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A escola contemporânea diante do fracasso escolar

RELATO DE EXPERIÊNCIA

A escola contemporânea diante


do fracasso escolar

Marilene Gonzaga Gomes Travi; Lisiane Machado de Oliveira-Menegotto; Geraldine Alves dos Santos

Resumo – A escola contemporânea encontra-se diante de


transformações constantes da sociedade. Esta situação obriga que a escola
se posicione no sentido de modificar os paradigmas das concepções de
ensino-aprendizagem, uma vez que o fracasso escolar se impõe de maneira
acentuada na atualidade. O presente artigo objetivou discutir os desafios
da escola contemporânea diante dos problemas de aprendizagem e da
inclusão, utilizando-se de uma vinheta de caso clínico de um adolescente
com representativos problemas de aprendizagem. O caso ilustra o fracasso
escolar como produto de uma complexidade de fatores, exigindo um olhar
amplo e integrado, a partir de uma interface entre o trabalho clínico,
educacional e a família. Retrata uma experiência de inclusão exitosa, a
partir de um trabalho de cunho interdisciplinar entre a Psicopedagogia, a
Psicanálise e a Pedagogia. A escola como possível (re)produtora do fracasso
escolar é objeto de discussão no presente artigo.

Unitermos: Instituições acadêmicas. Transtornos de aprendizagem.


Psicologia. Psicopedagogia.

Marilene Gonzaga Gomes Travi – Psicopedagoga, Correspondência


Especialista em Educação Inclusiva, mestranda em Marilene Gonzaga Gomes Travi
Inclusão Social e Acessibilidade da Feevale. Rua João Pedro Schmitt, 750 - Bairro Rondônia -
Lisiane Machado de Oliveira – Menegotto-Psicóloga. Novo Hamburgo, RS - CEP: 93415-640
Mestre e doutora em Psicologia do Desenvolvimento E-mail: maritravi@terra.com.br
(UFRGS), docente, pesquisadora e extensionista da
Feevale.
Geraldine Alves dos Santos – Psicóloga. Mestre
em Psicologia Clínica, Doutora em Psicologia,
Pós-doutorado na Faculdade de Serviço Social da
PUCRS. Professora titular e Pesquisadora do Curso
de Psicologia e do Curso de Mestrado em Inclusão
Social e Acessibilidade da Feevale.

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Introdução são privilegiadas e outras não conseguem


A escola contemporânea se vê diante das ter acesso ao conhecimento. Nessa mesma
transformações da sociedade, obrigando-a a perspectiva, Bossa3 afirma que: “Vivemos em
buscar novos posicionamentos. Tais posicio- um país em que a distribuição do conhecimento
namentos referem-se a uma mudança de para- como fonte de poder social é feita privilegian-
digma nas concepções de escola e de ensino- do alguns e discriminando outros. Precisamos
aprendizagem, uma vez que o fracasso escolar buscar soluções para que a escola seja eficaz
se impõe de maneira acentuada na atualidade. no sentido de promover o conhecimento e,
O fracasso escolar nos remete a pensar em assim, vencer problemas cruciais e crônicos
problemas de aprendizagem. Para Fernández1, de nosso sistema educacional: evasão escolar,
os problemas de aprendizagem são basicamen- aumento crescente de alunos com problemas
te de dois tipos: reativo e sintoma. O problema de aprendizagem, formação precaríssima dos
de aprendizagem como sintoma é aquele que que conseguem concluir o ensino fundamental,
necessita tratamento clínico. Por outro lado, o desinteresse geral pelo trabalho escolar.”
problema de aprendizagem reativo surge em Nesse sentido, “a escola torna-se cada vez
reação às modalidades de ensino. mais o palco de fracassos e de formação pre-
O presente artigo objetivou discutir os desa- cária”3. Isso porque as frágeis condições tanto
fios da escola contemporânea diante dos proble- estruturais quanto funcionais de muitas escolas
mas de aprendizagem e da inclusão. Para tanto, contribuem em grande parte para o fracasso
utilizou-se de uma vinheta de caso clínico de um escolar. Tais escolas, na maioria das vezes, não
adolescente com representativos problemas de conseguem lidar com as responsabilidades que
aprendizagem. Realizou-se uma triangulação lhes são delegadas. Nesse contexto, os professo-
analítica entre família, escola e profissionais res, não raras vezes, se vêem oprimidos, angus-
para identificar respostas que viabilizem a efeti- tiados e com inúmeras incertezas, fato esse que,
va inclusão social. Na análise dos dados clínicos em geral, se reflete na relação com os alunos.
também se buscou refletir a articulação entre a Devem-se reconhecer as tentativas de reor-
Psicopedagogia e a Psicanálise e os importantes ganização da escola no sentido de prevenir e
diálogos com a Pedagogia. solucionar o fracasso escolar. Entretanto, a busca
de respostas para o grande número de crianças e
Os desafios e perspectivas da es- jovens com dificuldades de aprendizagem exige
cola contemporânea da escola um repensar em relação aos seus pro-
A escola atual não está conseguindo cor- cessos. Nesse sentido, reconhecemos em Paín4
responder às demandas da sociedade. As um indicativo para esse repensar, pois, para a
exigências do mundo atual apontam para autora, a educação pode ser alienante ou liber-
uma educação diferenciada2, exigindo quali- tadora, dependendo de como ela é instrumen-
ficação mais esmerada e constante formação talizada. É tomando a preocupação de Paín que
e informação dos educadores, uma vez que pensamos na escola como possível (re)produtora
o mundo globalizado aponta para incessante de problemas de aprendizagem.
transformação. Paín4 ainda ressalta que o maior problema,
Esse desencontro entre escola e sociedade na esfera da aprendizagem, é quando a escola
pode gerar e/ou fortalecer os processos de “[...] constitui a oligotimia social, que produz
exclusão, sobretudo, considerando uma socie- sujeitos cuja atividade cognitiva pobre, mecânica
dade cujo conhecimento é distribuído de forma e passiva, se desenvolve muito aquém daquilo
desigual. Esse aspecto social se apresenta que lhe é estruturalmente possível”. A autora
como um expressivo desafio da escola nos dias utiliza a expressão oligotimia, no sentido de um
atuais, na medida em que algumas pessoas sujeito que se vê impossibilitado de utilizar o

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seu potencial cognitivo. Por oligotimia social, a das sociedades e das pessoas. Ela não carece de
autora propõe-se a pensar no social como uma vitalidade. Seu propalado anacronismo parece
forma de impedimento do desenvolvimento cog- ser seu catalisador, como uma Fênix que renasce
nitivo, manifestando-se sob a forma de prejuízos das próprias cinzas. Se a escola da modernidade
na autonomia do pensamento. não se sustenta mais, ela se transmuta, se hi-
Fernández1, na mesma lógica de Paín4, faz bridiza em múltiplos cruzamentos e se reproduz
referências a “[...] uma sociedade enferma e nos infinitos discursos que sobre ela enunciam.
causadora de enfermidades, que provoca oligo- Ela certamente não é de um único jeito, não
timia social e grande parte dos transtornos de toma uma só forma. Ela própria já começa a
‘aprendizagem reativos’[...]”. Estes elementos se reconhecer como território de diversidade,
permitem considerar que no social e, especial- contorcionista da incerteza, prisioneira dos po-
mente em nossas escolas, a (re)produção do deres que a dobram. Mas uma escola que fala
fracasso escolar torna-se cada vez mais respon- a língua do seu tempoespaço poderia continuar
sável pela exclusão de muitas crianças e jovens. fazendo diferença no processo de socialização e
Sendo assim, o espaço escolar que deveria ser educação dos humanos.”
de formação de indivíduos críticos e capazes Sem dúvida, a escola ainda ocupa um lugar
de transformar a realidade pode tornar-se um central na vida das pessoas. É nela que são
ambiente que contribui para o aprisionamento depositadas inúmeras expectativas em relação
da inteligência e, portanto, a exclusão. ao futuro do sujeito e da sociedade. É também o
Dolto5 refere que as causas para o fracasso espaço por excelência onde o sujeito estabelece
escolar situam-se em “três ordens: sociológica, laços sociais para além da família.
psicológica e pedagógica”. Esses fatores se con- Cabe salientar que a escola sofre os impactos
jugam e são interdependentes. A autora ainda das transformações sociais. Dentre tais trans-
aponta a necessidade de se apropriar da intera- formações destacam-se as novas configurações
ção desses fatores e compreender seus elementos da família. Atualmente, estamos diante de um
intercambiáveis para, então, entender seus efei- declínio do exercício das funções parentais. O
tos no fracasso escolar. Para tanto, é necessário que vemos é, muitas vezes, a família delegando
que haja um olhar mais amplo para as questões à escola responsabilidades que outrora eram
do fracasso escolar. Olhar que se volte para o culturalmente suas. O declínio do exercício das
entendimento do sistema escolar atual e para a funções parentais gera impasses na constituição
compreensão dos processos de aprendizagem, o subjetiva, fazendo com que as crianças cheguem
que aponta para a importância de um trabalho às escolas com fraturas significativas no desejo
articulado e interdisciplinar, no espaço escolar de aprender. Muitas delas apresentam proble-
ou não escolar, buscando conceber sujeito e ins- mas de aprendizagem como sintoma4, o que
tituição na sua integralidade, sem desconsiderar exige da escola um redimencionamento de suas
as suas singularidades. práticas e processos. Paralelamente, a escola, na
De acordo com Costa6, a escola do século atualidade, está diante do imperativo que reza
XXI é alvo de discussões e reflexões entre os que ela deve ser para todos.
docentes, intelectuais e pesquisadores. Por meio Em relação a isso, Beyer7 afirma que “uma
de diferentes olhares, esses profissionais tentam escola para todos nunca existiu” e que a escola
encontrar caminhos para uma escola que asse- sempre foi imposta como uma fonte de poder
gure uma formação cultural e científica para toda social, em que somente os mais abastados eram
a vida do sujeito. Costa ilustra o momento atual os mais privilegiados. Ele evidencia que:
da educação contemporânea salientando que: “[...] na história da educação formal ou escolar,
“[...] parece que a escola do século XXI ainda se nunca houve uma escola que recebesse todas as
mantém como uma instituição central na vida crianças, sem exceção alguma. As escolas sempre

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se serviram de algum tipo de seleção. Todas elas Psicopedagogia traz subsídios importantes para
foram, cada uma à sua maneira, escolas espe- a implantação de uma escola verdadeiramente
ciais, isto é, escolas para crianças selecionadas. inclusiva e, sobretudo, uma escola que busque a
As escolas de filosofia da Antiguidade, os mos- não (re)produção do fracasso escolar.
teiros da Idade Média, as escolas de filosofia da Estamos propondo uma articulação inter-
Renascença - todas foram escolas especiais para disciplinar que possibilite apoio ao professor
crianças especiais, selecionadas. Neste sentido, que, diante da diferença, se vê desamparado e
também hoje as melhores escolas particulares impotente. Entendemos por diferença o aluno
em nosso país são escolas especiais, que acolhem que deflagra angústia no professor, por um dis-
não todas as crianças, porém, apenas algumas tanciamento significativo em relação aquilo que
delas (obviamente, aquelas cujas famílias têm ele espera. Nesse sentido, alunos com necessi-
condição financeira privilegiada para bancar dades especiais, bem como alunos com proble-
seus estudos).“ mas de aprendizagem, podem representar para
Embora a escola nunca tenha sido para to- esse professor a diferença. O aluno diferente,
dos, é fato que a Declaração de Salamanca da não raramente, remete o professor a um estado
UNESCO8 teve um impacto social, cobrando da de não saber o que fazer. Nessa perspectiva, a
escola e da sociedade uma abertura para as dife- Psicanálise, a Psicopedagogia e a Pedagogia,
renças. A proposta da Educação Inclusiva remete de forma interdisciplinar, podem auxiliar o pro-
a uma ressignificação das práticas pedagógicas, fessor a retomar a sua função como educador. A
respaldando-se no paradigma do respeito às di- Psicanálise trabalha no campo da subjetividade
ferenças. Exige uma nova organização da escola, e dos modos de subjetivação e de relação com
sendo esta pautada por processos que assegurem o outro. A Pedagogia trabalha no campo do
o acesso, a permanência e a aprendizagem de currículo, do método e da avaliação. A Psicope-
todos os alunos. As transformações pautadas dagogia se insere no campo da aprendizagem
nas novas configurações familiares, bem como o humana, tendo como foco de estudo o aprender
imperativo trazido pelo movimento da educação e o não aprender, ressignificando as relações
inclusiva, sem dúvida tiveram um impacto na do sujeito com as mais diversas aprendizagens.
escola, gerando inquietações, angústias, incer- Trata-se de saberes que ao serem articulados
tezas e inseguranças. podem trazer importantes benefícios à escola e
O professor, diante disso, é quem tem ma- ao social, como um todo.
nifestado maior sofrimento, uma vez que tais
transformações exigem dele um reposiciona- A TRAJETÓRIA DE UM ADOLESCENTE
mento, pautando sua função para o olhar para NO PROCESSO DE INCLUSÃO ESCOLAR:
diferentes processos de ensino e aprendizagem. UMA VINHETA DE CASO CLÍNICO
Isso porque o professor está frente a alunos que, Partiremos de uma vinheta de caso clínico para
muitas vezes, apresentam impasses no que se discutir as questões relativas ao fracasso escolar na
refere à aprendizagem e ao relacionamento sociedade contemporânea. Trata-se de um adoles-
interpessoal, sendo frequente o sentimento de cente com significativos problemas de aprendiza-
incapacidade e até mesmo a recusa em trabalhar gem, enfrentando dilemas referentes ao processo
com eles. Por isso, é preemente que o professor de inclusão social. Nossa discussão será pautada
seja acompanhado nesse processo. na defesa de um trabalho de cunho interdisciplinar
Pensar na escola e no educador em meio a entre a Psicopedagogia, a Psicanálise e a Pedago-
este panorama social em plenas transformações gia, contando com todo o respaldo necessário da
aponta para a necessidade de criação de parcerias escola em que o rapaz estava estudando.
que possam trabalhar de forma articulada. Nesse Estaremos referindo o adolescente em ques-
sentido, a articulação da Pedagogia, Psicanálise e tão pelo nome fictício de Carlos, no sentido de

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preservar sua identidade. Trata-se de um rapaz, caminhado para uma avaliação psicopedagógi-
que na época dos atendimentos tinha 15 anos de ca. Avaliação que confirmou a preocupação da
idade. Estava cursando o primeiro ano do ensino escola quanto ao problema de aprendizagem.
médio numa escola da rede particular de ensino. Carlos também foi encaminhado para uma
Chamava a atenção o seu aspecto sindrômi- avaliação psíquica, havendo a necessidade
co, caracterizado por olhos puxados e um corpo de indicação de um tratamento nessa área,
hipotônico, que lhe concedia um ar desajeitado. realizado paralelamente ao acompanhamento
Além disso, apresentava uma expressão apática, psicopedagógico, que já se efetuava.
como se nada lhe despertasse interesse. Embora O acompanhamento psicopedagógico e
sua aparência indicasse uma alteração genética, psíquico, na realidade, não se propunham a
os pais se recusaram a realizar uma investigação trabalhar somente com os comprometimentos
com tal especialista. de Carlos no âmbito clínico. O trabalho estava
A queixa da escola era que Carlos apre- calcado numa proposta de articulação interdis-
sentava uma desorganização que o impedia ciplinar, considerando os saberes da Pedagogia,
de aprender e realizar as atividades escolares. Psicopedagogia e Psicanálise, no sentido de
Aprender não parecia fazer algum sentido na fazer valer o processo de educação inclusiva de
vida dele. Sua apatia também se apresentava Carlos. Afinal, havia a necessidade de prepará-lo
na relação com os pares, sendo, por conta disso, para os três anos do ensino médio e para a sua
segregado pelos colegas. inclusão social em outras dimensões, como por
A avaliação médica, realizada no período da exemplo, trabalho e esporte.
sua infância, acusava uma significativa defici- O trabalho interdisciplinar ocorreu a partir
ência auditiva, apresentando 100% de perda de reuniões com a equipe pedagógica, que se
auditiva no ouvido direito. Também apresen- encarregava de repassar nossas discussões para
tava dificuldade visual, que fora diagnosticada os professores. Em determinadas situações, en-
apenas na adolescência. Sua problemática, no tretanto, se fez necessário o contato com todos os
entanto, não era apenas de caráter orgânico- professores para conversarmos sobre os avanços
funcional, atingindo também a esfera psíquica, terapêuticos de Carlos e sobre questionamentos
sociocultural e familiar. e orientações quanto ao desenvolvimento do
Os pais relatavam uma gravidez não planeja- trabalho em sala de aula. Tais espaços foram
da e muito sofrida para a mãe, devido a um qua- pautados, especialmente, por reflexões acerca da
dro de depressão e de inúmeras hospitalizações. necessidade de flexibilização curricular, já que
O parto foi induzido e muito difícil, com muito Carlos apresentava significativas lacunas relati-
sofrimento para a mãe e para o bebê. Segundo vas à aprendizagem formal. A principal queixa
ela, o menino nasceu “roxinho”, remetendo-nos da escola era de que Carlos revelava precárias
a pensar num quadro de cianose, precisando condições para a interpretação e compreensão de
da intervenção imediata do pediatra. Era um textos, além de ter dificuldades em estabelecer
bebê descrito pelos pais como “bonzinho”, pois relações entre os conhecimentos já adquiridos
quase não chorava. e os novos. Para os professores, era sempre um
A história escolar de Carlos foi de muito recomeço com o aluno nas atividades em sala
sofrimento, caracterizada por uma sucessão de aula. Do ponto de vista psicopedagógico, a
de reprovações, sendo também marcada por avaliação demonstrou que Carlos apresentava
muitos fracassos na leitura e escrita. Chegou uma total rejeição aos objetos de aprendizagem
ao ensino médio com lacunas significativas escolar e um déficit lúdico, demonstrando em-
na construção do seu conhecimento formal. pobrecimento quanto à capacidade de antecipar,
Foi somente no ensino médio, quando Carlos coordenar e classificar. Também apresentava
passou a estudar numa nova escola, que foi en- acentuada dificuldade para criar e recriar o

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conhecimento. Quanto às questões psíquicas, estruturação de um corpo marcado por signi-


a avaliação evidenciou que Carlos apresentava ficantes, de acordo com a Psicanálise10-16. Tais
comprometimentos psíquicos, sendo estes porta- fraturas nos indicam duas questões principais:
vozes da dinâmica de funcionamento familiar. o relato de depressão materna e o fato de os
Como já dizia Dolto9, o trabalho psicanalítico aspectos sindrômicos estarem marcando um
com crianças e adolescentes situa-se nos laços distanciamento em relação ao bebê, em geral,
familiares, uma vez que a criança e o adolescente sonhado pelos pais. Nesse sentido, além da
são porta-vozes de seus pais. Desta forma, a apa- vulnerabilidade psíquica materna, a marca da
tia de Carlos, desde bebê, revelava, entre outros diferença estampada no rosto de Carlos possivel-
aspectos, o quanto seus pais pouco lhe deman- mente estaria sinalizando para uma fragilidade
davam, produto de fraturas no desejo parental. na constituição do laço de filiação.
Afinal, o discurso dos pais sinalizava que eles Quando a constituição do laço de filiação
pouco esperavam de Carlos, sendo sua apatia é comprometida, muitas vezes, observamos
uma espécie de laço estabelecido entre eles. repercussões psíquicas e psicopedagógicas
Eram inegáveis os comprometimentos de muito semelhantes àquelas apresentadas por
ordem orgânica, sendo diagnosticados déficits Carlos. Entendemos que a deficiência auditiva
de visão e audição e levantada uma suspeita e visual pode ter um impacto na aprendizagem,
de alteração genética, em função de sinais ca- mas acreditamos que, nesse caso, os aspectos
racterísticos de síndromes genéticas. Embora relativos à constituição de sujeito se fizeram
se apresentasse este quadro orgânico, o que marcantes no desenvolvimento dos problemas
evidenciamos, a partir dos acompanhamentos de aprendizagem.
psicopedagógico e psíquico, era que Carlos Tendo em vista tais questões, o percurso
apresentava impasses na sua constituição como terapêutico teve como norte alcançar o estatuto
sujeito. Tais impasses tiveram repercussões nas de sujeito de desejo, que para a Psicanálise é o
questões relativas à aprendizagem, denuncian- que possibilita a aprendizagem. Tomamos sujeito
do, portanto, problemas de aprendizagem como do desejo no sentido lacaniano. O sujeito, para
sintoma1. Sintoma que mostrava o narcisismo Lacan17, se constitui no campo do Outro, estan-
ferido dessa família, pela vinda de uma crian- do inicialmente alienado ao desejo do Outro e,
ça não desejada e incompatível com os ideais portanto, numa posição de objeto, para então, a
parentais. Uma criança que, desde a gestação, partir da separação, operação dada pela castra-
esteve à mercê de um entorno frágil e que pouco ção, constituir-se como sujeito do desejo. Sendo
conseguiu estabelecer os contornos do corpo de assim, constituir-se como sujeito do desejo abri-
Carlos. A hipotonia, possivelmente, pelo menos ria, para Carlos, possibilidades para ele desejar a
em parte, denunciava problemas na estrutura- aprender e, dessa forma, a escola ter um sentido
ção de um corpo que pudesse fazer frente às para a sua vida. Isso nos possibilitou trabalhar
demandas do outro. uma das facetas da inclusão, qual seja, a da
Como os acompanhamentos foram buscados constituição do sujeito, que se instaura a partir
quando Carlos já era adolescente, não tínhamos de um trabalho clínico, no sentido de propiciar o
dados precisos acerca dos primórdios de sua movimento da filiação para a inclusão. A filiação
constituição subjetiva. Os dados que tínhamos aponta para um lugar simbólico, de pertenci-
acessos referiam-se aos relatos de seus pais, mento na família. Poderíamos dizer que a filiação
bem como, aquilo que se apresentava enquanto é a nossa primeira experiência de inclusão e que,
dificuldades na vida atual de Carlos. O relato dos portanto, a forma como ela foi constituída terá
pais e as dificuldades de Carlos nos remetiam a efeitos na inclusão em outros âmbitos da vida,
pensar em fraturas significativas na constituição tais como: escola, trabalho, sociedade15.
do laço de filiação, sendo este o fundamento da Além do trabalho desenvolvido com Carlos,

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foi essencial o empenho com os pais no sentido Para Carlos, entretanto, a escola era um
de resgatar os seus lugares nas relações fami- espaço que o remetia a frustrações e fracassos.
liares e, sobretudo, o lugar de sujeito de Carlos. Nesse sentido, havia a necessidade de ressig-
Isso envolveu percorrer os desejos de cada um nificação desse lugar e da relação entre Carlos
em relação ao filho, o que nos possibilitou es- e a escola. Isso deflagrou um repensar sobre
tabelecer os contornos entre as limitações e as as práticas escolares, que fora fundamental
potencialidades de Carlos, para que esses pais para o processo de ressignificação da escola.
pudessem, a partir de então, permitir que ele A proposta era promover o máximo de autono-
conquistasse um lugar nessa família, marcado mia e autovalorização do aluno, respeitando
por satisfações, por alegrias e não mais somente as diferenças, as limitações e, principalmente,
por decepções e frustrações. O trabalho também acreditando no potencial e nas possibilidades
possibilitou o resgate da curiosidade, do prazer de sua aprendizagem. Isso exigiu que a escola
da descoberta e do aprender, da autonomia e da saísse da lógica curricular como algo engessado
autoria de pensamento, pois o lugar destinado e previsto, para entrar na lógica da primazia
pela família ao aluno era “o lugar do que não do sujeito. Sendo assim, não falamos mais de
pode aprender”1. Para eles, Carlos não sabia, não integração e sim de inclusão. A diferença en-
podia e não devia fazer nada. Como já foi sinali- tre integração e inclusão é que na primeira os
zado anteriormente, os pais de Carlos ocupavam alunos devem se adaptar ao que está posto no
lugares de poucos desejos em relação ao filho. currículo, sendo ele ainda a referência das rela-
O trabalho clínico era guiado por esses pres- ções de ensino e aprendizagem; na segunda, há
supostos, porém o caso apontava para o fracasso uma abertura, por parte da escola, às diferenças
escolar como produto de uma complexidade de e, nesse sentido, a aprendizagem se dá por meio
fatores. Nesse sentido, não apontava somente de adaptações curriculares, considerando os
para as questões subjetivas de Carlos, mas diferentes modos de subjetivação e de aprender.
também a uma idéia de possíveis fracassos no Esta vinheta de caso clínico nos remete a
processo de inclusão. Embora as dificuldades de pensar em problemas de aprendizagem que
Carlos apontassem para problemas de aprendi- conjuguem os aspectos de ordem sintomática
zagem como sintoma, não poderíamos descon- e os aspectos institucionais. Incluímos aqui os
siderar a presença de impasses institucionais, aspectos institucionais, pois se tratava de uma
de modo que Carlos também poderia estar apre- escola que, não muito diferente das demais, se
sentando problemas de aprendizagem reativos1. confrontava com muitas dificuldades para tra-
Nesse sentido, o fato de apresentar problemas de balhar com a inclusão. Não contava com uma
aprendizagem como sintoma não invalida de se proposta efetivamente inclusiva em seu Projeto
pensar nos obstáculos institucionais. Isso porque Político-Pedagógico e, ademais, seu corpo do-
o aluno que apresenta significativos problemas cente não se sentia capaz para agir de acordo
de aprendizagem, não raras vezes, desestabiliza com os pressupostos da educação inclusiva.
o professor, fazendo-o perder suas referências Nesse sentido, a experiência com Carlos foi fun-
em relação a sua atuação docente. Assim sen- damental, pois o trabalho foi se dando a partir
do, era fundamental que o trabalho clínico não da prática diária. Para tanto, foram necessários
permanecesse reduzido aos aspectos subjetivos encontros sistemáticos com a equipe pedagógica
de Carlos, e sim que propusesse uma articulação da escola. Afinal, essa equipe era responsável
interdisciplinar com a Pedagogia, baseado na pela gestão pedagógica da escola. O trabalho
premissa de que a escola era um espaço vital se inscreveu numa proposta interdisciplinar,
para ele, assim como é para todas as crianças e por meio do estabelecimento de uma relação de
jovens. Um espaço de estabelecimento de laços parceria entre a clínica e a escola. Também foi
sociais para além da família. necessário realizar encontros com os professores,

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para que eles pudessem encontrar ali um espaço uma avaliação constante quanto ao processo
de fala, de escuta, enfim, de trocas. O trabalho inclusivo. Os pais, por sua vez, permaneceram
sempre se deu no sentido de refletir sobre o fra- atrelados ao processo de inclusão de seu filho,
casso escolar como não sendo apenas produto acompanhando-o na escola e nos atendimentos.
de funções parentais fragilizadas e de problemas Apesar das dificuldades encontradas por
de constituição subjetiva, mas também produto Carlos em sua trajetória, poderíamos definir tal
institucional, pensando aqui as relações esta- experiência de inclusão como exitosa. Carlos
belecidas na escola, pois elas facilmente podem terminou o terceiro ano do ensino médio com
reproduzir a questão sintomática, aprisionando- perspectivas de fazer um curso técnico na área
se nas limitações do aluno, sem conseguir, da informática pelo qual estava mais identifi-
portanto, investir nas suas reais capacidades e cado. No entanto, o mais importante é que no
potencialidades. É nesse sentido que aqui postu- transcorrer do trabalho, Carlos conseguiu esta-
lamos que a escola pode se colocar num lugar de belecer os contornos entre seus limites e suas
(re)produção do fracasso. potencialidades.
Defendemos no presente artigo a importância Diante da complexidade das relações sociais,
de um trabalho clínico articulado com o trabalho acreditamos que a escola contemporânea não
educacional. Afinal, de nada adianta trabalhar as tem mais como fugir da perspectiva interdisci-
questões sintomáticas se, no âmbito da escola, plinar. Isso porque tal complexidade requer a
não há um trabalho efetivamente inclusivo, que interface de diferentes saberes, na medida em
acolha as diferenças, as limitações e aposte nas que um só não dá conta de suas vicissitudes.
potencialidades do aluno. Ao longo dos encon- Nesse sentido, articular os saberes da educação
tros com a escola, fomos percebendo os avanços e da saúde é de fundamental importância, no
de todos: dos trabalhos clínicos, da escola, da sentido de promover reflexões e ações de forma
família e, sobretudo, de Carlos. Isso porque os mais integrada e global.
diferentes saberes articularam-se e tornaram
possível uma visão mais global e integrada de Considerações finais
Carlos. Os avanços, nesse sentido, foram visí- O presente artigo se propôs a discutir os
veis a partir do momento em que, efetivamente, desafios da escola contemporânea diante dos
criou-se um espaço interdisciplinar. Podería- problemas de aprendizagem e da inclusão. Vi-
mos dizer que tal espaço também operou em mos que a escola contemporânea está diante da
caráter preventivo, uma vez que conseguimos complexidade das relações sociais, necessitando
evitar maiores riscos inerentes ao processo de rever seus paradigmas, na medida em que ainda
subjetivação e aprendizagem em casos como o ocupa um lugar central e de referência na vida
de Carlos. Um dos maiores produtos de nosso das pessoas. Um dos maiores desafios enfren-
trabalho em parceria foi reconhecer as potencia- tados pela escola contemporânea refere-se aos
lidades de Carlos e seu ritmo de aprendizagem impactos gerados pela educação inclusiva, o que
singular, por parte da escola e da família. Cabe a coloca diante da diferença, seja nos aspectos
salientar que tanto a escola como a família de constituição subjetiva ou de aprendizagem.
conseguiram bravamente enfrentar os desafios Sendo assim, a escola precisa repensar sua
da inclusão. Do ponto de vista da escola, os identidade para não somente acolher a diferen-
professores mantiveram-se abertos e desejosos ça, mas também assegurar a permanência e a
em relação ao processo de aprendizagem de aprendizagem de crianças e adolescentes com
Carlos. A coordenação pedagógica da escola, problemas de aprendizagem.
no decorrer dos três anos do ensino médio, Quando a escola não se flexibiliza, mantendo-
ficou em contato frequente com a psicóloga se num sistema rígido e engessado, facilmente
e psicopedagoga clínica permitindo, assim, pode produzir ou reproduzir o fracasso escolar. A

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reprodução do fracasso escolar, em geral, ocorre um espaço de escuta e discussão sobre questões
quando a escola se identifica com a família, não de aprendizagem e comportamento, no sentido de
apostando nas reais possibilidades e capacidades restabelecer o saber do professor, para que ele possa
de cada sujeito e, portanto, não respeitando a sua também apostar nas potencialidades do aluno.
singularidade no processo de aprendizagem. Embora o artigo tenha apresentado somente
A partir do relato da vinheta de caso clínico e das uma vinheta de um caso clínico, sendo, portanto,
intervenções da Psicopedagogia e da Psicologia foi impossível realizar generalizações, nosso intuito
possível compreender a importância de um trabalho foi trazer a contribuição de uma experiência
interdisciplinar, que possibilite a comunhão destes exitosa de inclusão, apontando que o diálogo
diferentes saberes, compondo uma visão integrada interdisciplinar é fundamental em casos como o
do sujeito, de modo que sejam respeitadas suas de Carlos. Isso porque o fracasso escolar é fruto
diferenças e peculiaridades. Percebemos também de uma complexidade de fatores, exigindo um
que a escola, frente à diferença, se vê, muitas vezes, olhar amplo e integrado dos diferentes saberes
numa condição de desamparo, necessitando de envolvidos com a saúde e a educação.

Summary
The contemporary school concerning the school failure

The contemporary school is faced with constant changes of society.


This requires the school to be positioned to change the teaching and
learning conception paradigms, since school failure is remarkable
today. This article aimed to discuss the challenges of contemporary
school face the problems of learning and inclusion, using a clinical case
vignette of an adolescent with representative learning disabilities. The
case illustrates the failure of school as a product of a complex of factors,
requiring a comprehensive, integrated look, from an interface between
the clinical and educational works and family. It portrays an experience
of successful inclusion, from an interdisciplinary work between the
Psychopedagogy, Psychoanalysis and Pedagogy. The school as possible
(re) production of school failure is the subject of discussion in this article.

Key words: Schools. Learning disorders. Psychology. Psychopedagogy.

Rev. Psicopedagogia 2009; 26(81): 425-34

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Travi MGG et al.

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Trabalho realizado na Feevale, Novo Hamburgo, RS. Artigo recebido: 05/7/2009


Aprovado: 30/10/2009

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