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27/11/2020 Candidaturas e mandatos coletivos | JOTA Info

PROCESSO ELEITORAL

Candidaturas e mandatos coletivos


Problemas de um modelo (ainda) juridicamente inexistente

DANIEL CARVALHO CARDINALI

27/11/2020 07:27

Câmara Municipal de São Paulo. Crédito: Afonso Braga/Fotos Públicas

Uma das marcas das eleições municipais de 2020 foi o expressivo aumento do número
das chamadas candidaturas coletivas na disputa por uma vaga nas câmaras de
vereadores, consolidando uma tendência eleitoral que deve se fortalecer ainda mais
nos próximos anos, especialmente com o sucesso de iniciativas do gênero em cidades
como São Paulo, Fortaleza, Salvador e Florianópolis.

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Embora o fenômeno esteja fortemente identi cado com a esquerda, existem


candidaturas coletivas em virtualmente todos as siglas da sopa de letrinhas que é o
cenário partidário nacional, com opções para todos os paladares ideológicos.

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As candidaturas coletivas têm por objetivo eleger não um individuo, mas, sim, um
grupo de pessoas, que ocuparão conjuntamente uma das cadeiras daquela
determinada casa legislativa. A dinâmica interna do mandato coletivo se dará
idealmente de forma paritária, horizontal e igualitária entre os “co-parlamentares”, com
a discussão prévia para a de nição dos posicionamentos do mandato nas distintas
questões e temas.

Estas iniciativas vêm a reboque de uma demanda por maior transparência,


participação e representatividade no legislativo, além de representar uma estratégia
eleitoral de soma de forças (e votos) entre sujeitos que talvez não tivessem condições
de competir por uma vaga no parlamento individualmente.

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O problema é que, do ponto de vista legal, as


candidaturas coletivas – e os consequentes mandatos
coletivos – simplesmente não existem, havendo
mesmo quem defenda a sua inconstitucionalidade.

Juridicamente falando, a candidatura eleitoral é feita por um individuo especí co que


estará disputando uma vaga de vereador ou deputado. Da mesma forma, cada cadeira
na casa legislativa é ocupada por uma pessoa determinada.

Como o ordenamento jurídico não as reconhece, a solução encontrada por essas


iniciativas é registrar um dos membros da bancada coletiva como o candidato a
vereador/deputado, e os demais “co-parlamentares” podem posteriormente se tornar
assessores do parlamentar no gabinete, no caso de sucesso eleitoral.

Percebe-se que, formalmente falando, não há igualdade de status e poder entre os “co-
parlamentares”, uma vez que apenas um destes será de fato o parlamentar eleito.

Assim, durante a eleição, por exemplo, será a foto e nome do membro da bancada
registrado como candidato que irá aparecer na urna. Para ns de organização dos
trabalhos da casa legislativa, apenas o indivíduo que é o parlamentar eleito poderá
votar nas matérias, participar das comissões, assinar projetos de lei e demais
proposições, falar no plenário, en m, exercer todas as prerrogativas do mandato
parlamentar.

Ademais, apenas ele/ela gozará das imunidades inerentes ao exercício do mandato


parlamentar, signi ca dizer, por exemplo, que as declarações do “co-parlamentar” de
um deputado estadual ou federal não estarão protegidas pela inviolabilidade penal e
civil.

A igualdade e horizontalidade entre os seus integrantes, embora seja a pedra de toque


dos mandatos coletivos, converte-se em uma questão interna e informal, não havendo
mecanismos para obrigar o membro que seja formalmente o parlamentar eleito a
observar a dinâmica estipulada previamente com os demais “co-parlamentares”, que
formalmente serão no máximo seus assessores, podendo teoricamente ser livremente
substituídos.

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Desta forma, ainda que internamente os membros do mandato decidam que deve ser
adotada uma determinada posição, por exemplo, na aprovação/rejeição de um projeto
de lei, não há muito que possa ser feito caso o individuo que é o parlamentar resolva
adotar posição divergente na hora do voto, o que revela a disparidade de poder
decisório interno real.

Assim, as candidaturas coletivas podem na prática


estar vendendo ao eleitor “gato por lebre”, uma vez
que não têm condições de garantir entregar aquilo
que prometem.

Imagine, por exemplo, uma pessoa vote numa candidatura coletiva, porque se sente
fortemente identi cada com um dos seus membros especí cos.

Se este membro não for formalmente o vereador/deputado registrado, o eleitor não


tem garantias de que a voz daquela pessoa será considerada para as decisões do
mandato.

Considerando ainda a complexidade do nosso sistema de eleições proporcional de lista


aberta, cujas engrenagens são amplamente desconhecidas pelo eleitorado, cabe
questionar em que medida estas iniciativas ajudam na nossa maturidade cidadã ou
servem a gerar mais confusão. Ainda há aqueles que veem nestas iniciativas um
perigoso risco de enfraquecimento do partido politico tradicional como instância de
representação política.

Todavia, mesmo no caso de um mandato coletivo que efetivamente funcione com


horizontalidade e paridade entre os “co-parlamentares”, há di culdades e
complexidades a serem consideradas. Estes mandatos podem tornar muito mais
complexas, demoradas e custosas as negociações políticas dentro da casa legislativa.
Imagine, por exemplo, uma câmara de vereadores com 20 vereadores. Se cada vaga for
ocupada por um indivíduo, é dentro deste restrito universo que as disputas políticas
devem ser feitas.

Se, todavia, tivermos, uma, duas, três cadeiras ocupadas cada por cinco, seis “co-
parlamentares” os custos de negociação e a di culdade para a construção de
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consensos podem crescer exponencialmente, trazendo impactos para a operabilidade


da casa legislativa e para a governabilidade em geral, seja pelo número de agentes
envolvidos, seja pela inclusão de uma etapa prévia de disputa e negociação dentro de
cada mandato coletivo.

Deve-se ser considerada, ainda, que a multiplicação de integrantes de uma casa


legislativa, com a pulverização da responsabilidade de cada mandato por uma
pluralidade de sujeitos, pode tornar mais difícil ao eleitor scalizar a atuação dos seus
representantes. Assim, se muitas vezes já é difícil para o cidadão scalizar um
vereador, imagine scalizar cinco quintos de vereador[1].

Finalmente, as candidaturas e mandatos coletivos levantam questões complexas sobre


a chamada representação descritiva ou simbólica, que traduz a ideia de que os
espaços de poder deveriam espelhar a população brasileira na sua composição.

É fato notório que as casas legislativas são muito mais masculinas e brancas que a
população em geral, sendo não raro simplesmente inexistente a representatividade
parlamentar de grupos sociais estigmatizados como de cientes físicos, indígenas,
população LGBT+, etc.

Parte do interesse destas iniciativas vem justamente no sentido de enfrentar este


problema, o que ajuda a explicar o porquê de serem muito mais numerosas em
partidos de esquerda, normalmente mais sensíveis a estes debates de cunho
identitário.

Com efeito, as candidaturas coletivas procuram muitas vezes trazer uma composição
interna plural e diversa, incluindo membros de grupos que normalmente não estão
representados nas câmaras e assembleias.

Se por um lado não se deve negar a possibilidade de as candidaturas coletivas


representarem um instrumento a possibilitar o acesso de sujeitos subrrepresentados
nas casas legislativas, por outro corre-se o risco de que estas iniciativas possam re etir
mero tokenismo, i.e., uma inclusão de indivíduos pertencentes a grupos estigmatizados
só para “sair bem na foto”, sem real intenção ou potencialidade de transformação da
realidade, especialmente quando estes não são formalmente o parlamentar eleito.

É evidente que deve haver mais parlamentares mulheres, negrxs, LGBT+, de cientes,
etc., porém o ideal é que as diversas identidades e experiências estejam representadas

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em cadeiras/mandatos próprios, em quantidade expressiva no número total de vagas


da casa legislativa.

Estas iniciativas, ainda que tenham seu mérito e boa intenção, correm o risco de
produzir um único parlamentar que congrega e busca representar todas as minorias
dentro do parlamento.

Assim, ao invés de se ter por exemplo um vereador cadeirante, uma vereadora travesti,
um vereador do candomblé, uma vereadora negra, pode-se acabar tendo um vereador
que é um quarto cada uma dessas coisas, num mar de sujeitos hegemônicos.

Neste sentido, medidas a rmativas como a recente decisão do TSE para garantir mais
recursos para candidaturas de pessoas negras talvez possam apresentar maior
potencialidade de alteração da composição das casas legislativas.

Ainda que o mérito em tese das candidaturas coletivas e dos mandatos coletivos delas
resultantes esteja aberto ao debate – e este é um debate mais político do que
propriamente jurídico – o fato é que este é um modelo que parece ter vindo para car, o
que torna problemático que o direito eleitoral e constitucional ainda não tenha
condições de dar respostas adequadas aos questionamentos e di culdades que ele
certamente produzirá na prática.

O episódio 43 do podcast Sem Precedentes analisa a nova rotina do STF, que hoje tem
julgado apenas 1% dos processos de forma presencial. Ouça:

Sem Precedentes, ep 43: Como a nova realidade d…


d…

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[1] Agradeço a Wallace Corbo pela re exão sobre o ponto e pela imagem precisa.

DANIEL CARVALHO CARDINALI – Mestre em Direito Público pela UERJ. Professor Substituto da Faculdade
Nacional de Direito – UFRJ. Autor do livro “A judicialização dos direitos LGBT no STF: Limites, possibilidades e
consequências”. Advogado.

Os artigos publicados pelo JOTA não re etem necessariamente a opinião do site. Os textos buscam
estimular o debate sobre temas importantes para o País, sempre prestigiando a pluralidade de ideias.

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