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II Seminário Brasileiro Livro e História Editorial

Repensar o Decreto-Lei 869/69: livros didáticos de OSPB e a formação do cidadão

Cleber Santos Vieira1


Universidade São Francisco/Programa de Mestrado em Educação

Resumo

O trabalho apresenta a história dos livros didáticos de Organização Social e Política do


Brasil, publicados no momento de criação desta disciplina, em 1962, e destaca as
metamorfoses pelas quais passaram após a implantação da Ditadura Militar, em 1964.
Baseado nas formulações sobre a circulação do discurso propostas por Michel Foucault, o
ideário de formação cívica dos cidadãos difundidos por estes livros são examinados à luz
das lacunas existentes entre aquilo que o Estado definiu como Educação Moral e Cívica em
1969 e as definições de formação cívica do cidadão que efetivamente circulavam na
sociedade. Demonstra-se que os discursos cívicos veiculados nos manuais de OSPB não
foram moldados pelo Decreto-Lei 869/69, mas, sim, incorporaram aos seus conteúdos
alguns dos fundamentos autoritários que provocaram este ato jurídico.

Palavras-chave: Livros Didáticos; Educação Cívica; História da Educação; Ditadura


Militar

A afirmação de que os livros de Organização Social e Política do Brasil (OSPB)


conduziram a Doutrina de Segurança Nacional às escolas durante a Ditadura Militar é um
desses lugares-comuns na história da educação brasileira. Talvez a aceitação desta
interpretação seja estimulada pelo forte argumento de que o Decreto-Lei 869/69, ao tornar
obrigatória a presença do civismo em todos os níveis de ensino, criou também uma

1
Cleber Santos Vieira é graduado em História pela UNESP/Franca (1997) instituição na qual também
realizou mestrado na área de História e Cultura (2001). Doutorou-se na Faculdade de Educação da
Universidade de São Paulo (2008) defendendo a tese Entre as coisas do mundo e o mundo dos livros:
prefácios cívicos e impressos escolares no Brasil Republicano. É Professor Auxiliar Doutor junto ao
Programa de Mestrado em Educação da Universidade São Francisco. e-mail: clebersvieira@yahoo.com.br
demanda de manuais escolares produzidos a partir dos postulados da doutrina oficial.
Todavia, a leitura de livros de alguns manuais de Organização Social e Política do Brasil
(OSPB) sugerem a relativização destas análises. Neste trabalho, apresentamos a história dos
manuais de OSPB considerando a lacuna existente entre aquilo que o Estado definiu como
Educação Moral e Cívica em 1969 e as definições que efetivamente circularam na
sociedade.
Ao adotarmos tal procedimento partilhamos da observação feita por Michel
Foucault (FOUCAULT,2002.pp.168-169) que referiu-se à definição estatal de nação
empreendida pela Encyclopédie como sendo os esforços do Estado em refutar ou até
mesmo excluir outras definições de nação que circulavam na sociedade francesa no correr
do século dezoito. Esta orientação metodológica é imprescindível, não só porque permite
compreender os discursos cívicos veiculados pelos impressos de OSPB como pontos de
passagens dos efeitos de poder pretendido pelo Estado, mas também porque ilumina os
discursos cívicos produzidos em outros planos e que se deslocaram na mesma malha social,
no período em que o corpo jurídico normatizador da escolarização do civismo ainda não
havia se constituído em sua plenitude. Para viabilizar a análise, atenção especial será
conferida às apresentações, introduções, advertências e todas os outros discursos
preliminares denominados prefácios que precedem o corpo do livro mas que, de acordo
com Gerárd Gennete (GENNETTE, 2001), constituem importantes vestígios para se narrar
a história do livro.
A análise recai especificamente sobre quatro livros didáticos de OSPB: Victor
Mussumeci (1962); Umberto Augusto de Medeiros (1963), Theobaldo Miranda Santos
(1963), além da publicação oficial (MEC/INEP)2 escrita por Delgado Carvalho (1963). A
seleção do corpus documental justifica-se pelo fato de terem sido obras produzidas em um
processo plenamente articulado ao momento de criação da disciplina OSPB, em 1962
(VIEIRA, 2005). Naquele contexto, o professor Newton Sucupira, membro do Conselho
Federal de Educação, testemunhou de forma engajada a decisão:

Criando a disciplina “Organização Social e Política Brasileira” no currículo da escola


secundária, o Conselho Federal de Educação teve como objetivo preencher uma lacuna
injustificável de nossa escola no que diz respeito à preparação do jovem para o

2
Extenso trabalho sobre as publicações do INEP sob comando de Anísio Teixeira pode ser verificada em
MUNAKATA, Kazumi. Livro didático: produção e leitura, 2001.
exercício consciente da cidadania democrática. Incontestavelmente faltava à nossa
escola este sentido de formação cívica e integração política, que em todos os países
civilizados constituem tarefa essencial da educação secundária. (SUCUPIRA, 1962
p.226)

Os rumos que Sucupira pretendia dar ao artigo 35º da Lei de Diretrizes e Bases
de 1961, que restabeleceu a educação moral e cívica nos currículos escolares, eram bastante
nítidos: criar uma disciplina voltada para a instrução cívica no modelo das democracias
liberais, notadamente França e Estados Unidos. Ou seja, oferecer um conjunto de
referências sobre a estrutura estatal, seus processos administrativos, jurídicos,
constitucionais e sobre a dinâmica sócio-cultural capazes de contribuir na formação e
conduta cívica do jovem brasileiro. Uma acepção próxima ao que Alain Choppin
denominou por instrução ao examinar os manuais escolares e a formação do cidadão na
França3. Tal ponto de vista era compartilhado pelos parceiros de Sucupira que ocupavam,
igualmente, postos estratégicos na máquina estatal, como por exemplo, Anísio Teixeira no
Instituto Nacional de Pesquisas Educacionais (INEP) e Gildásio Amado no Departamento
Nacional de Educação (DNE).
Rapidamente, esta lógica da formação cívica atingiu a produção didática. Ainda
que OSPB estivesse incluída na parte diversificada do currículo, disputando espaço com
línguas estrangeiras, artes e outras disciplinas, e não contasse com programa oficial
definido, autores e editoras lançaram-se em frenética corrida para fazer chegar as boas
novas do CFE às escolas brasileiras. Para justificar a publicação dos livros, os manuais aqui
examinados reproduziram, sem exceção, excertos do discurso cívico do conselheiro
Newton Sucupira.
Com esse gesto, autores e editores distribuíam por vários pontos da malha
social o ideal de fazer da educação instrumento de formação para a cidadania. A rigor eram
educadores e intelectuais que recuperavam um antigo objetivo que surgiu com a República:

3
Para Alain Choppin (CHOPPIN, 1998) a idéia de formar cidadãos e suas projeções nos manuais escolares
“oscila entre dois objetivos dificilmente conciliáveis: por um lado, deve modelar indivíduos de acordo com as
normas sociais? Ou dar-lhes uma informação que lhes permita exercer livremente seu espírito crítico na
urbanidade? O manual, que constitui a elaboração concreta dos objetivos de aprendizagem, flutua
necessariamente entre duas funções: veicular uma ideologia, um sistema de valores, ou então expor
conhecimentos objetivos”.
dar forma à sociedade através da escola e do livro4. A criação da disciplina OSPB ocorreu
em um momento de intensa luta política, no qual a própria idéia do que seria participação
política e civismo era objeto de disputa. Não por outro motivo, participar do Comício de 13
de março de 1964 em apoio do presidente João Goulart era considerado gesto de civismo,
tanto quanto marchar ao lado das alas conservadoras que com Deus pela pátria e pela
família queriam depor o presidente. Com a criação da disciplina OSPB, o estado entrava
decisivamente nesta disputa estimulando edição, publicação e circulação pelo universo
escolar daquilo que os agentes de seus órgãos educacionais consideravam formação cívica
do cidadão (VIEIRA, 2005).
O golpe civil-militar de 1964, bem como o golpe dentro do golpe desferido pelo
AI-5 em dezembro de 1968, atingiu a sociedade brasileira conduzindo-a a um longo
período de cerceamento das liberdades democráticas, limitações e desvirtuações dos
direitos e deveres cívicos. Divisores de água na história do Brasil, 1964 e 1968 repaginaram
a história da educação por variadas ações, dentre as quais se costuma apontar a
obrigatoriedade da educação moral e cívica a todos os níveis de ensino. O decreto-lei
869/69 é, pois, registrado como a extensão acabada da Doutrina de Segurança Nacional e
Desenvolvimento às escolas brasileiras. Para fundamentar esta interpretação sempre aprece
a longa descrição das finalidades da EMC/OSPB:

a) a defesa do princípio democrático, através da preservação do espírito


religioso, da dignidade da pessoa humana e do amor à liberdade com
responsabilidade sob a inspiração de Deus;
b) a preservação, o fortalecimento e a projeção dos valores espirituais e
éticos da nacionalidade;
c) o fortalecimento da unidade nacional e do sentimento de solidariedade
humana;
d) o culto à pátria, aos seus símbolos, tradições, instituições, e aos grandes
vultos de sua história;
e) o aprimoramento do caráter, com apoio na moral, na dedicação à família
e à comunidade;
f) a compreensão dos direitos e deveres dos brasileiros e o conhecimento da
organização sócio-político-econômica do país;
g) o preparo do cidadão para o exercício das atividades cívicas, c
patriotismo e na ação construtiva, visando ao bem comum;
h) o culto da obediência à Lei, da finalidade ao trabalho e da integração na
comunidade.

4
Sobre a inserção dos livros didáticos de instrução cívica e a da história do Brasil ver: BITTENCOURT,
Circe. Livro didático e conhecimento histórico: uma história do saber escolar, 1993.
Mas o hábito não faz o monge. De tal modo, que é necessário discutir o que de
fato a lei 869/69 tornou obrigatório, em particular nos livros didáticos de OSPB, com o
objetivo explícito de legitimar o regime político vigente. Não se tratava apenas de reforçar
o autoritarismo ou de corroborar a militarização da sociedade. Conhecer a realidade
brasileira, com ênfase na estrutura jurídico-administrativa já norteava a escolarização do
civismo desde os primórdios da república brasileira. Agora, porém, a função recaía na
legitimação dos aspectos sociais e políticos da ditadura. Conhecer a estrutura do poder
público em suas variações federal, estadual e municipal; o poder legislativo e os partidos
políticos; as obrigações do Estado na promoção do bem comum. Todos esses aspectos
cumpriam clara função de dissipar os elementos antidemocráticos. Mas numa perspectiva
que está muito longe de se limitar à presença dos militares alojados no poder. Há de se
pensar, sobretudo, nas parcelas civis que compartilharam esse poder e que bem antes de
1969 formularam idéias sobre a educação cívica.
Os manuais didáticos de OSPB induziam o aluno a pensar na organização
social e política do Brasil configurada pelo eixo nas estruturas políticas estabelecidas ao
longo do tempo e, por isso, enraizadas na tradição cívica do país. Os elementos criados a
partir de 1964 (atos institucionais, decretos-lei e sobre tudo a constituição de 1967 e
emenda constitucional de 1969) foram incorporados como parte desta tradição, e não em
termos de ruptura. A combinação desses elementos resultou em verdadeiro arremedo
democrático: eleições regulares para o parlamento, bipartidarismo, eleições indiretas para o
executivo; repressão aos opositores mais aguerridos, armados ou não; intervenção nos
municípios e estados considerados áreas de segurança nacional.
Há, portanto, certa funcionalidade legitimadora da ditadura e do discurso de
preservação dos princípios democráticos, na medida em que as representações sobre a
formação cívica dos cidadãos fabricaram a imagem do golpe civil-militar em termos de
continuidade da vida democrática, cuja linearidade fora ameaçada de ruptura pelo governo
João Goulart. Na visão dos grupos golpistas, no limiar da década de 1960 a organização
social e política do Brasil havia evoluído ao patamar das grandes civilizações, não podendo,
aos solavancos, ser transformada por idéias estranhas à tradição. Conhecer a estrutura
política do país era visto, antes de tudo, como um gesto de preservação de nossa identidade.
Esse arremedo de democracia não operaria por mais de uma década apenas pela força dos
fuzis. As parcelas civis da base social que apoiavam a ditadura necessitavam de um
discurso para justificar junto ao eleitorado e demais apoiadores a adesão ao regime. E a
justificativa não era pelos elementos autoritários, mas sim pelos “democráticos”. Daí
ressaltar o tipo de democracia vigente no país.
Isso explica as razões pelas quais os conteúdos dos livros didáticos de OSPB –
publicados no momento de criação disciplina, portanto, antes do Decreto-Lei 869/69, e
republicados durante todo o período autoritário – permaneceram inalterados em sua
essência. Nem mesmo os prefácios produzidos no calor da hora para dar as boas vindas à
disciplina OSPB foram suprimidos. Da mesma forma os traços do eufórico discurso de
Newton Sucupira apresentando a criação da Nova disciplina permaneceram, indicando sua
importância para a formação cívica do cidadão e para democracia:

“Num país como o nosso, caracterizado por longa tradição de política


patriarcal e oligárquica, e onde predomina ainda uma concepção privatista
do poder, é da maior importância acentuar o Estado como encarnação do
social público, objetivação verdadeiramente impessoal da coisa pública,
que, devendo estar ao serviço, do bem comum, não se encontra a serviço
de nenhum, em particular. Por isso mesmo, não se trata, no caso desta
disciplina, nem de um curso de sociologia, nem de um curso de Direito
Público, mas de um estudo da realidade social e política brasileira com um
objetivo definido: contribuir para a educação política do homem brasileiro
dentro do espírito da democracia.” (SUCUPIRA, In: CARVALHO, 1975)

As palavras de Delgado Carvalho inscritas no preâmbulo à edição de 1967 do


manual de OSPB, reproduzidas nas edições de 1969 e de 1975, talvez esclareça o porquê da
não alteração do texto. Segundo o autor: “o movimento revolucionário de 1964 não
modificou sensivelmente as feições tradicionais da vida nacional. Foram antes os processos
administrativos e atitudes políticas que sofreram alterações” (CARVALHO,1975,p.19). Se,
para o autor, o golpe civil-militar de 1964 não transformou a essência da organização social
e política do Brasil, a orientação cívica dada aos estudantes, do mesmo modo, não deveria
sofrer alterações. A análise desses livros, portanto, indicam que eles mantiveram a leitura
política e os objetivos da educação cívica incorporando os elementos autoritários criados
não para modificar, mas para conservar as tradições cívicas brasileiras.
Desse modo, os detalhes que permitem mencionar certas mudanças nos textos
advieram principalmente da incorporação de mudanças provocadas pela Constituição de
1967 e da emenda constitucional de 1969. Pode-se afirmar que, mesmo antes do decreto-lei
869/69, autores e editoras acrescentaram livremente comentários sobre o regime militar. Os
retoques jurídicos e constitucionais inseridos na estrutura do discurso original são, por esse
ângulo, expressões não da doutrina de segurança nacional, mas da plasticidade que
caracteriza o discurso sobre a formação cívica dos cidadãos. Conhecer as leis é essencial
para o exercício da cidadania, mesmo que esta seja apenas mera formalidade autoritária.
Nesse sentido, a descrição das bases legais da ditadura figura como novidade mais
destacada na estrutura interna dos livros:

No dia 24 de janeiro de 1967 foi promulgada pelo congresso nacional a


nova constituição do Brasil. Esta Carta Magna procurou institucionalizar a
Revolução de 1964, mas manteve a orientação democrático-social da
Constituição anterior. (SANTOS, 1967, p.69)

Em 1967 foi promulgada nova constituição democrática, federalista e


presidencialista, no governo de Castelo Branco. (MEDEIROS, 1967,150)

A carta Magna do Brasil, de 17 de outubro de 1969, é uma Constituição


republicana, federal e democrática, de caráter liberal, sob um regime
representativo.
É republicana porque, além de igualitária, estabelece um Estado
governado por representantes do povo cujos mandatos se renovam
periodicamente, inclusive o mandato de chefe da Nação (presidente).
É federal porque, além do Estado-nação que representa união, existem,
Estados membros, autônomos em determinados setores políticos.
O regime é dito representativo, porque o povo, fone de toda soberania,
exerce o poder, não diretamente como nas democracias da Antiguidade,
mas por intermédio de seus representantes, designados pelo sufrágio ou
voto em eleições livres.(CARVALHO,1975,p.150)

As reedições passaram a estampar “de acordo com Constituição de 1967”,


inscrição que, obviamente, não era fruto apenas de uma preocupação cívica, mas também
editorial. Exaltava-se a constituição de 1967 ou emenda constitucional de 1969, lembrando
sempre tratar-se de uma lei promulgada pelo congresso nacional e não outorgada pelo
poder executivo. Representavam os trâmites normais da democracia representativa
apagando as marcas do autoritarismo. Nos livros examinados, a constituição de 1937
funcionou discursivamente como contraste: outorgada pelo poder executivo mediante o
fechamento do congresso nacional e a extinção dos partidos políticos, a Carta Magna do
Estado Novo era o exemplo de ditadura. Era o contraste autoritário que permitia lançar
luzes na Constituição de 67, legitimando a democracia representativa vigente no país.
Esta perspectiva abriu o leque para interpretações que, sem levar em
consideração o plano histórico, ou seja, o significado da resistência ao autoritarismo na vida
social e política do país, vislumbram a representação cívica autoritária na esfera
educacional como esteio nos movimentos sociais que configuraram o período de abertura.
Nesse sentido, cumpre registrar a tese defendida por Rosa Maria Niederauer Tavares
Cavalcanti (CAVALCANTI, 1989). Pode-se pensar tratar-se de mais uma tese sobre o tema
do civismo dentre as muitas que esmiúçam as práticas de ensino e livros escolares de
educação moral e cívica que insistem em eleger o Decreto-Lei 869 como marco fundador
de tudo que diz respeito ao civismo durante o período autoritário. Mas, não é o caso. Trata-
se de uma tese orientada por Newton Sucupira, um dos criadores da materialização dos
dispositivos envolvendo a educação cívica traçadas pela Lei de Diretrizes e Bases da
Educação Nacional de 1961, ou seja, responsável direto pela criação da disciplina OSPB
em 1962. Na tese, Conceito de Cidadania: sua evolução na educação brasileira a partir da
república, a autora afirma que a educação cívica não foi uma invenção do regime militar, o
que é verdade. E, nesse ponto, é preciso reconhecer o pioneirismo do trabalho de
Cavalcanti ao tratar o tema da formação do cidadão em uma perspectiva temporal que
abrange o período republicano como um todo. Porém, afirmar que a “Campanha das
Diretas Já” possa ser interpretada como desdobramento direto do Decreto-Lei 869/69, ou
seja, da obrigatoriedade educação cívica nas escolas é, no mínimo, despropósito. Nas
palavras da autora

“a educação Moral e Cívica, em suas várias modalidades, torna-se componente usual


da legislação de ensino, vindo assumir, nas décadas de sessenta, tratamento especial
em legislação específica (Decreto nº 58.023, de 21 de março de 1966; Decreto nº 869,
de 12 de setembro de 1969; Decreto nº 68.065, de 14 de janeiro de 1971; parecer
nº94/71, de 4 de fevereiro de 1971, do Conselho Federal de Educação).
Delineia-se, no curso dessas duas décadas e através da referida legislação específica,
um funil que se estreita e conduz, em sua essência, teoria e prática de civismo, cujos
resultados talvez pudessem, de alguma forma, ser identificados nos grandes
movimentos cívicos das Diretas Já e da mobilização em torno da constituinte, assim
como em grande parte dos eventos político-sociais do momento atual”
(CAVALCANTI, 1989, p.136)
Os movimentos políticos delineados durante a abertura política apontam
exatamente para a necessidade de repensar o alcance Decreto-lei/869. Seus efeitos não
resistiram ao exercício cívico de milhões de brasileiros excluídos do sistema escolar que se
uniram a ex-presos políticos, comunidades eclesiais de base, operários sem-terras e setores
progressistas das camadas médias urbanas que reivindicavam liberdades democráticas. Os
livros publicados sob a égide do 869/69 não seriam capazes de produzir a festa cívica
democrática representada pelas Diretas Já. Foi a espontaneidade popular somada às
parcelas democráticas politicamente organizadas antes, durante e depois da Ditadura, com
ou sem armas, que reinventou o civismo. O escopo da participação política foi ampliado
para além do âmbito institucional, não apenas porque engajava novos atores, mas também
porque preenchia o lugar da política com a folia da festa popular (RODRIGUES, 2003,p.83
). Como chamou atenção Marlyse Meyer e Maria Lúcia Montes:

é como cidadão que, ao reivindicar seus direitos, sobretudo o direito de


eleger seus próprios governantes, cada participante da festa política se
redescobre como membro da comunidade da nação (...) e essa descoberta,
como experiência coletiva, só foi possível através da recriação da festa e
graças ao substrato da cultura popular através dela reinventado. (apud
RODRIGUES, 2003,p.83)

Assim como não instituiu exclusivamente o discurso veiculado pelos livros


didáticos de OSPB, o Decreto-Lei 869/69, apesar de só oficialmente ter sido extinto em
1993 (Lei 8.863, 14 de junho, 1993) não teve força para impedir a elaboração de livros de
OSPB sintonizados com a cultura política democrática que se configurava a partir de 1978.
Nesse sentido, o período compreendido entre o início da abertura política até a estabilização
política da nova república pode ser considerado como substrato histórico em que, conforme
salientou André Chervel, antigos manuais ainda circulam:
mas pouco a pouco, um manual mais audacioso, ou mais sistemático, ou
mais simples do que os outros, destaca-se do conjunto, fixa os “novos
métodos”, ganha gradualmente os setores mais recuados do território, e se
impõe. É a ele que doravante se imita, é ao redor dele que se constitui uma
nova vulgata” (CHERVEL,1990,204)

Esta reflexão pode ser projetada ao papel desempenhado pelo manual didático de
Frei Betto, OSPB: introdução à política brasileira. Pelos temas, abordagem, ênfase na
participação social e pela própria biografia do autor, tornou-se símbolo de outra forma de
conceber a disciplina OSPB e a formação do cidadão. Discutir em minúcias o significado do
livro didático escrito por Frei Betto, porém, fugiria, nesse momento, do escopo temático
proposto para esta comunicação.

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