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CURRÍCULO ESCOLAR: O QUE SE LÊ E O QUE SE VÊ

Alunasdo 32ano de Pedagogia


FE/PUC-Campinas*

A intençãodeste artigo é refletir sobre o dessa produção valiosa na área1, há ainda


significado de currículo, a sua elaboração e muitos equívocos até mesmo quanto ao signi-
implementação, visto que os estudos e as ficado do termo currículo.
leituras realizadas sobre este assunto têm ge- A partir das observações durante os está-
rado questionamentos quanto às teorias exis- gios realizados em escolas, exigência dos cur-
tentes e às práticas presentes. sos de Pedagogia e Licenciaturas, percebe-se
O currículo começou a ser tratado como que a grande maioria dos envolvidos com a
campo de reflexão a partir de 1918, com John prática educativa entende currículo apenas
Franklin Bobbitt, em sua obra "The Curriculum", como uma mera grade de disciplinas, cujos
conteúdos devem ser cumpridos durante o
que tinha enfoque empírico-analítico. No Bra-
período letivo. A importância do currículo ainda
sil, porém, o aumento de material que trata do
não está difundida largamente entre os profis-
assunto começou a ser notado no fim da déca-
sionais da escola, tanto que, quando consulta-
da de 80 e início da década de 90. Alguns livros
dos, muitos professores, além de desconhece-
são traduzidos de autores estrangeiros, embo-
rem o significado atual do termo currículo,
ra já tenhamos significativas produções no
possuem uma visão ingênua do mesmo e sua
nosso país.
relação direta com o ensino. Não se entende
Estudos relacionados ao tema apresen- currículo como um percurso de aprendizagem,
tam três paradigmas curriculares: o técnico- um todo articulado, não neutro e, na prática,
linear, o circular-consensual e o dinâmico- não são percebidas as intençõesque o determi-
dialógico. O paradigma técnico-linear é o deri- nam. Visto desta maneira, os professores e a
vado daqueles estudos iniciados por Bobbitt, equipe escolar não entendem como assunto
cujo interesse técnico sugere a transposição para a área do currículo a preocupação com a
dos princípios da administração empresarial função social da escola e com o tipo de forma-
para dentro da escola. O circular-consensual, ção que se pretende proporcionar aos
que tem enfoque histórico-hermenêutico, ba- educandos.
seia-se na interpretação do mundo através da
linguagem e do pensamento, e o paradigma Isto nos remete ao papel da escola no
dinâmico-dialógico baseia-se na pedagogiacrí- atual sistema. Ao não se dar conta de questões
tica, que vê a escola como espaço de eman- importantes como a questão curricular, por
cipação popular (MACDONALD, 1975).Apesar exemplo, ela mantém a sua face conservado-

(') Texto coletivo produzido pelas alunas do 3° ano de Pedagogia da Faculdade de Educação da PUC-Campinas: Silvia Helena O.
Piazentino, Onéa Santos Arruda, Aneci R.S. Campolina, Cibele Martins dos Santos, Angélica Bergantin, Elaine Conceição
Domingues Braga, Regiane Morandi Hummel, Waldirene Silveira S. Pedrini, na disciplina Teoria do Currículo, sob a coordenação
da Prola Dra Miriam Pascoal.
(I) José LuizDomingues, (1986) e João Cardoso de Palma Filho(1990),aprolundamessa questão.

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ra, reproduzindo a ideologia dominante, valori- servisto atravésda indisciplinae desmotivação.


zando a concepção bancária de educação, sem Eis aí um ciclo vicioso que é preciso cessar.
levar em conta não só a realidade vivenciada, Criança, jovem e adulto motivados não
mas também os desejos dos seus alunos. são indisciplinados. Mas o que a disciplina tem
A Escola cultiva posturas individuais,tan- a ver com currículo? Quem é o responsável
to dos professores como dos alunos; o horizon- pela disciplina na escola?
te observacional dos alunos na sala de aula é
Observa-se na escola que a disciplina é
reduzido, por conta da disposição das carteiras uma questão que deve ser trabalhada não só
enfileiradas, uma atrás da outra, ou seja, favo-
peladireção. São necessáriasregras, preferen-
rece-se a "pedagogia da nuca". Mas o leitor(a)
cialmente partilhadas com os alunos desde o
deve estar se questionando: até a disposição
momento de sua elaboração. Mas, o que é
das carteiras na sala de aula também faz parte
considerado como disciplina pela equipe esco-
do currículo? Para responder tal questão é só
lar? Provavelmentefazer a coisa certa, na hora
pensar nas conseqüências de uma sala de aula
com carteiras enfileiradas. Os alunos apren- certa, do jeito certo, sem prejudicar ninguém.
dem que precisam manter sempre a mesma Neste sentido, todos os membros da equipe
"ordem", absorvem o conceito de que precisam escolar precisam ser coerentes, precisam ter o
ser estáticos, trabalham separados, o que re- mesmo norte, porque caso contrário poderão
força o individualismo, não vêem a face uns ocorrer muitos conflitos no desenvolver do tra-
dos outros, apenas a nuca, aprendem a não balho. Os limites são fundamentais, mas preci-
observar o rosto das pessoas e suas expres- sam ser os mesmos para toda a equipe. E não
sões, não valorizam o sentimento, a alteridade, é isso o que se vê.
ou seja, o individualismo leva o aluno a não É preciso que o professor, o coordenador,
aceitar a singularidade de outros indivíduos. a equipe pedagógica toda pare e analise os
Além disso, a escolase mantémrepetitiva, resultados que suas posturas têm desenvolvi-
incentivando as relações de competição que do. Se os resultados não estão bons, é preciso
negam o saber, enquanto o papel do professor revê-Ios, descobrindo os porquês de sua exis-
é o de simples transmissor de conhecimentos. tência propondoformas de superação da situa-
O que se vê é o tratamento de todas as ção. Paratal é fundamental o trabalho cole-tivo.
disciplinas baseado em teorias tradicionais, Reflita, leitor, por um momento sobre um
sem a metodologia adequada específica, sem fato. O tipo de cidadão que queremos formar
integrá-Ias entre si, não aproveitando o conhe- está explicitado no Plano Escolar e nos conteú-
cimento dos alunos, o seu cotidiano, o que lhe dos e disciplinas que se quer trabalhar? Se em
está próximo, para construir, reelaborar os co- nível de discurso está bem delineado, como se
nhecimentos sistematizados já existentes. justifica uma postura incoerente dentro da sala
A escola continua teimando em dico- de aula?
tomizar o pensar e o fazer, a ser mera Há, por exemplo, na prática educacional,
transmissora de conhecimentosdissociados da a predominânciados chamados "currículoocul-
realidade. Desconhece questões atualmente to" e "currículo nulo"?
discutidas como: currículo oculto,currículonulo,
O "currículo oculto" é o principal veículo
a necessidade de se planejar o currículo e da aprendizagem de valores e atitudes, mas
outras questões mais.
nem sempre ele serve apenas para passar
A decorrência natural desse modo de agir atitudes, normas e valores negativos, que le-
da escola é o desinteresse do aluno, que pode vam à passividade e ao conformismo. O cur-

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rículo oculto pode oferecer oportunidade de Planejar o currículo não é só escolher


interação entre o planejado, o inesperado e o conteúdos,mastambémorganizarexperiências
não reconhecido. É nessa interaçãocomplexae e situaçõesque garantam a aprendizagem. Daí
contraditória que se dá o processo de constru- a importância de se levar em conta o cotidiano,
ção do conhecimento na escola. a leiturade mundodos alunos,a cultura de cada
Para que seja um currículo oculto expres- um, a fim de avançar e incentivar a discussão e
a crítica, favorecendo o confronto de diferentes
sivo, que ensine e colabore na construção
cotidiana, é necessário que junto à aprendiza- opiniões e a construção coletiva do conheci-
mento.
gem dos conteúdos se adotem valores e nor-
mas de conduta para que a aprendizagem não De acordo com VEIGA (1991:87), as de-
seja alienada, mas feita crítica e coletivamen- cisõesbásicasdo currículo abrangem questões
te, promovendo a cooperação, a convivência referentes ao "o que", "para que", e o "como"
democrática, a compreensão do outro, os valo- ensinar articulados ao "para quem". Após essa
res de solidariedade, igualdade e justiça. Mui- elaboração, o próximo passo é colocar em ação
tas mensagens do currículo geram contradi- tudo o que foi discutido e decidido coletivamen-
ções com o contexto social devido a falta de te, avaliando constantemente a execução do
relação e descontinuidade entre diferentes plano curricular, verificando os acertos e as
mensagens curriculares. necessidades de reajustes.
O "currículo nulo" é entendido como aqui- Todo o processo de elaboração de um
lo que os alunos não têm a oportunidade de plano curricular coletivo, que contemple a rea-
aprender sob a responsabilidade da escola. lidade e as experiências dos alunos e da comu-
Problemas e conflitos contemporâneos, expe- nidade, só terá significado e será executado se
riências e saberes populares, sexualidade, a os professores e os profissionais não docentes
tecnologia moderna etc. engrossam os conteú- sentirem-se parte deste contexto.
dos do currículo nulo. Costumam estar ausen-
O currículo pensado e praticado desta
tes nas práticas curriculares dificultando, as- forma desencadeará maior participação e com-
sim, a capacidade do alunode perceber o papel promisso de todos, nos inúmeros aspectos
real que precisa desempenhar na luta pela inerentes ao processo de ensino e aprendiza-
transformação social, bem como de viabilizar gem, que precisam ser realizados para que a
sua participação nessa luta. Romper com a escola cumpra o seu papel de socializadora do
situação atual e assegurar a autonomia da conhecimento instrumentalizando as pessoas
escola promoveriamde fato aprendizagensfun- para que sejam agentes das transformações
damentais para uma escola real,que atendeum sociais.
aluno real, que se situa num mundo real.
Por fazer parte da totalidade social, o
Para reverter esse processo, é imprescin-
currículo precisa ser historicamente situado e
dível que o currículo seja planejado coletiva-
culturalmente determinado.
mente, partindo de uma realidade concreta na
qual a escola está inserida, compreendendo e Para que a escola seja um espaço de
explicando essa realidade de forma crítica, construção e não apenas de transmissão do
definindo as prioridades para que a escola conhecimento, deve-se levar em consideração
proponha alternativas de superação ou as condições desta escola e toda sua estrutura
minimização das dificuldades. material e funcional a fim de promover o desen-
Cada escola deve ter a sua proposta volvimento do trabalho coletivo. As condições
educacional, uma diretriz metodológica tradu- econômicas e culturais determinam as neces-
zindo a concepção que se tem dos processos sidades específicas do aluno e da comunidade
de conhecimento, ensino e aprendizagem. em que se insere, influindo na escolha adequa-

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da dos conteúdos a serem trabalhados. Enfim, 1997). Em contrapartida, o que se vê na prática


tudo o que ocorre na escola precisa ser discu- são currículos inadequados, mal planejados, o
tido no momento do planejamento curricular. que nos leva a questionar se os conhecimentos
É bom lembrar que o currículo precisa produzidos chegam à sala de aula e ainda, a
estar em contínuo movimento pois o mundo validade real dos estágios.
não pára e por isso a reflexão acerca dos
problemas que nos afrontam deve ser feita
Referências Bibliográficas
conjuntamente. Como? Na escola, a equipe
pedagógica pode aproveitar ao máximo os
momentos de reuniões pedagógicas, reunião APPlE. M. Ideologia e currículo. São Paulo.
Brasiliense, 1983.
de pais, conselhos de classe, etc., para refle-
xão e conseqüente conscientização dos limi- BRASIL. Secretaria de Educação Fundamen-
tes e possibilidades para a transformação. tal. Parâmetros Curriculares Nacionais: in-
O professor enquanto mediador da cons- trodução. Brasília: MEC/SEF, 1997.
trução do conhecimento precisa estar sempre DOMINGUES, J. L. Interesses humanos e
pesquisando, investigando o mundo que o cer-
paradigmas curriculares. Revista Brasileira
ca, enriquecendo seu conhecimento bem como de Estudos Pedagógicos. Riode Janeiro, 67
sua própria prática. Estamos inseridos no mun- (156): 512-66, maio/agosto. 1986.
do e para poder transformá-Io é preciso com-
preender tudo o que faz parte dele. GIROUX, H. Escola crítica e política cultural.
A escola e o currículo são elementos São Paulo: Cortez, 1987.
chaves que promoverão ou não a construção e MOREIRA, A. F. e SilVA, T. T. (orgs.) Currícu-
reconstrução de saberes e conhecimentos. lo, cultura e sociedade. São Paulo: Cortez,
Neste sentido, o que se lê sobre a questão nos 1995.
revela uma proposta progressista de utilização
do currículo baseada nos seguintes pressupos- MOREIRA, A.F. Escola, currículo e construção
tos básicos: do conhecimento. Tecnologia Educacional-
. Educação escolar como parte integran- v. 22 (118) mai/jun, 1994.
te da sociedade; . Currículo: questões atuais.
. Trabalho em prol das camadas mais Campinas, SP: Papirus, 1997.
pobres da população;
PALMA FilHO, J.C. Fundamentos da constru-
. Preparo do indivíduo para a vida sócio- ção curricular. In: Educação Pública: ten-
política e cultural; dências e desafios. São Paulo: CERED,
. A escola como espaço de luta, de con- 1990.
testação;
SANTOS, L. P. Currículo e diferenças culturais
. Direito de todos a uma formação bási-
em templo de globalização. Presença Peda-
ca.
gógica. V. 2 n° 10 jul/ago. 1996
Em resumo, o que se lê hoje em dia sobre
currículo são contribuições valiosas de vários SilVA, T. M. N. A construção do currículo na
autores, para que se altere a face da escola, sala de aula: o professor comopesquisador.
desmitificando alguns conceitos e preconceitos São Paulo: E.P.U., 1990.
tão presentes na mesma. Tais contribuições SilVA, T.T.S. Currículo e cultura: uma visão
nos levam a um mundo de informações que pós-estruturalista. Caderno de Pedagogia.
podem, uma vez absorvidas pela equipe esco- Faculdade de Educação. UNICAMP, 1997.
lar, favorecer o processo pedagógico e, quem
sabe, fazer com que o currículo seja entendido VEIGA, I. P. A (org.) Escola fundamental: cur-
"comoopróprioambienteemação". (MOREIRA, rículo e ensino. São Paulo: Papirus, 1991.

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