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CURSO DE MECÂNICO DE MONTAGEM DE PRODUTOS

O AUTO DA BARCA DO INFERNO

Trabalho elaborado pelos alunos


Matheus Loose, Leonardo Lins,
Matheus Garcia e Francisco Bezerra
para a disciplina de Comunicação,
como critério de nota parcial do
período intermediário.
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Resende, 2010.
O AUTO DA BARCA DO INFERNO

Aprovado por:

_______________________
Professor(a)

_______________________
Nota
3

Resende, 2010.

AUTO DA BARCA DO INFERNO


Gil Vicente

O primeiro interlocutor é um Fidalgo que chega com um Pajé, que lhe leva um rabo
muito comprido e uma cadeira de espadas. E começa o Arrais do inferno antes que o
fidalgo venha

DIABO Olha a Barca, Olha a Barca.


Que temos maré boa!
Ora venha o carro a ré
COMPANHEIRO Pronto, Pronto!
Bem esta
e Aperte bem aquela Corda
e despeja bem aquele banco
para a gente que virá.

COMPANHEIRO Olha a barca, Olha barca, hu-u!


Sem demora, que se quer ir.
Oh, que tempo de partir,
louvores a Berzebu!
Ora seu! O que tem feito?
Despeja todo esse leito!

COMPANHEIRO Em boa hora! Feito,


Feito!
DIABO Faça o nó daquela corda da vela e
lance aquele cabo do pavilhão.

COMPANHEIRO Oh-oh,caça! Oh-oh,iça, iça!


DIABO oh, que caravela bela.
Põe as bandeiras para festa
Velas para o alto! Âncora a pique!
- Ó poderoso dom Anrique,
aqui que você vem?... Que coisa é esta?

Vem o fidalgo e, chegando a barca infernal diz:

FIDALGO Esta barca, para onde vai,


que assim está apercebida?
DIABO Vai para a ilha perdida,
e loro ira partir.
FIDALGO Para lá vai à senhora?
DIABO senhor, a vosso serviço.
FIDALGO Isso mais me parece um cortiço...
DIABO É por esta vendo ela de fora

FIDALGO Porém, a que terra passais?


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DIABO Para o inferno, senhor.


FIDALGO Terra bem sem sabor essa.
DIABO Quê?... E também aqui zombais?
FIDALGO E passageiro você acha para essa habitação?
DIABO Eu os vejo em aparência
pelo nosso cais...

FIDALGO Parece-te a ti assim!...


DIABO Em que esperas ter proteção?
FIDALGO Que deixo na outra vida
Quem reze sempre por mim
DIABO Quem reze por ti?
Hi, hi, hi, hi, hi, hi, hi!
E tu viveste pelo seu prazer
cuidando aqui se salvar
por que rezam lá por ti?

Embarca – ou embarcai
Que haveis de ir depois!
Mandai arrumar a cadeira,
que assim passou vosso pai.
FIDALGO Quê? Quê? Quê? Assim lha vai?
DIABO Vai ou vem? Embarca logo!
Segundo lá você escolheu,
assim agora vos contentai.

Pois que já pela morte passastes,


haveis de passar o rio.
FIDALGO Não há aqui outro navio?
DIABO Não, senhor, mas este frestates.
E primeiro que expirastes
Já me deste um sinal.
FIDALGO Que sinal foi esse tal?
DIABO Do que você se contentou.

FIDALGO Até a outra barca me vou.


Hou da barca! Para onde is?
Ah, barqueiro! Não me ouvis?
Respondei-me! Houlá! Hou!...
(por deus, morto estou!).
(Cantar isto é já pior...).
Que jericoncins, salvador!
Cuidam aqui que são eu grou?

ANJO O Que Quer?


FIDALGO Que você me diga,
Por que parti tão sem aviso
se a barca do paraíso
e esta em que navegais
ANJO Sim é esta: o quer comigo?
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FIDALGO Que me deixe embarcar


Sou fidalgo de solar,
é bem que pode me recolher.

ANJO Não se embarca tirania


nesta barca divinal.
FIDALGO Não sei por que será ruim a entrada
de minha senhoria.
ANJO Para sua fantasia
muito estreita é essa barca.
FIDALGO Para um senhor de tanta marca
não há mais cortesia?

Venha a prancha e atavio!


Levai-me desta ribeira!
ANJO Você não veio de maneira
para entrar nesse navio.
O outro vai mais vazio:
a cadeira te servira
e o rabo caberá
e todo o seu senhorio.

Lá você ira mais espaçoso


você é sua senhoria
cuidando da tirania
do pobre povo queixoso.
E poque, de generoso,
desprezava os pequenos
achava-os tanto menos
quanto mais fosse vaidoso.

DIABO Olha a barca, olha a barca.


Oh! Que maré tão de prata!
Um ventozinho que mata
e valentes remadores!

Diz cantando:
Vós meveniredes a lá mano
A lá nano me venereis

FIDALGO Ao inferno, contudo.


Oh triste! Enquanto vivi
não cuidei do que me havia
vivi uma fantasia!
Folgava ser adorado,
confiei em meu estado
e não vi que me perdia
Venha essa prancha! Veremos
esta barca de tristeza
DIABO Embarque doçura
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que aqui nos entenderemos


veremos como você rema,
E, chegando ao nosso cais,
todos nos serviremos bem.

FIDALGO Vou esperar por aqui,


tornarei á outra vida
ver minha dama querida
que quer se matar por mim.
DIABO Que quer se matar por você?
FIDALGO Disso estou certo
DIABO Ó namorado pateta,
o maior que nunca vi!

FIDALGO Como pode ser isso,


Se me escrevia mil dias?
DIABO Quantas mentiras que você lia, e você... Morto de prazer!
FIDALGO Para que é sua zombação,
quem não havia mais no bem?
DIABO Assim vive você, amém,
como tinha te querer!

FIDALGO Isto quando ao que eu conheço...


DIABO Pois estando tu expirando,
se estava ela requebrando
com outro de menos preço
FIDALGO Me da licença, te peço,
que eu vá ver minha mulher.
DIABO E ela, por não te ver,
despenhar-se-á um cabeço!

Quando ela rezou hoje


entre seus gritos e gritas
foi dar graças infinitas
a quem a desassombrou.

FIDALGO Cantar, ela bem chorou!


DIABO Não era um choro de alegria?
FIDALGO E as lastimas que dizia?
DIABO Sua mãe lhe ensinou...

Entrai meu senhor, entrai:


E lá na pranca! Pode por o pé
FIDALGO Entremos, já que é assim.
DIABO Ora, senhor, descance
passeie e suspire.
Logo vira mais gente.
FIDALGO Ó barca, como você é ardente.
Maldita é quem vai a você!
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Diz o diabo ao Moço da cadeira:

DIABO Não entra aqui! Vai-te Dei!


A cadeira é aqui excessiva;
coisa que esteve na igreja
não vai embarcar aqui.
Cá lha darão de marfi,
embutida de Dolores,
com tais modos de lavores
que estará fora de si...

Olha a barca, Olha a barca gente,


que queremos dar á vela!
Chegar ela! Chegar ela!
Muitos de boamente!
Oh! Que barca tão valente

Vem o Onzeneiro, e pergunta ao recebedor da barca do inferno, dizendo:

ONZENEIRO Para onde a barca vai?


DIABO Oh! Que má hora você veio
onzeneiro, meu parente!

Como você chegou tão tarde?


ONZENEIRO Mais eu queria lá tarda...
Na safira do apanhar
me deu saturno quebranto.
DIABO Ora isso muito me espanta
não se livrou do dinheiro!...
ONZENEIRO Só lamente pelo banqueiro
não me deixaram nem tanto.

DIABO Ora entrai, entrai aqui!


ONZENEIRO Não vou embarcar!
DIABO Oh!, Que gentil receio,
e que coisa para mim!
ONZENEIRO Ainda agora faleci,
Deixa-me buscar batel
DIABO Pesar de Jam Pimentel!
Por que não irás aqui?

ONZENEIRO E pêra onde é a viagem?


DIABO Para onde você há de ir
ONZENEIRO Vamos partir logo ?
DIABO Não de mais linguagem.
ONZENEIRO mas para onde é a passagem?
DIABO Para a infernal comarca.
ONZENEIRO Dix! Não vou nessa barca.
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Esta outra tem a vantagem

Na barca do anjo diz:

Hou da barca! Houlá! Hou!


Vai partir logo?
ANJO E aonde você quer ir?
ONZENEIRO Eu para o paraíso vou
ANJO Pois eu muito fora estou
de te levar para lá.
Essa outra te levará;
vai para quem te enganou!

ONZENEIRO Por quê?


ANJO Por que esse bolsão
tomará todo o navio.
ONZENEIRO Juro a deus que o levo vazio!
ANJO Não já no teu coração
ONZENEIRO Lá me fica, de rondão,
minha fazenda e alhea.
ANJO Ó onzena, como você é feia.
e filha de maldição!

Torna o Onzeneiro à barca do inferno e diz:

ONZENEIRO Houlá! Hou! Demo barqueiro


Sabe o que me tem no fundo?
Quero lá tornar ao mundo
e trazer o meu dinheiro.
Que aquele outro marinheiro,
porque me vê vir sem nada,
ne deu tanta borregada
como Arrais lá do barreiro.

DIABO Entra, Entra, e remarás!


Não perca mais maré!
ONZENEIRO Todavia...
DIABO Per força é!
Que te pés, aqui entrarás!
Irá servir satanás,
ONZENEIRO Oh! Triste, quem me cegou?
DIABO Acalme-se, que aqui chorarás.

Entrando o Onzeneiro no batel, onde achou fidalgo embarcado, diz tirando o


barrete:

ONZENEIRO Santa Joana de Valdês!


Aqui é vossa senhoria?
FIDALGO Dá ó demo à cortesia!
DIABO Ouvis? Falai vós cortês!
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Você, fidalgo, cuidarei


acha que esta na vossa pousada?
Dar em vois tanta pancada
com um remo que renegou!

Vem Joane, o Parvo, e diz às Arraias do Inferno:

PARVO Hei você!


DIABO Quem é?
PARVO Sou eu.
É este o nosso barco?
DIABO De quem?
PARVO Dos tolos.
DIABO Sim.
Entra!
PARVO Pulando ou voando?
Poxa, coitado do meu avô!
Morri na hora errada
e deixei-o só.
DIABO Morreu de que?
PARVO De que?
Caganeira.
DIABO De que?
PARVO De defecar merda.

DIABO Entra! Põe o pé aqui!


PARVO É ruim rapaz, ta maluco?!
DIABO Entra homem tolo,
que vamos pela maré.

PARVO Calma, calma pô!


E para onde nós vamos?
DIABO Para o porto do lúcifer.
PARVO Ah ta.
DIABO Que saco! Entra logo!
PARVO Entra logo?
Hi! Hi! Barca do chifrudo.
Seu beiçudo!
Bunda de carrapato!
Hi! Hi! Caga no sapato!
Sua mulher é falida,
e vai parir um sapo,
enrolado num guardanapo.

Chega o Parvo a barca do ajo e diz:

PARVO Ei da barca!
ANJO O que quer?
PARVO Posso entrar?
ANJO Você pode entrar se quiser,
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porque tudo que você fez


com consciência não errou.

Vem um sapateiro com seu avental e carregando várias formas e chega a barca do
inferno, e diz:

SAPATEIRO Hou da barca!


DIABO Quem é você?
Santo sapateiro honrado,
Porque vens tão carregado?
SAPATEIRO Me mandaram vim assim...
E para onde é a viagem?
DIABO Para o lago dos danados.
SAPATEIRO Os que confessaram
Antes da morte vão pra onde?
DIABO Não vem com conversas.
Esta é a sua barca!
DIABO Você morreu seu excomungado.
Não esperava viver né?!
SAPATEIRO Mas não quero ir nessa.
DIABO Entra logo!
SAPATEIRO E as missas que eu fui não valem de nada?
DIABO Ouviu as missas, mas roubou então seu caminho é esse.
SAPATEIRO E as ofertas que eu dei?
DIABO Foram de coração?
SAPATEIRO Não todas.

Vai-se a barca do anjo e diz:

Hei da barca,
Posso ir nessa?
ANJO Seus roubos te condenam.
SAPATEIRO Mas Deus não pode me perdoar?
ANJO Ta vendo aquela barca lá?
Ela é para quem rouba como você.

SAPATEIRO Por favor, me deixa ir, não tem nenhum cantinho ai pra mim?
ANJO Se tivesse vivido corretamente não iria pro inferno.
SAPATEIRO Então você vai me mandar pro inferno?
ANJO Assim está escrito..

Torna-se a barca dos danados, e diz:

SAPATEIRO Vamos embora, sem demoras.

Vem um frade com uma moça pela mão e uma espada na outra. Também levava um
capacete debaixo do capuz, estava dançando e dizendo:

FRADE Eu vou; eu vou;


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pra casa agora eu vou;


parara tim bum;
parara tim bum;
eu vou; eu vou...
DIABO O que é isso, padre?! Pra onde vai?
FRADE Olá tudo bem?!
DIABO Também sabe a dança da corte?
FRADE Sei sim.
DIABO Entra porque eu tocarei,
E faremos um bailão.

E essa mulher é sua?


FRADE É sim.
DIABO Muito bonita ela, mas não a censurou no seu “santo” convento?
FRADE Não.
DIABO Que coisa não?!

Entra aí Padre!
FRADE Para onde você vai nos levar?
DIABO Para o inferno,
O qual não teve medo
a sua via toda.
FRADE Juro por Deus que não te entendo,
E a minha batina não vale de nada?
DIABO Gentil padre mundano,
Ao inferno te mando.
FRADE Como pode Deus?! Eu vou ser condenado?
DIABO Para de me encher o saco,
Entra aí e vamos embora.
FRADE Não vou mesmo!.
DIABO Sinto muito, mas.
Não tenho nada a fazer.
FRADE A meu Deus só me faltava essa.
Só porque eu tenho uma mulher,
E os salmos que eu rezei?!
DIABO Até parece que você não sabia.
DIABO Padre pegador o inferno te espera.

Descobriu o Frade a cabeça, tirando o capuz, e apareceu a careca, e diz o Frade:

FRADE Deus mantenha a minha honra!


Eu fui respeitado.
Eu era invencível.
DIABO Para de se gabar.

Começou o Frade a dar lição com a espada e o escudo, e disse assim:

FRADE Você não é nada seu ridículo,


acabo com você a qualquer hora,
Venha brigar comigo para você ver
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se eu não arrebento você.

DIABO Você é muito homem né


FRADE Não vou deixar você me levar pro inferno!
Não vou queimar lá.

Começou o frade a cantar de novo e foi até o barco do anjo:

Eu vou, eu vou,
para casa agora eu vou,
parara-tim-bum,
parara-tim-bum...

FRADE Tem lugar ai pra mim?


PARVO Onde você roubou está espada padre?
Aqui não tem lugar para você.

FRADE Vamos pra onde merecemos ir.


Não podemos culpar Deus por isso.

DIABO Vamos embora padre.


FRADE É né, que se cumpra esta sentença.

Tanto que o Frade foi embarcado, veio uma cafetina, que chamava-se Brízida Vaz, que
chegou a barca do inferno e disse:

BRÍZIDA Ei da barca, olá!


DIABO Quem chama?
BRÍZIDA Brízida Vaz.
DIABO Entra ai e remaremos.
BRÍZIDA Não quero entra.

DIABO Que coisa interessante você não querer entrar!


BRÍZIDA Não é essa que vou.
DIABO E trouxe alguma coisa?
BRÍZIDA O que me agrada levar.
BRÍZIDA Seiscentos imens postiços
e três arcas de feitiços.

Trago também alguns furtos,


Jóias para usar
e muitas moças que vendi para homens

DIABO Então, coloca o pé aqui e...


BRÍZIDA Eu vou é para o Paraíso!
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DIABO E quem te disse isso?


BRÍZIDA Lá que vou nessa maré.
Apanhei e suportei tormentos
que ninguém teve igual.
Se eu fosse para barca do inferno,
teriam que ir todo mundo.
Portanto, vou para outra barca,
a do fundo.

Chegando à Barca da Glória disse ao Anjo:

ANJO: Eu não sei quem te trouxe...


BRÍZIDA Peço de joelhos!
Eu sou aquela preciosa
que cuidava das moças
e que criava elas.
Santa Úrsula não converteu
Tantas mentes como eu,
todas salvas e nenhuma se perdeu.

ANJO Olha, você vai embarcar lá,


não me pertuba.
BRÍZIDA Eu estou explicando o porquê
de você me levar.
ANJO Não entendeu ainda
que você não pode vir aqui?!
BRÍZIDA Eu servir atoa,
pois nada foi aproveitado.

Voltou a Brízida Vaz à barca do Inferno, dizendo:

BRÍZIDA Ei barqueiros
Onde é o meu lugar ai?
Já tem tempo que estou
Aqui fora e estou cansada.

DIABO Então entra minha senhora


E sereis bem recebida.

Tanto que Brízida Vaz se embarcou, veio um Judeu, com um bode às costas; e, à barca
dos danados dizendo:

JUDEU Quem vai aqui?


DIABO Oh! que má-hora você veio!...
JUDEU Que barca é esta?
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DIABO Esta barca é do barqueiro.


JUDEU. Vou levar o meu dinheiro.
DIABO E o bode irá também?
JUDEU O bode também vai.
DIABO Ele não pode ir!

JUDEU Como vou sem o bode?


DIABO Aqui não vai cabra.
JUDEU Pago quatro moedas
E mais se precisar.
Pela vida dele,
me deixe entrar.
DIABO Nem você vai entrar aqui.

JUDEU Porque um judeu não irá


onde vai Brísida Vaz?
JUDEU O que me diz sobre
as autoridades desse barco?
Corregedor, coronel,
Castiga esses tolos!

PARVO Roubou esta cabra?


Parece a minha d’Almeirim.
DIABO Vai lá porque é mais confortável,
E te deixarão ir.
PARVO Ele mijou nos mortos
Na igreja de São João!

E comia a carne de panela


No dia de Nosso Senhor!

DIABO Você judeu, irá atoa,


Porque é uma pessoa ruim.

Vem um Corregedor, carregado de feitos, e, chegando à barca do Inferno, com sua


vara na mão, diz:

CORREGEDOR Ei da barca!
DIABO Que quer?
CORREGEDOR O senhor juíz está aqui?
DIABO Oh amigo de perdedores.
DIABO Então, entra ai.
CORREGEDOR E para onde vai a barca?
DIABO Olha, te deixaremos no inferno.
CORREGEDOR Como? Vocês vão
Colocar um corregedor na terra dos demônios?
DIABO Santo descorregedor,
Entra ai, e remaremos!
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CORREGEDOR Você não é juíz!


DIABO Ah! Me dá aqui sua mão.
Remaremos uma remo destes.

Faz de conta que nasceu


Para ser nosso companheiro.

CORREGEDOR Oh! Renego a viagem


e a pessoa que vai me levar!
DIABO Não há tal costumagem.
CORREGEDOR Não entendo esta barca.
DIABO Não há tempo, bacharel!

CORREGEDOR Sempre fiz justiça


E trabalhava muito bem.

DIABO E os judeus que sua mulher ficava?


CORREGEDOR Isso por culpa sua.
Não são meus pecados.
DIABO Mas você não temia a Deus

CORREGEDOR Você, demônio, não sabe


que quando há dinheiro envolvido,
o direito e a justiça não se fazem mais necessários?!

DIABO É isso mesmo, portanto entra ai.


Iremos para o lago dos cães.
E você encontrará os escrivães
Que estão bem prósperos.

CORREGEDOR E lá na terra dos danados


que estão os Evangelistas?
DIABO Os mestres das fraudes estão lá mofando.

Estando o Corregedor neta prática com a Arrais infernal chegou um Procurador,


carregado de livros, e diz o Corregedor ao Procurador:

CORREGEDOR Ó senhor Procurador


PROCURADOR Beijo as suas mãos juiz! O que diz este ai?
DIABO Que serás um bom remador
entra ai e vai pegando um remo
PROCURADOR Por que ele nos zomba?
E estas pessoas pra onde vão?
DIABOA Pro inferno amigo
PROCURADOR Eu é que não vou nesse barco ai,
tem outro ali muito melhor.
DIABO Tu ta enganado, entra logo aqui.
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CORREGEDOR Você se confessou?


PROCURADOR Não, e você corregedor?
CORREGEDOR Eu já me confessei
mas não confessei sobre as coisas
rtoubadas por mim.
Por que, se não as torna se,
não iriam de absolver
e muito menos devolver
depois que as apanha se
DIABO Então por que não entrais?
PROCURADOR Espero em Deus.
DIABO Entra logo no meu barco, por que espera mais?

Vão-se ambos ao batel da Glória, e, chegando, diz o Corregedor ao Anjo:

CORREGEDOR Oi anjo, deixe-me entrar em seu barco?


ANJO Oh suas pragas com as almas odiosas!
Por que vindes aqui sendo tão entendidos?
CORREGEDOR Deixe nos entrar como um dos vossos!
PARVO Ei homens que fazem aqui seus mijões,
o lugar de vocês não é aqui!
CORREGEDOR Não seja a nos contrários
pois não temos outro caminho.
PARVO Belequinis ubi unt?
Ego latinu marcairos
ANJO A justiça divina vos manda irem embora
por que vocês vão
no barco infernal.
CORREGEDOR Ó não, não queremos ir.
PROCURADOR Não, não queremos mesmo.
Anda logo saiam daqui seus cagados!
CORREGEDOR Venha vamos para Lá, saber.
Deste segredo.
PROCURADOR Vamos saber sobre essa terra.
DIABO Venha aqui e vocês saberão.

E Tanto que foram dentro no batel condenados, disse o Corregedor a Brizida Vaz,
por que a conhecia:

CORREGEDOR Estais aqui também senhora Brizida Vaz


Brígida Já não estou em paz
Não me deixaram ir lá.

Cada hora entenciada:


<<Justiça que manda fazer...>>
CORREGEDOR E nos... Tornamos a tecer
a outra metade.

Brígida Juiz vem Lá de Lisboa?


Vamos embora neste barco.
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Vem um homem que morreu Enforcado, e, chegando ao batel dos mal-aventurados,


disse o Arrai, tanto que chegou.

DIABO vem pra Cá enforcado!


O que diz Garcia moniz?
ENFORCADO Vou te falar o que ele diz:
que eu fui bem aventurado
em morrer pendurado e por tudo o que eu fiz
já fui canonizado.
DIABO Chega mais, tu governaras ate as portas do inferno.
ENFORCADO Não, não é esse barco que eu devo entrar!
DIABO Eu mando em você, e você vira aqui.
ENFORCADO Oh, não; Garcia moniz me disse que quem morre como eu são
livres de satanás!
E disse que de Deus foi à permissão
de que eu fosse enforcado
e que Deus fosse louvado
que em boa hora eu nasci
e que Deus me escolheu!
e no passado
Ele me disse que o lugar dos escolhidos
era a forca e o limoeiro.

DIABO Tu era consolado com isso, ou te dava algum esforço.


ENFORCADO Com a corda no pescoço, não da pra prestar muita atenção.
Mas entende – se o sermão.

DIABO Entra logo no barco, que pro inferno tu ira comigo.


ENFORCADO O moniz mentiu para mim?
Disse-me que com são Miguel
comeria pão e mel
mesmo sendo enforcado
agora já não sei mais nada
ele não me falou em nada mais a não ser no paraíso
eu não sei o que eu aqui faço
que se é desta glória que eu mereço?
DIABO Ele te disse algo sobre o purgatório?
ENFORCADO Disse que eu estava salvo
pela justiça dos homens
e ate missas rezaram por mim!

DIABO Quero-te desenganar


se o que você disse e fez
certo que serás salvo.
Não o quiseste fazer
- Alto todos em frente
Rumo ao inferno!
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Vêm quatro cavaleiros cantando, aos quais cada um a Cruz de Cristo, pelo qual
senhor e acrescentamento de Sua santa fé católica morreram em poder do mouros.
Absolvidos a culpa e pena por privilégio que o que assim morrem tem dos mistérios da
Paixão daquele que por que padecem outorgados por todos os Presidentes Sumos
Pontífices de Madre Santa Igreja. E a cantiga que assim cantavam quanto à palavra
dela, é a seguinte.

CAVALEIROS A barca, a barca, segura.


barca bem protegida
à barca, a barca da vida.

Todos que trabalhais


por esta vida
lembrai de Deus
A barca, a barca pessoas.
Barca bem protegida,
a barca, a barca da vida.

Vigiai pecadores
que depois da morte
neste rio esta a escolha
da vida eterna ou da morte

DIABO Hei vocês passam e não perguntam aonde vão?


1º CAVALEIRO Satanás porque perguntas?
Olha lá com quem fala
2º CAVALEIRO Você que nos pergunta?
Sequer nos conhece:
Morremos muito longe e não nos pergunte mais
DIABO Vem pra Cá!
Que isso, não entendo por que disto!
CAVALEIRO Quem morre por Jesus Cristo não vai nessa barca!

Tornaram a prosseguir, cantando, seu caminho direto à barca da Glória, e, tanto


que chegam, diz o Anjo:

ANJO Ó Cavaleiros escolhidos de Deus


por vocês estou esperando
que morrestes lutando por
nosso senhor, de todo mal.
Sois livres mártires da santa igreja
e merecem paz eterna

E assim embarcaram.

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