em 70% dos casos, por policiais
militares8.
Assim, como se antecipou, a adoção de um critério quantitativo esconde,
pois, um diagnóstico perverso: o nível de provas verificado nos processos relativos a
tráfico de drogas fica aquém do patamar ideal.
Diante dessa perspectiva realista quanto a um cenário generalizado de
insuficiência probatória, o critério quantitativo permitiria traçar um limite objetivo entre
consumo e tráfico, de forma a minimizar a discricionariedade judicial na distinção entre
traficantes e usuários.
Daí decorre, então, a segunda leitura possível: a adoção do critério
quantitativo pode aprofundar ainda mais a seletividade do sistema penal e a
discricionariedade envolvida na distinção entre traficantes e usuários, a partir da

7
Relatório final: pesquisa sobre as sentenças judiciais por tráfico de drogas na cidade e região
metropolitana do Rio de Janeiro. 2018. Disponível em: https://www.conjur.com.br/dl/palavra-policiais-
foi-unica-prova-54.pdf. Acesso em 29. jan. 2019.
8
Op. Cit.
6

utilização de uma certa “presunção de traficância”, à qual aludem Bruno Shimizu e


Patrick Cacicedo9.
Ou seja, conjectura-se que, exatamente em razão da seletividade
inerente ao sistema penal brasileiro – que se manifesta com especial contundência
nos processos de tráfico de drogas –, o limite quantitativo serviria como prova contra
reo praticamente absoluta para subsidiar condenações pelo crime de tráfico de
drogas. Em sentido inverso, por conta da relatividade da presunção de que se trata e,
além disso, porque os demais critérios do art. 28 da Lei de Drogas – circunstâncias
subjetivas a serem discricionariamente avaliadas – permaneceriam em vigor, a
apreensão de drogas em montante inferior àquele limite não exoneraria
automaticamente o réu da condenação por tráfico. Assim, as circunstâncias subjetivas
que atualmente já subsidiam essa a distinção traficante-usuário – como o local do
flagrante, a “atitude suspeita”, as condições socioeconômicas, de gênero e de raça –
poderiam rechaçar a presunção e, portanto, fundamentar a condenação pelo delito de
tráfico de drogas, mesmo que apreendida quantidade de droga inferior ao limite
quantitativo.
Dessa forma, um critério adotado para, em princípio, conter o arbítrio
judicial e evitar condenações equivocadas pelo crime de tráfico de drogas poderia
aprofundar as mazelas relacionadas à questão, de modo a tornar ainda mais perversa
a já aludida “ideologia da diferenciação”.

9
Crítica à estipulação de critérios quantitativos objetivos para diferenciação entre traficantes e usuários
de drogas: reflexões a partir da perversidade do sistema penal em uma realidade marginal. Boletim
IBCCrim, v. 286. set. 2018.

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