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Etica do Novo Testamento

uma introdução

HEINZ-DIETRICH WENDLAND

traduzido por Werner Fuchs

EDITORA SINODAL
1981

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Título do original alemão: "Ethik des Neuen Testaments. Eine Einfüh­
rung", publicado como volume 4 na série "Grundrisse zum Neuen
Testament. Das Neuen Testament Deutsch. Ergänzungsreihe", editada
por Gerhard Friedrich.
Copyright Vandenhoeck & Ruprecht, Göttingen 1970.

1981
Editora Sinodal
Rua Epifânio Fogaça, 467
93000 — São Leopoldo — RS, Brasil

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Introdução

CONSIDERAÇÕES SOBRE O CONCEITO DE ÉTICA

O conceito de ética que nos é familiar, proveniente do pensa­


mento grego, pode ser aplicado ao Novo Testamento somente sob
determinadas condições.
Em nenhuma parte do Novo Testamento encontramos uma ética
filosófica que se entenda como uma doutrina das normas e virtudes
e se oriente segundo um conceito da razão moral, do espírito ético,
do imperativo categórico ou algo semelhante. Além disso, não en­
contramos no Novo Testamento nenhuma análise ou legitimação ética
das ordens sociais, por exemplo, do matrimônio ou do Estado, que
esteja situada num contexto sistemático, se bem que haja algumas
(como, p. ex., Rm 13 e I Co 7) no contexto de exortações (parêneses).
Não existe, no Novo Testamento, uma filosofia cristã acerca do Estado
e da sociedade. Somente mais tarde, quando, sobre o solo da Igreja
primitiva, foram implantados na teologia conceitos filosóficos, tor­
nou-se possível desenvolver pensamentos ético-sistemáticos. O Novo
Testamento, no entanto, fala dos bens deste mundo e das ordens
sociais somente no âmbito de parêneses, ou seja, de admoestações
concretas a comunidades específicas. Nesse sentido toda a ética neo-
testamentária tem caráter parenético. Suas normas não são extraídas
da razão, nem tampouco de um "lógos" que governa o mundo ou de
um reino de idéias transcendentais, como acontece na filosofia estóica
ou platônica. Por isso podemos traçar provisoriamente as premissas
peculiares à ética do cristianismo primitivo, como seguem:
1. Fundamental é a té numa revelação da vontade de Deus,
uma revelação com a qual estão comprometidos todos os fiéis. Sobre
essa fé baseia-se, por exemplo, o relato de Mateus sobre o Sermão
do Monte (cap. 5— 7): Jesus proclama a absoluta e definitiva von­
tade de Deus. No mesmo sentido também o evangelho de João
(13, 34) fala, interpretativamente, do "novo mandamento" que Jesus
dá a seus discípulos.

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2. A revelação da vontade de Deus foi realizada e concluída
pelo envio de Jesus Cristo. É bem verdade que ele não atua como
"segundo Moisés", conforme disse Lutero com acerto, mas como
reconciliador e redentor escatológico que liberta os pecadores do
pecado e da morte e os conduz a uma nova vida. Todavia isso não nos
deve fazer esquecer que, em todas as partes do Novo Testamento,
Cristo se coloca diante da comunidade como o Senhor imperante, que
exige obediência e serviço. Todos os cristãos são, segundo a compre­
ensão de Paulo, "escravos" de Cristo. Cristo institui sobretudo o su­
premo mandamento do amor, do qual ainda falaremos amiúde.
Podemos designar a ética no Novo Testamento "teonômica" ou "cris-
tonômica". Ela está sempre condicionada à premissa fundamental,
cristológica, de que na cruz e ressurreição de Cristo se realizou o
evento decisivo para a salvação de todo o mundo, é nesse sentido
específico que se deve falar de ética "cristã".
3. Uma terceira premissa e vinculação essencial da ética no
Novo Testamento é a existência da Igreja. A ética neotestamentária
é fund. mentalmente ética eclesiástica. Reside nisso também uma li­
mitação Todas as exortações são dirigidas a comunidades e a cristãos,
a respor.tivamente — antes da Páscoa, na prédica de Jesus — àqueles
aos quais se anuncia a aproximação do reinado de Deus. Com a pa-
rênese, Paulo quer servir à "edificação" da comunidade. Pressupõe
sempre que ela tenha sua existência a partir da fé em Cristo.
4. A proclamação de Cristo não é apenas fundamento mas tam­
bém lim ite da ética. Em primeiro lugar, porque ela nunca pode ser
autônoma e nunca absoluta, no sentido filosófico das palavras; pois
tem validade unicamente em virtude da salvação já manifestada. Em
segundo lugar, o limite é de natureza escatológica, futura. Ética
existe somente dentro do período deste mundo, até a inauguração
do reino de Deus. Em outras palavras: A ética cristã vale somente
para a época da Igreja.
As quatro teses acima, que descrevem o caráter cristão da ética
neotestamentária, não devem ser compreendidas como se a ética do
Novo Testamento tivesse, por assim dizer, "caído do céu". Semelhante
concepção tem por base, primeiramente, uma compreensão errônea,
a saber, a-histórica da revelação e, além disso, ela simplesmente não
é realista. Assim como nós e todas as pessoas que vivem historica­
mente, as primeiras comunidades cristãs vivem no tempo e no es­
paço, na Palestina e na Síria. Estão sujeitas, como tudo no mundo,
a influências históricas, tanto judaicas como helenistas, e a influên­
cias que procedem das mesclas de judaísmo e helenismo ocorridas
nas sinagogas dispersas pelo mundo a fora. Desses âmbitos o Novo
Testamento recebeu regras de conduta ética e ditos de sabedoria, p.

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ex., na forma dos catálogos ne normas para a vida doméstica (*) ou
da tradição de Rm 13. Também nos ditos de Jesus aparecem pro­
vérbios, inseridos agora num novo contexto. Sob esse aspecto a ética
do Novo Testamento é aberta, e não conclusa em si. Evidentemente
isso se deve a uma decisão prévia muito significativa: O que na­
quele tempo era considerado por todos como virtude, como compor­
tamento louvável, como justo e benigno, isso é retido e conservado
pela ética das comunidades cristãs (cf., p. ex., Fl 4, 8). A ética da
sociedade não é simplesmente rejeitada, mas recebe um novo prefixo,
no sentido das três primeiras teses acima. Desse modo já no Novo
Testamento nos confrontamos vivamente com a pergunta pela rela­
ção com as éticas judaica e helenista daquela era.
Aqui, pois, o conceito tradicional, profano da ética, a despeito
do que afirmávamos no início, conquista seu justo lugar nas nossas
considerações. Contudo as tradições adotadas constituem a moral
popular co*idiana, a ética média da sociedade da época, não uma
ética repensada filosoficamente.
No sentido dessas considerações preliminares deve ser entendi­
do, no que se segue, o conceito "ética".

(*) N. do T.: Não existindo no português um termo específico para os trechos que
a pesquisa alemã denomina "Haustafeln", adotaremos nesta obra o termo descritivo
"catálogos de normas para a vida doméstica".

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Capítulo I

J E S U S

A proclamação da aproximação do reinado de Deus como ética


escatológica.

Nota prévia metodológica


Como Jesus não nos legou nada por escrito, encontramo-nos
numa situação bem diferente para apresentar sua proclamação ética
do que para relatar a de Paulo. Dependemos da tradição sobre Jesus
como foi conservada e diversamente articulada nos três primeiros
evangelhos. Cada um dos evangelistas fala como membro da comu­
nidade dos fiéis e possui, além disso, uma concepção teológica pró­
pria. Não há, em nenhum lugar, anotações estenográficas dos pro­
nunciamentos de Jesus. Os evangelhos, portanto, não são relatórios
históricos que nos dizem: Assim foi, isso ele fez e isso ele disse. . .
Porém são testemunhos da fé da comunidade, expressos em diversas
concepções teológicas que, por sua vez, procuram corresponder às
diferentes situações históricas das comunidades e aos problemas e às
tarefas que a elas se apresentam.
Uma premissa dos sinóticos — a decisiva — é a Páscoa e a fé
pascal no Senhor ressurrecto. Unicamente através da Páscoa torna-se
possível para o evangelista falar de Jesus e considerar seus feitos
e suas palavras dignas de serem relatadas e transmitidas. Que teria
sido Jesus sem a Páscoa? Um fracassado, confinado ao passado, em
vão seguido por alguns adeptos até o trágico desenlace.
Tradição sobre Jesus existe somente a partir da Páscoa, no poder
da fé pascal. Porque Jesus ressuscitou, torna-se imensamente impor­
tante para os seus saberem o que ele disse e fez. O "o que", ou
seja, os conteúdos históricos de modo algum desaparecem! Os evan­
gelistas não falam de um ser celestial nem do simples "fato" de ele
ter estado presente, mas do Jesus histórico, de seus feitos e suas
palavras. Mas iluminam e legitimam tudo isso a partir da Páscoa.

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A primaira comunidade, portanto, legítima e absorve a tradi­
ção corrente sobre Jesus; o que ele afirmou é válido e compromissivo
para a comunidade, que se formou apenas por meio da Páscoa, e
isso porque ela crê em Jesus como o Ressurrecto. Por conseguinte
ouvimos nos evangelhos a voz da comunidade que delega a si mesma
e a todos os crentes dos tempos posteriores a palavra de Jesus. O
Ressurrecto é o Jesus histórico de Nazaré. A respeito dele a comu­
nidade quer ouvir, suas palavras ela transmite, porque ele é o
Ressurrecto.
Em síntese, ouvimos a palavra de Jesus sempre através da voz
da comunidade e de seus representantes. Mas justamente através
dessa mediação ela se torna atual e existencialmente significativa
dentro da comunidade e para a comunidade — até o dia de hoje.
Logo, podemos ler e interpretar os evangelhos de duas maneiras
distintas:
em primeiro lugar, compreendendo-os como a palavra da comu­
nidade acerca de Jesus numa determinada situação histórica;
em segundo lugar, procurando, mediante um exame crítico das
diferentes formas de tradição, uma aproximação à palavra "verda­
deira" ou original de Jesus. Nesse mister é necessário, por um lado,
ter consciência da relatividade dos resultados de tal análise histórico-
crítica da tradição sobre Jesus. Por outro lado, porém, existe nos
sinóticos um largo acervo comum que, embora tenha sido formado
e trabalhado diferentemente pelas suas concepções teológicas, não
foi simplesmente destruído.
(A literatura para a pesquisa acerca de Jesus e dos sinóticos
encontra-se em H. Conzelmann, Grundriss der Theologie des Neuen
Testaments, Munique, 2.° ed. 1968 — Quanto às questões específicas,
cf. também as Introduções ao Novo Testamento de Feine-Kümmel, Hei-
delberg, 16.° ed. 1970 e W. Marxsen, Gütersloh, 3.° ed. 1965, bem
como as obras sobre a história das formas nos evangelhos.)
A proclamação ética de Jesus seguramente tem muito pouco a
ver com uma ética filosófica ou, com palavras de H. Conzelmann
(Grundriss, p. 135), ética "form al". Por isso falamos de "proclamação
ética". Essa "ética" é mensagem do reinado de Deus que ora se apro­
xima (Mc 1, 15 par.; Mt 5, 3ss). Nesse sentido ela é uma ética es­
tritamente escatológica. Todavia devem ser excluídas aquelas regras
que constituem elementos de uma ordem comunitária incipiente (pós-
pascal), e também as instruções que já pressupõem e denotam uma
certa situação de perseguição da comunidade. Por mais compreensí­
vel que seja que se tenha recorrido à autoridade de Jesus justamente
por causa das necessidades, tais instruções ou regras não podem fazer
parte da proclamação ético-escatológica de Jesus propriamente dita.

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É bem claro que elas resultam da situação pós-pascal das comuni­
dades primitivas palestinense ou helenista.

1. Reino de Deus e "meia-volta"


A proclamação ética de Jesus é idêntica à escatológica, i. é,
ao anúncio da aproximação do reino de Deus. Somente porque o
senhorio de Deus está irrompendo, porque esse tempo de salvação
começa agora ("kairós"), pode ser formulada a exigência: "Dai meia-
volta" (Mc 1, 15; Mt 3, 2; 4, 17). Por levar a mal-entendidos, evita­
remos o emprego da tradução de "me-tánoia" por "arrependimento".
Começou uma situação histórica completamente nova, porque o reino
de Deus está próximo. Com isso o momento histórico é qualificado
como tempo de salvação, no sentido escatológico. Deus provoca o
início do seu reinado. Nessa situação e em nenhuma outra vale a
exigência: "Dai meia-volta!" É uma exigência total, pois não visa à
prestação de certos atos culturais ou morais, mas a uma volta de 180
graus: adesão total ao reinado de Deus, aceitação incondicional, obe­
diência radical. A proclamação do reino de Deus é, em primeira e
principal instânca, anúncio e adjudicação da salvação (como em Mt
5, 3ss), mas simultaneamente é também interpelação e exigência
dirigidas ao agir dos homens, pois foi a eles que se abriu a nova
situação. Mas eles não são submetidos a um poder coercitivo divino.
Instrutiva vem e ser uma comparação com II Co 6, 2: "Eis agora o
tempo sobremodo oportuno, eis agora o dia da salvação!" Essa graça
os coríntios não devem recebê-la em vão. Assim, pois, o chamado
também se dirige aos cristãos após a Páscoa. Eles se encontram no
"kairós" (tempo de salvação) e devem proceder de acordo com ele.
O imperativo concretiza uma conseqüência do anúncio da salvação.
A pessoa que cuve a mensagem é colocada numa nova posição, e
isso por causa da proclamação de que Deus "assumiu o poder". Os
"súditos", para continuar na linguagem do antigo ritual oriental de
entronização, aqui empregada, são agora engajados no serviço ao
novo soberano. Por isso faz parte da natureza dessa proclamação ou
pregação que ela contenha também uma exigência.
Apesar de que as bem avenfuranças (Mt 5, 3ss; Lc 6, 20ss) nao
falam de "meia-volta", também nelas se expressa claramente o câm­
bio na existência do ser humano, pois Mt 5, 7 e 9 falam de pratican­
tes, de misericordiosos e pacificadores — eles receberão os benefícios
do reinado de Deus. Trata-se aqui, portanto, de um certo conteúdo
dessa "meia-volta", do qual ainda nos ocuparemos mais tarde. De
qualquer modo, agora, na aproximação do reinado de Deus que tudo
transforma, existem tais pessoas ativas. Surge, por assim dizer, uma
nova "espécie" de pessoas, simultaneamente ouvintes e praticantes
da mensagem do reino de Deus.

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O chamado à "meia-volta" não é uma exigência "m oral", nem
no estilo da interpretação judaica da lei daquela época, nem no
sentido da ética filosófica grega. Mas o elemento "transmoral" da
exigência engloba também o moral, como a tradição do Sermão do
Monte em Mt 5— 7 no-lo revela com clareza: amar, ser perfeito, obe­
decer integralmente (Mt 5, 21 ss). O paradoxo teológico que está por
detrás talvez transpareça da melhor maneira nas três parábolas do
perdido (Lc 15, 1ss). Em 15, 7 e 10 fala-se do pecador que se arre­
pende. a isso correspondem a "meia-volta" e o retorno do filho
pródigo (15,1 lss). As duas primeiras parábolas, no entanto, não tra­
tam de "meia-volta", mas do fato de se achar o que estivera perdido.
No centro está, portanto, um ato de Deus que sem dúvida é ao
mesmo tempo um ato do homem. Precisamente esse é o mistério e
o paradoxo da "meia-volta".
De acordo com Lc 5, 32 Jesus afirma que veio para chamar à
"meia-volta" os pecadores, e não os justos. Exatamente assim é rom­
pida a barreira da ética legalista. O reino de Deus não é uma recom­
pensa pelos méritos piedosos dos fariseus e rabinos, mas a oferta da
graça aos pobres e miseráveis, os quais estendem as mãos vazias
em direção da salvação do reino de Deus. Esse desejo, no entanto,
já é em si o ato da "meia-volta". Eles dizem sim ao que agora
se aproxima e lhes é concedido. Naturalmente isso acarreta que se
cumpra a vontade do Pai celestial (Mt 7, 2 lss). Os que dizem "Se­
nhor, Senhor" são rejeitados pelo Juiz, que os designa como "prati­
cantes da ilegalidade" não obstante terem realizado maravilhas em
seu nome.
O chamado de Jesus à "meia-volta" apresenta as características
do incondicional e radical. Não são importantes os feitos milagrosos
ou outros rendimentos máximos, mas decisivo é única e exclusiva­
mente que a pessoa se entregue totalmente ao reinado de Deus e
confie nele. O caráter incondicional da exigência da "meia-volta"
manifesta-se, na prática, principalmente desfazendo os vínculos sociais
e históricos em que as pessoas se encontram. É preciso abandonar
praticamente tudo quando se ouve o chamado à "meia-volta" (Lc 9,
57ss par.). O mandamento da piedade filial deixa de vigorar (9, 59),
e não há mais tempo para a despedida (9, 61). Todos os vínculos com
casa e pátria, dinheiro e bens precisam ser rompidos, quando impe­
dem o homem a decidir-se pelo Reino de Deus. Mas não é somente
isso. O principal laço, na verdade, é o vínculo da pessoa a si mesma.
O homem precisa negar-se a si mesmo, sim, "odiar-se" (Lc 14, 26 par.).
Essa atitude não tem nada a ver com o ódio próprio, de um cínico
ou alguém desesperado da vida. Trata-se, porém, da liberdade es-
catológica do homem de si mesmo. Para essa liberdade ele é cha­
mado e, concomitantemente, recebe o poder. Quem se rende total-

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mente a Deus adquire a nova liberdade para consigo. O exemplo é
dado pelo publicano no templo que confessa perante Deus o seu
pecado (Lc 18, 3 par.).
Uma ilustração do processo da "meia-volta" e, por isso, da rela­
ção do homem para com o reino de Deus é a palavra do tornar-se
criança: "Se não vos converterdes e não vos tornardes como crianças,
de modo algum entrareis no reino dos céus (= reino de Deus)" (Mt
18, 3 par.). Devemos saber receber, permitir que sejamos presen­
teados, como uma criança, que é inteiramente dependente de ajuda.
É a atitude certa em face do reino de Deus iminente. Não há, porém,
nesse texto, a mínima indicação de uma exaltação de "virtudes"
especiais da criança, por exemplo, a muito discutível "inocência".
Ademais, temos que afirmar que o chamado à "meia-volta"
é universal, se bem que essa intenção se revele de modo total so­
mente após a Páscoa, na prédica endereçada a todos os povos (cf.
Mt 28, 18ss). Mas também no âmbito historicamente limitado da
proclamação de Jesus ele vale para todos, aos quais se anuncia a
nova mensagem da salvação. Jesus, por conseguinte, quebra as
barreiras entre "justos" e pecadores, levantadas pelos piedosos.
Dirige-se justamente aos pecadores, que não cumprem a lei. O reino
de Deus deita por terra as barreiras que a interpretação judaica tardia
estabelecera por meio da lei. Diante dele todos são iguais, a saber,
todos necessitam a salvação e o perdão.
Não devemos identificar a "meia-volta" com experiências de
arrependimento nem reduzi-la a determinados fenômenos psicoló­
gicos. Também não é esse o caso em Lc 15, lls s , o colorido relato
do procedimento do filho pródigo. A "meia-volta" pode conter
"arrependimento", mas há muitos que se arrependem de um ou outro
ato sem jamais mudar de rumo. "Meia-volta" é, antes de tudo, obe­
diência (cf. o item sobre o discipulado), uma obediência que se
manifesta em ações. Esse traço foi ressaltado com especial clareza
principalmente na formulação da tradição sobre Jesus em Mateus,
presumivelmente porque na comunidade judaico-cristã a controvérsia
com o judaísmo o requeria. Contudo os rudimentos para a compre­
ensão da "meia-volta" como ação já se encontram na própria pro­
clamação de Jesus, pois ele compartilha a antropologia do Antigo
Testamento e do judaísmo, que entende o ser humano sobretudo
como aquele que age.
Já em Lc 15 notamos o caráter de gratuidade da "meia-volta".
Foi J. Schniewind quem o ressaltou de maneira especialmente bela e
insistente. "Meia-volta" é alegria. Uma festa de júbilo com a rein-
trodução solene em todos os direitos filiais encerra o retorno do filho
perdido. Alegria anima todo o reino de Deus quando um único
pecador retorna (Lc 15, 7 e 10), pois a "meia-volta" é uma vitória

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do reino de Deus e do amor que procura o que está perdido. No
lugar da auto-segurança piedosa e moralista surge, com a "meia-volta",
a auto-entrega, no lugar da perdição surge o pleno direito de filho,
a participação no reino de Deus por meio do amor complacente
do Pai.

2. A lei de Deus

Considerando-se a exigência total e radical de dar meia-volta,


surge logo a pergunta pela posição de Jesus frente à lei mosaica e
à interpretação rabínica da lei no seu tempo. Se Jesus proclama o
início do reinado de Deus, não devem mudar, então, a importância
e o significado da lei? Pode ela ser ainda a última revelação da
vontade de Deus, de validade exclusiva?
A ética judaica no tempo de Jesus indaga pelos atos que são neces­
sários para corresponder à lei de Deus e fazer do homem um "justo"
("díkaios").
Assim, o jovem rico pergunta a Jesus: "Que farei para
herdar a vida eterna?" (Mc 10, 17ss par.), sendo remetido por Jesus
aos mandamentos do Decálogo. É uma pergunta judaica e (inicial­
mente) também uma resposta judaica, a qual pressupõe a vigência da
lei mosaica como a vontade revelada de Deus. Jesus de modo algum
rejeita a pergunta pelo que fazer. Na pergunta ele está de acordo
com o judaísmo. Tanto mais precisamos ponderar que para o judeu
a lei é o caminho para a salvação e a vida. Andar nos caminhos da
lei torna a pessoa como Deus a quer, correspondendo à sua exigência
de justiça. Ainda é possívei, porém, que a lei seja caminho de
salvação, ou melhor, caminho para a justiça exigida por Deus, quando
o reino de Deus se aproxima? Essa é agora a questão, na qual em
última análise também está radicada a doutrina de Paulo acerca da
lei, sua mensagem de liberdade diante da lei. (Em Rm 2, 17ss Paulo
descreveu magistralmente o orgulho do judeu pela lei.)
Todavia Jesus não se ocupa apenas com a lei de Moisés, mas
sobretudo com a tradição da progressiva interpretação da lei, pois
os rabinos se viam obrigados a atualizar a lei mosaica e adaptá-la a
novas situações. Com inumeráveis mandamentos e proibições, essa
tradição atinge um volume extraordinário. Por meio de sutis pres­
crições ela regulamenta a vida cotidiana até nas minúcias mais insigni­
ficantes. Segundo a concepção rabínica, todas as interpretações e
ampliações da lei são legitimadas pela autoridade de Moisés.
À primeira vista, a atitude de Jesus perante a lei parece ser
extremamente contraditória.
Em primeiro lugar, ele reconhece lei e tradição como sendo
compromissivas e válidas. Já vimos como ele reage à pergunta do

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rico. Diante da mesma pergunta por parte de um mestre da lei,
Jesus replica: "Que está escrito na lei? Como interpretas?" (Lc 10, 26).
Jesus evita, outrossim, o contato com os pagãos, como a lei o pres­
creve. Isso se reflete também sobre a instrução dada aos discípulos
no Sermão Missionário, a saber, de não tomarem o rumo aos gentios
(AAt 10, 5). Do mesmo modo Jesus se atém à ordem litúrgica, ao
culto judaico (Mc 1, 21 s par.). Contudo o reconhecimento da auto­
ridade dos mestres da lei e a ordem: "Fazei e guardai tudo o que
eles vos disserem" (Mt 23, ls) provavelmente foram uma formulação
extremada da comunidade judaico-cristã após a Páscoa. A ela também
devem ser atribuídas as palavras em Mt 5, 17-19, de acordo com as
quais não se dissolverá nem um i ou til da lei até o fim do mundo.
Um caso diferente, porém, encontramos em Mc 1, 44: Jesus envia
o leproso curado ao sacerdote, a fim de que ofereça o sacrifício pela
purificação. Assim Jesus reconhece a ordem jurídico-cultual. No
evangelho de Marcos não se pode notar nenhuma predominância de
tendências judaico-cristãs, visto que a situação histórica do autor e
sua concepção teológica do Evangelho e da pessoa de Jesus, a sua
cristologia, apontam em outra direção do que a teologia judaico-cristã
de Mateus. Por isso temos que considerar Mc 1, 44 provavelmente
como uma tradição que não foi influenciada pela luta em torno da
lei, travada entre os judaico-cristãos.
Em segundo lugar e em contradição a isso, no entanto, Jesus
faz uma distinção sumamente crítica, sim, comparada com a concepção
judaica, uma distinção revolucionária entre a vontade de Deus e as
tradições dos escribas e fariseus. "Invalidastes a palavra de Deus pela
vossa própria tradição" (Mc 7, 13). Na disputa sobre a santificação
do sábado Jesus desrespeita a ordem vigente, pois importa fazer o
bem e salvar vidas. A santificação do sábado, até então obrigatória,
não deve impedi-lo (Mc 3, lss par.). Evidentemente existe, portanto,
uma vontade superior de Deus que deve ser cumprida à revelia das
leis para o sábado. O mesmo vale para a questão do jejum (Mc 2, 18ss
par.). A resposta com uma ilustração tem, ao que parece, um sentido
escatológico: Os convidados nupciais não podem jejuar enquanto o
noivo está entre eles. Surgiu uma nova situação. Por isso "ninguém
põe vinho novo em odres velhos" (Mc 2, 22). A observação tirada
da experiência diária recebeu, aqui, um significado escatológico; em
outras palavras: O início do tempo da salvação modifica a posição
perante a lei, liberta da lei. A liberdade, portanto, já está contida
na proclamação do reino de Deus por Jesus, apesar de ter sido Paulo
quem, mais tarde, desenvolveu teologicamente de modo genial toda
a dialética desse tema (cf. cap. III, item 2). A mulher que há dezoito
anos estava atormentada pela doença, é curada por Jesus num sábado,
não obstante ser proibido trabalhar no sábado (Lc 13, lOss). Do

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mesmo modo, na disputa com os fariseus, Jesus responde afirmati­
vamente à pergunta, por ele próprio formulada, se é lícito curar
no sábado ou não (Lc 14, lss). O sábado foi estabelecido por causa
do homem, e não o homem por causa do sábado (Mc 2, 27 par.). São
investidas contra a interpretação rabínica da lei, as quais neces­
sariamente tinham que ser interpretadas por eles como ação contra
a lei de Deus. Razão por que surge uma profunda dissidência nesse
ponto.
Contudo Jesus não critica somente a prática do sistema cons­
truído pelos rabinos, mas também a própria lei de Moisés.
Na discussão sobre o puro e o impuro (Mc 7, lss par.) Jesus
dirige o ataque contra os "preceitos dos homens", os quais se obser­
vam, enquanto o mandamento de Deus é negligenciado (7, 8). É uma
diferenciação crítica que atinge profundamente, pois a legislação de
pureza está radicada no Antigo Testamento, na lei de Moisés. A
partir daqui já podemos compreender por que mais tarde, no cris­
tianismo prim itivo, a legislação cultual judaica não tem mais nenhuma
importância, é a divisão entre coisas "puras" e "impuras" que Jesus
elimina. Com isso, porém, cai por terra todo o sistema de lavagens
e purificações cultuais e das proibições de não tocar isso e aquilo.
Unicamente o que sai do homem, a maldade do coração, o contamina
(Mc 7, 15.17ss). Anulada está, pois, a velha separação entre sagrado
e profano. Sem dúvida alguma são atacadas, desse modo, a própria
lei e a autoridade de Moisés.
Naturalmente seria simples demais afirmar que Jesus colocou no
lugar do comportamento cultual um comportamento moral. Seria uma
alternativa moderna que não deve ser aplicada aos nossos textos.
Para Jesus trata-se da "radicalização" da lei (R. Bultmann), da vontade
de Deus pura, incondicional, que transcende também a lei mosaica.
Igualmente seria uma simplificação ilícita afirmar que Jesus se opõe
à tradição, mas não à lei. Nas antíteses de Mt 5, 21 ss uma nova
autoridade entra em cena: "Eu, porém, vos d ig o : . . . " Ela está em
contradição ao que foi dito aos antigos, sem que fossem anulados
mandamentos tais como "não matarás". O agir do homem contra
Deus é perseguido até as últimas recâmaras do coração, radicali­
zando-se, assim, a lei. A simples aversão contra o próximo é má
(Mt 5, 22). Independentemente de como seja respondida a contro­
vertida questão da legitimidade do "chamado do Salvador" em Mt
11, 28-30, certo é que aqui foi corretamente entendida uma intenção
da ação e pregação de Jesus: Ele retira dos homens uma carga
imensa, "meu jugo é suave e meu fardo é leve". Mas em última
análise está em questão não o simples ser libertado, mas que se
obedeça realmente à vontade de Deus. Obviamente é possível que
haja nisso uma necessária "eticização" do agir. Reconcilia-te primeiro

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com teu irmão e então faze a tua oferta sobre o altar (Mt 5, 23s).
Com o adversário no tribunal é preciso fazer acordo enquanto ainda
houver tempo (5, 25). Da mesma maneira é evidente a radicalização
da proibição do adultério (5, 27s). Tudo isso representa uma superação
e radicalização da lei pela escatologia. Em Mc 10, Iss par. Jesus
toma posição frente à legislação mosaica do divórcio, contra a pos­
sibilidade da carta de divórcio. Moisés a prescreveu somente em
vista da dureza do coração humano. Jesus, no entanto, retorna ao
"princípio da Criação", à história da Gênese: Deus criou homem e
mulher e os designou para se tornarem "uma só carne", razão pela
qual o matrimônio não deve ser dissolvido (Mc 10, óss). Novamente
é invalidada a regulamentação humana. Na questão, porém, é instru­
tivo especialmente o retorno ao agir do Criador. Não será que essa
abertura em direção da vontade e instituição do Criador tem algo a
ver com a proclamação do reino? Acreditamos que somente ela
liberta de novo o olhar para a Criação. Apenas com a inauguração
do reinado de Deus é possível afirmar: Foi Deus quem criou isso e
assim quis! A escatologia descerra a "protologia" i. é, o falar das
"primeiras coisas" da Criação. Afasta-se todo obscurecimento da
vontade do Criador.
Após todas as exposições acima, surge naturalmente a pergunta se
Jesus tem direito de falar assim. A essa pergunta todos os três
evangelistas respondem "sim ", sendo que cada um fundamenta o
sim com a sua cristologia. Mas, deixando de lado as cristologias par­
ticulares e sistematizadas dos evangelistas, vemos que, em todos os
casos, existe no agir de Jesus uma cristologia indireta, implícita, a
saber, na sua reivindicação de ter autoridade para falar e agir dessa
forma. Jesus reinvidica para si estar articulando a vontade de Deus
de modo claro, puro e incondicional. Contudo pode-se entender mal
o que acabamos de dizer, e falar de Jesus como o "novo legislador".
Mas semelhante cargo não existe na nova situação salvífica escatoló-
gica. Portanto, Jesus de fato não é nenhum "segundo Moisés".
Indistintamente se o judaísmo esperou para o futuro uma "lei do
Messias" ou não — uma questão que não podemos investigar aqui —
é certo que, em sua concepção do Sermão do Monte, Mateus expres­
sou claramente que o anunciador do reino de Deus proclamou,
conjuntamente, também a vontade definitiva e genuína de Deus.
Assim, reletivizou-se a autoridade de Moisés. Por isso não há dúvida
de que — segundo Mateus — Jesus se coloca acima de Moisés.
Evidentemente o judaico-cristão Mateus estava existencialmente inte­
ressado nessa problemática. Lucas, no entanto, não deparou mais
com esse problema do confronto direto com a interpretação da lei
pelo judaísmo devoto. Não ocupava mais um lugar central na sua
pregação a pergunta pela justiça "m elhor", i. é, a justiça perfeita e

17
que supera toda a justiça judaica (Mt 5, 20). Para Lucas ela há tempo
havia sido decidida.
é uma questão de fé se AAateus tomou a decisão correta e se nós
nos submeteremos com ele ao "eu, porém, vos digo".
Será necessário partirmos da pregação escatológica de Jesus
referente ao reino. Em virtude do advento do reino de Deus a lei
mosaica recebe um valor completamente diferente do que até então,
no judaísmo. Ela não é mais a revelação definitiva de Deus. No
"kairós" do tempo de salvação a "verdadeira" vontade de Deus é
entendida e descerrada de forma radical. Por isso se exige uma
justiça nova, melhor (Mt 5, 20). Na nova situação a exigência decisiva
e conclusiva somente pode ser: "Buscai em primeiro lugar o reino de
Deus e a sua justiça, e todas essas coisas vos serão acrescentadas"
(a saber, as coisas terrenas que os homens necessitam; M t 6, 33).
Esse é o novo mandamento de Jesus, porque resulta da prédica da
iminência do reino de Deus. Veremos no trecho sobre o mandamento
do amor (item 3) que ele ainda possui outra forma. Aquelas partes
da lei que correspondem à justiça de Deus, como os mandamentos do
Decálogo, permanecem em vigor. Também o ouvinte da nova men­
sagem do reino de Deus não deve roubar nem matar. Contudo isso
são proibições, dadas para proteger a comunidade dos homens. Agora
é preciso que elas sejam radicalizadas, e a ética de Jesus precisa trans­
cender para o positivo a forma negativa do Decálogo. Surge, simul­
taneamente, um conceito radical do mal: O mal situa-se no centro
da pessoa, no coração, e corrompe a partir dali todo o agir. A árvore
má produz maus frutos (Mt 7, 17ss). Por isso a exigência da "meia-
volta" também precisa ser radical (veja acima).
Tão certo como Jesus não falou pessoalmente de um "novo
mandamento", tão certo é também que a intenção do mesmo está
contida em M t 5, 21ss. A continuação em M t 5, 43ss, sobre o man­
damento do amor, deixa transparecer tal intenção ainda mais nitida­
mente. Mais tarde João a resumiu, acertando bem o conteúdo, na
formula do "novo mandamento" (Jo 13, 34; 15, 12). Portanto, a
versão judaico-cristã em Mt 5, 17-19, que fala do "cumprimento" da
lei e visa a livrar Jesus da suspeita de que ele seja um destruidor
da lei, acerta somente um lado da questão. A "moralidade trans-
moral" de Jesus (P. Tillich) radicaliza e revoluciona a lei a partir de
Deus. Nesse sentido permanece válida a afirmação de que Jesus
não foi nenhum legislador. Com o advento do reinado de Deus
começa uma existência nova, escatológica. Aqui há mais do que
Moisés!
Anúncio da salvação e exigência perfazem uma unidade indis­
solúvel. Separados um do outro, perdem o significado. Nisso reside
uma etapa preliminar para a fundamentação teológica do imperativo

18
dada mais tarde por Paulo. A mensagem do reino de Deus atinge o
homem com uma ponta, a qual consiste na exigência radical. Mas
precisamos empenhar-nos, a seguir, para constatar o conteúdo da
mesma.

3. O mandamento do amor

Jesus deu pessoalmente uma resposta à pergunta pelo conteúdo


da nova justiça, tanto em Mt 5, 43-48 como nas palavras sobre o
duplo mandamento do amor a Deus e ao próximo (Mc 12, 28ss):
dedicação total a Deus bem como ao próximo. É verdade que houve
também na teologia rabínica sínteses da lei que recorriam a esses dois
mandamentos, mas somente Jesus os interpreta e aplica de forma
radical: No lugar do antigo amor próprio é colocado o amor ao
próximo. O cumprimento do mandamento pressupõe a mudança
escatológica das coisas, pressupõe a nova existência dentro do advento
do reino de Deus.
Ambos os mandamentos se equiparam. Jesus na verdade não
reflete sobre a forma de sua interrelação, mas a equiparação a
contém: Não há amor verdadeiro e pleno do coração todo a Deus
sem o amor ao próximo. Mas tampouco é possível uma simples
moral e humanitarismo; O amor ao próximo permanece entrelaçado
com o amor a Deus. Mt 5, 23ss revelam que somente a reconciliação
com o próximo torna autêntica e pura a devoção a Deus. No
mesmo contexto podemos elucidar o ataque de Jesus contra os
fariseus, que corrompem seu culto a Deus por devorarem as casas
das viúvas (Mc 12, 40; Mt 23, 14). Jesus acaba com semelhante
separação entre culto (oração) e ética. No lugar da hipocrisia piedosa
precisa aparecer a singeleza e a intenção unívoca do coração. Essa
transparência caracteriza também o amor ao próximo. Na versão de
Lucas, o mandamento do amor reza como segue: "Sede misericor­
diosos, como também é misericordioso o vosso Pai" (Lc 6, 36). A
estrutura do dito corresponde a Mt 5, 48: "Sede perfeitos, como per­
feito é vosso Pai celeste". Anteriormente (em 5, 45) se falou da
benignidade livre e gratuita de Deus, o qual faz nascer o seu sol
sobre maus e bons. Visto que não se deve cogitar num conceito nem
judaico-legalista nem gnóstico de perfeição, será correto dizer: A
perfeição de Deus é o seu amor. Quem ama é perfeito como Deus.
Ser correspondente a Deus no amor, é essa a exigência suprema que
se pode imaginar.
Em Mt 5, 43ss o característico é que o amor é transbordante.
Amar aos que nos amam os publicanos também fazem. Que há de
especial em saudar os irmãos? Os pagãos também o fazem! Mais
importante é que o amor seja transbordante. Ele não pode ser retido
dentro de quaisquer demarcações. Ele rompe os limites familiares

19
e de pertinência a um povo. A concepção antiga restringia o amor
aos compatriotas, ao povo judeu. Por isso lemos na última antítese
que fora dito aos antigos: "Amarás o teu próximo e odiarás o teu
inim igo" (Mt 5, 43). A segunda parte da frase é interpretação. Não
a encontramos em Lv 19, 18, onde topamos com o mandamento
veterotestamentário do amor ao próximo (Lá o próximo é o com­
patriota). Contrapondo-se a essa interpretação ampliada da antiga
lei, Jesus diz: "Am ai os vossos inimigos e orai pelos que vos per­
seguem", pois somente assim vos podeis revelar como filhos de
vosso Pai celestial (Mt 5, 44ss). Transparece da maneira mais nítida
que não há limitações para o amor ao próximo, que ele rompe até
mesmo os limites do desprezo religioso e do ódio, como demonstra
a ação do Bom Samaritano (Lc 10, 29ss).
Patenteia-se dessa forma também que o amor dá tão gratuita­
mente como o próprio Deus. Ele é o protótipo desse amor que não
calcula com reciprocidade e retribuição, que é criativo e livre, como
Deus.
Por conseguinte, ele também não depende dos sentimentos do
coração humano, sejam eles o amor erótico, a simpatia, a amizade
ou outras formas de afeto entre os homens. O amor ao próximo
não deve ser confundido com tudo isso. Sua origem reside na bon­
dade e misericórdia criadora e doadora de Deus. Posteriormente,
com a penetração da Igreja no mundo, o amor como Jesus o entendia
combinou-se com todos os sentimentos do coração humano, p. ex.,
até com o amor à pátria. Tais sínteses, porém, muitas vezes expuseram
o amor de que falam os evangelhos a grandes perigos, mormente
ao perigo de perder seu caráter universal e radical que transcende
qualquer limite.
Ao escriba que resume os dois grandes mandamentos e os
contrapõe ao sacrifício cultual, Jesus responde: "Não estás longe do
reino de Deus" (Mc 12, 34). Quem sabe o que é o amor sabe também
o que é o reino de Deus, e vice-versa vale o mesmo. Por isso proce­
deram bem todos os que compreenderam o amor como a magna-
carta do reino de Deus.
Que significa "amar como a ti mesmo"? A controvérsia sobre
essa pergunta é antiga, tendo preocupado já Agostinho e Lutero. Por
causa de influências da antropologia e ética greco-helenistas, a dou­
trina eclesiástica católico-romana desenvolveu a concepção de que
o amor próprio fosse o padrão para o amor ao próximo. Mas, em
vista de toda a tradição sinótica sobre Jesus, é impossível que Jesus
tenha pensado assim. Em nenhuma ocasião Jesus faz depender o
amor ao próximo de padrões humanos e terrenos. Ele o formula
de modo radical, porque pensa no amor de Deus. Com a mesma
dedicação e totalidade com que o homem "de natureza" ama a si

20
mesmo, ele d^ve amar agora, ao iniciar-se o reino de Deus, o outro,
o próximo. Jesus não pensa numa :ntese entre um amor próprio
legítimo e o amor ao próximo. O amor ao próximo toma o lugar
do amor a si, pois que seu reverso é a negação de si mesmo (Lc
14, 26 par.) e sua culminância o amor ao inimigo (AAt 5, 44ss; cf.
Lc 6, 27ss).
O amor ao próximo tampouco pressupõe uma idéia ou uma
imagem ideal daquele que se deve amar. Pelo contrário, ele é
totalmente "não-idealista". Importam-lhe as pessoas concretas, reais,
que cotidianamente encontramos. O amor ao próximo tampouco
pressupõe valores inerentes ao homem que se devam amar, tal como
faz o "éros", o qual segundo Platão ama o belo e o bom no homem
e é atraído por esses valores. Perguntar por valores significaria
destruir o alcance irrestrito do amor ao próximo. Ele não indaga
pelo que o outro vale. Não está condicionado às qualidades e vir­
tudes humanas do outro, em conformidade com o que ocorre com o
amor de Deus.
Essa verdade se demonstra principalmente no fato de que o
amor ao próximo se dirige a todos os necessitados. E verdade que
falta a palavra "amor" na grande narração do Juízo em Mt 25, 31 ss,
mas evidentemente está sendo tratado do seu conteúdo, pois os justos
são aqueles que saciaram famintos, deram de beber a sedentos, ves­
tiram nus e visitaram presos. Assim serviram — conforme as pala­
vras do Juiz cósmico — ao próprio Cristo. Importante é o serviço
ativo aos miserandos, que são os "pequeninos" dentre os seus irmãos.
A profundidade da angústia não é limite para o amor. Ao mesmo
tempo constatamos-. Amor não é mera mentalidade e não tem nada a
ver com compaixão barata ou inativa. Amor é atos de amor.
Sobretudo, porém, não existe uma "ética de intenção" na pro­
clamação de Jesus. É claro que os atos brotam do "coração" (Mc
7, lss). Encara-se a pessoa como uma unidade de coração e ação
(Mt 7, 17ss). Justamente por isso, porém, lemos-, "Pelos seus frutos
os conhecereis" (Mt 7, 16.20). De igual modo, os "praticantes da
ilegalidade" são condenados (Mt. 7, 2 lss).
Cumprindo-se o mandamento do amor, cumpre-se a exigência
central de Deus. Por isso também não é possível entender a ética
de Jesus segundo o esquema de um antionomismo, seja ele antigo
ou moderno. O discípulo encontra-se sob o mandamento e a exigên­
cia de Deus. Nisso Jesus permanece "judaico". Porém agora trata-se
do mandamento radical do amor a Deus e ao próximo. Tal "sim pli­
ficação" e concentração das ordens de Deus não atenuam a exigência
mas a intensificam.
A indagação do escriba sobre quem seria, afinal, o próximo
não é respondida com uma classificação, nem conforme a lei de

21
Moisés: que o próximo é o compatriota e aquele que desfruta o
direito da Hospitalidade em Israel. Com essa definição estão excluídos
todos os outros grupos. Contudo a narração do Bom Samaritano
(Lc 10, 29ss) revela que Jesus anula esse modo de perguntar. O
próximo daquele que havia caído entre os salteadores foi o que
praticou a misericórdia para com ele (10, 36s). Portanto, não devemos
perguntar: Quem é meu próximo? — na intenção de diferenciar,
desse modo, os diversos grupos, mas: Para quem eu pessoalmente
estou sendo o próximo? — e agir de acordo. Foi o que fez o Bom
Samaritano. Pela miséria do outro eu me torno o seu próximo.
Conseqüentemente não é possível decidir prévia e sistematicamente
quem pertence à classe do próximo. Jesus, portanto, inverteu e
transformou a maneira de perguntar tipicamente judaica em seu
oposto. O Bom Samaritano foi a pessoa desafiada para o serviço
ao próximo e que lhe correspondeu com sua ação. Embora não sendo
nenhum judeu piedoso, mas um apóstata, e muito menos sendo um
cristão (de acordo com os padrões daquela época), ele cumpre o
mandamento do amor. Transparece aqui que o mandamento rompe
também os "limites eclesiásticos," de outrora como de hoje.
Embora não se reflita teologicamente em nenhuma parte da
tradição acerca de Jesus, sobre a unidade de mensagem salvadora
e mandamento, ela é constantemente pressuposta. Mateus a articulou
indiretamente em sua cristologia: Jesus, o Messias de Israel, é o
intérprete plenipotenciário da vontade divina. No que se refere a
essa unidade, precisamos considerar que ela possui uma longa his­
tória prévia no Antigo Testamento: A aliança de Deus com o seu
povo é salvação e diretriz ao mesmo tempo. A unidade de salvação
e mandamento é o amor de Deus. Mas, onde a mensagem do reino
de Deus atinge a pessoa, ambos precisam tornar-se visíveis, a sal­
vação e o mandamento. O mandamento assumiu, agora, também
um caráter escatológico. O homem liberto e salvo está comprometido
com a vontade de Deus. No irromper da salvação são nascidos novos
praticantes dessa vontade (Mt 5, 7.9).
Aceitando a decisão cristológica fundamental dos evangelistas,
de que o Jesus de Nazaré que assim fala é o Senhor ressurrecto de
sua comunidade, podemos acrescentar: Na pessoa e autoridade de
Jesus, anúncio da salvação e mandamento formam uma unidade. O
pregador do reinado de Deus liberta e prende ao mesmo tempo.

4. O sentido do Sermão do Monte

Já abordamos tangencialmente o problema, quando falamos da


questão se Jesus deveria ser entendido como um novo legislador.
Diante da vasta literatura sobre o Sermão do Monte, é quase impos­
sível estabelecer novos pontos de vista. Não obstante, os principais

22
problemas e interpretações do Sermão do Monte precisam ser apre­
sentados em breves traços também no presente contexto (cf. o índice
de literatura).
O Sermão do Monte (Mt 5-7) é uma composição teológica e
literáiia do evangelista, tendo como base o "Sermão do Campo" da
fonte Q (Lc 6, 20ss). Nele está resumida grande parte das tradições
éticas. Possui grande significância teológica que ele inicia com as
bem-aventuranças (Mt 5, 3ss par.), i. é, com a mensagem de salvação
de que o reinado de Deus se aproxima dos pobres e miseráveis, dos
humildes, dos que têm fome da justiça de Deus. Somente a partir
desse fundamento passa-se a falar do envio dos discípulos (5, 13-16),
da lei e do novo mandamento de Jesus (5, 17ss.21ss) e do amor
(5, 43ss). Do mesmo modo não é coincidência, mas expressão duma
concepção teológica uniforme, que as advertências e o anúncio do
Juízo se situam no final (Mt 7, 15ss).
Primeiramente trataremos das mais importantes interpretações
do Sermão do Monte na história da Igreja e da teologia.
a) A tradicional interpretação católica compreende os manda­
mentos radicais de Jesus como "conselhos" ("consilia evangélica") para
os "perfecti", ou seja, para aqueles "perfeitos" que se submetem às
ordens duma vida ascética. Dessa maneira o Sermão do Monte
torna-se regra monástica. Os "cristãos mundanos", porém, que vivem
na terra, no matrimônio, no trabalho e no Estado, não podem cumprir
os mandamentos radicais. Por exemplo, não podem prescindir da
posse de bens terrenos. Precisam ater-se, para dizê-lo resumida­
mente, aos Dez Mandamentos, o mínimo indispensável de observância
de preceitos. O que obviamente não significa que os cristãos mun­
danos não devam amar ao próximo, mas eles podem fazê-lo apenas
dentro dos limites terrenos das estruturas sociais em que vivem.
Unicamente quem se retira do mundo tem condições de cumprir os
mandamentos radicais do Sermão do Monte. Foi essa a ética de dois
degraus, ou ética de duas classes, da Igreja Católica Romana antes
do II Concílio do Vaticano.
b) Em contraposição à antiga interpretação católica, a luterana
parte com acerto da compreensão de que a exigência radical de
Jesus vale para todos os cristãos. Ela é entendida segundo o "usus
elenchticus legis", ou seja, segundo a função da lei de pôr a desco­
berto o pecado. O Sermão do Monte impele para o arrependimento.
Todo ele é um chamado ao arrependimento e um espelho para a
confissão. O homem é convencido de sua pecaminosa incapacidade
de fazer o bem. O mandamento do Sermão do Monte é tido como
inexeqüível. Esse esboço da concepção da ortodoxia luterana não
deve ser simplesmente identificado com a interpretação pessoal de
Lutero do Sermão do Monte (veja abaixo). Ainda em 1925 o teólogo

23
dogmático luterano Cari Stange defendeu tal concepção. A intenção
central dessa interpretação é que o Sermão do Monte não se torne
uma lei e Cristo, um "segundo Moisés". No próprio Cristo, e somente
nele, foi cumprida vicariamente para todos a exigência absoluta do
Sermão do Monte.
A intenção é, sem dúvida, legítima. Por outro lado, porém,
ignora-se completamente que o Sermão do Monte sempre demanda,
em 5, 13ss, 21 ss; 6, lss; 7, lss, etc. até o fim , um agir, boas obras,
atos de amor, cumprimento efetivo da vontade de Deus; e tudo isso,
dos próprios discípulos. Em parte alguma os textos se restringem à
afirmação de que o Sermão do Monte fosse cumprido, em nosso lugar,
unicamente por Cristo. Muito pelo contrário, no Sermão do Monte
Jesus está diante de nós claramente como aquele que exige e ordena
(com exceção de 5, 3-12). é verdade, o Sermão do Monte revela
quem somos (cf. principalmente 5, 2 lss). Contudo, a partir da nova
situação escatológica da salvação, ele requer um novo agir. Dar
meia-volta sem praticar a vontade de Deus, em todos os casos não
resulta, para o Sermão do Monte, na justiça "m elhor" dos discípulos
ao irromper-se o reino de Deus. Também não é possível remeter-se
a Paulo nessa questão, como o demonstram nitidamente Rm 6, 11 ss
(cf. também II Co 5, 10). Não podemos fugir da verdade de que o
Sermão do Monte demanda o bom fruto, as diferentes boas obras,
a prática do amor. Toda interpretação do Sermão do Monte que não
tiver em conta essa verdade é falha.
c) O mesmo vale também para a terceira interpretação, segundo
a qual Jesus teria professado uma nova "ética de intenção" em contra­
posição ao judaísmo. A interpretação é proveniente de Kant e da
filosofia idealista. Defendem-na os teólogos liberais dos séculos XIX
e XX. É conservada a tradição de que o Sermão do Monte não deve
ser entendido como lei. Jesus exige uma mentalidade boa, um bom
coração. Devem ser afastadas também as raízes do mal do coração
do homem. Evidentemente isso está correto. Mas já temos constado:
Coração e ação não podem ser separados. É preciso reconhecer
sobretudo o seguinte: De acordo com o Sermão do Monte simples­
mente não entra em cogitação uma justificação do homem por causa
de sua intenção, sua boa vontade, pois que isso seria apenas uma
paralela moderna para a doutrina judaica da justificação pelas obras.
Ademais, não é admissível introduzir o conceito moderno de auto­
nomia e mentalidade em textos sinóticos e neotestamentários. Não
basta ter intencionado o bem. O Sermão do Monte insiste no agir.
d) Uma interpretação oposta ao modelo acima é a que fala —
nas pessoas de Johannes Weiss e Albert Schweitzer — de uma "ética
de ínterim " apocalíptico-escatológica. Isso significa que as exigências
radicais de Jesus se destinam somente para curto espaço de tempo

24
antes do fim iminente do mundo, por assim dizer como "legislação
de exceção" para o último tempo. No prazo exíguo até o fim do
mundo requerem-se feitos extraordinários, heróicos. Decisivo e
acertado é que esses pesquisadores partem da proclamação escatoló-
gica do reino de Deus. Ainda assim, compreenderam erroneamente a
ética de Jesus e sua relação com a escatologia. Os textos em lugar
algum falam de uma restrição do mandamento de Jesus para um
tempo breve, "últim o". " 'Amai-vos uns aos outros' não é nenhum
mandamento especial para o tempo derradeiro" (H. Conzelmann).
O conteúdo da exigência é compreendido a partir da natureza e
vontade de Deus (Mt 5, 43ss; 7, 2 lss), mas não deduzido da proxi­
midade do fim do mundo. Depois, não se denota em parte alguma
que se trata de exigências heróicas, pelo contrário, exige-se de
todos os ouvintes do Sermão do Monte que cumpram o mandamento
do amor. Em contraposição ao heroísmo de feitos especiais (doar
toda sua propriedade, sofrer martírio), Paulo, mais tarde, podia afirmar
que, sem a "agápe" (amor), tais feitos são vazios e infrutíferos (I Co
13, lss), e com certeza ele entendeu o amor corretamente. Todo
discípulo ou, após a Páscoa, todo cristão deve e pode amar. A cena
do Juízo cósmico (Mt 25, 3 lss) deveria justamente excluir que saciar
famintos, etc. tenha validade apenas para o fina! dos tempos. A
relação entre escatologia e ética, porém, é esta: Ao iniciar-se o
reinado de Deus, anunciado agora por Jesus, a vontade de Deus é
ressaltada de forma clara e exata. Todas as "normas humanas" são
reconhecidas como tais e nitidamente distinguidas da vontade de
Deus. Caem por terra todas as relativizações da vontade divina.
Nesse "kairós" realiza-se a revelação definitiva da vontade de Deus.
Sua vontade é o amor. Todos devem amar, não apenas, formulando-o
uma vez assim, os "heróis dos últimos dias"!
e) Uma solução do problema do Sermão do Monte, muito fre ­
quente na história eclesiástica, é a espiritualista-entusiasta, que foi
defendida ainda no nosso século pelo conde Leo Tolstoi sênior e, em
parte, pelo socialismo religioso. Considera-se o Sermão do Monte
como o modelo de uma nova sociedade de amor e de paz, do reino
de Cristo sobre a terra. Os mandamentos do Sermão do Monte pre­
cisam ser cumpridos literalmente, então a nova sociedade poderá ser
estabelecida. Poderio estatal, polícia e exército, judicatura e dispo­
sições legais — tudo isso são instituições que precisam ser abolidas,
a fim de que haja lugar para o reino definitivo do amor, da justiça
e da perfeição. Por conseguinte a interpretação entusiasta adquiriu
muitas vezes um caráter revolucionário: Acabem com toda a velha
sociedade, para que possa imperar o amor! é compreensível que
essa interpretação podia adquirir novamente traços legalistas, uma
vez que o Sermão do Monte era compreendido como estatuto da
o cristão sempre está comprometido com outras pessoas. Para pro­
teger o próximo, é necessário que, como pai ou estadista, se faça uso
dos meios da ordem terrena, muitas vezes até da força. A ordem
jurídica, por exemplo, precisa ser mantida diante do infrator da lei.
Não podemos admitir a injustiça que é praticada contra nosso pró­
ximos; precisamos protegê-lo com os recursos da ordem jurídica.
Contudo devemos suportar a injustiça que é praticada contra nós
mesmos. Se meu próximo é assaltado por ladrões, preciso protegê-lo,
também mediante a força. O amor, portanto, pode e deve adquirir
no mundo também a forma do rigor, sim, da violência, quando está
em jogo o próximo cu toda uma sociedade. Lutero explicitou a gra­
vidade do conflito. O ministério do amor também é capaz de castigar.
O que parece contradizer o amor, a saber, o emprego da'violência
pode tornar-se, segundo Lutero, um instrumento do amor. Lutero,
porém, não conhece a possibilidade de que as ordens mundanas
anulem o mandamento do amor. Foi completamente errado designá-lo,
às vezes, de "escravo das autoridades" ou dos soberanos de seu
tempo.
Não obstante, há que se admitir uma pergunta crítica a Lutero.
Os escritos confessionais luteranos rezam que devemos "praticar o
amor dentro de tais ordens (as mundanas)". Isso, sem dúvida, tem bom
fundamento em Lutero. Mas será o suficiente? Não precisa o amor
transformar também instituições, por causa do próximo? Ademais,
não deve ele estar livre para servir ao próximo fora do nosso Estado,
de nossa raça etc., carente de nossa ajuda? O amor transcende e
rompe todas as limitações mundanas. Sua universalidade resulta de
sua radicalidade. O amor também deve ser capaz de questionar
a forma atual das ordens dc mundo. Os entusiastas perceberam
corretamente a sua tarefa de crítica à sociedade. Acaso não transluz
através do Sermão do Monte um questionamento do cosmos todo e
da sua duração? A esse fato Lutero não deu a devida atenção, pelo
menos não na interpretação do Sermão do Monte. Talvez tenha sido
impedido de fazê-lo pela sua oposição compreensível aos entusiastas
e pela insurreição dos camponeses em 1525.
Deve ser acrescentado também que a redescoberta da pregação
escatológica de Jesus ocorreu somente no fim do século passado por
intermédio de Johannes Weiss e Albert Schweitzer. Quando o reino
de Deus se aproxima, o presente mundo precisa perecer, não pos­
suindo mais nenhuma duração própria como ordem ontológica eterna.
O fim do mundo está próximo. Assim o entendeu também a comu­
nidade primitiva, como demonstra o chamado Sermão Apocalíptico
em Mc 13 par., assim o entendeu Paulo (I Co 7, 29ss; Rm 13, llss).
É preciso contrapor sempre às ordens deste mundo o mandamento
do amor, entendido de modo radical e absoluto, e reconhecer que

28
ele indica para muito além deste mundo, para o novo mundo do
reino de Deus.
Uma segunda pergunta crítica a Lutero refere-se à idéia da
transposição ou transformação do amor dentro das instituições mun­
danas. Caso seja possível que o amor adquira a severidade do cas­
tigo e do emprego da violência, deve haver, não obstante, um limite
para tal transformação, a fim de que o amor não perca o seu caráter
de amor de Cristo, e não venha a se tornar um possível subterfúgio
para a maldade. Se amor é amor ao inimigo, se ele é, como
costumamos dizer, amor aos desgraçados, então isso deixa suficiente­
mente claro que ele leva para além do status quo da respectiva socie­
dade, bem como para além dos limites de povo e Estado. Depois,
aplicar a violência pode ser pecado, o qual o amor precisa de se
negar a cometer. Por isso os (imites da transposição devem ser
sempre de novo traçados, para que o amor não se dissolva em
modos de proceder mundanos. Ele deve permanecer sempre uma ins­
tância crítica diante do que acontece no mundo. Unicamente dessa
maneira pode ser preservado o mandamento radical de Jesus.

5. Reino de Deus e mundo

É necessário que investiguemos mais a fundo a questão que


desdobramos acima com ajuda de Lutero. Que acontece com os bens
ê as grandezas terrenas na proclamação de Jesus?
a) Façamos inicialmente uma observação preliminar sobre a
concepção do homem e de como e/e vive no mundo. Jesus não
elabora nenhuma doutrina do homem nem do pecado. Mas em sua
prédica está contido um juízo sobre o homem. Já o constatamos ao
falarmos sobre a "meia-volta" (item 1), bem como nas antíteses em
M t 5, 21 ss. O homem necessita a libertação e salvação, porque,
como pecador, está sujeito ao juízo de Deus. Sim, bom é um só,
Deus (Mc 10, 18). Também as três parábolas do perdido em Lucas
15 apresentam o homem como o pecador que precisa dar meia-volta.
Somente pelo amor paternal de Deus ele pode recuperar a existência
humana verdadeira e plena. Jesus vem, para chamar à meia-volta os
pecadores (Lc 5, 32). O publicano no templo confessa: "Ó Deus, sê
propício a mim, pecador!" Pedro reconhece a mesma coisa em seu
encontro com Jesus (Lc 5, 8). De toda palavra inútil os homens hão
de prestar contas no dia do Juízo (Mt 12, 36). Quando os membros
de nosso corpo humano, entendidos como portadores de nossos atos,
querem incitar-nos à maldade, eles precisam ser decepados (Mc 9,
43ss). Toda árvore que não traz bons frutos é cortada e lançada ao
fogo (Mt 7, 19; cf. 7, 21ss). A simples pronunciação de palavras
maldosas contra o próximo está sujeita ao Juízo (Mt 5, 22). Isso

29
significa que o chamado à "meia-volta" e o anúncio do Juízo abordam
a pessoa diretamente como pecadora. A afirmação acerca do homem
é imanente à mensagem escatológica. Apenas em Paulo é possível
falar de uma "doutrina" do pecado. De acordo com Mt, 6, 12s, os
discípulos devem orar pelo perdão de suas dívidas e pela libertação
do mal. Em Mt 7, l i os homens são sem mais nem menos designa­
dos maus. O endividamento é tanto culpa perante Deus, cuja vontade
não é cumprida, como perante o próximo. A parábola do credor
incompassivo acentua o dever de perdoar ilimitadamente ao irmão
(Mt 18, 21ss).
Contudo o dualismo de reino de Deus e pecado, por mais radical
que seja, não anula a fé no Criador. Evidentemente o reinado de
Deus precisa de vir, para trazer a salvação aos pecadores, e a toda
a Criação, a libertação do poder demoníaco. Incluída está também a
libertação da propensão pelo mundo, que emaranha o homem numa
dependência de bens e grandezas terrenas.
Jesus não foi nenhum reformador ético nem um revolucionário
social, nem tampouco um asceta inimigo do mundo, embora tenha
pessoalmente renunciado ao matrimônio e à propriedade. Suas curas
de enfermos não iniciam nenhuma reforma da higiene e da medicina.
Tampouco faz sugestões quanto à posição e ao tratamento dos escravos.
Por outro lado, porém, ele também não se tornou dependente
dos poderes e partidos político-religiosos de seu tempo. Diante dos
fariseus, dos saduceus e dos zelotas ele tem uma posição livre e crítica.
Nega-se também a servir de juiz e repartidor de heranças (Lc 12, 13s).
Isso está aquém de sua missão. Teólogos modernos lamentaram que
não se pode encontrar em Jesus nenhuma valorização positiva dos
"valores culturais". Friedrich Naumann ficou profundamente abalado
ao constatar a enorme distância entre o Jesus histórico e o moderno
mundo secular. Todavia, para quem precisa anunciar o advento do
reinado de Deus, a cultura não pode ser nenhum problema decisivo
e, sobretudo, nenhum valor absoluto.
b) Surge, então, a pergunta séria, se Jesus deve ser entendido
apesar de tudo, como um asceta, tendo-se em vista principalmente o
seu próprio modo de vida. Verdade é que não podemos constatar
em parte alguma que ele tenha instituído um regulamento ascético
para os seus discípulos. Se Mt 19, 12 fala dos que se castraram por
amor ao reino de Deus, devemos entendê-lo seguramente como ilus­
tração. Porém é indubitável que Jesus exigiu desistências e sacrifícios
reais, não no estilo de um programa ascético, mas por causa da decisão
pelo reino de Deus (Mc 9, 43ss par.). De acordo com essa orientação
Jesus solicita ao rico que dê todas as suas propriedades aos pobres —
não por oposição fundamental à propriedade, mas porque o rico é
impedido pela sua riqueza de aceitar livremente o reinado de Deus.

30
Naturalmente pode haver também outros vínculos que precisam ser
rompidos, os da fam ília e do respeito ao pai, a fim de que a pessoa
se torne "apta" para o reino de Deus (Lc 9, 57ss). Podem ser os
bens deste mundo que prendem o homem, pelo que lemos: "Não
acumuleis para vós tesouros sobre a terra" (Mt 6, 19), "porque onde
está o teu tesouro, aí estará também o teu coração" (Mt 6, 21). Ou,
então, é o espírito pagão da preocupação que subjuga as pessoas
(Mt 6, 25ss). Contra ele é dito: "Buscai em primeiro lugar o reino de
Deus e a sua justiça" (Mt 6, 33). Deus sabe o que o homem necessita
para viver.
Assim, afirma-se a relatividade dos bens e vínculos terrenos, eles
perdem o caráter de poderes absolutos. Existe apenas um senhor
sobre os homens, que é Deus! A ruptura do poder terreno é possível
porque o reino de Deus se aproxima. Portanto, não temos diante de
nós um sistema ascético por princípio. A exigência de Jesus dirige
seu ataque sempre e de modo atual contra aquilo que prende e
impede o homem a tomar a decisão pelo reinado de Deus, razão pela
qual se tornam necessários sacrifícios concretos. Não há valores ou
poderes que possam fazer concorrência ao reino de Deus. E ele
tampouco está destinado a emprestar-lhes um brilho religioso.
O homem, pois, é atingido por um imperativo concreto. O
chamado à "meia-volta" recebe cor e conteúdo. O homem é alcan­
çado pela exigência de Jesus numa situação determinada.
Jesus está separado das numerosas formas de vida ascéticas de
seu tempo principalmente pelo ato de que a ascese lhe é desconhe­
cida como meio para a salvação — salvação é concedida unicamente
e de autoria própria pelo reinado de Deus! — e, em segundo lugar,
porque ele não institui nenhuma lei de vivência ascética, não funda
nenhuma seita ascética. Contudo não se deve olvidar, em vista dessa
negação, a gravidade de suas exigências de renúncia. Dessa forma
explica-se também por que não ouvimos nada acerca de uma ascese
sexual ou alimentar na tradição sobre Jesus, embora ele próprio
viva solteiro. Mas a exigência da "meia-volta" pode, concretamente,
tornar-se também ascética, a saber, quando algo se coloca como
empecilho entre a pessoa e o reino de Deus. É uma exigência ascética
"de caso para caso", na hipótese de. . ., condicional. Por conseguinte,
também nessa questão, Jesus não é nenhum doador de leis.
Por esse motivo — e alicerçado sobre a fé veterotestamentária
no Criador — Jesus não pode depreciar, de princípio, o mundo. Ele
está sobremaneira afastado da gnose negadora do mundo, do final
da Antiguidade. Pelo contrário, somente no início do reinado de
Deus, o Criador e sua criação tornam-se novamente visíveis de forma
clara e plena. O senhorio de Deus inclui também a onipotência do
Criador. Por isso podemos ler que todas as coisas necessárias para

31
viver "serão acrescentadas", desde que esteja certo em primeiro lugar
o seguinte: a aspiração pelo reino de Deus (Mt 6,33). "O pão nosso
de cada dia dá-nos hoje" (Mt 6, 11). Não, tais questões terrenas não
são condenáveis. Apenas não lhes devemos atribuir, através do
espírito pagão da preocupação, um peso errado, ou seja, absoluto,
nem nos sujeitar a elas como a algo que possui poder sobre os
homens.
Naquele tempo chamou atenção aos contemporâneos também
a diferença entre as atitudes de João Batista e de Jesus. O último
é chamado por seus adversários de "glutão e bebedor de vinho"
(Mt 11, 19). Criticam-no também porque seus discípulos não jejuam.
c) Neste contexto é importante a palavra sobre o matrimônio
e o divórcio em Mc 10, lss. No trecho sobre a lei (item 2) já men­
cionamos que Jesus retorna à vontade e ação do Criador, que fez
homem e mulher, designando-os para formarem "uma só carne"
(cf. Gn 1, 27 e 2, 24). O agir do Criador é a razão pela qual o
matrimônio não deve ser dissolvido. Jesus opõe-se à prática judaica,
baseada na lei de Moisés, segundo a qual é permitido dissolver o
matrimônio (carta de divórcio). Não há nenhum indício de uma
difamação do matrimônio e do relacionamento sexual. Aqui e hoje
tem validade o agir do Criador. A partir dessa posição Jesus ataca
a legislação mosaica do divórcio. O reino de Deus que se aproxima
não leva à dissolução do matrimônio, mas preserva a sua instituição
pelo Criador.
Grandes dificuldades para a exegese oferece a assim chamade
"cláusula do adultério", ou melhor, da impudicícia, que é apresentada
exclusivamente por Mateus (Mt 19, 9; 5, 32): O divórcio é inadmis­
sível "exceto em caso de impudicícia". Evidentemente ela estabelece
uma exceção. Estranho é o emprego do termo genérico "im pudi­
cícia"* ao invés de um mais específico para "adultério", como se
déveria esperar. A explicação mais provável é que Mateus e sua
comunidade se viram compelidos a constatar e admitir essa exceção,
porque depararam com o fato de um matrimônio destruído pela
impudicícia ou pelo adultério. Tais e outros fatos deram origem à
necessidade de elaborar novas normas comunitárias e de interpretar
continuadamente os mandamentos de Jesus. Seria errado falar,r por
isso, desaprovativamente de uma "casuística". Também na comu­
nidade cristã surgiu o caso de que determinados matrimônios de fato
estavam destruídos. Ultimamente alguns exegetas pretendem associar
a expressão "impudicícia" com matrimônios incestuosos, ou seja, ma­
trimônios entre parentes de determinados graus, proibidos conforme
a lei de Moisés e que teriam ocorrido na comunidade de Mateus.

* N. do T.: O autor refere-se ao term o "p o rn é ia ", do original grego.

32
Contudo não existe ainda nenhuma explicação historicamente segura
dessa "cláusula de impudicícia".
Segundo a concepção de Mateus a exceção nãc parece estar
em contradição com a exigência radical de Jesus, visto que se trata
de um acontecimento na vida matrimonial, o qual a comunidade
procura levar em conta divorciando um matrimônio destruído pela
impudicícia (adultério). Foi justamente Mateus quem procedeu, no
Sermão do Monte (na sua concepção e composição!), a uma radica­
lização da lei, até mesmo em 5, 32! Importante para ele é a
pureza da comunidade, a pureza do matrimônio. É óbvio que esse
divórcio somente em caso de exceção permanece uma solução emer-
gencial. A tradição de Marcos também deixa transparecer que em
Mc 10, l i s uma nova situação da comunidade tornou-se influente.
O trecho pressupõe nitidamente a ordem jurídica romana, inexeqüível
para o judeu, segundo a qual também a mulher tem a possibilidade
de provocar pessoalmente a dissolução de seu matrimônio: "E se
ela repudiar o seu m a rid o ..." . A exigência de Jesus, portanto, é
estendida e aplicada por Marcos a comunidades que vivem sob o
direito romano.
Tais afirmações de Jesus têm todas um motivo concreto numa
situação específica. Não existe uma "doutrina" sobre o matrimônio,
mas apenas a decisão clara de uma pergunta com a qual ele é con­
frontado.
d) O mesmo vale com relação ao Estado. É preciso ter em
mente que Jesus vive num país que está ocupado por uma potência
estrangeira. Encontrava-se igualmente diante do fenômeno do . elo-
tismo, um movimento de resistência, com fundamentação messiano-
lógica, contra a dominação estrangeira dos romanos. Jesus, no en­
tanto, não podia ser nenhum zelota, pois não é possível implantar
o reino de Deus mediante o emprego da violência e das armas.
No mundo dominam os soberanos e exercem autoridade, porém
entre os discípulos vigora a ordem inversa: Quem quiser ser o primei­
ro, seja servo de todos (Mc 10, 42ss). Marcos fundamenta o servir,
cristologicamente (Mc 10, 45). Com realismo e sobriedade Jesus
constata o que acontece no mundo do poder e dos poderosos. Ele
não se apresenta como reformador estatal. Contudo com aqueles
que servem e não dominam, com os discípulos de Jesus, a nova
ordem do reino de Deus se1 manifesta, como sinal, neste mundo.
Da mesma forma Mc 12, 14ss deve ser entendido escatologi-
camente. Então se evidenciará o "paralelismo irônico" (M. Dibelius)
entre Deus e César. Afinal, eles nem se encontram no mesmo plano!
Tampouco Jesus pensa numa separação de duas esferas, o Estado
e a Igreja. Ele nem sequer fala da Igreja. O que de direito cabe a
César é a moeda e o imposto, por conseguinte o imposto deve ser

33
pago. A Deus, porém, dai o que lhe pertence e lhe cabe. Jesus
não diz o que isso seria. Mas a partir do contexto de sua procla­
mação torna-se claro: A Deus pertence a pessoa toda. O César é
apenas uma grandeza do mundo passageiro. Em suma, Jesus não
toma nem o partido dos opositores à potência de ocupação, nem
se bandeia para o lado dos adeptos dela. A pergunta era embara-
çadora, pois a potência estrangeira estava no país. Jesus subtraiu-se
a seus adversários que queriam "apanhá-lo“ . Mas fê-lo a partir de
sua mensagem, não por meio de uma fórmula diplomática. Não
se envolve numa "revolução messiânica", mas tampouco se torna
um "colaborador" como os herodianos.
Novamente nenhuma "doutrina" acerca do Estado, mas a decisão
concreta de uma pergunta. Nisso reside, com certeza, um impulso
decisivo para uma nova reflexão teológica, a saber, para limitar esca-
tologicamente o Estado e o poder, uma limitação que uma doutrina
cristã sobre o Estado jamais deveria esquecer. Por isso a posição de
Jesus está além das posições antagônicas na Palestrina da sua época.
Será necessário acrescentar que tal posição também se encontra
acima de difamação ou divinização do Estado. A mensagem escato-
lógica destrói a antiga unidade de religião e Estado. Pela primeira
vez na história o Estado aparece em seu caráter mundano. Mas Jesus
tampouco apregoa a anarquia e a hostilidade "religiosa" ao Estado,
como a encarnaram mais tarde movimentos entusiastas.
Todas as instituições como matrimônio, família e Estado perma­
necem e valem somente para este mundo, não são "eternas", não
lhes compete uma divindade direta. A mensagem de Jesus é o fim
para as divindades cósmico-políticas da Antiguidade e de sua cosmo-
visão numinosa. Por isso uma comunidade que, após a Páscoa, acei­
tava a palavra de Jesus, não podia prestar culto ao César.

6. A exeqüibilidade do mandamento
Ao falarmos das diversas interpretações do Sermão do Monte,
citamos também a afirmação de que os mandamentos do Sermão do
Monte são inexequíveis. Assim pensa a tradição luterana, segundo
a qual esses mandamentos estariam apenas destinados para a função
de conduzir o ouvinte ao reconhecimento do seu pecado ("usus
elenchticus legis"). O mandamento tem por finalidade levar à "meia-
volta".
Ignora-se, desse modo, porém, que os mandamentos de Jesus
sempre visam a ser cumpridos. Que outro sentido teria, então, o
mandamento do amor? Ele poderia ter sido omitido, uma vez que
para o'reconhecimento do pecado teriam sido plenamente suficientes
a advertência diante do Juízo e o camado à "meia-volta". É bem
óbvio que a exigência de se reconciliar com o irmão (Mt 5, 23s) deve

34
ser cumprida, caso contrário ela seria absurda. Parte alguma dos
diferentes tipos e estágios da tradição sobre Jesus menciona, sim,
nem mesmo sugere a impossibilidade de cumprimento. Jesus sempre
pressupõe como natural que o cumprimento seja possível, e não
impossível, é necessário distinguir duas coisas:
a) que os mandamentos podem ser cumpridos,-
b) que eles, na realidade, muitas vezes não são cumpridos.
Mas não devemos dar ao fato de que não são cumpridos o
sentido de que não podem ser cumpridos. Condenados são aqueles
que não fizeram a vontade do Pai no céu (Mt 7, 21 ss), embora
deveriam e poderiam tê-la cumprido. Não se é condenado por causa
de um mandamento inexeqüível. Em Mt 5, 13-16 pressupõe-se que
os discípulos fazem boas obras e que eles podem ser o sal da terra
e a luz do mundo. Mt 5, 7 e 9 falam das pessoas que são misericor­
diosas e promovem a paz. Depreende-se que, ao iniciar-se o reinado
de Deus, existem tais pessoas. Jesus na verdade não se limita à
exigência: "Crede no Evangelho" (Mc 1, 15), por mais fundamental
que ela seja, mas dá — especialmente no Sermão do Monte — man­
damentos concretos, a fim de que sejam preenchidos. Os homens,
enfim, devem glorificar a Deus em virtude das boas obras dos
discípulos (Mt 5, 16)!
Por isso R. Bultmann tem razão ao afirmar: Porque o manda­
mento é exeqüível, não cumpri-lo é pecado. Uma ilustração para o
não-cumprimento é o rico que não corresponde à exigência radical
de Jesus: "porque era dono de muitas terras" (Mc 10, 17ss.22).
Acresce que Jesus ressalta claramente a gravidade da decisão exigida
pelo reino de Deus, como, por exemplo, nas parábolas da construção
da torre, e do rei que pretende sair para a guerra (Lc 14, 28-33):
É necessário ponderar cuidadosamente se temos capacidade para
executar a obra planejada! Recordemos, outrossim, o dito da porta
estreita e do caminho apertado que conduzem à vida (Mt 7, 13s).
Inexeqüível o mandamento é para o pecador que persiste na
resistência contra Deus. Contudo quem aceita a mensagem do reino
de Deus torna-se livre para um novo modo de agir, para amar. O
discípulo recebe o poder para ser sal da terra e luz do mundo. Essa
é a nova possibilidade de viver e agir que têm os discípulos, as
pessoas que aceitam o reino de Deus. Os que como o rico possuem
muitas propriedades dificilmente poderão entrar no reino de Deus.
Todavia está em vigor que "para os homens é impossível, contudo
não para Deus", pois "para Deus tudo é possível" (Mc 10, 27). Pode-
se dizer que, de modo indireto, transparece na história do rico o
problema se a exigência é exeqüível ou não, porque se constata
nela o quanto é preciso abandonar e doar, para que se possa cumprir
a exigência de Jesus.

35
Tudo isso revela: O Sermão do Monte, como as exigências de
Jesus em geral, não consistem em princípios morais genéricos, mas
de "instrução para os discípulos", isto é, de exigências aos que
aceitam a salvação do senhorio de Deus, que ingressam na nova
aliança de Deus com os homens. Portanto, o mandamento resulta
da comunicação da salvação (cf. as bem-aventuranças em Mt 5, 3ss
par.). O imperativo está baseado sobre o indicativo da salvação
incipiente.
Para esse assunto é importante a parábola da árvore boa que
traz bons frutos. Na versão do texto de Lucas lemos: "pois toda
árvore se conhece pelo seu fru to " (Lc 6, 43s; cf. Mt 7, lóss). A
boa qualidade da árvore é a pré-condição para a boa qualidade dos
frutos (cf. M t 12, 33). Mais uma vez está, assim, respondida indire­
tamente nossa pergunta pela possibilidade de curhprir os manda­
mentos. Talvez seja lícito coordenar neste contexto também as
palavras sobre o pedir e o receber (Mt 7, 7ss), sem, contudo, pre­
tender interpretá-las unicamente nesse sentido. Mas a promessa pelo
pedir na certa também vale para os que devem e querem obedecer
ao mandamento.
Até aqui analisamos o cumprimento como conseqüência da
salvação e da nova existência escatológica. Todavia existem também
outras afirmações, nas quais o cumprimento, o agir se apresenta
como a condição prévia para se conquistar a salvação escatológica.
Tal é o caso em Mt 6, 14s: "Se perdoardes aos homens as suas
ofensas, também vosso Pai celeste vos perdoará." Encontramo-nos
diante de um profundo paradoxo na proclamação de Jesus, pois
aqui se fala na forma de uma frase condicional: se o homem
. . .então Deus fará! O agir de Deus responde a uma determinada
ação humana. Ou lembremos a parábola do servo malvado ("credor
incompassivo", Mt 18, 23ss). O servo malvado soçobra porque,
tendo recebido perdão, se nega a perdoar o irmão. Por não perdoar,
é submetido ao julgamento divino. Existe, por conseguinte, uma
finalidade, isto é, um "para que": fazer boas obras, perdoar, para
livrar-se do Juízo. De acordo com Mt 25, 32ss os que praticaram
a misericórdia entram para a vida eterna. A parábola dos talentos
(Mt 25, 14ss) demonstra que é necessário trabalhar com os dons
que o senhor distribui a seus servos, é preciso multiplicá-los. O
servo que não o fizer é submetido ao castigo. Portanto: Recebemos
uma recompensa pelo nosso agir? Sem dúvida essa é uma acentuação
muito nítida da necessidade de boas obras. Deus quer ter pessoas
ativas a seu serviço. Um conceito deturpado, protestante da fé
obscureceu inteiramente essa faceta da pregação de Jesus. Apenas
a exegese moderna a trouxe novamente à luz.

36
Vemos nitidamente como o discípulo é colocado diante da
exigência pelo agir e diante do fato do Juízo vindouro. Na verdade,
pois, não existe uma lei natural que, obrigatoriamente, provocasse
boas obras de um modo quase que orgânico. Temos à nossa frente uma
trindade: salvação — exigência — advertência do Juízo. A exigência
está ligada às duas outras. O imperativo indica também para o Juízo.
Contudo não persiste a desolação de que ele seja inexeqüível. Tam­
bém o discípulo se encaminha para o julgamento segundo as obras,
o qual foi mantido pelo próprio Paulo (II Co 5, 10; cf. Rm 14, 10).
O discípulo não é perfeito, mas, enquanto viver, permanecerá sob
o mandamento.
Deparamos, pois, com uma dúplice motivação do mandamento:
a) o indicativo da salvação presente ou em vias de concretização,
b) o futuro do Juízo em aproximação.
Procedei de tal maneira que entrareis no reino de Deus — tendes
capacidade para tal, pois o domínio absoluto do mal está quebran­
tado. A pregação ética do julgamento parte precisamente do fato
de que a vontade de Deus pode ser cumprida e de que não há
mais a coação de pecar quando o reino de Deus se aproxima. Deus
cria uma nova base para o agir dos homens, mas ele também
responde, no Juízo e na graça, ao que eles fazem, porque os
discípulos e todos os ouvintes da mensagem do reino não são apenas
receptores passivos, mas gerados e chamados para um agir res­
ponsável.

7. O discipulado

Precisamos de conscientizar-nos de que a palavra e o fenômeno


do "discipulado" causam espécie e são incomuns. Significam uma
radicalização pessoal da exigência de Jesus, como não a podemos
encontrar nem na ética helenista nem na judaica. Jesus chama
pessoas a que o sigam.
A palavra aparece na tradição sinótica com um sentido duplo.
Originalmente possui o significado bem literal de "ir atrás dele".
Os discípulos são aqueles que acompanham Jesus em suas cami­
nhadas, que, como Pedro, abandonaram tudo para atender ao cha­
mado de Jesus (AAc 1, lóss; Lc 5, lss). AAas ao que parece o sentido
original da palavra não bastou. Um segundo significado, figurado,
passa a impor-se, que podia ser aplicado aos discípulos que não
acompanhavam Jesus nas viagens de proclamação. Provavelmente
houve desde o início duas formas de discipulado: Uns andam com
Jesus pela região, tendo abandonado casa e profissão. Outros, no
entanto, permanecem em sua localidade, em sua casa, etc. Também
para esses últimos vale a exigência que se entreguem total e obedi-

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entenmente ao reinado de Deus — vejam-se Maria e Marta (Lc 10, 38ss).
Aqui reside a raiz daquele emprego da palavra "discipulado" que
se tornou usual na comunidade após a Páscoa e que continua sendo
empregado até o dia de hoje.
No chamado ao discipulado é peculiarmente estranho que ele
ocorre sem qualquer fundamentação. Evidentemente ele contém em
si mesmo a autoridade e legitimação por partir de Jesus. Os convo­
cados seguem-no obedientes, sem fazer restrições nem impor con­
dições (Mc 1, 17s). No chamamento de Levi lemos: "Segue-me! Ele
se levantou e o seguiu" (Mc 2, 14). O chamado de Jesus tem
validade absoluta. Por trás desse relato está a concepção de que
Jesus tem poder para proceder assim, uma idéia que naturalmente
está estreitamente entrelaçada com a cristologia.
Quando as pessoas chamadas ou dispostas a seguir estabelecem
condições (Lc 9, 57ss), essas são radicalmente repelidas. Não há
mais tempo para despedidas quando o reino de Deus requer ser
anunciado. Ninguém que não se liberta de tudo o que possui (Lc
14, 33) pode ser um discípulo de Jesus. Discípulo e mestre estão
unidos também pelo destino comum: Aos discípulos sucede o mesmo
que ao mestre (Mf 10, 24s). Essa passagem, contudo, foi cunhada
pelas primeiras experiências de sofrimento da comunidade primitiva,
da mesma forma como também outros ditos do Sermão Missionário
foram influenciados por elas. Objetivamente é compreensível que
se formulou o discipulado com a analogia de senhor e servo. De
maneira alguma é possível compreender o fenômeno do discipulado
a partir do conceito antigo ou moderno do exemplo moral. Há mais
de uma geração (1921) Ernst Lohmeier apontou com razão que a
relação entre os discípulos e Jesus possui uma estrutura completa­
mente diversa das relações de professor e aluno no mundo antigo.
Os alunos do filósofo encontram-se no mesmo plano que o seu
mestre, perscrutando em conjunto a verdade. Sócrates e seus alunos
estão equiparados diante da mesma tarefa de indagar dialogicamente
pelo bem e pela verdade. Ao rabino do judaísmo tardio, bem como
ao seu aluno, está sobreposta a lei, a qual eles interpretam em
conjunto. Naturalmente existe em ambos os casos a primazia peda­
gógica do mestre. Mas no caso de Jesus a situação é totalmente
diferente. Ele é o pregador do reino de Deus e o proclamador defi­
nitivo da vontade de Deus. Como tal ele chama os discípulos para
que o sigam, e por isso seu chamado é incondicional: "Segue-me!"
O chamado sempre é também — de múltiplas maneiras —
exigência de uma renúncia. Já o vimos nos ditos sobre o seguir a
Jesus em Lc 9, 57-62 (cf. Mt 8, 19ss). Diante do chamamento de
Jesus não é possível recorrer aos costumes, aos deveres filiais, a
tradições e vínculos terrestres. A razão disso é que Jesus encarna em

38
sua pessoa a vontade de Deus e a causa do reino de Deus. Daí
ter primazia absoluta a exigência de segui-lo. Desse chamado não
podia provir nenhuma escola filosófica ou rabínica, com certeza,
porém, um "discipulado".
C próprio discípulo é comprometido com a causa do reino de
Deus. Ele recebe a incumbência: "Tu, porém, vai, e prega o reino
de Deus" (Lc 9, 60). Do mesmo modo, dá-se a promessa da vida
eterna àqueles que "deixaram tudo" e o seguiram (AAc 10, 28ss
par.) O compromisso do discipulado, portanto, não é somente pes­
soal, mas também "objetivo", a saber, participação no anúncio
do reinado de Deus. Pelo menos foi assim que os evangelistas
compreenderam o discipulado. Em correspondência o chamado Ser­
mão AAissionário reza também: "À medida que seguirdes, pregai que
está próximo o reino dos céus" (AAt 10, 7; cf. Lc 9, 2).
Todas essas concepções tiveram que sofrer uma profunda trans­
formação na comunidade após a Páscoa ou ser substituídas por outras,
por exemplo, o estar "em Cristo", o "andar conforme o Espírito" em
Paulo etc. Discipulado nos moldes do tempo do Jesus histórico agora
não era mais possível.

8. Sumário: ética escatológica

A proclamação escatológica da proximidade do reinado de Deus


e a exigência ética de Jesus constituem uma unidade. Podemos
distingui-las, mas não separá-las uma da outra. A vinda do reinado
de Deus traz consigo também a revelação definitiva da vontade de
Deus. "Venha o teu reino — faça-se a tua vontade, assim na terra
como no céu" (AAt 6, 10). Essa vontade precisa ser executada. Não
basta apenas a submissão à vontade divina. Não é lícito, em resul­
tado, transformar Jesus em mero pregador de moral, como fez o
lluminismo do século XVII, nem em simples "apocalíptico" que
apregoa o fim do mundo. O "kairós" do reino vindouro de Deus
qualifica a pessoa de tal maneira que ela pode receber agora a
salvação do reino de Deus e tornar-se, simultaneamente, portadora e
praticante da vontade divina no amor.
Todavia constatamos que a formulação e fundamentação escato-
lógicas da ética não a tornam numa "ética de ínterim" para os últimos
dias. Justamente por esse motivo a comunidade após a Páscoa pôde
adotar a ética de Jesus e considerá-la váfída e compromissiva para
si própria; por isso os evangelistas puderam aceitar a tradição sobre
Jesus e atualizá-la para as suas comunidades.
Não é suficiente procurar ver a conexão entre escatologia e
ética sçmente no chamado à "meia-volta" ou na radicalização da
lei. Toda a ética de Jesus é ética escatológica do reino de Deus, a

39
qual fundamenta e possibilita a partir do "kairós" o "novo" modo
de agir. A unidade em parte alguma é exposta teologicamente, mas
está, implicitamente, contida e dada na proclamação de Jesus.
Quando se vê essa unidade, emerge também a pergunta cristo-
lógica: Quem é esse pregador do reino de Deus? Quem é o homem
que ultrapassa radicalmente a lei de Moisés? Os evangelistas ouviram
a pergunta, e cada um a respondeu a seu modo. A unidade de
escatologia e ética tem para eles natureza escatológica, o que, aliás,
os reúne a Paulo, a despeito das diferenças terminológicas. Jesus
foi para eles mais do que um pregador do reino de Deus, ele foi,
em sua pessoa, o portador da salvação, o detentor do reino de Deus.
A partir dessa convicção eles interpretavam o mandamento de Jesus
e seu chamado ao discipulado.
Na plenitude do reino de Deus obviamente não serão mais
necessárias nem exigência nem ética. Nesse sentido a palavra
"ínterim " de fato possui uma componente verdadeira. Para os dis­
cípulos (ou, após a Páscoa: a comunidade) a ética escatológica vigora
até a consumação do reino de Deus e até o fim do mundo. Na
plenitude do reino de Deus igualmente não existem mais a contra­
posição ao mal, nem tampouco as "ordens" mundanas como matri­
mônio e Estado.
Por fim , é preciso romper a interpretação puramente individual
da ética de Jesus, que ainda vigora em larga escala na Igreja evan­
gélica, e destacar a relevância ético-social da sua proclamação.
Em primeiro lugar,a ética escatológica de Jesus significa o
questionamento de todo o "éon" em vias de se findar, isto é, do
período deste mundo com todas as suas formas de vida, instituições
e valores. Com o início do reino de Deus anula-se o peso metafísico
de ordens ontológicas supostamente eternas. Advém daí estabele­
cimento fundamental de sua relatividade. Da aproximação do reinado
de Deus resulta uma nova qualificação de todas as instituições, os
poderes e os bens "mundanos", a qual a filosofia helenista desconhece.
Em segundo lugar,a investida de Jesus contra a interpretação
rabínica da lei e contraa lei de Moisés não é apenas um ataque
"religioso" a uma teologia e praxe jurídica, mas à comunidade de
fé judaica como um todo e, desse modo, à sociedade judaica da época
em seus alicerces, pois que sistema social e comunidade de fé são,
no caso judaico, idênticos. Nesse particular os entusiastas e os socia­
listas dos séculos XIX e XX reconheceram corretamente que na
proclamação de Jesus, por menos que ele possa ser denominado
reformador social ou revolucionário no sentido moderno dos termos,
estava oculto e implícito um poder de transformar o mundo. Um
poder que transcendia em muito a fundamentação de uma nova

40
ética individual e que sempre de novo se desprendeu e se tornou
"virulento" na história da Igreja. O mandamento do amor contém
mais do que uma norma para a ação de cristãos dispersos. Ele é o
agente "perturbador" da estática das ordens sociais e eclesiásticas
vigentes. Põe a descoberto todas as injustiças e todo abuso de poder
neste mundo. Possui um poder e uma função de criticar a sociedade.
"O significado ético-social da radicalização dos mandamentos no
Sermão do Monte é pelo menos tão grande quanto o ético-individual"
(P. Noll, Jesus und das Gesetz, 1968, p. 23). O autor que acabamos
de citar diferencia rigorosamente entre a proclamação do manda­
mento por Jesus e todas as filosofias e teologias da "ordem", antigas,
medievais e modernas, inclusive a dos epígonos de Lutero (op. cit.,
pp. 28s). Jesus não compartilha a sua "supervalorização acrítica de
ordens estáveis" (p. 28). Na realidade tais teologias da "ordem"
sempre de novo conduziram, na história da Igreja e da teologia, a
suavizações, abrandamentos ou alterações — sejam elas individualistas,
sejam espiritualistas — do significado do Sermão do Monte e da
universalidade dos mandamentos radicais de Jesus, em especial do
mandamento do amor ao próximo. Isso aconteceu, por exemplo, nos
séculos XIX e XX, mediante o recurso a uma deformação da doutrina
dos dois reinos e conjuntamente mediante a declaração de que todos
os setores do mundo possuem "autonomia própria". Há que convir
em que os conceitos dessa problemática moderna não devem ser
introduzidos na exegese da tradição sinótica acerca de Jesus, mas,
por outro lado, também não devem ser obnubilados ou até esque­
cidos o Sermão do Monte e sua dinâmica de abalar e limitar, de
maneira realista-escatológica, todas as estruturas sociais humanas.
Nesse ponto o "entusiasmo" e o "quiliasma", tantas vezes difamados,
revelam-se acertados, em contraposição à ética de intenção (cf. acima,
o item 4c sobre o Sermão do Monte), integrada na sociedade consti­
tuída e que fez desaparecer a reivindicação universal e quase que
provocativa dos mandamentos de Jesus.

41
qual fundamenta e possibilita a partir do "kairós" o "novo" modo
de agir. A unidade em parte alguma é exposta teologicamente, mas
está, implicitamente, contida e dada na proclamação de Jesus.
Quando se vê essa unidade, emerge também a pergunta cristo-
lógica: Quem é esse pregador do reino de Deus? Quem é o homem
que ultrapassa radicalmente a lei de Moisés? Os evangelistas ouviram
a pergunta, e cada um a respondeu a seu modo. A unidade de
escatologia e ética tem para eles natureza escatológica, o que, aliás,
os reúne a Paulo, a despeito das diferenças terminológicas. Jesus
foi para eles mais do que um pregador do reino de Deus, ele foi,
em sua pessoa, o portador da salvação, o detentor do reino de Deus.
A partir dessa convicção eles interpretavam o mandamento de Jesus
e seu chamado ao discipulado.
Na plenitude do reino de Deus obviamente não serão mais
necessárias nem exigência nem ética. Nesse sentido a palavra
"ínterim " de fato possui uma componente verdadeira. Para os dis­
cípulos (ou, após a Páscoa.- a comunidade) a ética escatológica vigora
até a consumação do reino de Deus e até o fim do mundo. Na
plenitude do reino de Deus igualmente não existem mais a contra­
posição ao mal, nem tampouco as "ordens" mundanas como matri­
mônio e Estado.
Por fim , é preciso romper a interpretação puramente individual
da ética de Jesus, que ainda vigora em larga escala na Igreja evan­
gélica, e destacar a relevância ético-social da sua proclamação.
Em primeiro lugar, a ética escatológica de Jesus significa o
questionamento de todo o "éon" em vias de se findar, isto é, do
período deste mundo com todas as suas formas de vida, instituições
e valores. Com o início do reino de Deus anula-se o peso metafísico
de ordens ontológicas supostamente eternas. Advém daí estabele­
cimento fundamental de sua relatividade. Da aproximação do reinado
de Deus resulta uma nova qualificação de todas as instituições, os
poderes e os bens "mundanos", a qual a filosofia helenista desconhece.
Em segundo lugar, a investida de Jesus contra a interpretação
rabínica da lei e contra a lei de Moisés não é apenas um ataque
"religioso" a uma teologia e praxe jurídica, mas à comunidade de
fé judaica como um todo e, desse modo, à sociedade judaica da época
em seus alicerces, pois que sistema social e comunidade de fé são,
no caso judaico, idênticos. Nesse particular os entusiastas e os socia­
listas dos séculos XIX e XX reconheceram corretamente que na
proclamação de Jesus, por menos que ele possa ser denominado
reformador social ou revolucionário no sentido moderno dos termos,
estava oculto e implícito um poder de transformar o mundo. Um
poder que transcendia em muito a fundamentação de uma nova

40
ética individual e que sempre de novo se desprendeu e se tornou
"virulento" na história da Igreja. O mandamento do amor contém
mais do que uma norma para a ação de cristãos dispersos. Ele é o
agente "perturbador" da estática das ordens sociais e eclesiásticas
vigentes. Põe a descoberto todas as injustiças e todo abuso de poder
neste mundo. Possui um poder e uma função de criticar a sociedade.
"O significado ético-social da radicalização dos mandamentos no
Sermão do Monte é pelo menos tão grande quanto o ético-individual"
(P. Noll, Jesus und das Gesetz, 1968, p. 23). O autor que acabamos
de citar diferencia rigorosamente entre a proclamação do manda­
mento por Jesus e todas as filosofias e teologias da "ordem", antigas,
medievais e modernas, inclusive a dos epígonos de Lutero (op. cit.,
pp. 28s). Jesus não compartilha a sua "supervalorização acrítica de
ordens estáveis” (p. 28). Na realidade tais teologias da "ordem"
sempre de novo conduziram, na história da Igreja e da teologia, a
suavizações, abrandamentos ou alterações — sejam elas individualistas,
sejam espiritualistas — do significado do Sermão do Monte e da
universalidade dos mandamentos radicais de Jesus, em especial do
mandamento do amor ao próximo. Isso aconteceu, por exemplo, nos
séculos XIX e XX, mediante o recurso a uma deformação da doutrina
dos dois reinos e conjuntamente mediante a declaração de que todos
os setores do mundo possuem "autonomia própria". Há que convir
em que os conceitos dessa problemática moderna não devem ser
introduzidos na exegese da tradição sinótica acerca de Jesus, mas,
por outro lado, também não devem ser obnubilados ou até esque­
cidos o Sermão do Monte e sua dinâmica de abalar e limitar, de
maneira realista-escatológica, todas as estruturas sociais humanas.
Nesse ponto o "entusiasmo" e o "quiliasma", tantas vezes difamados,
revelam-se acertados, em contraposição à ética de intenção (cf. acima,
o item 4c sobre o Sermão do Monte), integrada na sociedade consti­
tuída e que fez desaparecer a reivindicação universal e quase que
provocativa dos mandamentos de Jesus.

41
Capítulo II

A COMUNIDADE PRIMITIVA

Formas e fórmulas novas da ética

Nota prévia metodológica


Não possuímos escritos ou outros documentos da época das
primeiras comunidades antes de Paulo. Por isso é extremamente
difícil relatar e apreender a ética das primeiras comunidades, seja a
de Jerusalém, seja a de Antioquia. Dependemos de inferências a
partir das cartas paulinas, dos Atos dos Apóstolos e dos evangelhos,
e não podemos ir além de conjeturas na maioria dos casos. Além
do fato de oferecerem muito pouco material, também os Atos dos
Apóstolos não podem ser utilizados como fonte direta para as comu­
nidades pré-paulinas. Sem dúvida o livro contém tradições mais
antigas, contudo deu-lhes forma e estilo em conformidade com a
concepção teológica de Lucas. A imagem da Igreja primitiva que
Atos dos Apóstolos esboçam foi desenvolvida a partir dos pontos de
vista de uma época posterior. Material importante está contido nas
cartas de Paulo, por exemplo, a confissão comunitária pré-paulina em
I Co 15, 3ss, a tradição acerca da Santa Ceia em I Co 11, 23ss, o
hino cristológico pré-paulino em Fl 2, 5ss, referências a mandamentos
de Jesus em Rm 12, 14 (cf. I Co 4, 12) e I Co 7, 10. Também o
catálogo de normas para a vida doméstica em Cl 3, 18ss foi adotado
por Paulo da comunidade em que ele próprio se tornou cristão. Todo
esse material, entretanto, não é suficiente para que se possa conseguir
um quadro real, e muito menos completo, da ética das primeiras co­
munidades.
1. Situação pré e pós-pascoal
Em sua "Teologia do Novo Testamento" (1.° ed. 1953, 6.° ed.
1968) Rudolp Bultmann apresentou uma brilhante reconstrução da teo­
logia das comunidades helenistas antes e no tempo de Paulo, que é

43
admiravelmente completa. Contudo, em vista da natureza fragmen­
tária dos escritos apresentados no Novo Testamento, também ela se
baseia em um número considerável de inferências, cujos graus de
probabilidade e cuja importância podem ser avaliadas de maneiras
bem distintas. A ética do Novo Testamento está bem à margem da
apresentação de Bultmann da teologia do Novo Testamento. No
campo das tradições éticas nas comunidades pré-paulinas as induções
a partir das cartas paulinas ou dos Atos dos Apóstolos devem ser
feitas com cautela especialmente grande e com cuidado crítico.
O historiador da cristandade primitiva tem razão ao constatar
que os escritos de Lucas devem ser tratados após as cartas paulinas,
porque pertencem a uma época muito posterior da história da cris­
tandade primitiva. Desviar-nos-emos dessa regra somente pelo motivo
de poder, talvez, descobrir e retratar material tradicional de origem
e características anteriores a Lucas.
A Páscoa constitui a origem da comunidade cristã. Ela resulta
das aparições do Ressurrecto e da pregação das testemunhas pascoais.
À comunidade que se forma a partir da Páscoa devemos a coleção
do material sobre Jesus nas diferentes formas dos três primeiros
evangelhos.
A comunidade pós-pascoal é uma comunidade que ouve e
interpreta. Aceitando as palavras de Jesus e reconhecendo-lhes a
autoridade, ela também as interpreta e aplica a suas perguntas e
necessidades nas novas situações históricas. Para Mateus ocupa o
lugar central a disputa em torno da lei e a controvérsia com a reli­
giosidade judaica; para Lucas a situação é totalmente diversa (Com­
pare-se, p. ex., o Sermão do Campo em Lc 6, 20ss com Mt 5-7).
Acentuam-se, pois, e aplicam-se diferentemente as palavras de Jesus
nas situações históricas distintas da comunidade. O que Jesus disse
e fez antes da Páscoa aparece, depois dela, sob uma nova perspectiva,
ao ser validado na comunidade dos que crêem em Cristo. Conse-
qüentemente existe uma profunda cesura entre a proclamação de
Jesus e a ética da comunidade pós-pascoal: a Páscoa. Os evangelhos
vêem à luz da Páscoa tudo o que houve antes da Páscoa. O manda­
mento do Jesus histórico passa a ser agora o mandamento do Senhor
("kyrios"), do "Filho do Homem", isto é, o Juiz universal e redentor
do mundo, por cuja vinda a comunidade espera. Segundo a formu­
lação joanina (Jo 13, 34) o mandamento de Jesus, por isso, é agora
o "novo mandamento". Sem a Páscoa não haveria tradição das pa­
lavras de Jesus e, por conseguinte, também não dos mandamentos
de Jesus, do Sermão do Monte em Mateus e do "Sermão do Campo"
em Lucas.
A comunidade após a Páscoa, no entanto, não enveredou pelo
caminho de desenvolver, por assim dizer, díretamente a partir da

44
Páscoa uma cristologia e ética de modo independente e criativo. Não,
ela indaga pelas palavras de Jesus, coleciona-as. Portanto podemos
dizer que o conteúdo da situação de antes da Páscoa é introduzido
na situação pós-pascoal, por exemplo, o conhecimento da vinda do
reino de Deus. Não é indiferente, mas tem máxima importância o
que Jesus afirmou acerca do sábado, das leis de purificação, do im­
posto para o César, do amor para com o próximo, etc. A ressurreição
como que projeta a sua luz também para trás, por sobre os feitos e
as palavras de Jesus antes da Páscoa. O próprio Paulo, tantas vezes
apresentado erroneamente como gênio teológico solitário, sabe que
está vinculado à palavra de Jesus sobre q divórcio (I Co 7, 10) e
explica o mandamento de Jesus sobre o amor (Rm 12, 14ss). Situa-se,
desse modo, dentro da tradição da comunidade após a Páscoa. Muito
embora pudesse remeter-se à "posse" do Espírito Santo (I Co 7, 40),
a palavra do Senhor detém, para ele, autoridade máxima e com-
promissiva.
Naturalmente não devemos em absoluto entender essa afirmação
como se não tivesse havido uma evolução da ética depois da Páscoa!
Ocorre justamente o contrário, como o comprovam de modo mais
convincente Paulo e, dentre os seus escritos, sobretudo a primeira
epístola aos Coríntios. Agora é que se apresentam situações históricas
novas, e para grande número, se não para a maioria delas não existem
palavras de Jesus. É preciso tomar decisões novas, próprias, a partir
da fé em Cristo. Ou, então, necessita-se dar nova interpretação ao
mandamento do amor, como Paulo o faz em I Co 8 e 10, ao lutar
com os gnósticos coríntios. Era preciso combinar a dádiva do Espírito
divino com as exigências da ética, com o mandamento do amor, o
que Paulo também fez (p. ex., I Co 12-14). Necessitavam-se orienta­
ções referentes ao matrimônio, à posição frente ao poder político,
sendo que a situação era completamente outra do que a de Jesus
e seus discípulos antes da Páscoa. Empregaram-se sabedoria de vida
e normas éticas dos judeus e gregos, tal como nos catálogos de vícios
e virtudes ou de normas para a vida doméstica. Nesse aspecto a
comunidade estava livre de qualquer sorte de purismo cristão (como
se nas instruções éticas tudo tivesse que ser pura e originalmente
"cristão"). Toma-se aquilo de que se tem necessidade. Quanto mais
tempo a Igreja precisa, após a Páscoa, de conviver com o mundo,
tanto mais intensa torna-se essa necessidade. Afinal, não se pode
cogitar em citar exclusivamente palavras de Jesus. Principia, por­
tanto, na Páscoa aquela época da evolução da ética cristã, da ética
comunitária, que continua até o dia de hoje. É uma ética que
a) provém da mensagem da salvação e da cristologia, e que
b) se encontra em constante confronto com o mundo, com a
ética de pagãos e judeus, com novas perguntas e situações históricas.

45
Pela Páscoa, pois, inicia-se um novo desenvolvimento da ética cristã
ou, primeiramente, da ética da cristandade primitiva. Ela trilha novos
caminhos, embora se considere vinculada ao mandamento do amor,
dado por Jesus. A existência simultânea e alternada de tipos dife­
rentes de éticas — Paulo, João, Tiago, cartas pastorais, etc. — revela
nitidamente um grande espaço de liberdades e possibilidades.- Não
se prende ninguém a um códice de leis morais prontas. Podemôs
dizer realmente: Também nisso se concretiza a multiplicidade dos
dons espirituais. Por isso, outrossim, é impossível reduzir a ética
da Igreja prim itiva a uma ou duas fórmulas.
Temos que levar em consideração essa multiplicidade, evitando
toda sistematização sob um único conceito central. Somente no fim
poderemos levantar a questão da unidade da ética njeotestamentária.
Está claro que o desenvolvimento da ética neotestamentária
também se pode processar de tal modo que a fé pascoal e a nova
situação histórica influenciem sobre a tradição das palavras de Jesus.
Assim essas últimas tornam-se expressão e orientação da ética comu­
nitária pós-pascoal. O Sermão Missionário em M t 10, 5ss, por exem­
plo, não é apenas palavra de Jesus, mas também palavra da comuni­
dade judaico-cristã após a Páscoa, ao falar, entre outras, de sofrimento
e perseguição (Mt 10, 17ss.26ss). Em M t 18, 15ss encontramos parte
de uma ordem de comunidade que regulamenta o procedimento pe­
rante um irmão pecador. Estabelecem-se, por assim dizer, as vias de
tramitação. A última instância é a comunidade — precisamente esse
termo é empregado, apesar de que nem havia nem podia haver uma
comunidade antes da Páscoa. A autoridade para perdoar os pecados
foi transferida, no caso, de Jesus para a comunidade. Era uma medida
possível somente por meio e a partir da Páscoa, fato que também a
tradição de João 20, 21ss deixa transparecer claramente.
Surgem, agora, forçosamente novas autoridades éticas:
a) A comunidade, o povo eleito e agraciado de Deus. Segundo
I Co 5, lss a comunidade precisa de decidir sobre um grave incidente
de devassidão ocorrido em Corinto. Paulo censura que a comunidade
ainda não interferiu pessoalmente.
b) O apóstolo, p. ex., Paulo, que reivindica a posição de orien­
tador das comunidades, visto ser ele o pai espiritual das mesmas
(cf-, p. ex., I Co 4, 14ss). Incluída está também a autoridade de
admoestar e dar instruções. A todas as comunidades ele ensina os
seus "caminhos em Cristo" (I Co 4, 17), a saber, seus preceitos, a
parênese, que tem por objetivo auxiliar as comunidades a concreti­
zarem uma vivência cristã. Considerando que tal parênese sempre fez
parte da prédica missionária, devemos supor que outros apóstolos
e missionários procederam de modo semelhante a Paulo. Quando

46
alguém se tornava cristão, quando surgia uma comunidade, tais
instruções eram necessárias e inevitáveis.
c) Aos apóstolos, missionários e fundadores de comunidades
agregam-se mais tarde os dirigentes de comunidades, que estão
incumbidos da proclamação do Evangelho e que ocupam o cargo
de "pastores" do "rebanho". A proclamação ética, enfim, não podia
parar com a morte dos apóstolos e discípulos dos apóstolos. A comu­
nidade pós-pascoal dela carece constantemente.
Mas acima de todos encontra-se, como autoridade suprema e
última, o Senhor divino, que também será o Juiz universal. Todos
os cristãos são, em terminologia paulina, seus "escravos".
Em retrospecto divisamos, portanto, três formas do desenvol­
vimento da ética depois da Páscoa:
1) a palavra de Jesus, adotada e acatada, que pela Páscoa
recebe nova legitimação e vigência;
2) a palavra de Jesus reinterpretada, uma interpretação con­
dicionada pela situação histórica da comunidade depois da Páscoa,-
3) c desdobramento posterior da ética cristã primitiva com
novos conceitos, tais como na ética pneumática de Paulo, na funda­
mentação cristológica da ética, na parênese batismal e no confronto
com as grandezas e estruturas mundanas. Também na ética a Igreja
progride, a partir da Páscoa, em direção de uma nova era. Quem
considera o Espírito como o elemento novo decisivo na comunidade
pós-pascoal, poderia achar que o desenvolvimento da ética foi ba­
seado unicamente sobre o princípio do Espírito. Contudo nem mesmo
em Paulo isso acontece, uma vez que podemos encontrar várias
fórmulas com as quais ele fundamenta as instruções éticas. O Espí­
rito é sempre o "Espírito do Senhor" (II Co 3, 17). Conseqüentemente
ele não pode ser a-histórico nem estar em contraposição à palavra
de Jesus. Tendo em vista que o Espírito é a presença do Senhor,
não havia possibilidade de se desenvolverem a partir dele quaisquer
conteúdos éticos a bel-prazer. Não tiveram influência, sobre a evo­
lução da ética cristã primitiva, entusiastas como os de Corinto, que
deduziam a liberdade total do fato de possuírem o Espírito.
Por natureza faltam à ética de Jesus antes da Páscoa várias
formas éticas que podiam surgir somente após a Páscoa. Cite-se
sobretudo a parênese do batismo, que pressupõe a prática do mesmo.
Ela se salienta com muita nitidez em Paulo (cf. Rm 6, 2ss com 6, 1 lss,-
I Co 6, 11: "mas vós vos la va ste s..."). O mesmo vale principal­
mente também para todas as fundamentações eristológicas da ética,
que voltam o olhar para a cruz e ressurreição de Cristo e fundamen­
tam o imperativo sobre o indicativo do evento da salvação já reali­
zada (cf. cap. III, item 1). Damos apenas um exemplo: "pois. . .
Cristo, nosso Cordeiro pascal, foi imolado" (I Co 5, 7). Por isso se

47
exige da comunidade que "lance fora o velho fermento"; é a exi­
gência da pureza. Apresenta-se aqui um modelo da nova funda­
mentação do mandamento que na verdade se torna possível somente
a partir da Páscoa (cf. I Co 6, 11). Podemos denominá-lo de um
chamado de volta a Cristo, de uma memória de Cristo: Recordai-vos
do que já sois, do que Cristo fez de vós; adotai-o em vossa vida
e em vosso agir! Falar dessa forma, no entanto, é possível somente
após a Páscoa. Na ética pré-pascoal, em contrapartida, pode-se falar
somente assim como nas bem-aventuranças (AAt 5, 3ss par.) ou nas
parábolas do reino de Deus: O reino de Deus vem agora, ele está
próximo, por isso "dai meia-volta" (Mc 1, 15 par.). Por isso existe
agora liberdade perante a lei, e o homem está acima do sábado.
Na nova conjuntura da salvação a lei é radicalizada e as ordens
humanas que os rabinos e fariseus colocaram no lugar da vontade
de Deus, são abolidas.
Tudo isso se reporta à salvação que, naquele instante, irrompe,
transpondo o limiar para o presente. Devido à situação da procla­
mação de Jesus, está fora de cogitação a possibilidade de uma
visão retrospectiva antes de sua morte.
Revela-se, portanto, mais uma vez que a Páscoa e a fé pascoal
iniciaram e embasaram importantes evoluções da ética cristã primitiva,
as quais nos cabe analisar mais detalhadamente nos capítulos subse-
qüentes.
2. A primeira comunidade judaico-cristã e a lei
Como já indicamos acima, é bastante reduzido o êxito quando
nos dirigimos aos Atos dos Apóstolos para descobrir algo a respeito
da ética da comunidade primitiva em Jerusalém e na Palestina. Se
apontássemos para os conhecidos "sumários" dos Atos dos Após­
tolos, isto é, para os breves resumos que pretendem caracterizar a
vida da primeira comunidade (At 2, 42ss; 4, 32), haveria que dizer
com referência a eles que fornecem uma imagem ideal da primeira
comunidade tal qual as comunidades no tempo de Lucas a conce­
beram. Nem por isso a imagem precisa de carecer de qualquer fun­
damento na realidade histórica, embora deva ser utilizada com
circunspeção.
O mesmo vale para a afirmação de que os primeiros cristãos
tinham tudo como propriedade comum (At 4, 32). Evidentemente
ela é antes de tudo uma generalização do fato de que alguns cristãos
renuncia,ram à sua propriedade, como, p. ex., Barnabé (At 4, 36s; cf.
também 5, lss, a história sobre Ananias e Safira). Constituiu uma
interpretação infeliz e completamente errônea designar esse proce­
dimento "comunismo da Igreja prim itiva", pois não tem absoluta­
mente nada a ver com comunismo. O comunismo é um sistema social

48
completo que se apóia sobre a extinção da propriedade privada n©6
meios de produção. Na comunidade primitiva, entretanto, não veri­
ficamos um movimento para revolucionar a ordem social cfa pro­
priedade. Ele seria totalmente inconcebível naquela época, ainda mais
no contexto judaico. Em segundo lugar, não se fala de uma regula­
mentação geral do regime de posse por lei. Portanto, não é estatuto
da comunidade "ter tudo em comum". Trata-se, porém, de uma
ilustração do poder do amor. Alguns oferecem um sacrifício de sua
propriedade. Certamente isso ainda é o suficiente para se enaltecer!
Igualmente foi e é de todo enganoso falar em "comunismo de amor".
Se a questão fo r amor, não poderá tratar-se de comunismo, e o
mesmo vale para a recíproca! O sistema social comunista não é
baseado sobre amor, porém sobre poder revolucionário. O amor,
por sua vez, não pode ser transformado em lei, nem no estatuto
de uma sociedade. Contudo é muito provável que Lucas foi influ­
enciado por uma concepção antiga sobre a "vida em comunhão".
Ao que parece, existe também uma relação com Dt 15, 4: "para
que entre ti (Israel) não haja pobre".
Ademais, a ameaça ao homem por causa da riqueza ocupa um
papel considerável em Lucas. A parábola do rico fazendeiro (Lc 12,
16ss) mostra-nos a falsa segurança de um homem que confia na
abundância dos bens terrenos, em sua colheita copiosa, mas que
repentinamente é chamado perante o Juízo de Deus. Contudo a
única coisa que importa é ser rico "para Deus" (Lc 12, 21). Assim
o revelam também os "ais" sobre os ricos e fartos (Lc 6, 24s) que
"têm a sua consolação", isto é, que são submetidos a julgamento.
Por se abandonarem à sua riqueza, os ricos são, portanto, os prin­
cipais representantes do mundo que vive em oposição ao reino de
Deus. Na mesma direção aponta a narração do rico que não se consegue
decidir a distribuir seus bens aos pobres e atender ao chamado para
o discipulado (Lc 18, 18ss par.). Lucas acentua, de modo visivel­
mente mais intenso do que Mateus, a condenação do rico. Estar preso
à riqueza significa ser incapaz de tomar a decisão a favor do reino
de Deus vindouro e do discipulado de Jesus. Com clareza se reco­
nhece, pois, que, do ponto de vista escatológico, posses e fortuna
constituem um impedimento para o homem. Todavia mesmo Lucas
não elabora uma teoria "anticapitalista" da propriedade. A pergunta
pelo significado da exigência de Jesus para a economia daquele
tempo nem é levantada. O interesse dirige-se unicamente à liber­
tação do homem que está preso às posses e riquezas. Do mesmo
modo Mateus diz em 6, 19ss que não se devem ajuntar riquezas sobre
a terra, mas "no céu". Também para ele estão em jogo a correta
prontidão para o reinado de Deus e a primazia de aspirar por
ele (cf. M t 6, 33). O pronunciamento sobre o espírito pagão da

49
preocupação (Mt 6, 24ss) mostra que nesse texto a questão não é
apenas a riqueza, mas a própria relação errada para com propriedade,
patrimônio, alimento e vestes. "Ninguém pode servir a dois senhores"
(Mt 6, 24), a saber, a Deus e à riqueza (propriedade). Apenas é
possível devotar-se ou a um ou ao outro, de modo que está clara­
mente formulada a pergunta decisória entre reino de Deus e os bens
terrenos, ou melhor, a dependência desses últimos. O tema em
pauta não é a revolução social que desalojaria os ricos de sua posição
privilegiada, mas a instrução da ética escatológica para todos, visto
que também uma propriedade de pouca monta pode impedir o
homem a seguir a Jesus. Digna de nota é a diferença entre Lucas e
Mateus, que reside em que no último faltam os "ais" sobre os ricos.
Vemos que na concepção de Mateus já se inicia aquela evolução da
tradição ética que levou è espiritualização e ao abrandamento da
critica aos ricos e poderosos em sua relação com os pobres e fracos.
Cabe no presente contexto que sejam ressaltados ainda ou­
tras afirmações do Novo Testamento referentes a propriedade, pobreza
e riqueza. É conhecida comumente e repetida há decênios a seguinte
delimitação: Assim como Jesus não foi um reformador social ou, até,
um revolucionário social, assim o Novo Testamento também desco­
nhece quaisquer exigências para a mudança do sistema econômico
e da ordem social; não se abordam, como temas, as questões da
filosofia social. Inexistem no Novo Testamento paralelos para o
"Estado" de Platão ou a "Política" de Aristóteles. Não é função do
Novo Testamento analisar cientificamente as realidades do mundo.
Por isso perguntas como a da avaliação de propriedade, pobreza e
riqueza emergem quase exclusivamente no contexto da parênese, a
saber, quando a situação dos ouvintes ou leitores requer uma orienta­
ção concreta.
Além do mais, o Novo Testamento encara todas essas grandezas e
poderes do mundo escatologicamente, isto é, a partir do reino vindouro
de Deus, o que quer dizer, ao mesmo tempo, a partir da relação Deus
— homem, que é a única que importa. Por isso lemos que não
devemos ajuntar riquezas terrestres, as quais são corroídas pela traça
e pela ferrugem (Mt, 6, 19ss). Não se pode servir simultaneamente
a dois senhores, a Deus e à riqueza (propriedade, M t 6, 24). O
senhorio de Deus sobre o homem exclui qualquer outro senhorio.
Não se combate a propriedade "como tal", isto é, como uma gran­
deza econômica dada, mas ela é pressuposta como algo bem natural
para o mundo dos homens. Em alternativa, os escritores neotes-
tamentários dirigem frequentemente sua atenção à relação proprie­
dade — homem. A posse exerce poder sobre o coração do homem.
Foi isso o que já constatamos no exemplo do jovem rico que foi
incapaz de corresponder .ao chamado do discipulado, porque possuía

50
muitas propriedades (AAt 19, lóss). O homem abandona-se ao poder
da riqueza. O Novo Testamento considera essa uma das principais
formas de manifestação da descrença, razão pela qual os ricos são
os principais representantes do "m undo" contraposto ao reino de
Deus. Daí os "ais" por sobre os ricos que já têm o seu salário; a
sentença divina já foi proferida sobre eles. A mesma orientação
segue Tg 5, lss: Aos ricos, ateístas, anuncia-se com grande veemência
o juízo escatológico de Deus, porque viveram regalada e luxuosa­
mente e acumularam tesouros terrenos ainda nos dias derradeiros. A
recíproca de semelhante procedimento é a injustiça social, que Tiago
estigmatiza, pois os ricos retiveram aos trabalhadores da colheita o
salário merecido. Tiago junta-se, desse modo, a Jeremias 22, 13:
Não devemos deixar nosso vizinho trabalhar de graça; ai daquele que
não paga ao trabalhador o seu salário. Porque Jesus se apercebe do
poder inaudito que a propriedade exerce sobre o coração e conjun­
tamente sobre o agir prático do homem, é concebível a sua severa
palavra de que antes um camelo passaria pelo fundo de uma agulha
do que um rico entrasse no reino de Deus (Mc 10, 25 par.). Assim,
a "sedução das riquezas" também faz parte dos poderes que sufocam
a palavra de Deus nos corações (Mc 4, 19, na explicação da parábola
do semeador). Esse tipo de considerações é ético apenas em sua
conseqüência, secundariamente, a saber, ao ser escatológico-crítico
e revelar como é perigoso para o homem o poder da propriedade.
Todas essas declarações são apenas o reverso da exigência central
positiva que Mateus apresenta da seguinte forma: "Buscai em primeiro
lugar o reino de Deus e sua justiça. . ( Mt 6, 33).
Afirmações correspondentes podem-se fazer com respeito à
pobreza. Conforme já acontecia no Antigo Testamento, ela é muito
bem conhecida ao Novo Testamento como uma realidade econômica
que faz parte da vida diária. Não é glorificada nem sublimada na
forma do "ideal da pobreza" dos ascetas, mas, assim como posse e
riqueza, ela é submetida à luz escatológico-crítica. Os pobres como
tais não são ainda detentores da salvação, pelo contrário, o reino
de Deus precisa de ser-lhes anunciado e prometido (Lc 6, 20s).
Acrescentando-se "no espírito" em M t 5, 3 ("pobre de espírito" —
Lutero), é evitado o mal-entendido de que a pobreza como tal pos­
suiria qualidade religiosa. O que acontece, porém, é que se adota
a "piedade inspirada na indigência", veterotestamentária e judaica,
e se encara o pobre como aquele que depende total e exclusivamente
de Deus de sua ajuda e aspira pela justiça de Deus. Na miséria e no
desamparo os pobres podem ter esperança apenas em Deus. Assim
o pobre é o protótipo do homem que almeja pela salvação escato-
lógica. Torna-se, pois, simultaneamente relativa a diferença entre o
economicamente pobre e o economicamente rico. Também um rico

51
pode encontrar o caminho do discipulado, também ele pode receber
participação no reino de Deus, como demonstra o exemplo do publi-
cano Zaqueu (Lc 19, 2 ss). Ele faz com que aquilo que lhe aconteceu
seja acompanhado de uma ação própria: Dá a metade de sua proprie­
dade aos pobres e restitui com juros múltiplos os bens injustamente
extorquidos (Lc 19, 8). É provável que Lucas entendeu a narração em
sentido parenético: Assim devem proceder membros ricos da comu­
nidade de Jesus. Estabelece-se, portanto, também uma conexão com os
sumários dos Atos dos Apóstolos, brevemente abordados acima. A
ilustração contrária é fornecida pela parábola do fazendeiro rico,
que se torna seguro de si em vista da colheita; mas Deus interfere e
o chama ao Juízo (Lc 12, lóss). A li de nada lhe valem as riquezas
terrenas. Em ambas as tradições, portanto, o rico é colocado com sua
riqueza na dimensão da decisão, na qual estão em jogo Deus e a
salvação divina.
Podemos depreender de I Co 1, 26ss que nas comunidades
missionárias de Paulo os ricos, bem como os detentores do poder ou
os intelectuais, não exerciam nenhuma influência. A cena de Tg
2, lss, no entanto, nos introduz numa época em que acontecia que
também ricos visitavam ocasionalmente as reuniões da comunidade.
Um rico ornado com anéis de ouro e vestido com trajes luxuosos
visita a reunião da comunidade e recebe a solícita indicação de um
bom lugar. O pobre que entra na mesma ocasião é designado para
um lugar em pé ou para assentar-se no chão. Tiago adverte a
comunidade diante de tal "acepção de pessoas". É inadmissível que
na comunidade de Cristo se façam semelhantes discriminações. Tiago
combina esse relato com uma caracterização dos pobres em contra­
posição aos ricos, no estilo da "religiosidade inspirada na indigência"
(2, 5ss): Os pobres são eleitos por Deus e ricos em fé. Os ricos os
oprimem, arrastam-nos para os tribunais e até blasfemam o bom nome
que foi invocado por sobre os pobres. Encontramos, pois, mais uma
vez o protótipo do rico ateu. Tanto ele como o pobre não podem
ser definidos econômica ou socialmente, embora tais características
não faltem. Trata-se antes de uma concepção escatológico-crítica.
Mas, como podemos constatar no exemplo de Zaqueu, não se pro­
cede apenas a uma crítica teórica do rico. A concepção escatológico-
crítica, pelo contrário, é ao mesmo tempo instrução para o agir dos
discípulos de Jesus. No Novo Testamento, é verdade, existem também
escritos, em cujo horizonte não aparecem riqueza nem pobreza, p.
ex., os joaninos. A prática ascética da Igreja posterior derivou
daqueles textos que se deve viver de modo pobre e sem posses.
Existindo um direito relativo do celibato na comunidade de Cristo
(I Co 7), realmente não há por que negar a possibilidade de existir
na Igreja a renúncia à propriedade. O que não significa que a po­

52
breza econômica como tal já representasse um atestado para ingressar
no reino de Deus.
Problemas bem outros se apresentam quando recorremos ao
evangelho segundo Mateus como fonte. Mateus pertence à comuni­
dade judaico-cristã e escreve para ela. A Igreja é para ele o Israel
verdadeiro. Em Jesus, Messias de Israel, cumpriram-se todas as pro­
missões salvíficas de Deus ao seu povo. Sobre essa base Mateus
faz sua apresentação dos feitos e ditos de Jesus. A comunidade
primitiva judaico-cristã vive ainda englobada pelo judaísmo. Não
se desprende de seu povo.
Isso, contudo, acarreta uma intensa controvérsia sobre o pro­
blema da lei e com a interpretação da lei e a doutrina da justiça
rabínicas. Com efeito, o evangelho de Mateus nos permite também
observar essa disputa. Era possível que a comunidade judaico-cristã
permanecesse totalmente fiel à lei, com exceção de sua mensagem
de que Jesus fora o Messias de Israel?
Mateus nos dá uma resposta a essa pergunta. Em evidente
contraposição às acusações judaicas contra Jesus ele constata expres­
samente que Jesus não é extintor da lei. Não veio para revogar,
mas para cumprir (Mt 5, 17). Sim, até o fim do mundo não deverão
passar nenhum i ou til da lei (5, 18). Com essa declaração reconhece-se
a autoridade irrestrita da lei, uma formulação que é impossível na
boca de Jesus. Em Mt 5, 17-19 fala a nós a comunidade judaico-
cristã. Ao que parece Mateus vê o perigo do antinomismo. Uma
correlação para o trecho encontramos na introdução do grande sermão
contra os fariseus e escribas, pois ali se aceita expressamente a
autoridade doutrinária daqueles que ocupam a cátedra de Moisés:
"Fazei e guardai tudo quanto eles vos disserem" (Mt 23, lss). Res­
salvas fazem-se às suas "obras"; por elas não nos devemos deixar
orientar.
Após semelhantes declarações poderíamos considerar a comu­
nidade primitiva como uma seita especial dentro do judaísmo (talvez
como uma espécie de farisaísmo radical) que se distingue de outras
correntes judaicas meramente por meio de sua fé no Messias Jesus.
E, com efeito, ela foi por vezes assim descrita. Em contraposição,
W. G. Kümmel destacou corretamente a autocompreensão escatológica
da comunidade primitiva: Considera-se a comunidade salvífica do fim
dos tempos. Com esse "conceito de Igreja" ela lançou os alicerces
para todas as evoluções posteriores da Igreja cristã primitiva e da
doutrina da Igreja.
Todavia até mesmo nos textos acima referidos, ou nas suas
continuações, podemos demonstrar como a comunidade primitiva não
permanece na obediência tradicional à lei. Mt 5, 20 formula a
exigência fundamental de Jesus por uma justiça melhor ou, mais

53
exatamente, "transbordante", que precisa exceder a justiça dos fa­
riseus e escribas quando se pretende entrar no reino de Deus.
Segue-se imediatamente a radicalização da lei nas antíteses (5, 2Iss)
e sua aguçadura no mandamento do amor (5, 43ss). Mateus, portanto,
nem sequer cogita de abrandar ou mesmo suprimir o radicalismo de
Jesus. Numa comunidade judaico-cristã isso é de todos os modos
admirável, pois ela podia pôr em jogo a própria existência. Em
M t 23 seguem-se à introdução mencionada os "ais" sobre os fariseus,
a denúncia de sua hipocrisia, sim, de sua ilegalidade, e a ameaça
do Juízo contra eles (Mt 23, 15ss). Precisamos de questionar real­
mente até que ponto, afinal, a continuação coincide com a introdução.
A singular bilateralidade de:
a) reconhecimento da autoridade da lei e de Moisés, respecti­
vamente, de seus seguidores, e
b) ultrapassagem radical daquilo que foi dito aos antigos (por
conseguinte, não apenas das tradições de posterior interpretação da
lei) — essa bilateralidade provavelmente foi ditada a Mateus pela
realidade de sua comunidade, que ainda não era capaz de conquistar
liberdade plena perante a lei e que, por outro lado, se sabia com­
prometida com o mandamento radical de Jesus. O verdadeiro sentido
da lei parece ser, tanto para ela quanto para Mateus, o mandamento
do amor (cf. também Mt 22, 34ss).
Tipicamente judaico e judaico-cristão é também o emprego das
palavras "justiça" e "justo" (Mt 5, 6 .2 0 ; 6, 1; 25, 46). Na última
das passagens citadas, é significativo que os "justos" são os que
praticaram a misericórdia, que serviram aos irmãos pequeninos de
Jesus. Transparece, como também em 5, 6 e 20, uma reinterpretação
do conceito judaico de justiça: Ela é dádiva escatológica de salvação
(5, 6) e, concomitantemente, o cumprimento do mandamento do amor
e a obediência radical do coração diante de Deus (5, 20ss).
Da mesma forma a doutrina do julgamento segundo as obras
é legado judaico (Mt 7, 21ss; 25, 31ss). Contudo ela é conservada
em todo o Novo Testamento, também por Paulo (II Co 5, 10). Nem
Mateus nem Paulo sentem uma contradição entre essa doutrina e
a mensagem da salvação escatológica. A doutrina do julgamento
segundo as obras ensina que a pessoa é levada a sério e examinada
como praticante, em seus atos, e que também o discípulo e o cristão
precisam de dar provas de sua obediência e responder por sua ações.
O afirmado demonstra que não se pode falar de "legalism o" e
"nomismo" em Mateus, nem tampouco na comunidade por ele re­
presentada. Também a agudeza dos "ais" contra os escribas e fariseus
em Mt 23, 13ss não corrobora semelhante tese. Pelo contrário,
também aqui é reconhecível a tendência central do evangelho de
Mateus de que tudo depende de que realmente se cumpram os

54
mandamentos de Deus; e as ameaças de Juízo, sempre de novo
claramente ressaltadas por Mateus, fundamentam e aguçam essa
exigência que atravessa todo o evangelho. A comunidade primitiva
judaico-cristã transmite as palavras de Jesus, porque ele é para
ela o Messias de Israel. Ela as legitima, porque Deus da sua parte
legitimou esse Jesus pela ressurreição. Sua luta em torno do sentido
da lei é naturalmente explicável dentro da época, de modo que para
as primeiras comunidades helenistas em Antioquia ou Damasco, e
muito menos para as comunidades missionárias de Paulo, não havia
mais o problema da lei nessa forma. O "convite do Salvador" (Mt
11, 28ss) igualmente torna visível que Mateus não entendeu a exi­
gência de Jesus "nomisticamente". Endossa-o, enfim, também a sua
compreensão do perdão dos pecados (Mt 18, 21 ss). A autoridade
para tal foi transferida, segundo a compreensão de Mateus, de Jesus
para a comunidade (18, 18). A lei, porém, não possui mais senhorio
e autoridade absolutas onde se anuncia e partilha o perdão dos
pecados.
Mateus, conseqüentemente, não ampliou ou substituiu o antigo
legalismo judeu por um novo. Nesse aspecto ele também não está
em oposição a Paulo e, se Mateus ressalta tão fortemente a neces­
sidade de praticar as boas obras, então também Paulo exige uma
vivência na pureza, na humildade e no amor. Admitimos que no
horizonte da comunidade judaico-cristã ainda não era possível fazer-se
uma crítica teológica fundamental da lei como caminho de salvação;
ela foi elaborada somente por Paulo: Cristo é o fim da lei (Rm 10, 4).
Contudo Paulo não quis, de forma alguma, anular a exigência de
Deus, ele está longe do antinomismo, no sentido negativo. Transmite
pessoalmente a tradição do Sermão do Monte (Rm 12, 14; I Co 6, 7).
Nisso o cristianismo paulino e helenístico permanece unido ao judeu-
cristianismo de Mateus. Acima de ambos está, para ambos vigora a
exigência de Jesus.

3. As primeiras comunidades helenistas


As primeiras comunidades helenistas como, por exemplo, An­
tioquia, na Síria, constituem-se no lugar e na origem da passagem
do Evangelho para o mundo, a cultura e a sociedade helenistas. Esse
fato empresta-lhes grande significância histórica. Tanto mais lamen­
tável, do ponto de vista histórico, é que não possuímos documentos
dessas comunidades e dependemos de inferências. Ao que tudo
indica, foram desenvolvidas nessas comunidades tradições importan­
tes e, em parte, novas, tais como as que adotou, p. ex., Paulo. Deve­
mos incluir aqui, entre outras, a parênese batismal. A diferença entre a
comunidade judaico-cristã e a helenista é muito grande. Ela se
estabelece simplesmente com a nova situação histórica. Aquelas

55
w

comunidades originam-se da missão dos pagãos. Por outro lado há


que considerar que também na comunidade de Jerusalém houve um
grupo de judeus helenistas, conforme vemos em A t 6. Por conse­
guinte, as comunidades helenista e judaico-cristã não devem ser
imaginadas como totalmente alheias uma da outra.
As comunidades helenistas, por um lado, adotam com a tra­
dição sobre Jesus a condensação da lei e o Decálogo, mas, por
outro, desenvolvem, no demais, um cristianismo livre da lei, cons­
tituindo a premissa histórica para a teologia e ética paulinas. Assim,
puderam estabelecer-se relações com a moral helenista. Podemos
afirmar que, sem a mediação das comunidades helenistas, as pre­
missas históricas da obra e do pensamento de Paulo necessariamente
permaneceriam enigmáticas. Todavia é muito duvidoso se já po­
demos falar de uma nova teologia nessas comunidades. Fato seguro,
no entanto, é que a passagem para o ambiente cultural e lingüístico
helenista reclamava, tanto para a prédica missionária como para o
culto, a criação de novos termos, tais como, p. ex., "Evangelho" e o
verbo correspondente, "cháris" (graça), "agápe" (amor) e outros.
Presumivelmente os conceitos éticos como "areté" (virtude) e "syneí-
desis" (consciência) foram empregados pela primeira vez nessas
comunidades (cf. Fl 4, 8; Rm 2, 14s). Fato é que agora se produziam
encontros com as concepções e formas literárias da ética helenista
que tinham possuído validade e poder determinante para os que antes
haviam sido pagãos.
Podemos admitir com segurança que com a prédica missionária
e o batismo também estava ligado o primeiro ensino ético. A
parênese batismal em Rm 6, 2 s s .lls s , teologicamente bem desenvol­
vida, sem dúvida alguma teve nessas comunidades os seus precur­
sores. A pergunta por regras cristãs para a condução da vida precisava
de ser respondida com clareza muito maior, considerando-se que tais
comunidades se encontravam sob a pressão de um poderoso contexto
pagão.
Fazem parte do ensino ético os assim chamados catálogos de
vícios e virtudes como os encontramos em Paulo (I Co 6, 9s; G1
5, 19ss.22). Eles arrolam uma série de transgressões que devem ser
evitadas, tais como impudicícia e adultério, idolatria, discórdia, ava­
reza, etc., ao passo que o catálogo de virtudes lhes contrapõe benigni­
dade, longanimidade, pacifismo, pureza, etc. Tudo transmitido em
formas fixas. Observa-se também que se trata de conceitos éticos
gerais, que não possuem nenhum caráter especificamente cristão.
Os catálogos eram muito adequados para uma instrução ética popular.
A filosofia moral helenista conhece semelhantes catálogos, e o ju­
daísmo da diáspora os assumiu. Nesse último, porém, bem como no
cristianismo, os conceitos morais profanos evidentemente recebem

56
um novo prefixo: o mandamento de Deus. Os pecados enumerados
impedem o homem de "herdar o reino de Deus" (I Co 6, 10). Essa
é uma terminologia pré-paulina que denota claramente que Paulo
adotou aqui uma fórmula parenética proveniente da tradição a ele
transmitida.
Contudo o que ocorre é muito mais do que uma "cristianização"
exterior dos catálogos de vícios e virtudes, é necessário obter
consciência de que a própria pregação missionária, o anúncio do
único e verdadeiro Deus, Criador, Juiz e Senhor do AAundo, do único
Salvador divino, inaugurava praticamente uma revolução ética. Fina­
vam-se as antigas divindades e com elas as antigas autoridades éticas.
Tanto mais importante era que as comunidades missionárias helenistas
fossem capazes de apresentar, nessa situação de crise, orientações
éticas sólidas e inequívocas.
Para essa finalidade serviam, outrossim, os catálogos de normas
para a vida doméstica, que contêm instruções éticas para esposos,
esposas, pais, filhos e escravos, ou seja, para os distintos grupos
existentes nos lares de então (cf. Cl 3, 18ss; Ef 5, 22ss; I Pe 2, 13ss).
O seu conteúdo será abordado no capítulo III, item 4, e nos trechos
sobre a epístola aos Efésios e a primeira epístola de Pedro. Como
no caso dos catálogos de vícios e virtudes, topamos aqui com uma
forma estilística fixa que não pode ser atribuída a um escritor espe­
cífico. A exigência central para mulheres, crianças e escravos é a
obediência; com o que se adota na ética cristã primitiva mais uma
categoria mundana genérica. Simultaneamente estabelece-se por meio
do "éthos" dos catálogos de normas para a vida doméstica, uma
relação muito estreita entre a comunidade e o lar, que se espelha
nas cartas pastorais. Em se aceitando o catálogo de normas para
a vida doméstica na ética da comunidade, foi tomada uma decisão
de enormes conseqüências, a saber, a decisão contra o ascetismo
radical daquele tempo, como o gnóstico, que difama o matrimônio
e a sexualidade, sim, toda a esfera terrestre e material. Recebe e
engloba-se o matrimônio na vida comunitária como uma ordem "mun­
dana" básica. Tal decisão era de se esperar, considerando-se que as
comunidades helenistas receberam o Antigo Testamento na tradução
grega da Septuaginta e, com ela, a fé no Deus Criador, cuja Criação
é boa, e não maligna, como sustentava a gnose. Acresce o impacto
da declaração de Jesus referente à instituição divina do matrimônio
(Mc 10, Iss par.). Em conformidade com esse princípio foi poste­
riormente possível avaliar outras estruturas sociais e relacioná-las com
a comunidade de Cristo, como, p. ex., o domínio político (Rm 13, Iss).
A tradição de Rm 13, Iss (cf. I Pe 2, 13s), que fala da submissão
obrigatória ao poder político, é igualmente pré-paulina e está profun­
damente enraizada no judaísmo, o qual tinha aprendido a atribuir

57
também o domínio pagão à vontade de Deus. Em suma, surgem
já antes de Paulo impulsos para a continuação do desenvolvimento da
ética cristã após a Páscoa, não havendo receio algum em adotar
normas vivenciais judaicas e helenistas. A esperança da proximidade
escatológica não impediu esse processo. Por conseguinte o cris­
tianismo prim itivo não podia tornar-se uma seita apocalíptica desti­
tuída de ética.
O mais importante dessa evolução sempre foi, no entanto, que
as comunidades eram confrontadas com o mandamento radical de
Jesus. Nesse ponto estão unidas às comunidades judaico-cristãs. Por
meio de tal evolução de sua ética a comunidade cristã gozava de
grande superioridade frente às religiões de mistérios e à mística do
helenismo. A ética de Jesus oferecia, em sua crítica ao legalismo
judaico, um excelente ponto de partida para a confrontação crítica
com todas as éticas religiosas e filosóficas daquele tempo, bem como
de tempos posteriores, visto que elas tendem, ou também para o
legalismo, ou para um falso princípio de liberdade e para o liber-
tinismo.
Ademais, precisamos de considerar que a prédica missionária
sempre foi e continuou sendo anúncio do Juízo, o que é de extrema
importância para a ética. Por meio dela se impossibilitam qualquer
justiça própria e orgulho baseado na virtude, inclusive qualquer
presunção "farisaica" dos cristãos. Mesmo em A t 17 se conserva o
chamado ao arrependimento e o anúncio do Juízo (At 17, 30s), não
obstante a estreita conexão com terminologia e religiosidade hele­
nistas contida nesse "m odelo" de prédica missionária. Resultado
idêntico obtemos de Rm 1, 18-3, 20, pois mais uma vez foram
aproveitados aspectos da prédica missionária pré-paulina, como p.
ex., na crítica ao paganismo (Rm 1, 21ss) por ser uma idolatria que
coloca as criaturas no lugar da glória do Deus imperecível. Por fim,
deve ser destacada a grande importância da proclamação de Cristo e
da cristologia para a ética. Tanto faz se ela trata da fé no "Filho do
Homem" que se aproxima e que, na comunidade primitiva judaico-
cristã, é identificado com Jesus, ou do "kyrios" (Senhor) divino nas
comunidades helenistas, sempre a proclamação de Cristo representa
a proteção e o abrigo decisivos contra toda ética legalista ou autônoma
que se baseia sobre a razão e a capacidade moral do homem. A
pessoa agora não é mais colocada simplesmente diante de uma
lei ou um dever ético, mas diante de Cristo. Dele ela recebe salvação
e vida, ou seja, uma nova existência. Não obstante, ela permanece
dentro de um compromisso ético. A tradição sobre Jesus protegeu
as comunidades helenistas do perigo de se perderem numa mística e
religião redentora a-ética. Veremos como em Paulo os imperativos
da graça emanam da mensagem da graça. A parênese batismal, que

58
se apoiava sobre o ato da "meia-volta" e a renovação da existência,
foi um dos mais importantes pontos de partida para o desenvolvimento
da ética cristã primitiva, não por último também em sentido teológico,
e desse modo foi igualmente uma das premissas da ética de Paulo.
Embora os catálogos éticos liguem a comunidade ao "mundo"
e à sua moral, a ética cristã é desde o início orientação para cristãos,
ética da comunidade para a comunidade. A comunidade é o "lugar
vivencial" dessa ética. Ela necessita as regras para uma conduta
cristã depois e à luz do batismo.
Muito mais tarde, após o reconhecimento do cristianismo como
religião do Império, as massas fluem para dentro da Igreja, e então
a ética comunitária se transforma em ética para todos, para uma
sociedade toda que se deixa determinar pela Igreja.
Por vezes encarou-se a relação entre esperança escatológica
imediata e ética como se as primeiras comunidades determinadas pela
esperança do fim dos tempos, não tiveram sequer necessidade de
uma ética; teriam desenvolvido a ética somente quando diminuía
a esperança imediata do fim do mundo, a fim de poderem esta­
belecer-se dentro do mundo. Isso seria ética como substituto para
a escatologia! Nossos textos, no entanto, não apoiam semelhante
construção, antes pelo contrário. Paulo elabora uma parênese e uma
ética cuidadosamente pormenorizadas, apesar de viver sem dúvida
alguma na esperança imediata (cf. I Co 7, 29ss; Rm 13, 11). Exata­
mente o mesmo vale para a primeira epístola de Pedro. A comu­
nidade primitiva acatou as exigências éticas de Jesus. Como vimos
no capítulo I, escatologia e ética estão firmemente entreligadas no
Sermão do Monte. Em conseqüência, deve ficar claro que nunca
houve proclamação escatológica que não fosse ao mesmo tempo
proclamação da vontade de Deus, das exigências de Jesus. Assim
como nas primeiras comunidades nunca houve uma escatologia
a-ética, assim jamais tiveram uma ética não-escatológica. Vale o
mesmo para as missivas do Apocalipse de João (cf. capítulo VII).
Esperança imediata e parênese ética, em resultado, não devem ser
imaginadas numa subseqüência temporal, elas não se revezam. A
escatologia é imaginada eticamente, e a ética, escatologicamente; pois
o decisivo sempre é fazer a vontade de Deus, ser realmente obediente,
fazer boas obras. O que vigora tanto antes como depois da Páscoa.
Também o Ressurrecto está diante da comunidade como o Senhor
que ordena e exige.

59
Capítulo III

P A U L O

O evento salvífico em Cristo como fundamento e alvo da ética

T. A estrutura básica: acontecimento salvífico e ética


Paulo é o primeiro grande teólogo da cristandade. É também
o primeiro grande ético cristão, tendo em vista que ele fundamenta
teologicamente exigências éticas de diferentes formas e estabelece
uma estreita relação entre o acontecimento da salvação e a ética.
a) Quem está influenciado pelas tradições evangélico-reforma-
tórias espera sem mais nem menos que Paulo tenha fundamentado
sua ética com a doutrina da justificação. Contudo, se olharmos para
as fórmulas e os conceitos empregados por Paulo, não transparece
nenhuma conexão direta entre doutrina da justificação e ética, com
exceção do fato de Paulo combinar às vezes justificação e santificação,
por exemplo, em I Co 6, 11, onde se equiparam ablução, santificação
e justificação. Do mesmo modo ele pode falar da fé que atua pelo
amor (Gl 5, 6). Não obstante, semelhantes combinações são raras.
Paulo não deduz diretamente do agir da graça justificante de Deus
a exigência de um procedimento "justo" do cristão, pela provável
razão de que temia que, se assim falasse, novamente seria enten­
dido mal, no sentido do legalismo judaico, o qual rejeitara.
Por isso foi que Albert Schweitzer, no livro " Die AAystik des
Aposteis Paulus" (1930), estabeleceu a tese de que em Paulo não
existe nenhuma ligação entre doutrina da justificação e ética. Essa
tese, porém, é insustentável, particularmente em vista de Rm 6 e 8.
Precisamos somente de atentar para a liberdade de Paulo em fo r­
mular a doutrina da justificação também de outras maneiras do que
com os termos "justificar"', "justiça de Deus", etc. Ele sabe expressar
a mesma mensagem salvífica também em fórmulas cristológicas e
pneumatológicas, e é precisamente o que ocorre em Rm 6 e 8, e de
modo idêntico em Gl 5 (veja abaixo).

61
O ponto de partida correto e o centro que une tudo devem ser
encontrados na mensagem de Cristo. A própria doutrina da justifi­
cação é uma determinada, embora não a única, forma de expressão
teológica da mensagem de Cristo, da proclamação de cruz e ressur­
reição do Senhor como sendo os acontecimentos da salvação que
revolucionaram o mundo (cf. I Co 1, 18ss; 15, 3ss). Paulo tem
possibilidade de dar diversas formulações à doutrina da justificação.
Ergue-a, p. ex., em Rm 8, lss para dentro de uma nova dimensão,
ao introduzir o conceito do Espírito e compreendendo-o tanto como
poder libertador quanto compromissivo, um poder que reclama o
cristão para um novo serviço: "Se vivemos no Espírito, andemos
também no Espírito" (Gl 5, 25; "andar" refere-se à conduta prática
da vida).
b) Obviamente não devemos supor que Paulo seja um criador
livre e isolado de ética cristã. Pelo contrário, também Paulo depende
em grande escala de tradições que recebeu ao entrar para a comu­
nidade helenista.
As principais tradições são:
1) a prédica do único e verdadeiro Deus em contraposição à fé
nos deuses pagãos (herança judaica);
2) a prédica escatológica do Juízo, a qual Paulo combina com
a tradição sobre Jesus, mais tarde formulada por escrito nos sinóticos;
3) os primeiros modelos da "parênese" ética (admoestação e
instrução), na forma da parênese batismal, transmitida aos candidatos
ao batismo. Um desdobramento especificamente paulino da mesma
encontramos, p. ex., em Rm 6. Provavelmente ela também estava
associada a uma renúncia a pecados concretos, tais como são enume­
rados nos chamados catálogos de vícios (cf., p. ex., Gl 5, 20s).
Além do mais, é preciso observar na compreensão da ética
paulina que o apóstolo combate em duas frentes distintas:
Em primeiro lugar ele luta com a doutrina judaica da justiça
e da lei (nomismo). Segundo Paulo, a lei não constitui nenhum cami­
nho para a salvação. A salvação surgiu em Cristo, Cristo, porém, é
o fim da lei (Rm 10, 4). Cristãos vivem no "agora" da salvação (II Co
6, lss), que transforma radicalmente a sua relação com Deus e seus
semelhantes. O homem não conquista a salvação pelo agir pio ou
moral, Deus lha concede "gratuitamente" em Cristo (Rm 3, 24).
Portanto, a ética não tem nada a ver com a obtenção da salvação.
Contudo a salvação realizada e presente engaja o seu usufrutuário
como pessoa toda.- Ele deve "revestir-se de Cristo" (Rm 13, 14; Gl
3, 27). Isso é um imperativo! Partindo daqui, podemos afirmar que a
fórmula básica da ética paulina consiste em que o cristão deve, no
agir, na conduta prática, apropriar-se da salvação para viver como

62
pessoa "em Cristo". Corresponde-lhe também a fórmula "andar no
Espírito" (Gl 5, 2o). Como um paralelo configura-se a declaração
em Rm 8, 4: Cristãos vivem segundo o padrão do Espírito, mas não
da carne. Desse modo cumprem a reivindicação válida da lei.
O pensamento de Paulo, por conseguinte, parte totalmente do
feito salvífico de Cristo. Todavia a nova existência do cristão não
é a-ética, pois ele permanece sob o mandamento de Deus (I Co 7, 19),
o qual pode cumprir no Espírito. Nesse sentido a ética de Paulo é
uma ética puramente cristã. A graça inclui, pois, e não exclui o
mandamento. Paulo de forma alguma é um "antinomista". Suas
cartas enxameiam de advertências e instruções para a atuação das
comunidades. São, no entanto, sempre imperativos da graça, não
da lei, cujo domínio foi quebrantado por Cristo.
c) A segunda frente de combate revela-se pela entranhada
controvérsia de Paulo com o gnosticismo que se infiltrara sobretudo nas
comunidades de Corinto e Colossos. Rejeitando radicalmente o mundo
todo como mau e demoníaco, a gnose, como reconhecimento liber­
tador, propõe-se soltar a centelha divina existente no homem de seus
vínculos ao corpo e ao mundo, a fim de reconduzí-la de volta à pátria
de luz, situada totalmente na transcendência. Em Corinto tal "sophía"
(sabedoria) gerou o entusiasmo dos que se julgavam já na posse plena
do Espírito e, por conseguinte, da salvação. Por isso Paulo afirma
em I Co 4, 8, com respeito a esses entusiastas gnósticos, que eles já
se apoderaram do reino de Deus. Claramente se manifesta também
em Corinto uma conseqüência ética da gnose: "Todas as coisas me
são lícitas" (I Co 6, 12; cf. 10, 23). Por possuir o Espírito, o gnóstico
acredita que goza de liberdade absoluta. Por isso é-lhe possível,
p. ex., visitar uma prostituta (I Co 6, 15ss), o que para Paulo está
completamente fora de cogitação devido a que o Cristão pertence a
Cristo; pois o corpo faz parte de Cristo e é o santuário, a moradia do
Espírito Santo (I Co 6, 15-20). Em conseqüência é necessária a adver­
tência: "Fugi da impureza!" (I Co 6, 18). A admoestação, por conse­
guinte, está fundamentada tanto cristológica quanto pneumatologi-
camente.
Além disso Paulo argumenta — em I Co 4, 8ss e 15, 12ss — rigo­
rosamente contra o gnosticismo com o "ainda não" escatológico. Ainda
não aconteceu a consumação do reino de Deus, razão pela qual os
cristãos são pessoas que aguardam e têm esperança. Precisamente
o Espírito Santo os ensina a esperarem e ansearem pela redenção
que ainda está por vir (Rm 8, 18ss. 26). Assim, torna-se impossível,
segundo Paulo, a glorificação própria, tão característica para os entu­
siastas gnósticos. Unicamente é possível, pois, gloriar-se do Senhor
(I Co 1, 31). Essa é uma conseqüência direta da teologia da cruz
(I Co 1, 18ss) e, por isso, também da doutrina da justificação.

63
A localização da ética cristã, portanto, é, segundo Paulo, o
tempo entre a ressurreição de Cristo (Páscoa) por um lado e, por outro,
a parusia (aparição definitiva do Senhor), é uma ética para esse
tempo intermediário, para o tempo da Igreja. A ética de Paulo, no
entanto, também pode ser denominada "ética da comunidade", pois
suas instruções e advertências provêm da comunidade e valem para
ela. Conseqüentemente ela também não é em primeira linha uma
ética para todos os homens, como a ética dos estóicos no mundo
helenista.
d) Podemos elucidar a fundamentação cristológica da ética
igualmente em I Co 5, 7s. A exigência de pureza, dirigida aos
coríntios, é justificada com a morte sacrifical de Cristo; do imperativo
da admoestação Paulo retorna ao indicativo do evento salvífico. Em
termos abstratos a exortação reza: Transformai-vos naquilo que na
realidade (a saber, por Cristo) já sois — ou seja, a nova existência a
partir e por meio de Cristo! O dever conseqüentemente se deriva da
nova existência escatológica em Cristo. Não se trata, pois, de uma
ética do dever no sentido de Kant, mas tampouco de uma dedução da
nova vivência cristã a partir do estar em Cristo, como se ela emanasse
dele, por assim dizer, de modo orgânico. Pelo contrário, requer e
mobiliza-se a ação responsável da comunidade e dos cristãos! Eles
não são objetos passivos ou recipientes do agir de Cristo. "Andar"
e agir, amar o próximo, isso eles próprios têm que fazer. Não são,
portanto, privados de sua maioridade. Aqui reside, sem estar for­
mulado, um novo conceito ético de pessoa, a saber, o do ser humano
que atua a partir de e em Cristo. A nova existência não anula o
dever, muito pelo contrário, ela é justamente o seu fundamento. O
imperativo resulta do indicativo do acontecimento salvífico.
e) Como segundo modelo para a fundamentação teológica da
ética, no qual a cristologia é diversificada e concretizada, temos o
modelo sacramental. Encontramo-lo em Rm 6, 3ss, lls s . O batismo,
que nos une com a morte e ressurreição de Cristo, libertou os cristãos
do domínio opressor do pecado. Livres, podem viver e agir para Deus
(6, 11). O batismo é a inauguração de uma nova existência. Nova­
mente, no entanto, não devemos entendê-lo entusiasticamente. A
forma futura em 6, 5 e 8 denota nitidamente que a comunhão com
Cristo conserva seu caráter futuro-escatológico. O movimento da
existência cristã em direção do alvo escatológico está iniciado, mas
ainda não concluído. Agora, libertado do pecado, o agir cristão,
juntamente com os membros do corpo, pertence a Cristo, ou melhor,
a Deus. Não se encontra debaixo da lei, mas da graça (6, 14).
Entretanto graça não quer dizer liberdade para o pecado ou para a
carne (cf. Gl 5, 13ss). Pelo contrário, os cristãos agora podem e
devem pôr os seus membros, compreendidos como portadores das

64
ações do homem, como armas à disposição de Deus e da sua justiça
graciosa (6, 12).
Dessa form a o conceito da "justiça" — que nos cap. 3-5 da
epístola aos Romanos servira para designar o agir da graça divina,
um agir que não se pode conquistar por méritos, — recebe um novo
enfoque: Os cristãos devem servir à jusliça de Deus. A justiça é
acentuada, portanto, também no sentido ético. Como contrastes citam-
se injustiça e pecado, aos quais os cristãos não devem mais servir.
O que se realiza na comunhão com Cristo necessita ser expressado
na ação, na ética. Novamente o im perativo revela que o mandamento
d ivin o não foi anulado. A existência sob a graça precisa de cumpri-lo.
O m ovim ento da "nova obediência" perante Deus leva ao alvo da
santificação (6, 19). Uma nova relação de serviço assumiu o lugar da
antiga, que estava sob o pecado (6, 15ss). O emprego reiterado do
term o "m em bros" denota que se pensa na ação física concreta. Toda
a pessoa, inclusive seu corpo, ingressou, mediante o batismo, no
novo "serviço de escravo" para Deus e sua justiça.
f) Com base em Rm 6 será correto falar de uma compreensão
ético-crítica do batismo em Paulo. Ele se alinha com a tradição da
comunidade que, pelo que parece, combinara desde m uito cedo,
quando não desde o início, o batismo e a parênese. Todavia a
explicação e fundamentação teológicas são obra de Paulo. Tomam
como ponto de partida a realidade da incorporação do crente em
Cristo (cf. a paralela I Co 10, 16s, no tocante à ceia do Senhor).
Essa realidade, porém, exige ser assumida pelo cristão no agir pessoal
— na obediência ativa.
Por meio do batismo o cristão é engajado no serviço. A lei
transformou-se agora na exortação e orientação prestadia que não
condena nem anatematiza. Cristãos são pessoas atuantes a serviço
do seu Senhor. Mas, visto que ainda vivem na carne, necessitam,
até a parusia, a admoestação norteadora. É o elemento crítico da
ética sacramental. Ele igualm ente transparece m uito bem na con-
ceituação dos coríntios em I Co 3, lss, embora não esteja, nesse
caso, relacionado com o batismo. É preciso, pois, que os cristãos
tenham à sua frente ainda uma exigência que os convoca a concre­
tizarem sua nova existência em Cristo. Retornamos, assim, à fórm ula
"im perativo da graça". Porque o dom ínio opressor do pecado foi
destruído, não mais existe para os cristãos a coação de pecar. Por
outro lado, o apóstolo de modo algum incorre em perfeidonism o.
Com realismo ele vê que as comunidades estão ameaçadas por ten­
tações e recaídas. Sua ética, por isso, representa sempre um chama­
m ento de volta a Cristo, ela é proclamação de Cristo. Evidentemente
a existência cristã não é nenhum sobe-e-desce sem esperança, nenhuma

65
guerra sem vitória, mas a vitória de Cristo sobre todos os poderes
demoníacos está também acima do agir do cristão.
No que tange à doutrina da justificação, Rm 6 demonstra-nos
que o batismo, como acontecimento salvífico historicamente concreto,
liga a justificação (como sentença de Deus) e a ética, conduzindo desse
modo também à ênfase ética no conceito da justiça de Deus. A
justificação, concedida pelo batismo, acarreta conseqüências éticas
concretas para a vida do cristão.
g) A terceira modalidade da fundamentação teológica da ética
é a pneumatoíógica. Aparece sobretudo em Rm 8, lss e Gl 5, 13ss.
A presença do Espírito e a vivência nele possibilitam o "andar" no
Espírito, ou seja, o andar em conformidade com a norma do Espírito
(Gl 5, 25; Rm 8, 4), e produzem o "fru to " do Espírito (amor, be­
nignidade, mansidão, paz, cf. Gl 5, 22). Em suma, o Espírito cumpre
a lei, a exigência de Deus — mas não à revelia dos cristãos, porém
por intermédio do agir deles (Rm 8, 4).
A lei não é contra os que agem motivados pelo Espírito, afirma
Paulo expressamente em Gl 5, 24, o que concorda com Rm 8, 4.
Onde atua o amor, todos os mandamentos são cumpridos (Rm 13,
8-10; cf. Gl 5, 14). No agir pneumático do cristão o agir justificador
de Deus alcança o seu alvo. Mesmo como "pneumatólogo" o apóstolo
permanece o realista que conhece muito bem o poder sedutor do
pecado e da carne. Os gnósticos coríntios oferecem-lhe um exemplo
visível de como é facil tirar falsas conseqüências da certeza do Espírito.
Os entusiastas menosprezam o irmão "fraco". Não compreenderam,
portanto, que a verdadeira gnose inclui o amor. Em I Co 8 e 10
Paulo expõe que, sem a "agápe", Espírito e liberdade pneumática
não têm sentido e valor. Ela em verdade precisa, segundo I Co 13,
lss, de inspirar todos os dons do Espírito, para que não se tornem
vãos e infrutíferos. Espírito sem amor é totalmente inconcebível para
Paulo, o que os três capítulos há pouco citados comprovam incontes­
tavelmente. Talvez seja até correto no sentido de Paulo dizer-se:
Espírito é amor. Andar segundo o Espírito significa amar. Conse-
qüentemente, Rm 8, lss e Gl 5, 13ss constituem, em seu conteúdo,
uma evidente paralela para Rm 6, lls s , apenas revestida de outra
terminologia: A nova relação de serviço do cristão é idêntica ao
andar no Espírito. O Espírito é o renunciar prático às "obras da carne"
(Gl 5, 19ss). Destaca-se aqui com nitidez o caráter normativo do
Espírito divino. Ele é força e vida nos cristãos, demonstradas por ele
no amor, contudo não é uma substância de ação mágica. Espírito
e mandamento, portanto, perfazem uma unidade indissolúvel. Por
esse motivo os gnósticos fracassam no correto agir cristão quando
transformam o Espírito no objeto de arrogância pia e defendem uma
liberdade absoluta. Para Paulo, no entanto, existe somente aquela

66
liberdade que é capaz de se transformar, por causa do irmão, a
qualquer hora em amor (I Co 8 e 10). Também segundo Gl 5, 13s
a liberdade dos cristãos reside em que eles servem um ao outro em
amor.
Não há dúvida de que, com tal fundamentação pneumatológica
homogênea e clara da ética, o apóstolo ultrapassa longe a tradição
parenética que ele encontrara.
Ademais, a unidade de fé e ética se evidencia também pelo fato
de que a exposição sobre o "fru to " do Espírito rompe o círculo das
"virtudes" morais, ao serem designados por fruto do Espírito tanto
a fé como o amor, a benignidade etc. (Gl 5, 22). "Pneuma" é fé e
"éthos" numa só grandeza. Diferenciações modernas, tais como culto
e ética, ou dogmática e ética, são completamente desconhecidas a
Paulo. Ele raciocina numa dimensão acima de tais separações mo­
dernas, a saber, na dimensão pneumático-escatológica.
Será acertado falar, em conexão com Gl 5, de "virtudes" ou
modos de procedimento "pneumáticos"? Na verdade, não transparece
em Paulo de modo algum uma concepção puramente punctiforme
da maneira pela qual atua o Espírito. Amor, longanimidade, mansidão
etc. são efeitos contínuos do Espírito. A expressão "fru to " em lugar
de "obras", porém, dá a entender que toda idéia de um mérito moral
precisa de ser mantida distante do conceito das atitudes pneumáticas.
A pessoa age no Espírito, mas não como se produzisse suas próprias
obras, distintas de Deus e do seu Espírito. E o amor pneumático não
calcula com méritos.
O pensamento de Paulo está em correspondência com a tradição
(cf. os sinóticos), quando ele fornece uma fundamentação escatológico-
futura da ética e adverte os cristãos diante de pecados antigos e novos,
apontando para o Juízo vindouro. Isso ocorre em I Co 6, 9, onde
ele afirma que os injustos — e os coríntios praticam a injustiça,
quando brigam e depois correm para os tribunais pagãos — não her­
darão o reino de Deus (cf. também a menção do Juiz, Cristo, em
II Co 5, 10). A terminologia ("reino de Deus", "herdar") revela clara­
mente que Paulo está lidando com os conceitos da tradição comuni­
tária. Contudo as outras formas de fundamentação que chegamos a
conhecer no apóstolo sem dúvida alguma ocupam uma posição
preponderante. Importante é que a situação histórico-salvífica foi
fundamentalmente alterada com a morte e ressurreição de Cristo.
Razão pela qual os cristãos agora vivem no presente da salvação e
não exclusivamente diante do futuro do Juízo vindouro. Assim
tornaram-se possíveis as fundamentações cristológica, sacramental e
pneumatológica da ética.

67
2. Lei e liberdade
Não é a nossa tarefa expor aqui toda a doutrina da lei em
Paulo e sua relação com a cristologia, a doutrina da justificação e
a pneumatologia. Uma tarefa que, na verdade, cabe à "teologia do
Novo Testamento". A nós interessam, no entanto, os principais
aspectos éticos.
Costumamos falar de liberdade jurídica, social e política, de
liberdade de consciência e de imprensa, e assim por diante. Todas
essas liberdades "mundanas" Paulo desconhece. O seu conceito de
liberdade requer ser entendido de modo puramente teológico, pois
se refere à liberdade escatológica, concedida aos filhos de Deus
pela graça. De acordo com Rm 8, 31ss ela é, por isso, a liberdade
de todos os poderes e autoridades demoníacas, sendo que se origina
do amor de Deus manifesto em Cristo. O homem, portanto, não
detém tal liberdade pela sua natureza humana, ao contrário, ele é
chamado à liberdade por Deus (Gl 5, 13). No contexto da controvérsia
com a gnose a liberdade pode ser denominada "exousía" (p. ex.,
I Co 8, 9). Palavra essa que significa o poder de realizar algo, um
poder baseado sobre o Espírito Santo. Os "fortes" em Corinto, reme­
tendo-se ao Espírito, estão nesse caso com razão, malgrado desco­
nhecerem o vínculo entre liberdade e amor e desconsiderarem, por
isso, os irmãos fracos.
Os capítulos Rm 5-8 mostram detalhadamente que essa liberdade
escatológico-pneumática possui quatro componentes. Constitui-se de:
a) liberdade do pecado,
b) liberdade da "carne", isto é, da estruturação e orientação
global antidivina da existência humana,
c) liberdade da morte que representa o resultado final obriga­
tório de uma vida na carne e no pecado. A morte não deve ser
entendida apenas biologicamente, como término natural da vida
humana, mas como Juízo, isto é, como separação definitiva do homem
de Deus. O contrário de morte nessa acepção seria, portanto, vida
eterna.
d) O quarto aspecto da liberdade do cristão é a liberdade frente
à lei, como a proclama sobretudo a carta aos Gálatas (3, Iss). Se o
lugar da lei, que não pode proporcionar a salvação, fo r ocupado
pela condição de filho, os cristãos estarão livres do serviço escravo
debaixo da lei. Contudo, na liberdade, não devem dar nova ocasião
à carne (Gl 5, 13). A liberdade cristã não é uma liberdade para
pecar, mas para amar (Gl 5, 13ss), para o serviço ao próximo, para
toda sorte de boas obras. O que significa, portanto, que o cristão
também está eximido, pela liberdade, da sujeição ao próprio eu,
que é característica para a existência sob o poderio do pecado e da

68
r

carne. Cristãos pertencem a Cristo, o Senhor, e vivem para ele


(Rm 14, 7s; cf. I Co 6, 19: Não mais pertencem a si mesmos).
Resulta daí uma equação característica para o pensamento de
Paulo, qual seja: A liberdade é serviço sob o senhorio de Cristo ou
da graça (cf. Rm 6, 14ss). Tal senhorio ocupou o lugar da lei (cf.
Rm 10, 4; Gl 3, 13ss: Cristo nos ridimiu da maldição da lei). O
"escravo" de Cristo é a pessoa verdadeiramente livre, é filho e
herdeiro de Deus, para o qual se cumprem todas as promissões
divinas (Gl 3, 15ss; 4, lss). A equação referida naturalmente vigora
apenas sob a condição da salvação que se realiza em Cristo.
Ambos os lados da questão adquirem sua expressão clássica
na confissão universal da liberdade em Cristo, em I Co 3, 21-23:
"Tudo é vosso" — até mesmo o mundo, a vida e a morte — , "vós,
porém, sois de Cristo, e Cristo de Deus". A dependência do serviço
a Cristo faz, por conseguinte, dos cristãos senhores do mundo. O
serviço da justiça (Rm ó .ló ss) realiza-se na liberdade, que é idêntica
com a obediência da fé, ensinada por Paulo.
O "nómos" (lei) perdeu, pois, todo o seu poder, tanto o de
condenar o pecador quanto o de regulamentar o agir como se fosse
obrigatório fazer "obras da lei". No lugar da condenação aparece
a graça, e a regulamentação da vida dos que crêem em Cristo é
assumida pelos imperativos da graça, os quais expressam a santa
vontade de Deus, preservando assim a lei "pneumática" de Deus
(Rm 7, 12 e 14). Comprova-se de novo que Paulo está muito longe
de qualquer antinomismo, isto é, de qualquer rejeição absoluta da
lei entendida como orientação divina. Nem os entusiastas gnósticos
nem os modernos podem reportar-se a ele. Paulo até é capaz de
declarar que circuncisão ou incircuncisão nada valem, mas que o
decisivo é "guardar os ordenanças de Deus" (I Co 7, 19). Pelo mesmo
motivo o apóstolo dirige numerosas ordens específicas às suas comu­
nidades, sem que, no entanto, lhe ocorra o pensamento de que por
meio delas poderia estar ameaçada a liberdade cristã, pois que os
mandamentos orientam para o emprego adequado, para a aprovação
da liberdade de uma pessoa cristã. Não a expõem, pois, ao perigo. A
liberdade pneumática é obediência diante dos mandamentos de Deus.
Acatando a sugestão de Paul Althaus, diferenciaremos, portanto, cla­
ramente entre lei e mandamento: Como "mandamentos denominare­
mos agora os imperativos da graça, as ordenanças pneumáticas, como
as analisamos até aqui.
Transpareceu, assim, a singular dialética do conceito de lei em
Paulo. Ela pode ser descrita em poucos traços, como segue:
a) A lei ritual e cúlíica do Antigo Testamento e do judaísmo
não prende mais de forma alguma a comunidade de Cristo. Foi
substituída pela proclamação do Evangelho e pelos novos sacra-

69
mentos de Cristo, o batismo e a ceia do Senhor, em suma, pelo novo
culto. Por isso também é impossível que o cristão se deixe circun­
cidar (carta aos Gálatas).
b) Persiste a submissão aos mandamentos éticos do Decálogo.
Contudo eles são radicalizados num sentido positivo por meio do amor,
conforme já acontecia na proclamação do próprio Jesus (cf. capítulo
I, item 2). O amor é o "cumprimento" de todos os mandamentos
(Rm 13, 8-10; Gl 5, 14), que deve ser entendido no sentido da
execução prática dos mandamentos. Obviamente isso também é uma
simplificação e concentração da lei toda: "Quem ama ao próximo
tem cumprido a lei" (Rm 13, 8).
Em face da humanidade pecadora, de judeus como de pagãos,
continua em vigor a prédica do Juízo juntamente com o poder con-
denatório da lei divina (Rm 1, 18-3, 20). Unicamente a fé em Cristo
e o batismo podem libertar do Juízo. Deles resulta a nova ética em
que a lei condenatória é transformada no mandamento da graça, que
auxilia e ampara.
c) A função permanente da lei é a seguinte: Ela mantém os
cristãos vinculados à vontade de Deus. Proporciona conteúdo e sentido
à liberdade, de modo que ela não pode ser mais liberdade para a
carne e o pecado (Gl 5, 13; Rm 13, 14; cf. I Co 8, 9). O amor ao
próximo, p. ex., ao irmão fraco, é o cumprimento da liberdade. Gnose
e "exousía" (poder) sem amor não são reconhecimento do Deus
verdadeiro (I Co 8, lss). Anula-se dessa forma a perigosa ambi-
güidade da fórmula libertária gnóstica "tudo me é lícito" (I Co 6, 12;
10, 23).
Certamente continua em vigor que a liberdade é liberdade de
todas as submissões e poderes intramundanos — nesse sentido lhe é
próprio o que P. Tillich chama de elemento "extático" — , contudo
não é liberdade do próximo, porém para ele. A liberdade de amor
não busca o interesse próprio (I Co 10, 24), razão pela qual também
assume por vezes a forma de abnegação e renúncia. Paulo não quer
"comer carne nunca mais" se tal ato fo r motivo de escândalo para
0 irmão fraco (I Co 8, 13). Não posso aproveitar inescrupulosamente
para mim próprio a liberdade que me é concedida pela gnose (cf.
1 Co 8, 9ss e 10, 23ss). A liberdade para comer a chamada "carne
sacrificada aos ídolos", consagrada pelo culto pagão às divindades,
não é uma liberdade absoluta. Pelo contrário, ela é limitada pela
consideração pelo irmão fraco, ditada a nós pelo amor. Minha liber­
dade não se pode tornar um tropeço para o irmão nem oprim ir sua
consciência.
Em Gl 6, 2 encontramos uma fórmula que resume a questão: Levai
as cargas uns dos outros, e assim cumprireis a lei de Cristo." A "lei de
Cristo" conseqüentemente é o mandamento do amor. Não está situada

70
no mesmo nível que a lei de Moisés, motivo pelo qual não pode
figurar como um tipo de substituta para ela. Seria correto afirmar
que essa é uma fórmula precisa para condensar as exigências do
Sermão do Monte, as quais o próprio Paulo interpreta e faz valer
para a nova situação após a Páscoa (cf. Rm 12. 13ss). O termo "lei
de Cristo", por sua vez, é compreensível somente depois da Páscoa.
É muito provável que Paulo o recebeu da tradição da comunidade
helenista. Evidencia-se, pois, que a proclamação ética de Jesus é
reconhecida após a Páscoa também por Paulo e aceita para a comu­
nidade, embora ela se torne agora mandamento do Senhor crucificado
e ressurrecto. Donde se deduz que a palavra "nómos" em Gl 6, 2
nada tem a ver com lei na acepção judaica. Situa-se, portanto, num
nível diferente do que a lei em Rm 7, que salienta e desmascara o
pecado.
Estreitamente relacionada com isso está a expressão do apóstolo
em I Co 9, 19ss. Nessa passagem ele afirma com respeito a si mesmo
que não é um "sem-lei", mas um "énnomos" de Cristo, ou seja, uma
pessoa que vive na lei de Cristo. O português permite-nos apenas
circunscrever o significado da expressão grega. Concluímos que para
Paulo não existe sequer a alternativa "ou lei ou nenhuma lei", visto
que ele está incorporado à lei de Cristo. Paulo é uma pessoa livre,
capaz de tornar-se concomitantemente um judeu para os judeus e um
grego para os gregos, no intuito de servir-lhes com a proclamação do
Evangelho. O que evidentemente não significa que a lei poderia
adquirir novamente a função de caminho para a salvação. Verdade
é, porém, que Paulo está preso à vontade e ao mandamento de
Cristo, não sendo, por isso, nenhum "sem-lei” . Fórmula essa criada
pelos judeus para designar os pagãos. A lei de Cristo, "na" qual
o apóstolo vive e anda, é o mandamento do amor, ora em vigência.
Mais difícil de entender é a frase seguinte: "A lei do Espírito
da vida em Cristo Jesus te livrou da lei do pecado e da morte"
(Rm 8, 2). Não se- impõe a suposição de que, da primeira vez,
"nómos" foi empregado apenas figuradamente, podendo também
ser omitido? O Espírito da vida em Cristo, não uma lei qualquer,
provoca a libertação mencionada. Não obstante, preferimos inter­
pretar essa formulação com ajuda de Gl 6, 2, simplesmente porque
ela continua com a afirmação de que os preceitos da lei se cumprem
"em nós, que não andamos segundo a carne, mas segundo o Espírito"
(Rm 8, 4). Portanto, Paulo fala do cumprimento da lei pelo homem
espiritual. Razão por que o termo acima, "lei do Espírito da vida",
dificilmente pode ter sentido apenas figurado. Pelo contrário, de­
sempenha uma boa função teológica, em analogia à fórmula por
nós analisada, "lei de Cristo". Tal "le i" é idêntica ao Espírito da
nova vida, ou, a Cristo. Por isso é que o mandamento de Deus pode

71
agora ser cumprido na “ nova" obediência por pessoas cheias do
Espírito. Podemos recorrer a uma paralela do evangelho de João:
A lei do Espírito é o "novo mandamento" que Jesus dá aos discípulos
(Jo 13, 34; cf. I Jo 2, 7 s .l0 ; 3, 11.23; 4, 10.19). Dessa maneira
a lei do Espírito vem a ser a lei verdadeira por excelência, que pode
manifestar-se somente com Cristo pelo fato de pressupor a salvação
nele concedida. Cristo, na verdade, não é nenhum "alter Moisés '
(segundo Moisés; Lutero), mas bem poderíamos designar Cristo como
novo "legislador" escatológico, visto ser ele o Senhor que rege a sua
comunidade.
Em tais fórmulas, pois, foi guardada e conservada a verdade
da santa e justa lei de Deus (Rm 7, 12 e 14), que, afinal, não perde
seu valor pelo fato de que os judeus lhe atribuíram o caráter de
mediadora da lei.
Precisamente esse "conservar" — muito embora a "lei do pecado
e da morte" tenha passado e não esteja em vigor para o cristão —
revela muito bem a natureza "dialética" da doutrina paulina acerca
da lei, em especial das fórmulas "lei de Cristo" e "lei do Espírito
da vida em Cristo Jesus".

3. O amor como norma máxima da ética

No item anterior já constatávamos que não é possível falar de


lei e liberdade no sentido paulino sem defini-las pelo amor. Ao que
precisamos de acrescentar mais alguns pontos.
Partimos da circunstância de que Paulo adotou o mandamento
do amor a partir de e junto com a tradição da comunidade (cf. Rm
12, 13ss com Mt 5, 39.44). A continuação do trecho acima denota
claramente os dois elementos-, a transmissão e a nova interpretação
para a comunidade de Roma, à qual Paulo escreve, na situação depois
da Páscoa. Observação idêntica permitem os três capítulos de I Co
8; 10 e 13. Do mandamento do amor do Jesus histórico resultou,
em poucas palavras, o mandamento do amor de Cristo e do seu
apóstolo.
a) Em decorrência disso Paulo pode colocar "pneum a" e "agápe"
na mais íntima relação, como acabamos de constatar com auxílio
de I Co 8 e 10. Segundo I Co 13 o amor é ainda muito mais do que
o maior de todos os dons espirituais, pois sem ele todos os carismas
são sem valor e infrutíferos. O amor é afé maior do que fé e espe­
rança (I Co 13, 13; quanto à exegese, cf. Heinz-Dietrich Wendland,
Die Briefe an die Korinther, NTD vol. 7). O amor é o "fruto do Espírito"
(Gl 5, 22) ou amor gerado no Espírito (Cl 1, 8). Pode ser chamado
de "amor do Espírito" (Rm 15, 30). Foi "derramado em nossos cora­
ções pelo Espírito Santo" (Rm 5, 5). Por isso é e cria nova vida, no

72
sentido escatológico. E o amor divino, que une primeiramente Deus
e o homem e depois se concretiza nas ações dos cristãos. Conse-
qüentemente, ele é divino e humano ao mesmo tempo. Pode ser
exigido dos cristãos e ao mesmo tempo descrito como o seu procedi­
mento — como acontece em I Co 13, 4-7. Poderíamos afirmar que
Paulo copiou a natureza do amor da cruz de Cristo: É um amor
que se sacrifica, se entrega, se põe a serviço. Aqui a ética e a
teologia da cruz estão intimamente interligadas em Paulo. O amor
é a lei orgânica da comunidade e do apostolado (I Co 9, 19ss; II Co
6, 6; 11, 28s). Impele o apóstolo ao serviço dos judeus e pagãos.
Desse modo o apóstolo desenvolveu e reinterpretou teologicamente
a tradição do mandamento do amor a partir de sua concepção teológica
global, isto é, sobretudo a partir da teologia da cruz e do Espírito
Santo como a presença de Cristo e de sua graça (cf. Rm 8, lss; Gl
5, 13ss).
b) Após a Páscoa, torna-se possível para Paulo fundamentar
cristologicamente o mandamento do amor, como demonstra a inserção
do hino cristológico (Fl 2, 5ss) na parênese. Cristo esvaziou-se de sua
natureza divina, tornou-se servo e foi obediente até a morte na cruz.
Como pessoas em Cristo os filipenses devem demonstrar a mesma
humildade e submissão voluntária como Cristo. Em tal humildade
igual à de Cristo cada qual deve considerar o outro superior a si
próprio. A comunidade toda deve estar possuída do amor e o indi­
víduo não deve pensar no que é seu, mas ter em vista o que é dos
outros (Fl 2, lss). Semelhantes admoestações fazem transluzir com
clareza o protótipo da cruz-de Cristo, revelando também a nova
interpretação que Paulo dá ao mandamento do amor após a Páscoa.
Ser conhecido e amado de Deus é o que constitui a verdadeira
gnose, que, por sua vez, se concretiza no amor aos irmãos fracos
(I Co 8, lss). Toda a parênese de Rm 12 e 13 é introduzida e funda­
mentada com a alusão a misericórdia de Deus (12, 1). No contexto
segue-se também a mencionada explicação do mandamento do amor
(12, 13-13, 10).
c) A propósito, a passagem denota também que as fundamenta­
ções teológicas do mandamento do amor, quer uma cristológica, quer
uma pneumatológica, não excluem a compreensão correta da dimensão
mundana do amor, mas muito antes a incluem. Em Rm 13, 1-10 Paulo
compreende o próprio enquadramento dos cristãos sob o poderio
político como um ato de humildade da comunidade, o qual inclui
também concretamente o pagamento de impostos (13, 6s).
I Co 13 também trata do amor como uma realidade escatológica
e pneumática que não desaparecerá com a consumação escatológica
(13, 8-13). No fundo, a amor de Deus, de Cristo e dos cristãos é
um só. Se é de Deus e de Cristo, ele se patenteia da mesma forma

73
como agir e proceder dos cristãos (13, 4-7). A "agápe" divina trans­
forma pessoas, para serem seus portadores e praticantes. Por um
lado ela é absolutamente transmoral, porque pneumática, e tudo
menos do que "simples moral". Por outro lado, porém, ela sem
dúvida se transforma em "moral", ao provocar ações concretas de
auxílio por parte dos cristãos, dentro e fora da comunidade. Visando
em Gl 5, 6 a relação entre fé e amor, Paulo fala da fé que atua por
meio do amor — nesse sentido as obras estão, para Paulo, incluídas
na fé. Ele desconhece um amor que não seja atuante. É outro ponto
em que ele está acorde com a tradição de Jesus. Não podemos
encontrar vestígio algum de que ele cogite simplesmente de uma
"intenção" de amor. Uma vez que a "agápe" é uma realidade divino-
humana, ela resiste a tcda sorte de espíritualizações. E a única maneira
pela qual ela pode tornar-se também a rainha e o cumprimento dos
demais dons (! Co 13, Iss). Sem o amor atuante e prático sabedoria,
conhecimento, profecia, fé operadora de milagres, doação de esmola
e até martírio são fúteis.
Uma tal ética de amor contrasta de modo marcante com toda a
Antiguidade e sua ética de variações múltiplas. O amor por certo não
é a virtude aristocrática dos sábios. Ele não resulta da razão do
homem que participa no "lógos" que rege o mundo. Não é a virtude
do cidadão da "pólis" ou do Império. O amor tampouco pode ser
inculcado, de modo que fosse fruto de um processo educacional, pois
ele é a dádiva de Deus em Cristo, é realização da salvação. A
"agápe" também não é "éros", no sentido de um amor pelas idéias
do bem, do verdadeiro e do belo, e pela manifestação das mesmas
nas pessoas humanas, muito embora a "agápe" possa englobar e
moldar todas as formas de interdependência humana à medida que
vai penetrando no mundo. Todavia essa força da "agápe" Paulo ainda
não tinha condições de enxergar, porquanto na sua época a ética da
"agápe" apenas acabara de subir ao palco da história da sociedade
humana.
De forma semelhante a ética cristã abordou somente mais tarde
a relação entre "agápe" e a justiça como virtude ético-social, consi­
derada pela ética da Antiguidade a virtude suprema. Para tanto
podia oferecer um impulso a observação de Paulo de que o amor não
se alegra com a injustiça, mas com a "verdade" (I Co 13, 6). Seguindo-
se o modo de pensar veterotestamentário e judaico, verdade aqui quer
significar a justiça, não no sentido de uma virtude humana, mas de
uma atitude exigida por Deus, uma atitude conforme a Deus. De
qualquer modo está certo que a "agápe" não encobre as diferenças
entre justiça e injustiça, bem e mal. Ela é capaz de não apenas
respeitar o bem no sentido moral da sociedade constituída, mas até
de proteger e exigi-lo (Rm 13, 3s). Assim incluí-se já aqui na "agápe"

74
a virtude que demanda bom comportamento social. Paulo diz aos
filipenses que os cristãos se devem aplicar à virtude e a tudo que
é de boa fama e causa louvor entre os homens (Fl 4, 8). Semelhante
admoestação, sem dúvida acorde com a moral vigente na sociedade, e
cuja citação por parte de tão grande teólogo bem poderia causar espé­
cie, encontra-se sob o título do mandamento do amor: "Seja vossa
benignidade conhecida de todos os homens" (Fl 4, 5). O chamado ao
amor em todas as direções está por sua vez relacionado com a procla­
mação escatológica: "Perto está o Senhor" (Fl 4, 5).
Deparamos, portanto, com o fato altamente significativo de
que a exortação de Paulo, de não se ajustar a este mundo (Rm 12, 2),
não conduz de forma alguma à indiferença diante das virtudes
mundanas e socialmente aceitas da justiça, do comportamento disci­
plinado, etc. Temos, pois, no próprio Paulo, e não somente nas pos­
teriores cartas pastorais, um ponto de partida importante para que mais
tarde se desenvolvesse uma ética cristã integrada na sociedade.
Pôde partir desse ponto também a posterior conexão das três "v ir­
tudes principais" cristãs, fé, esperança e amor, com as quatro virtudes
cardinais da Antiguidade. Resultou e ainda resulta daí um dos prin­
cipais problemas da ética cristã em todos os tempos: Como deve ser
concebida a relação da "agápe" para com tais virtudes? Em semelhante
síntese, pode ela continuar sendo o que é, e sob que condições?
Obviamente o Novo Testamento ou Paulo não podiam responder essa
questão, surgida somente mais tarde. Claro está apenas que Paulo
considera necessário que o amor se expresse e concretize também
na aceitação e adoção das virtudes da sociedade.
d) Outro problema da ética cristã posterior é a pergunta pela
relação entre amor próprio e amor a Deus, respectivamente, ao pró­
ximo. Um problema que Paulo também não levantou. Tornou-se
candente pelo contato mais estreito com a ética filosófica, mais ou
menos a partir da metade do segundo século da era cristã, é patente,
no entanto, a clara oposição da "agápe" contra toda sorte de querer
ou servir-se a si próprio. Em parte alguma Paulo faz do amor pró­
prio um padrão para o amor ao próximo, como fizeram éticos cris­
tãos posteriores tomando acriticamente como base uma concepção
do eu, da pessoa, proveniente da filosofia grega. Se, como em Paulo,
o amor de Cristo fo r a norma suprema, será por natureza de todo
impossível empregar justamente o amor próprio como o referido
padrão. Provavelmente Paulo teria considerado a pergunta pela vali­
dade do amor próprio como sendo um pensamento carnal. Em todos
os casos, ele não reflete sobre ela em lugar algum. Confrontou-se
com ela, é verdade, expressada em forma religiosa, no egoísmo
grosseiro e na glorificação própria dos gnósticos coríntios (I Co 8 e 10),

75
ocasião em que entrava em cogitação unicamente uma condenação
unívoca.
e) A "agápe", como Paulo a encara, precisa, outrossim, de ser
protegida diante do mal-entendido do heroísmo. O amor não consiste
em feitos excepcionais de heróis. I Cor 13, 4-7 são palavras endere­
çadas a todos os cristãos e descrevem uma atuação possível para cada
cristão. Autora desse procedimento não é uma classe especial de
cristãos heróicos. Os feitos do amor são cotidianos, não-heróicos e
não-espetaculosos. O cristão justamente não os pratica para brilhar e
sobressair. Pelo contrário, deixa-se determinar completamente pelo
outro: O que o irmão ou, num sentido lato, o próximo necessitam,
isso precisa de ser feito. Conforme já vimos, Paulo demonstra em
I Co 8-10 que é totalmente descabido remeter-se a reconhecimento
e liberdade, em contraposição a esse amor. A necessidade do irmão
deve reger a ação do cristão, mesmo na forma da renúncia. Pensa­
mento idêntico Paulo expressa numa situação semelhante, em Rm
14, Iss e 15, Iss onde ele se defronta também com os grupos dos
fortes e dos fracos. Sem dúvida a liberdade de comer existe com
razão. Nisso Paulo concorda com os fortes. Mas exclusivamente o
amor edifica a comunidade, não o comer ou o deixar de comer. Por
isso é preciso levar em consideração o irmão fraco na fé. O irmão
é o limite de nossa liberdade! Exclui-se a interpretação "carnal" da
liberdade. Embora não sejamos obrigados a esposar a convicção dos
fracos, não devemos sobrecarregar nossa consciência. Quando, porém,
não se apresenta nenhum risco para o irmão, a liberdade conserva
sua validade. — De forma análoga é preciso, segundo Rm 14, Iss,
que os membros da comunidade se abstenham do falso julgamento
mútuo, porque contraria o amor. Isso é válido para ambos os grupos.
Por isso os cristãos devem acolher-se mutuamente, assim como Cristo
os acolheu a todos (Rm 15, 7). Todos vivem e morrem para o seu
Senhor (Rm 14, 7s). Os fortes têm a obrigação de suportar a
fraqueza dos outros (Rm 14, 13-15, 6), embora esteja certo que nada
(nenhum alimento) é impuro em si (Rm 14, 14; cf. I Co 10, 26: "Do
Senhor é a terra e a sua plenitude"). Quem, no entanto, leva o
irmão a conflitos de consciência por causa do seu alimento, não anda
segundo o amor (Rm 14, 15). O conteúdo da fórmula "segundo o
amor" é exatamente paralelo ao "vive r no Espírito" de Gl 5, 25,
ou ao andar "segundo o Espírito" (Rm 8, 4; veja acima).
f) Fato é que Paulo não procedeu a uma elaboração sistemá­
tica da anteposição do mandamento do amor a todos os mandamentos
isolados — afinal, não escreve nenhum tratado de ética! A anteposição,
contudo, transparece em alguns lugares com nitidez, quais sejam, Rm
13, 8-10, no que se refere ao Decálogo; igualmente em Gl 5, 22
e Rm 12-13 bem como 14, Iss. Conseqüentemente torna-se compre-

76
ensível por que Paulo pode enaltecer o amor como o caminho que
conduz muito mais longe que todos os demais (I Co 12, 31) e por
que ele o distingue como o "vínculo da perfeição" (Cl 3, 14), maneira
pela qual resplandece novamente sua natureza transmoral. A partir
dessas afirmações igualmente se poderá entender por que Paulo
vê no amor o cumprimento da lei (Rm 13, 8ss; Gl 5, 14). Paulo
interpreta, por princípio, a lei a partir do amor, e não o amor a partir
da lei como o judaísmo.
No que tange à função dos mandamentos isolados, a anteposição
do mandamento do amor de modo algum os dissolve ou desvaloriza
(cf. I Co 7, 19). Pode-se afirmá-lo, p. ex., em relação a cada manda­
mento do Decálogo. O mesmo vale para as instruções específicas a
cônjuges, viúvas, esposos num matrimônio misto, e noivos, em I Co
7. Os mandamentos específicos delimitam a ação cristã contra a
impureza, impudicícia, avareza e outros pecados enumerados nos
catálogos de vícios. Designam, portanto, perigos concretos que
ameaçam a comunidade e simplesmente por essa razão são de todo
imprescindíveis. Os pecados são concretamente citados — o que ocorre
também com Paulo. Preserva-se, desse modo, o conceito do pecado
de tornar-se abstrato, característica tão freqüente para a proclamação
de nossos dias. "O " pecado possui sempre uma forma concreta "nos"
pecados (plural). Recordando a tradição dos chamados catálogos de
vícios, será lícito afirmarmos que a enumeração de um maior número
de delitos foi transmitido a Paulo pela tradição, enquanto que constitui
obra do próprio Paulo a interpretação teológica rigorosa "d o " pecado
e de seu poder de dominar sobre o homem, pois que esse conceito já
revela um grau superior de abstração e reflexão teológicas.
4. A ética de Paulo como ética comunitária
A ética paulina tem em comum com outras formas da ética neotes-
tamentária o fato de ser ética comunitária. Que significa isso?
a) Significa em primeiro lugar que essa ética pressupõe a
realidade histórico-social da comunidade, da Igreja. Ser cristão signi­
fica estar na Igreja. Com a parábola do corpo em I Co 12, 4ss Paulo
descreveu a ligação de todos os membros do corpo entre si como
uma unidade indissolúvel de carismas e serviços distribuídos a cada
um. Todas as exortações sempre pressupõem essa realidade da
Igreja. Como o lugar e a comunhão da concretização da salvação,
a Igreja está nitidamente destacada do "m undo" que, sem a salvação,
está subjugado pelos poderes do pecado, da carne e da morte, dos
quais Cristo libertou a comunidade (Rm 5-8). Paulo sabe naturalmente
muito bem, e também o diz aos coríntios, que não se pode "sair do
mundo" (I Co 5, 10s). Não obstante, os cristãos não devem viver
em comunhão com impuros ou idólatras, roubadores, etc., nem tam-

77
pouco com irmãos que se abandonam a semelhantes pecados. São
eles "os de fora" (I Co 5, 12), isto é, os que estão do lado de fora
da comunidade. Por esse motivo é necessário que se exclua da
comunidade aquele pecador que — uma ocorrência pior do que entre
os pagãos — tem como mulher a esposa de seu pai (I Co 5, Iss). Visto
que a comunidade fracassou nessa questão, o apóstolo logo procede
pessoalmente à condenação e ação (I Co 5, 3ss). Para o apóstolo é
à comunidade que cabem tais decisões éticas. Se ela não as toma,
recebe severa reprimenda do apóstolo. Desse modo sua ética se
patenteia como ética para a comunidade, com a finalidade de manter
essa última junto de Cristo e, simultaneamente, instruí-la a tirar as
corretas conseqüências de sua existência em Cristo.
Intenção idêntica transparece em I Co 6, lss: Cristãos de Corinto
contendem em torno de suas propriedades e levam a questão a tri­
bunais pagãos. Paulo declara que semelhante procedimento é absolu­
tamente impróprio para uma comunidade de Cristo, porque os "santos"
um dia hão de julgar o mundo (I Co 6, 2). Os coríntios devem, pois,
decidir tais questões jurídicas dentro da comunidade, tomando por
árbitro um "sábio". Sim, Paulo dá mais um passo decisivo, em comum
acordo com o espírito do Sermão do AAonte: Cristãos não devem exercer
injustiça, mas sofrê-la (I Co 6, 7ss). Adverte-os lembrando que quem
cometer injustiça não herdará o reino de Deus (I Co 6, 9). Tal funda­
mentação escatológica é acrescida, em seqüência, por uma segunda,
cristológica, a saber, aquela "anamnese de Cristo" que até aqui de­
nominamos chamamento de volta a Cristo. Os coríntios sem dúvida
foram impuros, adúlteros, idólatras, ladrões, etc., "mas vós vos lavastes,
mas fostes santificados, mas fostes justificados, em o nome do Senhor
Jesus Cristo e no Espírito do nosso Deus" (I Co 6, 11). Está dada, pre­
viamente, a realidade da justificação e santificação. Cabe agora aos
coríntios tirarem as conseqüências éticas e apropriarem-se eticamente,
no agir pessoal, da salvação que lhes foi concedida no batismo
("lavar-se"). Transparece, pois, também a vinculação estreita entre
batismo e parênese. A comunidade encontra-se face ao mundo como
uma grandeza social e ética independente e tem que limitar-se, por
meio de seu comportamento, diante dos pecados deste mundo pas­
sageiro. Essa é, por assim dizer, a característica contramundana da
comunidade, que constitui uma premissa de toda a ética do apóstolo.
A norma máxima do agir contramundano da comunidade é, como
vimos no item 3, o mandamento do amor, em vigência por causa da
aceitação e do reconhecimento da tradição sobre Jesus.
O fato de que o apóstolo emprega continuamente as palavras
"nós" e, respectivamente, "vós" revela como a comunidade é sobre­
maneira encarada como uma unidade, como "corpo". Paulo nada
sabe da autonomia ética do indivíduo, pois que o processo moderno

78
de individualização começou somente muitos séculos mais tarde. Sem
dúvida o cristão pode e até deve agir, amar, evitar a injustiça, etc.
como indivíduo — Paulo não é coletivista — , mas fará tudo isso como
membro da comunidade. As contraposições modernas, tais como
"cristão — Igreja" ou "indivíduo — sociedade" são completamente
estranhas a Paulo. Cada uma de suas afirmações sobre a comunidade
o demonstra. Contudo, uma vez que o Espírito de Deus vivifica e
orienta a comunidade, inexiste também a heteronomia (domínio es­
tranho) do todo sobre o indivíduo. A pessoa, portanto, não é escrava
de uma hierarquia. Se Paulo por vezes exige categoricamente submis­
são de suas comunidades, fá-lo como apóstolo de Cristo e por causa
da obediência a Cristo (II Co). Em resultado, a ética comunitária
também desconhece a moderna distinção entre ética individual e ética
social.
No que se refere à relação dos cristãos para com as pessoas fora
da comunidade, verificamos que eles devem evitar os pecados do
mundo. A comunidade precisa de distinguir-se do mundo, dando
provas disso pela sua vivência. O mundo será futuramente colhido
pelo juízo de Deus, no qual a comunidade dos santos há de participar.
0 que não impede, conforme vimos, uma relativa aceitação da moral
da sociedade constituída daquela época (Fl 4, 8; Rm 13, lss). Caso
idêntico se apresenta na adoção da tradição dos catálogos de normas
para a vida doméstica por intermédio de Paulo (veja abaixo).
O objetivo da ética comunitária, dirigido para dentro da comuni­
dade, poderia ser descrito da maneira mais adequada pelo termo
"oikodom é", isto é, edificação (termo derivado da palavra para "casa").
Em prol da edificação Paulo luta na controvérsia com os gnósticos, em
1 Co 8-10. Os "fortes", cônscios de sua liberdade e de seu conheci­
mento (p. ex., de que se pode comer a carne consagrada aos deuses),
devem permanecer na unidade amor da comunidade, não se contra­
pondo, vaidosos, como aristocracia religiosa, aos "fracos", que não
possuem o mesmo discernimento. Todos os dons espirituais precisam
de ser medidos pela contribuição que dão à edificação da comunidade
(I Co 12 e 14). Resulta daí a diferença entre o valor do chamado
"falar em línguas" (glossolalia), extático, e a profecia, mais apreciável.
Todos os dons espirituais e todos os portadores do Espírito devem
contribuir para a edificação da comunidade. A comunidade vive da
pluralidade de tais carismas (I Co 12, 4ss), dos quais nenhum tem o
direito de desalojar ou substituir o outro. Na unidade do corpo todos
os diferentes órgãos são necessários e indispensáveis. A comunidade
não consiste somente em apóstolos, ou em profetas, ou em professores,
ou em faladores de línguas, etc. (1 Co 12, 12ss 28ss). Todos precisam
de inserir-se no edifício ricamente subdividido da comunidade. Tam­
bém os dons mais modestos são honrados. Por isso Paulo não cogita,

79
p. ex., em proibir o falar em línguas extático. Pelo contrário tanto
o amor como a ordem requerem que cada pneumático tenha consi­
deração para com o outro nas reuniões de adoração a Deus. Não
devem falar em conjunto nem confusamente. Deve reinar na comu­
nidade a boa ordem da paz (I Co 14, 26ss), pois Deus não é o Deus
da confusão, mas da paz (! Co 14, 33). Por isso Paulo também coloca
sabiamente a "agápe" num nível muito mais elevado que os outros
carismas. Unicamente o amor é capaz de preservar a unidade fra­
ternal da comunidade e, no entanto, indicar a cada um dos carismas
o seu justo lugar. Em Paulo não podemos encontrar a coloração cin­
zenta de um cristianismo genérico e indiferenciado que torna as
comunidades de hoje freqüentemente tão enfadonhas e paralisadas.
Por fim , deve-se apreciar o fato de que no fenômeno da comu­
nidade de Cristo se manifestaram na história uma ordem social
absolutamente' nova e uma estrutura sócio-religiosa até então desco­
nhecida. Segundo a sociologia cultural de Alfred Weber, podemos
caracterizá-la como a estrutura de comunidades missionárias dinâ­
micas e pneumáticas que possuíram, não por último devido ao redu­
zido número de membros, uma proporção espantosa de integração
social e poder de fusionamento. Fato que se expressa nitidamente
na consciência dessa Igreja de serem eles os santos, ou melhor, os
por Deus santificados, bem como, simultaneamente, na auto-separação
da comunidade diante do mundo. Aqui devem ser procuradas a
sede e a origem do poder da Igreja de conquistar o mundo, da Igreja
que haveria de infiltrar-se paulatinamente, subindo de baixo, na
sociedade do Império.
Igualmente devemos avistar aqui a raiz de muitos problemas
da ética cristã e ética social posteriores. "Igreja e Estado", "Igreja
e sociedade", ,,Igreja e nação" etc. são questões que podiam surgir
somente quando a nova grandeza social "Igreja" se colocava diante
do " mundo" e de todas as suas ordens sociais (matrimônio, família,
Estado, sistema econômico, etc.). Em proporção cada vez maior tal
acontecimento veio a ser um fator dinâmico e transformador da
história da sociedade até os dias atuais. A "ética comunitária" sofreu,
por isso, uma série de mutações e novas sínteses com a moral mun­
dana, principalmente desde o séc. IV, quando a fé cristã se tornou
religião oficial do Império e as massas afluíram à Igreja.
Evidentemente não se pode ainda falar de tais problemas na
época de Paulo. Contudo o apóstolo expressou com a máxima clareza
e firmeza a premissa de que a comunidade de Deus e de Cristo está
no mundo, convocada para levar o Evangelho ao mundo dos povos
e autorizada a amar. Desse modo tanto o fenômeno da Igreja como
a concepção paulina de Igreja constituem-se na base e na pré-condição
da ética de Paulo. Por conseguinte, a ética de Paulo é parênese

80
concreta, possuindo de ponta a ponta caráter poimênico, quer esteja
o apóstolo cuidando de comunidades inteiras, como as da Galácia ou
de Corinto, quer ocupe-se ele principalmente com grupos distintos
dentro de uma comunidade, como em I Co 7-10.
Também em sua ética Paulo é, portanto, um pensador funda­
mentalmente "eclesiástico", o que se revela também na sua relação
para com a tradição parenética.
O apóstolo acolhe, conforme vimos, em I Co 6 e Rm 12, o
elemento mais importante da tradição do Sermão do Monte, o man­
damento do amor, juntamente com a exigência de suportar a injustiça
(I Co 6, 7ss).
b) Em segundo lugar Paulo assume da tradição a ética do catá­
logo de normas para a vida doméstica, já firmemente moldado (Cl
3, 18-4, 1) e que mais tarde, na carta aos Efésios (5, 22s) e na
primeira epístola de Pedro (2, 13ss), foi desenvolvido através de
fundamentações cristológicas (cf. o cap. IV, sobre os escritos dêutero-
paulinos). Trata-se, no caso, de instruções para o lar e seus diferentes
grupos: esposas, maridos, crianças e escravos, ou, respectivamente,
proprietários de escravos. Pressupõe-se e ao mesmo tempo se aceita
a estrutura da casa configurada de forma hierárquica e patriarcal.
Motivo pelo qual predomina a exigência da obediência. Ela vale
para mulheres, crianças e escravos. Representante legal da casa é
exclusivamente o homem. Apesar de algumas tentativas de emanci­
pação, não era possível naquela época falar de "igualdade de direitos"
da mulher, na moderna acepção da palavra. Também no judaísmo
a mulher estava subordinada ao homem, tanto do ponto de vista
cultual como jurídico. As exortações des catálogos de normas para
a vida doméstica são, pois, mundanas e social-seculares. Pagãos
como judeus têm possibilidade de reconhecer-lhes a validade.
Por outro lado, porém, pode-se constatar o processo de cris­
tianização na própria forma do catálogo de normas para a vida domés­
tica, reproduzida por Paulo. As mulheres devem estar sujeitas aos
maridos, "como convém no Senhor" (Cl 3, 18). As instruções para os
diversos grupos da casa são generalizadas quando se afirma: "Tudo
quanto fizerdes, fazei-o de todo o coração, como para o Senhor, e
não para h o m e n s ...A Cristo, o Senhor, servi" (Cl 3, 23s). Mesmo
que se aceite, pois, o conteúdo da moral do judaísmo helenista, ela
passa a ser legitimada agora por uma nova autoridade, a saber, por
Cristo, o Senhor divino. Dessa maneira, no entanto, principia-se o
processo de relativização das autoridades e dos poderes sociais, um
processo como a Antiguidade não o conhecia. O patrão da casa, o
pai, o proprietário de escravos, doravante não possui mais autori­
dade absoluta. Aos senhores é dito que eles possuem um Senhor
no céu (Cl 4, 1), razão pela qual devem tratar os escravos "com

81
justiça e eqüidade". Todos são agora responsáveis perante o "kyrios"
Cristo. Para esse Senhor toda a ação na casa deve ser realizada, ele,
e não os homens recebem a obediência no verdadeiro sentido da pala­
vra. Os membros da comunidade servem a Cristo, quando mantêm a
ordem na casa. Dessa forma a relativização da autoridade dos homens
e proprietários de escravos traz consigo a legitimação e fundamen­
tação de sua autoridade. Nesse sentido é que se pode falar, no que
se refere aos catálogos de normas para a vida doméstica, de um
"patricarcalismo relativizado" (Friedrich Karl Schumann).
Impõe-se sobretudo ainda a pergunta do que significa "amar"
na admoestação aos maridos: "Maridos, amai as vossas esposas"
(Cl 3, 19). Ela se refere apenas ao amor natural, matrimonial entre
homem e mulher? Distinguindo-se da tradição original, Paulo talvez
tenha lido a palavra "amar" com os seus olhos. Entende-a no sentido
do amor ao próximo, da "lei de Cristo". Então 3, 19 seria, em seu
conteúdo, paralelo a 3, 18, onde lemos: "como convém no Senhor".
Ademais, com o amor "natural" provavelmente não é necessário
preocupar-se especialmente. Compreendido desse modo, o catálogo
de normas para a vida doméstica inicia a grande luta contra o egoísmo
que é próprio ao prazer sexual e ao "éros", e que ameaça, por meio
deles, o relacionamento matrimonial.
A nova autoridade do Senhor divino influi igualmente sobre
a posição dos escravos, embora não altere nada na sua sorte, do
ponto de vista legal. Seus senhores, contudo, estão agora sujeitos
a Cristo, possuem acima de si um Juiz divino, ao qual precisam
prestar contas. Por isso devem tratá-los com justiça e eqüidade. No
sentido ético os escravos conseqüentemente não são mais despro­
vidos de direitos. Merece ser mencionado que o catálogo de normas
para a vida doméstica nem sequer menciona os direitos do homem,
sobre os quais a sociedade antiga na verdade tinha tanto o que
falar.
Hans Conzelmann realçou corretamente (no excurso "Die
Haustafeln", sobre Cl 3, 18ss, em NTD, vol. 8) que os catálogos de
normas para a vida doméstica se baseiam sobre uma premissa esca-
tológica, razão pela qual podem relativizar as autoridades mundanas.
"A cidadania é o exercício da relação escatológica diante do mundo"
(op. cit., p. 152). Impossibilitou-se, assim, ao mesmo tempo todo tipo
de entusiasmo: Os cristãos permaneceram no matrimônio e na casa
e não enveredaram pelo caminho do ascetismo radical, como uma
parte dos gnósticos. Não colocaram o reino de Cristo em lugar das
ordens sociais mundanas. O amor de Cristo, no entanto, pode agora
in flu ir sobre o amor dos cônjuges, sobre a relação entre pais e
filhos, etc.

82
O "éthos" cristão-civil dos catálogos de normas para a vida domés­
tica constitui realmente a origem e fonte de toda a ética cristã pos­
terior, pois também ela tinha a tarefa de proceder a uma aceitação
crítica da tradição, uma aceitação que conjuga entre si a relativização
e a legitimação dos vínculos sociais. Os catálogos de normas para a
vida doméstica tornaram-se dessa maneira o modelo da ética cristã-
mundana posterior até o dia de hoje.
Por intermédio dos catálogos de normas para a vida doméstica
a Igreja primitiva ingressa, pois, — um momento histórico suma­
mente significativo! — pela primeira vez numa relação concreta com
uma das instituições sociais mais importantes de todos os tempos,
a saber, matrimônio e família, inclusive os escravos. Evidencia-se
que a Igreja não pretende ser uma comunidade ascética à margem
da sociedade, mas que ela engloba os matrimônios e as casas, como,
aliás, também se batizaram famílias inteiras durante a missão. Inicia
aqui a história do matrimônio e da fsmília "cristãs", de amplas
repercussões, e que se desenvolveu no sentido da aceitação crítica
acima descrita. Como uma ordem social mundana está sendo inte­
grada dentro da comunidade, pode-se notar também desde logo o
problema da natureza mundana de tais estruturas sociais, pois não
foi a Igreja quem criou matrimônio e família, mas encontrou-as como
realidades históricas e sociais já existentes. Por conseguinte, ela teve
de tomar posição diante do fato de que seus membros eram casados,
tinham filhos ou pertenciam à classe dos escravos. Não é possível
eliminar tudo isso do mundo. O próprio Paulo não podia fazê-lo,
apesar de que ele — conforme ainda veremos — pessoalmente vivia
asceticamente e tinha motivos para aconselhar a outros o celibato
(cf. o próximo item 5). A união com matrimônio e família provavel­
mente seja a mais importante, por ser a mais estreita e densa, que a
Igreja fez com o mundo. Em múltiplas variações históricas ela também
se conservou até o dia de hoje. Aceitando a tradição dos catálogos
de normas para a vida doméstica e alterando e fundamentando-a no
sentido cristão, a Igreja prim itiva antes de Paulo tomou uma decisão
de enorme alcance histórico. Paulo reconheceu para si e para as
comunidades por ele fundadas a legitimidade de tal decisão, dando-
lhe apoio com a sua autoridade apostólica.

5. As ordens sociais do mundo

Precisamos de começar novamente na estrutura fundamental


escatológica do pensamento paulino. Entendemos o conceito do
"escatológico" em Paulo num duplo sentido:
1) futu ro , significando o fim do mundo que está por vir, com
o Juízo, a ressurreição dos mortos e a consumação do reinado de
Deus (cf. I Co 15, 12ss);

83
2) presente, no sentido da salvação escatológica que já ir­
rompeu e se manifestou em Cristo. Esse enfoque confere à Igreja
e à existência cristã igualmente um caráter escatológico, visto que
pertencem à época entre a Páscoa e a parusia do Senhor e se
encaminham para o Juízo e a perfeição.
Prevalece por vezes a primeira componente, por vezes a segunda,
contudo elas permanecem sempre ligadas uma à outra.

a) Comunidade e mundo

No que se refere à relação da comunidade com o mundo como


um todo, o mais conveniente é tomarmos como ponto de partida
I Co 7, 29ss, ou seja, o "como se" dialético de Paulo: utilizar-se do
mundo como se não se fizesse uso dele. Cristãos possuem esposas
como se não as tivessem; choram como se não chorassem; ale­
gram-se como se não se alegrassem; relacionam-se com o mundo
como se não se relacionassem; pois é breve o tempo até o Fim;
razão pela qual é conveniente esse estranho distanciamento da
comunidade diante do mundo. Cristãos por certo não deixam de
viver e agir no mundo, contudo eles relativizam essa atuação, não
como céticos, não como pessimistas gnósticos, porém como pessoas
que vivem uma existência escatológica. Paulo está tão longe da
fuga do mundo quanto da paixão por ele. O "como se" dialético, no
entanto, é apenas o reverso da afirmação de II Co 5, 17: Cristãos
são "nova criatura (Criação)", "as coisas antigas já passaram, eis
que se fizeram novas!" É o câmbio escatológico dos tempos, pois
com Cristo o novo "éon" da salvação irrompeu no "éon" passageiro
deste mundo. A presença incipiente do "éschaton" e a nova situação
dos cristãos baseiam-se sobre o feito reconciliador de Deus (II Co
5, 18ss). Na Igreja o senhorio de Cristo já está presente, como início
de uma recriação universal por intermédio de Cristo (Cl 1, 15ss;
2, 10.20). Cristo é o "cabeça" de todos os domínios e poderes do
mundo, uma realidade que está em vigor já agora. Ela constitui o
fundamento da liberdade cristã diante de todos os poderes do
cosmo (cf. I Co 3, 21ss e Rm 8, 37s).
Em vista disso o "como se" de Paulo não deve ser entendido
no sentido de um desprezo cínico, ou cético, ou gnóstico pelo mundo,
porquanto tem atrás de si o fator positivo, a presença da salvação.
Evidencia-se de modo surpreendente que justamente a distância
escatológica perante o mundo, há pouco mencionada, confere à
comunidade a liberdade de aprovar o bem e a justiça no mundo, a
virtude e os valores sociais dignos de louvor (Fl 4, 8). Como já
vimos, não é possível, portanto, falar de uma negação total da ética
da sociedade por parte de Paulo. O "éthos" civil é incorporado na

84
ética cristã. Todavia é necessário lembrar constantemente a premissa
permanente desse processo: Cristo destronou os velhos deuses falsos
e desendemoninhou o mundo. Apenas depois e por causa disso o
mundo pode sobressair com a sua própria ética, em sua natureza
"mundana" ou de Criação de Deus. Se os poderes demoníacos estão
despojados de seu domínio, o mundo não precisa mais de ser temido,
ele se apresenta para os cristãos, por assim dizer, livre e aberto.
Por esse motivo vigora também que: "Do Senhor é a terra e sua
plenitude" (I Co 10, 26). Tudo é puro (Rm 14, 14 e 20) e, em
conseqüência, pode ser desfrutado. — Uma combinação do amor
com o "éthos" civil é viável pelo fato de que ele não se conduz
inconvenientemente e exclui a prática da injustiça (I Co 13, 5ss). Em
I Co 11, 3ss Paulo adota como válido e adequado um costume
amplamente difundido, qual seja, o de que as mulheres soem e,
respectivamente, devem vestir uma mantilha por ocasião do culto.
Sim, ele até se remete uma vez à "natureza" ("physis")-. "A natureza
vos ensina", o que corresponde exatamente à fórmula "natura docet"
em Cícero. Ela provém do pensamento estóico. Contudo a natureza
evidentemente não é para Paulo nenhuma grandeza absoluta. Ele
a encara sobretudo a partir da fé veterotestamentária na Criação.
Porque Cristo pôs a descoberto o acesso à Criação, Paulo pode adotar
despreocupadamente essa fórmula contemporânea. Um pequeno
sinal de sua grande liberdade espiritual! Desse modo a "natureza",
bem entendida, é capaz de dizer o que convém e o que não convém
para a mulher cristã.
Nesse contexto são objeto de intensa discussão as afamadas
frases de Rm 2, 14s, nas quais Paulo parece aproximar-se do chamado
direito natural, ao falar da lei que está inscrita na consciência dos
pagãos — quase que uma paralela pagã para a lei de Moisés revelada
na história, porém na forma da razão moral do homem natural. Por­
tanto também os pagãos, embora não possuam a lei de Moisés, fazem
"por natureza" ("physei") o que a lei exige. Eles são "lei para si
mesmos", e as obras desmandadas pela lei lhes estão "gravadas nos
seus corações" (Rm 2, 15). Por conseguinte, também os pagãos são
capazes de procederem eticamente, um fato que realmente se
constata na prática. Portanto, é correto falar de um cumprimento
natural da lei pelos pagãos, condicionado pela consciência. De forma
semelhante Paulo menciona em Rm 1, 32 que eles têm conhecimento
da exigência jurídica de Deus. É o único motivo pelo qual podem
ser declarados culpados quando não a cumprem. Sua imoralidade
encontra-se, então, em contradição com seu conhecimento ético da
lei. Contudo não é de uma lei moral autônoma que o apóstolo trata
em Rm 2, 14s, mas da exigência do Juiz divino. O que transparece
nitidamente na intenção ascatológica do trecho 2, 15s. Ele fala do

85
dia em que Deus há de revelar os segredos dos corações, e da con­
trovérsia de acusações e desculpas em face do Juízo Final. A lei
não-escrita da consciência e do coração, conseqüentemente, se encontra
numa relação escatológica com Deus, o Juiz. é evidente que seme­
lhante pensamento seja tão importante para Paulo porque desse
modo os pagãos não podem ser desculpados nem eximidos de respon­
sabilidade quando não cumprem a exigência de Deus. Paulo, portanto,
transfere sobre Deus, o Criador e Juiz, a idéia de uma lei cumprida
"por natureza" e inscrita nos corações. Integrou-a, por conseguinte,
na sua teologia escatológica, como também está comprovado que ele
adota e utiliza, no trecho em pauta, conceitos helenístico-estóicos. No
que tange às suas formas de expressão, Paulo decididamente não foi
nenhum purista, uma vez que incluiu nas duas cartas aos Coríntios
também termos gnósticos, tais como o "perfeito", a "pessoa anímica",
etc. Contudo coração e consciência justamente não constituem a ins­
tância suprema. Essa é representada pelo Juiz divino com seu Juízo
futuro. Os pagãos são, como os judeus, responsáveis perante Deus
e estão sujeitos ao seu julgamento. Os conceitos "coração" ("kardía")
e "consciência" ("syneídesis") permanecem claramente separados do
conceito da fé, que é despertada pela graça. Em Rm 2, 15 Paulo trata
da consciência dos pagãos não-convertidos bem como de sua ética.
O pensamento cristão de um direito natural poderá basear-se em
Paulo somente quando essa última distinção e a perspectiva escatoló­
gica global forem nitidamente conservadas.
Ao contexto da relação da Igreja para com o mundo pertence
também a insistência no mandamento do trabalho (I Ts 4, 1 ls). Paulo
dirige-se contra pessoas negligentes e preguiçosas na comunidade de
Tessalônica. Presumivelmente se trata de entusiastas que abusam da
esperança pelo fim iminente à referida maneira. Não obstante, o
mandamento veterotesíamentário do trabalho de modo algum foi
abolido, para Paulo, por meio da esperança escatológica. Em II Ts
3, óss Paulo também aponta para o seu próprio exemplo: Ele trabalha
pessoalmente e não permite que outros o sustentem. Não nos devemos
fiar no auxílio dos outros, mas providenciar nosso pão pelo trabalho
das próprias mãos (I Ts 4, lis ) . Essa ordem é necessária também
porque as comunidades devem ter um comportamento ordeiro aos
olhos dos que estão de fora. De acordo com Cl 3, 22s o trabalho
dos escravos, exercido em obediência, é agora feito para Cristo, e
não par a homens.
Deparamos aqui com a origem de um "éfhos" trabalhista total­
mente oposto à aversão que a Antiguidade tinha em relação ao
trabalho. O cristão não despreza o trabalho físico, como o cidadão
livre da Antiguidade, que o deixava somente a cargo do artífice
e do escravo. Mais tarde foi desenvolvido, a partir da admoestação

86
de Paulo, o pensamento de que o trabalho é o método mais nobre
do controle e da educação (disciplina) cristãs. O trabalho foi rela­
cionado com as virtudes seculares do zelo, da poupança e da parci­
mônia, sobretudo nas éticas luterana e puritana. Já o próprio Paulo,
porém, não diz nada de que o trabalho fosse realizado somente por
causa da aquisição e d o lucro.
Naturalmente não podemos falar em Paulo de uma "ética do
trabalho" elaborada. Quando ele trata do trabalho, ou do poder
político, ou do matrimônio, sempre o faz dentro de situações con­
cretas das comunidades e em vista de incidentes específicos que
tornam necessária uma orientação. Nesse sentido o apóstolo é um
"ético de situação", se bem que não cogite nem um pouco de subme­
ter as normas a uma situação. Não devemos esperar de Paulo uma
ética sistemática do matrimônio e da política. Ele não foi influenciado
pela filosofia social e estatal da Antiguidade ou do final dela. O
encontro intelectual entre ela e a Igreja deu-se somente mais tarde.
Paulo raciocina de maneira completamente parenética e escreve instru­
ções para membros da comunidade por causa de perguntas formuladas
pela comunidade (I Coríntios) ou por causa de incidentes específicos
nas suas comunidades. Também os catálogos de normas para a vida
doméstica não possuem natureza teórica, embora se possa afirmar
com razão que suas instruções têm validade fundamental e geral na
Igreja. O mandamento de que os homens devem amar suas esposas
não é restrito a uma situação apenas, mas vigora para qualquer
comunidade, onde quer que ela esteja. Afinal, ele é uma ampliação
e aplicação do mandamento do amor, da “ lei de Cristo” .

b) A autoridade política

Rm 13, 1-7, o trecho em que Paulo se ocupa com a posição


dos cristãos romanos diante dos funcionários e das autoridades do
Império daquele tempo, também possui, do princípio ao fim , um
caráter parenético. A exegese mais recente o constatou com acerto.
Paulo pressupõe o Império como um dado existente. Ele não discute
a sua legitimidade nem se interessa por como o César conseguiu o
cargo e o poder. Não encontramos em Paulo nenhuma "teologia
do Estado" nem uma reflexão sobre a "essência" do Estado, mas
apenas a exortação: Integrai-vos nesse domínio, porque Deus insti­
tuiu os poderes políticos existentes. Deveis encará-los como servidores
de Deus. Por isso também tendes de pagar vossos impostos de
acordo com a ordem. Nesse apelo, Paulo emprega toda a terminologia
política e jurídico-estatal em curso naquela época, de modo que os
leitores em Roma o podiam entender imediatamente.
Desperta a atenção que o trecho está redigido na linguagem
de uma teologia generalizada da lei (M. Dibelius). Não podemos

87
descobrir o mínimo sinal de uma fundamentação cristológica do
Estado. Mas é preciso observar, em primeiro lugar, que essa exorta­
ção sóbria e realista de submeter-se ao senhorio político se encontra
no contexto de uma explicação do mandamento do amor (Rm 12, 13ss).
Mesmo que "cada qual" (13, 1), judeu como pagão, precisa de subme­
ter-se ao poder estatal, é importante para os cristãos encararem
semelhante ato como uma conseqüência lógica do amor e da humil­
dade, pois com certeza não é por acaso que precisamente nesse
contexto podemos ler que o amor é o cumprimento dos mandamentos
do Decálogo (13, 8-10). "Quem ama ao próximo tem cumprido a lei"
(13, 8). Pelo que constatamos, Paulo também considera a submissão
dos cristãos ao poder estatal como um daqueles mandamentos cum­
pridos pelo amor.
Em segundo lugar é necessário observar que Rm 13 finaliza
com uma perspectiva para a salvação escatológica cada vez mais
próxima (13, lls s ). Por isso os cristãos devem deixar das "obras
das trevas" e revestir-se das "armas da luz". Esse mandamento,
fundamentado inequivocamente na escatologia, não exclui para Paulo
a admoestação anterior, de submissão à autoridade estatal; um ato
que, portanto, de modo algum faz parte das obras das trevas, como
também não faz parte delas o poder político, apesar de se tratar de
"autoridades" pagãs e apesar de naquele tempo não haver nenhum
cristão num cargo governamental. Por conseguinte, pode-se cumprir
um mandamento de Deus em acordo com um costume moral da
sociedade constituída.
De que maneira, porém, Paulo justifica a sua exortação?
Ele encara os magistrados e as autoridades como mandatários e
servidores de Deus, seguindo desse modo uma tradição judaica antiga,
também adotada pela sinagoga helenista da diáspora. Em acordo
com ela, o apóstolo afirma que as autoridades políticas foram orde­
nadas por Deus (13, ls). Isso é evidentemente uma declaração teoló­
gica, de amplas conseqüências, sobre o Estado. Ela apenas não deve
ser entendida mal, no sentido do conceito moderno, e de forma
alguma paulino, das "ordens criacionais". Mas Deus aparece antes
como o legislador universal no sentido global da palavra, pois "cada
qual" sobre a terra precisa de submeter-se ao poder político. Em
todos os casos, o Estado não se origina da vontade humana ou da
natureza social do homem. Nada podemos verificar a respeito da
fundamentação secularizada do Estado no sentido do direito natural,
muito embora a Antiguidade já tenha elaborado semelhantes pensa­
mentos muito antes de Paulo. A delimitação é muito significativa
para toda ética política cristã até hoje.
Somente quem procura aqui uma doutrina acerca do Estado
pode admirar-se de que Paulo não reflete sobre a origem do Estado

88
nem sobre a ascensão ao poder por parte dos atuais detentores do
poder. Para a admoestação concreta a que ele visava, isso na verdade
nem era necessário. Ele podia orientar-se na autoridade existente, o
que bastava para alcançar o seu objetivo.
Já dizíamos que Paulo não filosofa sobre a essência do Estado.
Ao invés disso ele declara algo muito importante sobre a tarefa e a
finalidade da autoridade política, a saber: Ela é a guardiã do direito
e da ordem jurídica. Ela castiga o que transgride a lei, que pratica
a maldade; porém, quem faz o bem não precisa temê-la (13, 3s).
Bem e mal são, no presente caso, conceitos da moral geral da
sociedade, tais como todos os entendem. Outra coisa do que aquilo
que seria socialmente benéfico, o Estado, afinal, nem pode exigir.
Ele se empenha por legalidade, por manutenção das ordens e pelo
bom procedimento dos cidadãos. Finalidade do Estado é impor esses
objetivos, motivo pelo qual Paulo fala nos termos da moral civil
sobre o dever dos cristãos. Evidentemente o seu "Estado de direito"
não é igual à moderna democracia com seu tesouro de direitos dos
cidadãos à liberdade, contudo é muito provável que ele avaliou
positivamente o direito do Império Romano. Com grande ênfase
13, 4 ressalta o poder punitivo do Estado. Dado que os detentores
do poder político são instituídos por Deus, devemos cumprir nosso
dever diante deles por causa da consciência, p. ex., pagando correta­
mente os impostos (13, 5ss). Ao que parece, a exortação foi tão
adequada naquele tempo como o é hoje. Paulo fortalece a "moral
tributária". Portanto, não se deve agir corretamente apenas por
medo do castigo. A consciência une o cristão com o Estado, pela
evidente razão de que ela sabe da determinação de Deus. Nova­
mente temos diante de nós a teologia generalizada da lei. Nesse
sentido podemos ver com razão prefigurado em Paulo o "primus
seu politicus usus legis", isto é, a função política da lei, como reza
a terminologia reformatória.
É evidente que o Estado terminará juntamente com todo o mundo.
Ele não é eterno nem divino. Paulo não deixa entrever nenhum
vestígio de uma glorificação religiosa do Estado ou do reinado como
nos impérios vétero-orientais ou no culto heienista-romano ao impe­
rador. Pela natureza de sua fé em Deus, bem como pela sua escato-
logia, semelhante glorificação foi impossível. Ambas tornaram o
Estado algo mundano.
M uito embora não conheçamos o motivo concreto para essa
exortação, certamente não é por acaso que ela aparece justamente
na carta aos Romanos, que se encontravam no centro do poder do
Império.
Após experiências terríveis nós hoje precisamos de fazer muitas
perguntas que Paulo desconhecia: pela relação entre poder e moral,

89
pela perversão do poder e pelos seus motivos, pelos meios de
controlar o poder estatal que aumenta constantemente, e outras
perguntas mais. Não devemos supor que Paulo não tenha tido
conhecimento de violências políticas e de procedimentos injustos dos
poderosos, porque em Rm 1 e 8 ele fala com grande severidade e
clareza dos pecados dos pagãos ou dos poderes demoníacos. No
entanto, isso não muda nada no fato de que foi Deus quem instituiu
o poder estatal, e Paulo deve ter tido bons motivos para dizê-lo
precisamente aos cristãos de Roma. A intenção e tarefa parenéticas
do apóstolo limitam a área de seus pensamentos. Por isso ele não
fala da perversão do Estado pelo culto ao imperador, como o faz
Ap 13. É verdade também que o culto ao soberano alcançou pleno
desenvolvimento e se impôs somente no tempo depois de Paulo.
Portanto é preciso abordar também Ap 13, a fim de dar realce a toda
a amplitude das afirmações do Novo Testamento nessa questão.
I Co 6, Iss demonstram que, quando necessário, não faltava
absolutamente a Paulo a devida distância frente ao Estado. Ele veda
energicamente aos cristãos de Corinto que se dirijam aos juízes
pagãos nas contendas que ocorrem entre eles, com o que menos­
prezam tanto a dignidade da comunidade quanto o mandamento do
amor. De modo algum Paulo está pondo em dúvida a soberania
jurídica do Estado. Contudo afirma que a comunidade deve resolver
ela própria tais casos de litígio, pois contradizem a santidade da
comunidade e o mandamento do amor. Não se coloca, pois, em
dúvida a legitimidade da judicatura estatal. Mas Paulo, afinal, não
se ocupa com as contendas jurídicas entre pagãos, porém unicamente
com as existentes entre cristãos. Elas contrariam a essência do amor
fraternal e a conduta irrepreensível que convém aos cristãos. Paulo
constata, pois, em Corinto uma situação em que vale para a comu­
nidade: "Tua res agitur", aqui precisas de agir pessoalmente! O após­
tolo procede em sua admoestação em concordância com tal constatação.
O Estado e sua judicatura não são nem criticados nem restringidos.
Assim como em Rm 13 Paulo não discorre sobre a essência do Estado,
assim também não o faz em I Co 6 com respeito à natureza e aos
limites do direito.
Seria correto denominar a posição de Paulo "lealdade" frente
ao Estado? A expressão poderá ser admissível, se entendermos o
termo não no sentido de mera adaptação ou de um cálculo interes­
seiro, mas no sentido da fundamentação do procedimento cristão
segundo a ordenança de Deus e por causa da consciência. Ela é, no
entanto, por demais estreita e superficial para que possa ajustar-se
às afirmações de Paulo. I Co 6, Iss denotam também que o apóstolo
não foi simplesmente um positivista realista que se adaptava a tudo
que, no momento, constituía o status quo. O apóstolo, pelo contrádo,

90
conhece a profunda diferença escatológica e histórico-salvífica entre
Igreja e Estado, entre a salvação divina e o direito terreno. Não
apagou as fronteiras entre eles, o que permanece como exemplo para
toda a ética cristã.
Do afirmado resulta, por fim, que não se deve' superinterpretar
Paulo exigindo-se dele uma resposta direta para nossos problemas
atuais. Ele não tem possibilidades de dá-la. Não obstante, suas
afirmações sobre a ordem de Deus e o dever dos cristãos frente ao
Estado continuam válidas como premissas para novas e necessárias
decisões e formulações de conceitos na ética política de hoje. A
diferença entre Paulo e nós reside sobretudo em que naquele tempo
não havia nenhuma possibilidade para uma atividade e colabora­
ção políticas responsáveis dos cristãos no Estado. Os cristãos daquele
tempo viam-se colocados na relação de simples súditos. Nesse
aspecto uma ética política para cristãos precisa hoje de ter uma
configuração totalmente diferente do que na Igreja primitiva, pois
que tem de desenvolver uma douirina das virtudes políticas sob o
ponto de vista de uma participação responsável dos cristãos no Estado.

c) O matrimônio

Na questão do matrimônio dependemos em primeira instância


de I Co 7. Também esse trecho nos apresenta uma parênese con­
creta com respostas a perguntas específicas, confrontando-nos com
instruções para determinados grupos dentro da comunidade.
Pelo que se depreende, Paulo se encontra em duas frentes de
combate, contra tendências libertinistas e ascéticas radicais. Ambas
foram provocadas pelo gnosticismo. Paulo não adere a nenhuma des­
sas divisas. Constatamos acima que ele rejeita severamente o contato
com a meretriz por ser uma destruição da comunhão com Cristo (I Co
6, Í2ss). Delimita a liberdade do cristão, a qual não deve dar ocasião
para a carne (Gl 5, 13). Por outro lado, porém, Paulo não transforma
a comunidade numa seita de ascetas que vivem celibatariamente.
O que é tanto mais notável que ele próprio vive solteiro e recomenda
também aos outros cristãos o celibato como a condição melhor. Que
o impede, então, de impor à comunidade a lei costumeira da ascese
sexual?
Evidentemente o motivo é a tradição judaica e cristã primitiva,
radicada no Antigo Testamento, que encara o matrimônio como uma
boa instituição do Criador, o qual determinou que homem e mulher
formassem uma comunhão. Devem ser "uma só carne", como o
expressa também a tradição existente em Mc 10, ls s .8 , empregada
por Jesus para responder à pergunta do divórcio. Na mesma tradição
está embasado I Co 7, lss-. Por causa da impudicícia tcdo homem deve

91
ter sua própria esposa, se bem que na concepção de Paulo seria
melhor não ter relações com nenhuma mulher. Contudo a recomen­
dação ao celibato — cujas razões conheceremos logo a seguir — não
quer ser uma lei para a comunidade. Paulo se recusa a pôr um
laço no pescoço dos coríntios (7, 35).
O matrimônio, por conseguinte, é necessário como prevenção
contra a impureza. Possui, portanto, um caráter antidemoníaco. Não
se afirma, com isso, que Paulo tenha encarado o matrimônio como
comunhão meramente sexual. Ele vai muito mais a fundo. Nenhum
dos cônjuges não é mais senhor sobre o seu corpo, pois cada um
pertence ao outro (7, 4). O exercício da comunhão matrimonial não
deve ser interrompido, a não ser por causa da oração (7, 5). Paulo
não possui nenhum interesse em experimentos ascéticos artificiais
dentro do matrimônio. O apóstolo igualmente está cônscio de que
nem todos possuem o carisma do celibato assim como ele (7, 7).
Está em acordo com a tradição sinótica o fato de que Paulo se refere
expressamente à proibição do divórcio pelo Senhor (7, 10s; cf. Mc
10, 11 e par.). Por conseguinte não é possível afirmar que Paulo
tenha menosprezado o matrimônio. Quem se casa não peca (7, 28);
a frase encontra-se ao lado da reiterada recomendação ao solteirismo.
Essa justaposição caracteriza a atitude peculiar do apóstolo nessa
questão. A tradição permanece válida, contudo existe além dela o
caminho do celibato. Em todos os casos é melhor casar-se do que
ser consumido pelo desejo (7, 9).
Paulo não trata especificamente da monogamia. No entanto ele
aceita simplesmente e pressupõe como natural a monogamia, que
já era a forma básica na sociedade de sua época.
O matrimônio é, como o Estado, uma ordem mundana, e não
uma instituição sacral. Compreensão essa que serviu mais tarde
como ponto de partida para a Reforma. No entanto não podemos
declarar que seja um mandamento obrigatório de Deus ingressar no
matrimônio, como pensaram alguns teólogos luteranos. Pelo menos
Paulo está muito longe disso. O matrimônio não é nenhuma ordem
compulsória. Também os solteiros fazem jus ao pleno valor de seu
carisma na comunidade. Por outro lado, porém, Paulo não faz dos
que vivem solteiros uma classe religiosa privilegiada. Portanto eles
não são "perfecti" (pessoas perfeitas) no sentido do posterior monas-
ticismo. É bem verdade que também Paulo fala dos perfeitos, refe­
rindo-se, contudo, a todos os cristãos, uma vez que possuem o
Espírito de Deus e vivem em conformidade com o Espírito (1 Co
2, óss; 3, Iss).
Quais são, pois, os motivos que levam Paulo a recomendar
com tanta insistência o celibato aos diversos grupos, tais como os
que ainda não casaram e as viúvas?

92
A primeira razão é a escatológica: O tempo é cada vez mais
breve (7, 29ss). O apóstolo deseja que, tendo em vista a proximidade
do Fim, os coríntios não assumam preocupações (7, 32). Evidencia-se
que ele acredita que o matrimônio as acarreta. "A aparência deste
mundo passa" (7, 31), razão pela qual não é recomendável sobrecar-
regar-se agora ainda com fardos terrenos.
Acrescenta-se a isso logo o segundo argumento, o cristológico.
A pessoa casada está com o coração repartido e cuida de coisas do
mundo, pois homem e mulher procuram agradar-se um ao outro
(7, 32ss). Todavia o decisivo é cuidar da causa do Senhor e servir,
com um coração não-dividido, exclusivamente ao Senhor. Sobre isso
está dirigida a intenção de Paulo. Com um olhar realista ele reco­
nheceu as preocupações que o matrimônio traz consigo. A expectativa
escatológica não provoca em Paulo conseqüèncias entusiastas, mas
realistas. Uma justificação gnóstica da exortação ao celibato feria
um aspecto totalmente diferente, declararia o corpo e a sexualidade
como demoníacas e malignas.
Paulo depara, portanto, com novos problemas que ainda não
se apresentavam à proclamação de Jesus. Por isso ele precisa de
apelar para a sua própria autoridade. Uma questão como a do
divórcio está decidida de forma absoluta quando existe uma palavra
do Senhor (7, 10). Novas perguntas, porém, como matrimônio,
abstenção do matrimônio, casamento de quem ainda é solteiro, côn­
juge num matrimônio misto com pagãos — elas precisam ser decididas
de modo diferente. Por isso Paulo recorre a que ele possui o Espírito
divino (7, 40). Ele é uma pessoa que "recebeu a misericórdia de ser
digno de confiança" (7, 25). Em conseqüência, o seu juízo tem o
caráter de uma autoridade pneumática, se bem que relativa e secun­
dária. A presente argumentação de Paulo é muito instrutiva para
reconhecermos a necessidade da formação de novas autoridades na
Igreja primitiva após a Páscoa. Nas comunidades paulinas não era
mais suficiente citar palavras de Jesus. A autoridade que Paulo
reivindica para si interfere, segundo I Co 7, também na vida ética das
comunidades. Paulo tem um juízo, uma opinião, mas não uma ordem.
Nisso reside sua limitação. Ele sabe muito bem distinguir entre a sua
autoridade e a do Senhor (7, 10; cf. 7, 35).
De mais a mais, Paulo não diz que matrimônios existentes
pudessem ser dissolvidos por causa do Fim iminente. Aconselha,
porém, os solteiros a permanecerem nessa situação sem casar. Até
mesmo os matrimônios mistos entre cristãos e pagãos — um fato
muito significativo, por revelar, a tolerância de Paulo! — devem conti­
nuar em vigor, a não ser que o parceiro pagão deseje a dissolução de
semelhante matrimônio (7, V2ss). Conscientizemo-nos da grande d ifi­
culdade da questão para o cristão daquela época! Será realmente

93
possível que um crente e um incréu vivam juntos no matrimônio?
Hoje há muitas pessoas que procuram impedir um matrimônio entre
cristãos evangélicos e católicos, apesar de que eles crêem no mesmo
Senhor. Naquele tempo, toda a vida dos pagãos estava repassada
de ritos cultuais e práticas religiosas. O apóstolo o sabia e, não
obstante, se empenha pela conservação dos matrimônios mistos. Os
filhos de tais uniões fazem parte da comunidade, eles são santificados
(7, 14ss). Evidentemente Paulo conhece uma graça divina santifi-
cadora, que age para além de cada cristão, mas não há nenhum
motivo para lhe imputarmos concepções mágicas nesse ponto. É
necessário levar em consideração a vontade do cônjuge pagão, pois
se sabe: "Deus vos tem chamado à paz" (7, 15). Por isso deve ser
rejeitado um matrimônio imposto ao outro por coação.
Em síntese, Paulo relativizou a tradição judaica e cristã prim i­
tiva por meio de sua recomendação ao celibato, por meio de seu
próprio ascetismo, o qual também era apenas relativo. Cristo abre o
caminho para a liberdade diante das formas de vida terrenas. O
matrimônio não é nenhuma ordem absoluta, tão pouco como também
o Estado não o é. Não temos mais condições de determinar exata­
mente a corrente ascética daquele tempo, pela qual Paulo foi influ­
enciado. Dificilmente entraria em cogitação o gnosticismo. Precisamos
de contar também com a possibilidade de que a própria entrega
total a Cristo tenha conduzido Paulo à tendência para a ascese.
Digno de nota é, enfim, um princípio ético geral que Paulo
introduziu no capítulo sobre o matrimônio. E o seguinte-. "Continue
a viver cada um segundo o Senhor lhe tem distribuído" (7, 17; cf. 24).
Quem foi chamado como incircunciso (pagão) não se deve deixar
circuncidar. O escravo deve permanecer escravo, mesmo quando
poderia tornar-se livre (7, 21). Isso porque, como cristão, eíe é agora
um "liberto do Senhor" (7, 22). É óbyio que o que induz o após­
tolo a fazer essa admoestação é novamente a expectativa escatoló-
gica. Portanto, não é necessário que derrubemos nossa condição social
por causa do chamamento para a fé. O chamamento de Deus não
arranca o homem de sua situação histórica e social. Não existe, por
conseguinte, nenhuma "revolução cristã". O senhorio de Cristo, p. ex.,
não é idêntico a uma igualdade social perfeita. Consequentemente
o chamamento na graça engloba, na unidade da comunidade, as mais
diversas posições sociais, de judeus e gregos, de homens livres e
escravos. Era de se esperar que a estrutura de unidade e comunhão
da Igreja mais tarde também fosse exercer influências na sociedade,
a saber, no sentido do ajustamento e da paz. Não deveríamos — já
por causa da fundamentação escatológica — misturar a concepção de
Paulo com o conservantismo social e político moderno, o qual possui
fundamentos espirituais totalmente distintos.

94
Hans von Campenhausen afirma (em "Tradition und Leben",
p. 146) que Paulo realça a validade da tradição do discipulado evan­
gélico radical (cf. Lc 14, 26ss par.), dando-lhe uma interpretação
ascética. Trata-se de obediência a Cristo na forma de vida celibatária.
Vimos acima que a validade do matrimônio não é atacada por meio
dessa interpretação. Os cônjuges não devem nem dissolver o matri­
mônio, nem transformá-lo no tipo fictício de um matrimônio ascético
(o chamado matrimônio espiritual). Quem vive no matrimônio, deve
exercê-lo também. A explicação do sentido do amor matrimonial e o
seu embasamento cristológico em Ef 5, 22s, no entanto, seguramente
não são paulinos, representando um desenvolvimento autônomo da
tradição dos catálogos de normas para a vida doméstica. A reco­
mendação ao solteirismo não se encontra mais em parte alguma do
Novo Testamento além de Paulo, um fato que provavelmente deve
ser tributado à necessidade de combater o ascetismo gnóstico (cf.
abaixo, o trecho sobre as cartas pastorais, no cap. IV).
Em I Ts 4, 3s encontramos, num sentido limitado, uma provável
paralela para I Co 7. A vontade de Deus é que a comunidade seja
santificada. Isso exclui a impudicícia, as paixões libidinosas, às quais
estão sujeitos os pagãos. Cada um deve conseguir (ou ter) a sua
própria esposa, em santidade e honradez. A fórmula ultrapassa vi­
sivelmente I Co 7. A santificação, portanto, também pode acontecer
no matrimônio. Não está restrita a uma forma de vida ascética. Para
nós isso hoje parece muito natural, porém no tempo de Paulo havia
bons motivos para sublinhá-lo. Em suma, o relacionamento sexual
como tal não impossibilita a santificação, como pensava o gnosticismo
ascético.
Poderíamos descobrir agora a seguinte contradição em Paulo:
O cristão tem a liberdade de comer e beber. Todas as coisas são
puras. Todos comem e bebem para o Senhor. Por que, então, Paulo
não fala nos mesmos termos com respeito ao matrimônio? Por que
o conselho para permanecer solteiro? Com efeito, as questões do
matrimônio e da impudicícia são tratadas diferentemente do que as
da ascese alimentar em I Co 8 e 10, respectivamente em Rm 14 e 15.
Isso é surpreendente. Ao que parece, elas se situam em outra
dimensão, pela justa razão de que tratam do relacionamento mútuo
de pessoas. Está em jogo a unificação de homem e mulher, mesmo
nas relações com a meretriz (I Co 6, 12). Tal situação possui um
peso bem diferente do que a relação dos cristãos para com alimento
e bebida. A união sexual com a meretriz, na verdade, destrói a
comunhão com o Senhor. Isso, no entanto, não vale para o caso de
alimento e bebida. Por isso Paulo tem bons motivos para encarar
as questões do matrimônio e do celibato de maneira diferente do que
as do alimento e do comer de carne sacrificada a ídolos. Ele não

95
refletiu sistematicamente sobre essa diferença na avaliação, mas I
Co 6, 12ss revela claramente o motivo decisivo. O corpo do homem
é mais do que o estômago, pois pertence ao Senhor e é moradia do
Espírito Santo.
Toda a Igreja antiga foi profundamente influenciada pelo pro­
blema da ascese. No Novo Testamento, porém, não existe nenhum
ascetismo absoluto, radical, não obstante João se aproximar tanto
do dualismo gnóstico e atacar severamente a sujeição ao cosmos.
Mesmo o ascetismo "relativizado", como Paulo o defende, não en­
contra adeptos. O caminho conduz, porém, como denotam as cartas
pastorais e eclesiais, a uma cidadania cristã distanciada do mundo e,
não obstante, próxima dele. Contudo não deve ser esquecido ou
subestimado o contrapeso que o culto, a presença da libertação diante
do mundo, oferecia à comunidade contra todo tipo de escravização
ao mundo. A "solução intermediária" peculiar que Paulo defendeu
em I Co 7, deve-se provavelmente ao encontro do ascetismo de sua
época (o qual não existia apenas na gnose helenista, mas também
no judaísmo que pensava de forma dualista) com a tradição vetero-
testamentária e judaica (cf. Gn 1, 27s; 2, 24; Mc 10, lss 6-8 par.)
de que ele estava imbuído e que o cristianismo pré-paulino já tinha
acolhido.

d) A posição da mulher

Nas epístolas de Paulo são mencionadas somente as esposas, as


viúvas e as moças solteiras ou noivas. A mulher independente e a
esposa que exercem uma profissão são fenômenos da sociedade
moderna e provocaram problemas éticos novos. No tempo de Paulo,
no entanto, as mulheres apenas apareciam na casa. Quando muito,
havia alguns cultos femininos especiais, como, p. ex., o culto a ísis.
Tendências de emancipação não foram capazes de alterar o quadro
daquela sociedade, na qual a mulher significava um ser inferior, dos
pontos de vista cultual, jurídico e social.
Todavia em Paulo a questão é bem diferente. Decisiva é a
declaração em Gl 3, 28: Em Cristo não há mais o judeu nem o grego,
o escravo nem o homem livre, o homem nem a mulher, porque são
todos um em Cristo (cf. Cl 3, 11). Isso não vem a ser uma abolição
entusiasta das diferenças sociais e sexuais, mas a aceitação e o enqua­
dramento das mesmas na unidade em Cristo e, assim, na Igreja,
pois estar em Cristo significa estar na Igreja. Representa para as
mulheres que elas participam tão plenamente da salvação como os
homens e que são servas do mesmo Senhor que os homens. Ambos
os sexos estão subordinados ao mandamento do amor. Isso é uma
nova igualdade de homem e mulher em Cristo. Estava, pois, elim i­
nada a inferioridade religiosa da mulher, se bem que não a jurídica

96
e social. Mas a partir da igualdade em Cristo também pôde ser
despertada mais tarde uma nova visão da humanidade da mulher.
Como nos revelava o catálogo de normas para a vida doméstica, em
Cl 3, 18ss, homem e mulher possuem agora ambos um novo Senhor,
Cristo. Nesse fato estão contidas novas possibilidades, ainda que a
nova igualdade tenha significado inicialmente apenas uma "revolução
silenciosa". De qualquer modo, foi quebrantado o patriarcalismo, a
posição de domínio total e absoluto do homem. Um procedimento
tirânico agora transgride o mandamento de que os homens devem
amar as suas mulheres (Cl 3, 19).
Em I Co 11, lss revela-se que Paulo segue novamente uma
tradição judaica, que considerava decoroso que a mulher usasse
véu durante o culto. Paulo tenta, no trecho em questão, apoiar esse
costume com os mais diversos argumentos, sem todavia conseguir
ser realmente convincente. Emprega, por exemplo, uma seqüência
hierárquica: Deus — Cristo — homem — mulher (sobre cuja origem
histórica não há unanimidade), com o propósito de afirmar que a
mulher é apenas "reflexo" do homem. O homem é o "cabeça"
da mulher (I Co 11, 3). Ele pode apontar igualmente para a natureza
("physis"; 11, 13) para justificar o referido costume como sendo con­
veniente. Talvez seja porque Paulo procura combater pretensões
emancipatórias gnósticas. Para a mesma finalidade é citado também o
costume eclesiástico (11, 16). Por outro lado, porém, o apóstolo pres­
supõe como fato dado que em Corinto também mulheres possuem e
exercem o carisma profético (cf. as filhas do evangelista Felipe, em
A t 21, 9). Com isso transparece especialmente nítida a superação da
inferioridade cultual da mulher. Contudo 1 1 , 5 parece estar em con­
tradição com 1 Co 14, 33-35, onde se deduz uma conseqüência dife­
rente da tradição judaica, a saber, de que a mulher deve calar-se nas
reuniões eclesiásticas. No entanto, não se está proibindo o profetizar
— quem poderia im pedir o Espírito Santo de falar por intermédio de
uma mulher? — , mas que as mulheres lancem perguntas na reunião
quando não entenderam pronunciamentos de portadores de "pneuma".
Elas devem, em tais casos, perguntar seus maridos em casa, de
modo que não seja transtornada a ordem do culto. Quando os próprios
oiadores pneumáticos precisam de ater-se a essa ordem (não falando
simultaneamente), tanto mais naturalmente as mulheres (cf. a exegese
de H.-D. Wendland, NTD, vol 7). Portanto a posição de Gl 3, 28 e I Co
11, 11, segundo a qual homem e mulher são um em Cristo e conse-
qüentemente podem receber os mesmos dons espirituais (cf. I Co 11,
5), fo i apenas aparentemente revogada em I Co 14, 33ss. Na realidade
14, 33ss referem-se a um falar bem diferente do que o falar profético
em 11, 5. Assim Paulo não retorna de todo à tradição judaica, que
indicava para a mulher um lugar subordinado na sinagoga.

97
Na própria continuação da argumentação em I Co 11, 3ss desta­
ca-se nitidamente uma restrição da seqüência hierárquica inicialmente
enunciada: Embora a mulher se origine do homem, e não vice-versa
— Paulo tem em mente a história da Criação — , ambos provêm de
Deus. A mulher não é nada sem o homem, nem o homem, sem a mu­
lher, "no Senhor" (I Co 11, 1 ls). Deus é Criador e Redentor de ambos.
Dessa forma, a ordem hierárquica de 11, 3 é, se bem que não abolida,
pelo menos relativizada. Porque agora o novo "kyrios", Cristo, reina
em sua comunidade, a tradição judaica (ou gnóstica?) de prioridade do
homem sobre a mulher necessita ser corrigida, e o princípio crítico "no
Senhor" (11, 11) corresponde exatamente a Gl 3, 28.
Também com referência às mulheres Paulo dá preferência, em
I Co 7, ao estado de solteiras (7, 25ss. 39s). Dentro do matrimônio,
entretanto, Paulo não mais conhece uma dependência unilateral da
mulher diante do marido, pois declara literalmente que os cônjuges
pertencem um ao outro (7, 4). Cada um é senhor sobre o corpo do
outro. Isso é devido ao fato de que também mulheres são chamadas
à fé, recebendo o batismo e o Espírito Santo. Por isso sucede também
que mulheres se tornam colaboradoras do apóstolo e lhe prestam ser­
viços (cf. Rm 16, 1 e 3; A t 18, 1. 18). Desse modo tem início na comu­
nidade de Cristo a libertação da mulher de sua inferioridade e depen­
dência cultuais e jurídicas, uma libertação que naturalmente levou
apenas m uito mais tarde a uma colaboração independente em cargos
da comunidade (diaconisa, auxiliar de comunidade). Sem nenhuma
dúvida a prédica de Jesus acerca do reino de Deus foi um dos fatores
— ao lado da dotação do Espírito — que tornaram possível a nova
posição da mulher. Entre os discípulos de Jesus já podemos encontrar
mulheres. Cura e perdão dos pecados são dispensados às mulheres
da mesma forma como aos homens. Em Rm 16, 3 Paulo denomina
Priscila a sua colaboradora. Ainda na Igreja antiga, nos pais da Igreja,
podemos reparar nas duas linhas principais do Novo Testamento: em
prim eiro lugar a subordinação da mulher ao homem no matrimônio
e, em segundo lugar, a plena participação da mulher na salvação, na
dotação com o Espírito, e seu serviço de auxiliar na comunidade. Sob
o aspecto histórico verifica-se que a tradição dos catálogos de normas
para a vida doméstica, a qual encontramos em Cl 3, 18ss, teve grande
repercussão. Também eles se dirigem às mulheres. Devem ser sujeitas
a seus maridos. Todavia agora homem e mulher possuem um único
Senhor, Cristo. Por isso o catálogo ordena que os maridos devem
amar as suas mulheres. É o ponto do qual parte o desenvolvimento
cristológico dessa tradição. O catálogo de normas para a vida domés­
tica em Ef 5, 22ss deixa patente que se trata do amor de Cristo, da­
quele que se entregou em favor de sua comunidade (cf. abaixo, o
item sobre a carta aos Efésíos, no capítulo IV). Apontávamos antes que

98
os catálogos de normas para a vida doméstica não falam dos direitos
de domínio do homem. Embora os direitos sejam pressupostos, não
são submetidos a uma fundamentação ética especial.
Assim o catálogo de normas para a vida doméstica está em har­
monia com o material restante encontrado em Paulo, é verdade,
porém, que em parte alguma se fala de reivindicações para reformar
a posição social e jurídica da mulher. A simples expectativa do Fim
imediato já excluía semelhantes concepções e objetivos, acontecendo,
porém, o mesmo também por causa da estrutura social da sociedade
daquele tempo.

e) Os escravos
Já foi brevemente mencionado o mandamento contido no catálogo
de normas para a vida doméstica em Cl 3, 18ss, de que os escravos de­
vem ser obedientes a seus senhores em todos os sentidos. A obediência
não deve ocorrer para agradar a homens, mas na singeleza do cora­
ção e no temor ao Senhor (3, 22). Os proprietários são denominados
senhores "segundo a carne", maneira pela qual se expressa claramente
que o Senhor divino está acima deles. Por isso é seu dever tratarem
os escravos "com justiça e eqüidade" (Cl 4, 1), com o que se adotam
mais uma vez conceitos da moral da antiga sociedade. Encarados a
partir da comunidade, e como membros da comunidade, os escravos,
portanto, não são mais desprovidos de direitos.
Assim como no caso das mulheres, também não se fala de liber­
tação ou de reforma das condições e das disposições jurídicas no caso
dos escravos. Há que lembrar também que o trabalho escravo era o
fundamento econômico de toda a sociedade antiga. Somente com o
Imperador Constantino I se procedeu às primeiras reformas da legis­
lação escravista.
A epístola a Filemom, que versa sobre o destino de Onésimo,
escravo foragido e convertido à fé por Paulo, apresenta-nos um qua­
dro idêntico. Paulo pede a Filemom, proprietário do escravo Onésimo,
que receba esse últim o como irmão em Cristo (v. 14ss). Nisso, Paulo
respeita expressamente os direitos senhoris de Filemom, pois, apesar
de que gostaria de reter Onésimo como seu auxiliar, ele o envia de
volta ao seu proprietário. Não quer agir nesse interesse sem o con­
sentimento do proprietário (v. 12-14). O apóstolo fala com amabilidade
a respeito do escravo, embora ele tenha sido "in ú til", como declara
o próprio Paulo. Diante do proprietário Filemom Paulo se porta como
um irmão que respeita os direitos do outro e que, não obstante, precisa
de insistir em que o escravo agora se tornou alguém diferente, um
membro da comunidade, um irmão em Cristo. "Como se fosse a mim
mesmo" (v. 17), diz Paulo, Filemom deve receber o Onésimo que ele

99
lhe envia de volta. É a diplomacia honesta do amor, em sua forma mais
persuasiva. Que harmonização dos enormes contrastes sociais ocorre
na comunidade de Cristo! O ato de Paulo como tal já representa um
feito social de primeira grandeza. É espantoso que isso teve êxito.
Não durou muito tempo e escravos se tornavam até bispos, presiden­
tes de comunidades. Com efeito, a cristandade primitiva soube superar
as diferenças "carnais" pelo poder do amor, sem, no entanto, pensar
e sem poder pensar em reformas na sociadede.
Gálatas 3, 28 inclui na nova unidade em Cristo também os escra­
vos. Em conseqüência, a Igreja de Cristo será "comunidade" no ver­
dadeiro sentido da palavra somente enquanto for e permanecer
comunidade para as camadas mais inferiores da sociedade. A Igreja
prim itiva e, com ela, Paulo, encontravam-se no lugar certo: ali, onde
estavam os pobres e os desgraçados. Foi isso o que o próprio Paulo
testemunhou a respeito da composição da comunidade de Corinto:
"Aquelas coisas que nada são, Deus escolheu" (I Co 1, 26-28). A Igreja
prim itiva iniciou a sua jornada como uma Igreja dos "joões-ninguém",
dos estivadores, dos artesãos e escravos, dos que eram tidos como
socialmente insignificantes. Uma circunstância muito abençoada, pois
que, no processo invertido, ela em breve teria acabado como uma
escola filosófica e uma seita de intelectuais.
Obtemos uma diferença digna de nota ao compararmos a con-
ceituação do matrimônio e do poder político. Em parte alguma a escra­
vatura como instituição social é embasada numa instituição e na
vontade divinas. No tocante à escravatura falta uma paralela de Rm
13, lss ou Mc 10, lss. Portanto não se legitima e fundamenta pela
religião e estrutura da sociedade de então, a hierarquia de pessoas
livres e escravos. Esse fato tornou-se importante mais tarde como
premissa negativa para a Igreja, quando ela se viu forçada a combater
o mercado de escravos e defender por princípio uma abolição da
escravatura. Afinal, a escravatura não era nenhuma ordem e institui­
ção de Deus, o Criador, e, conseqüentemente, nenhuma ordem abso­
luta e sacrossanta que não pudesse ser violada. A atitude de Paulo
na epístola a Filemom abre a possibilidade de redescobrir no escravo,
irmão em Cristo, também o ser humano. Isso porque sobre os alicerces
da comunidade de Cristo e dentro dela ele goza de plena participação
na graça de Deus e é um irmão entre irmãos.

6 — A validade universal dos mandamentos


e sua relação com o Espírito

Neste tópico queremos partir daquela validade geral que as


exigências de Paulo possuíam para ele próprio e suas comunidades,
ou seja, não partiremos da pergunta se elas têm validade também

100
hoje. Tal pergunta teria de ser respondida por uma ética sistemática
para os cristãos de hoje.
Sem dúvida alguma existe um tipo de instruções que, do ponto
de vista histórico, já passaram, como a respectiva situação. Outras
comunidades não se defrontam mais com o comer de carne sacrificada
a (dolos, nem tampouco com mulheres que, em Corinto, perturbavam
c culto por falarem no meio. é possível que no tempo de Paulo tenham
existido comunidades que não necessitavam de tais exortações. A
instrução em I Co 5, Iss, de afastar imediatamente da comunidade o
pecador que cometera grave impudicícia, referia-se naturalmente ape­
nas a esse único caso em Corinto. O mesmo vale para a desobediência
dos coríntios contra Paulo, contra a qual ele luta energicamente na
segunda epístola aos Coríntios. Nem todas as comunidades estavam
ameaçadas pela gnose, nem todas incorriam em desobediência ao
apóstolo. Por isso há um sem-número de admoestações bem restritas,
que não podiam ter validade geral no tempo do próprio Paulo.
Outras questões são por sua vez limitadas por causa de seu con­
teúdo. Isso vale, p. ex.( para a recomendação ao solteirismo em I Co
7: Ela, na verdade, nem pretende impor uma lei à comunidade. Pres­
supõe até, em 7, 7, um carisma especial. Não é possível, portanto,
cogitarmos de uma validade geral.
Recordemos, contudo, mais uma vez I Co 8 e 10. Talvez a per­
gunta sè é lícito comer carne consagrada às divindades não tenha sido
em toda parte tão candente como em Corinto. Aquilo, entretanto* que
Paulo afirma com respeito ao Espírito e a liberdade em sua relação
para com o amor, e com respeito à necessária consideração do irmão
fraco, isso tem validade fundamental para todas as comunidades. Pode
ser aplicado a outras situações do que a que se apresentava, então,
em Corinto. Princípio semelhante vale também para I Co 6, lss.
Nem todos os cristãos se terão dirigido com contendas aos juízes pa­
gãos. Todavia é valido para todas as comunidades que a natureza da
comunidade como fraternidade requer um comportamento específico,
e que um cristão deve ser capaz de suportar injustiças. O mesmo
podemos dizer de Rm 12, 13ss: Não paguemos o mal com o mal, ou:
Abençoemos aos que nos perseguem, é esse o mandamento de Jesus.
Aproximamo-nos, com isso, do mandamento que é a norma má­
xima em toda parte e em todos os tempos, o mandamento do amor. A
ele compete validade universal e ilimitada, é evidente que ele precisa
sempre de novo ser concretizado, conforme Paulo o realiza em Rm 14 e
15, em I Co ó, 8. 10, ou em Gl 5, 22. Constatação idêntica podemos
fazer em Rm 12, 13ss, inclusive Rm 13. Já em Paulo pode-se verificar:
Toda situação histórica nova requer uma nova aplicação e concretiza­
ção»

101
Há naturalmente também outros mandamentos que reivindicam
validade em todas as comunidades, por exemplo: "Fugi da impureza!"
(I Co 6, 12ss), ou a exortação: "Não vos ajusteis ao tempo deste mun­
do " (Rm 12, 2). Era algo que Paulo podia escrever igualmente a todas
as demais comunidades, não apenas aos romanos e coríntios. Exata­
mente o mesmo vale para a exigência de que os cristãos, porque
batizados, devem pôr seus membros a serviço da justiça divina (Rm
6, lls s ). A exigência de santificação não se dirige apenas aos tessa-
lonicenses (I Ts 4, 3), mas a todos os cristãos e a todas as comunidades;
possui validade geral.
Se Paulo fala, em I Co 4, 17, dos seus "caminhos", ou seja, dos
mandamentos éticos que ele ensina em todas as comunidades, o após­
tolo ressalta pessoalmente o caráter de obrigatoriedade eclesiástica
geral das suas instruções. Visto que anteriormente ele se denominou
o pai espiritual da comunidade de Corinto (I Co 4, 14s), está claro que
sua parênese se fundamenta sobre sua autoridade apostólica e por
causa da mesma compromete a comunidade. O que certamente vale
também em outras comunidades com respeito a outros apóstolos. Em
conseqüência disso, não nos defrontamos com uma ética originária da
razão humana, como a da filosofia greco-helenista, mas com uma
ética que nasce do evento salvífico em Cristo (veja acima, item 1) e
que se torna concreta na proclamação do apóstolo, que é responsável
pela edificação da comunidade. Desse modo não está excluído, mas
incluído que os cristãos devem e podem apropriar-se das instruções
mediante um juízo racional. Eles devem pessoalmente examinar qual
é a vontade de Deus (Rm 12, 2). Têm capacidade para avaliar racio­
nalmente a sua situação, a saber, que eles agora são — pelo batismo
— "vivos para Deus" (Rm 6, 11) e que por isso podem dispor-se ao
serviço dele (Rm 6, 12ss). Trata-se, portanto, não de uma autoridade
heteronômica (de lei estranha), nem tampouco da autonômica, co­
mo na ética filosófica da Idade Moderna, mas de autoridade "cris-
tonômica" do cargo apostólico, a qual é a autoridade que funda e
conduz a Igreja. As suas instruções abrangem toda a existência cristã e,
por conseguinte, também os valores éticos que regulamentam a con­
duta da vida. Novamente comprova-se, assim, que em Paulo encon­
tramos uma ética da comunidade (cf. item 4).
Hans von Campenhausen chamou atenção para o fato de algumas
instruções no Novo Testamento possuírem caráter universal. Podemos
afirmá-lo sobretudo com respeito a Rm 13, lss: 'Todo homem" deve
sujeitar-se ao poder político, seja ele pagão, judeu ou cristão. — E uma
ordem para todos. Existem, pois, exigências bem gerais que são
acolhidas pela ética da comunidade. Do mesmo modo a advertência
contra a impudicícia não tem um caráíer especificamente cristão. Ela
é fam iliar também ao judaísmo. Mais tarde ocorreu o processo inverso,

102
a saber, de que exigências cristãs assumiram um caráter humano
generalizado, isso quando a Igreja e a sociedade se fusionaram e
grandes massas ingressaram na Igreja. Deixaram de vigorar, então,
algumas das antigas regras vinculadas a uma situação específica, como,
p. ex., a regulamentação de Paulo no que tange aos matrimônios
mistos (I Co 7, 12ss), visto que se tornavam cada vez mais raros, até
que, por fim , o batismo assumiu o caráter de um costume social geral.
De forma idêntica o problema da carne sacrificada a ídolos perdeu sua
atualidade, bem como outras questões mais. Em vigor permaneceram,
no entanto, os valores éticos dos catálogos de normas para a vida
doméstica, pois ainda existiam cônjuges, pais, filhos e escravos. As
suas orientações, aliás, podiam ser facilmente aplicadas è estrutura
social da sociedade medieval. — Considerando que o Espírito não é
outorgado a uma aristocracia religiosa, mas que todos os cristãos o
receberam mediante o batismo, permanecem também em vigor e
obrigatórias para todos os cristãos as exortações de andarem "n o " ou
"segundo" o Espírito (Gl 5, 25; Rm 8, 4).
Patenteia-se, portanto, para arredondar o afirmado com uma ob­
servação genérica, que a contraposição moderna, sempre altamente
questionável, de "ética de normas" e "ética de situação" nem pode ser
atribuída a Paulo. A situação não oferece nenhuma norma, contudo as
normas da ética paulina são sempre relacionadas com a situação e
ajustadas a ela. Mesmo que o mandamento do amor esteja acima de
todos os mandamentos e seja compromissivo para todos em geral,
existem, não obstante, a partir dele normas de aplicação concretas e
sempre novas, numa metamorfose criativa. Por assim dizer, ele se
multiplica. Importam normas para situações concretas nas comunida­
des.
Encarando a acentuada natureza pneumática do cristianismo pau-
lino, poderíamos naturalmente chegar a pensar que o recurso ao
Espírito de Deus ou de Cristo seja suficiente para a fundamentação da
ética. Poderíamos tentar demonstrá-lo com I Co 8 e 10 e com Gl 5,
lóss. Vimos, contudo, na profusão de mandamentos específicos, que
Paulo justamente não se remete apenas ao Espírito, mas também a
normas, tais como o Decálogo, o mandamento do amor e suas concre­
tizações, em síntese, à vontade de Deus. Instrui as comunidades a
indagarem por ela. Em Paulo inexiste a alternativa: mandamento ou
Espírito. O Espírito é unânime com a vontade de Deus e a torna ma­
nifesta. Sendo conferido aos cristãos, o Espírito lhes concede possam
compreender e apropriar-se da vontade divina. Espírito sem manda­
mento levará forçosamente à anarquia moral, como deixa transparecer
o exemplo dos gnósticos, os quais presumem que "tudo lhes é lícito".
Mandamento sem Espírito, por outro lado, conduziria à recaída na
ética judaica; sem o Espírito haveria novamente o mero esforço moral

103
por obras da lei. A unidade de mandamento e Espírito em Paulo está
caracterizada, p. ex., pela simultaneidade de I Co 7, 19 e Gl 5, 25.
Ambas as afirmações não estão de forma alguma em contradição recí­
proca, por mais tradicional que pareça a primeira fórmula. O Espírito
é a quinta-essência na nova vida e, conseqüentemente, também de
todos os mandamentos. Esse Espírito fala através de mandamentos,
ainda mais que ele está repleto do amor. Os cristãos carecem da linha
diretriz dos mandamentos enquanto ainda estiverem na carne, en­
quanto, pois, também a nova vida precisa de ser constantemente arris­
cada, adquirida e posta em prática (cf., p. ex., I Co 3, lss). Espírito
para Paulo é essencialmente força e princípio básicos da nova vida e
do novo procedimento. Tal embasamento da ética sobre o "pneum a"
é tipicamente paulino (Wolfgang Schräge). Tanto menos, porém, entra
em cogitação nesse caso a formulação de uma contradição de manda­
mento e Espírito. Pelo contrário, o andar no Espírito justamente cum­
pre os preceitos jurídicos de Deus (Rm 8, 4). Tão certo como o conceito
paulino de Espírito inclui os fenômenos extáticos "transmorais", tão
errado seria supor que ele fosse um conceito puramente miraculoso.
Paulo defende, antes de tudo, uma pneumatologia ética.
Com o amor dá-se um caso semelhante. Também ele é, por um lado,
graça, dádiva divina (Rm 5, 5; Gl 5, 22) e, por outro lado, também o
mandamento (I Co 14, 1; 16, 14; Gl 5, 13) que requer ser concretizado
pelos cristãos. Como já nos mostrava a fórmula "andar segundo o
Espírito", o Espírito, no caso, vem a ser ao mesmo tempo norma, assim
como ele é, por outro lado, graça e dom de Deus aos que crêem (Rm
5, 5). O imperativo do Espírito é um imperativo da graça.
Em oposição mutuamente excludente encontram-se, entretanto,
lei e Espírito. Onde a lei foi abolida (Rm 7, 7ss. 24; 8, lss; 10, 4), onde
reina a liberdade escatológica em Cristo, ali também se encontra o
Espírito, pelo qual o amor de Deus é derramado nos nossos corações
(Rm-5, 5). Aquilo que o homem sob a lei não é capaz de realizar, o
Espírito concretiza, a nova obediência, a prática do amor, o cumpri­
mento dos mandamentos. Espírito é a vida "nova" (no sentido escato-
lógico, para cuja criação a lei é completamente impotente (cf. Rm 7 e,
em contraste, 8, lss). À antinomia lei-graça corresponde exatamente
a antinomia lei-Espírito. Em Gl 5, 23 é dito expressamente que a lei
não é contrária aos homens espirituais e aos "frutos do Espírito", pois
neles está cumprido o mandamento, de modo que a lei não tem nada
que condenar e desmascarar: Perdeu a sua função.
Acaso Paulo levantou também, ao falar do Espírito e dos manda­
mentos, a pergunta pela possibilidade de cumprirem-se os mandamen­
tos? Não encontramos pronunciamentos diretamente sobre essa
questão, mas de toda a condução dos pensamentos do apóstolo resulta
de maneira inequívoca que: É possível cumprir o mandamento. Não

104
existe para Paulo a problemática da exeqüibilidade, muito discutida
desde a Reforma. E isso pela simples razão de que ele acredita no
poder do Espírito e da nova vida. Todavia certo é que a lei, que se
contrapõe como condenadora ao pecador, não pode ser cumprida. A
pessoa batizada, no entanto, o homem em Cristo, o homem espiritual
tem capacidade de cumprir o mandamento de Deus. E capaz de amar
(cf. Rm 8, 4). Rm 6, 11 ou Gl 5, 13ss ou as exigências de Paulo em I
Coríntios (p. ex., 6, lss. 12ss) não deixam surgir sequer a mínima
dúvida de que o cristão não fosse capaz de cumprir esses mandamen­
tos. Isso porque ele, na verdade, vive na "lei de Cristo", como Paulo
afirma com respeito a si mesmo (I Co 9, 21). Na nova vida não mais
existe o abismo entre pecado e lei. Cristo fechou o abismo, e o cristão
vive agora em vista dessa nova situação. Em contrapartida, ele neces­
sita no presente "éon" ainda os constantes imperativos da graça, que
corrigem e amparam, as orientações pneumáticas. Não possuem, con­
tudo, o caráter de lei, porque pressupõem o acontecimento da justifi­
cação e reconciliação por meio de Cristo. A partir da justificação, pois,
nâc há mais o fardo ameaçador do irrealizável. Por isso a ética de
Paulo também não é pura ética do dever, mas uma ética do poder, a
qual combina o dever com o poder sob a premissa do Espírito e da
nova vida. Ela não nos diz: "Podes, porque deves", mas: Podes, porque
recebeste a nova vida. Não é, porém, um poder fundado sobre a
natureza moral do homem — essa acaba antes na incapacidade de
cumprir a lei — , mas é um poder escatológico e pneumático, próprio
aos batizados. Portanto a ética de Paulo não é nem naturalista (poder
por natureza) nem rigorista (poder a partir da lei). Enquanto houver
realmente uma ética cristã que faça jus a esse nome, será preciso
permanecer na linha de pensamento de Paulo. Não podemos ser nem
discípulos de Kant nem naturalistas.
Constatamos anteriormente que essa nova situação escatológica
já principia com o próprio Sermão do Monte (cf. as bem-aventuranças),
como, aliás, com a proclamação ética de Jesus propriamente dita. Está
aqui um fator que une Paulo e Jesus, sem que, no entanto, se apou­
casse a significância do evento pascal.

105
Capítulo IV

OS ESCRITOS DEUTEROPAULINOS

Na maioria das exposições da teologia do Novo Testamento de


autoria protestante — excetuando-se A dolf Schlatter — Paulo aparece
nitidamente como figura predominante em primeiro plano. Semelhante
tradição foi iniciada pelos Reformadores. Contudo não lhe advém
melhor qualidade do fato de possuir tão ilustres autores. A unilatera-
lidade da exposição necessita ser corrigida. É um imperativo justa-
mente para uma apresentação da ética do Novo Testamento. As cartas
pastorais e a epístola de Tiago não são resultantes de uma "queda" do
cristianismo, por mais que se possam constatar diferenças de impor­
tância teológica entre elas e Paulo. O nível teológico de Paulo foi
conservado, ao lado das concepções totalmente diferentes de Joãc,
unicamente pela carta aos Efésios.
Os documentos que passaremos a analisar se defrontam, em boa
parte, com outras situações e tarefas históricas do que Paulo. O
Fim, antes esperado para breve, tarda a chegar, e a vida mais longa
da Igreja no mundo traz consigo, por natureza, constantemente novas
perguntas. A ordem da Igreja precisa de ser solidificada e ampliada.
A segunda e terceira gerações dos cristãos começam a manifestar-se.
Agora a tradição apostólica adquire um significado eminente. Desta­
ca-se cada vez mais o aspecto da conservação dessa tradição. Por isso
se nos apresentam quadros que desconhecíamos de Paulo. Mas Paulo
não foi o único apóstolo e teólogo da cristandade primitiva. Conse-
qüentemente é necessário fazer valer também o pensamento ético
depois de Paulo ou, respectivamente, ao lado dele. Não se podem
resolver todos os problemas exclusivamente a partir de Paulo nem
reduzi-los a fórmulas paulinas. E inaceitável que se declare o que não
é paulino como de validade inferior ou teologicamente impossível.
Semelhante tentativa terá de fracassar imediatamente em João. Esse
reconhecimento, porém, não nos impedirá de ver o duplo perigo da
rejudaização e da helenização (gnose, sacramentalismo) que ameaçava a
novel Igreja.

107
Teremos de levantar as seguintes perguntas críticas:
1. Como se apresenta a relação entre evento de salvação e é ti­
ca? Que se diz das boas obras?
2. Como se avaliam as instituições sociais mundanas depois de
Paulo?
3. Que posição se assume agora diante da ascese? A atitude de
I Co 7 é mantida ou abandonada?
4. É preciso perguntar o que sucede com os rudimentos de uma
cidadania cristã que encontramos em Paulo. Continuam eles a ser de­
senvolvidos?
Nessa ocupação não podemos utilizar como padrão crítico o
paulinismo dos séculos XVI ou XX, baseado unilateralmente sobre
determinadas fórmulas da doutrina da justificação, pois esse paulinismo
se estriba em uma seleção dogmática questionável de ensinamentos
paulinos, e não reproduz todo o Paulo histórico. Assim, nunca foi
feito jus nesse paulinismo protestante, por exemplo, à ética de
Paulo, o que se deve, entre outros motivos, a uma interpretação
unilateral da doutrina da justificação e da lei em Paulo.
Devido à grande diversidade dos textos torna-se impossível uma
caracterização geral dos escritos deuteropaulinos. Eles divergem
acentuadamente também em sua relação com a teologia de Paulo.
Fato que, por sua vez, influi sobre a ética.

1. A epístola aos Efésios

O "éthos" na unidade do corpo de Cristo.


Situamos a epístola aos Efésios no início, porque ela permanece
em grande proximidade com Paulo e conservou o nível teológico
das cartas genuínas de Paulo. Toda a segunda parte da carta possui
conteúdo ético-parenétíco. "O trecho 4, 1-6, 2 pode ser chamado
quase que de 'fundamentação da ética'. Ela é desenvolvida a partir
da eclesiologia que, por sua vez, foi desenvolvida da cristologia O
ponto de convergência reside na concepção do 'sõma' (corpo)'' (W.
Marxsen). A "extraordinária unidade interna" dessa carta foi igual­
mente destacada com razão por W illi AAarxsen. Podemos utilizar
suas frases como linhas mestras.
a) De início deparamos com que a ética é m otivada de uma
maneira extremamente rica, uma circunstância que nos faz lembrar
diretamente Paulo. No autor da carta aos Efésios Paulo encontrou
um "aluno" congenial.
A parênese da carta aos Efésios é iniciada com a exposição
histórico-salvífica da grande incisão provocada pelo envio salutar de
Cristo. Com ela todo o tempo do mundo foi cortado em duas partes,

108
o "outrora" e o "agora" (4, 17ss). No passado os ouvintes andaram
como pagãos na vaidade dos seus pensamentos. Sendo eles agora
cristãos, isso não entra mais em cogitação, pois agora irrompeu com
Cristo a mudança decisiva dos tempos. Em conformidade com esse
evento os cristãos devem, pois, agir. Agora está em vigor a exigên­
cia basilar: Despojai-vos do "velho" homem e revesti-vos do "novo"
(4, 22ss), "criado segundo a imagem de Deus, em verdadeira justiça
e pureza" (4, 24). O contraste é escatológico, e com ele transparece
novamente a inequívoca estrutura fundamental do pensamento pau-
lino, inclusive a peculiar unidade de imperativo e indicativo: Devemos
fazer o que Cristo efetuou, o que Deus criou. A unidade é retratada
com a ilustração da troca de roupa. Vestimos, por assim dizer, o "novo
homem" que está à nossa disposição (cf. o mesmo exemplo em Gl
3, 27; Rm 13, 14). Em Cl 3, 9ss Paulo pode considerar a troca como
efetuada: Tendes vos despojado do velho homem e revestido do novo.
A afirmação, portanto, assume tanto a forma do indicativo da salvação
como também a forma do imperativo ético. Em Cl 3, 5ss é o impe­
rativo que precede a asserção em 3, 9. A nova existência escatológica
constitui também na carta aos Efésios a base para que o cristão ande
em pureza, verdade e justiça. É preciso realizar a nova existência
no agir pessoal. A renovação pode suceder unicamente através do
Espírito Santo, razão pela qual o imperativo em 4, 30 pode assumir
também a seguinte forma: "Não entristeçais o Espírito de Deus, no
qual fostes selados para o dia da redenção." Portanto, o autor também
está familiarizado com a fundamentação pneumatológica da exortação.
Seria correto falarmos, em analogia à anamnese de Cristo, de uma
anamnese do "pneuma".
O contraste essencial "outrora — agora" é também formulado
da seguinte maneira, em 5, 8: "Outrora éreis trevas, porém agora
sois luz no Senhor." Essa é a contraposição dos dois "éons" que se
excluem. Cristãos não podem mais ser escuridão. São afirmações a
respeito do ser, contudo não no sentido do dualismo gnóstico, pois
sua validade provém de Cristo. A elas segue-se imediatamente o
imperativo: "Andai como filhos da luz — o fruto da luz (consiste em)
toda a bondade, e justiça, e verdade" (5, 8s). Isso corresponde à
declaração de Paulo em Gl 5, 22 sobre o fruto do Espírito. Como
em Paulo, topamos novamente com a ética do poder pneumático.
"Verdade" deve ser entendida aqui no sentido do linguajar judaico,
isto é, como algo que o justo faz (cf. Jo 3, 21). Andando na luz,
os efésios são capacitados a examinar e decidir o que é agradável
a Deus (5, 10). Mais uma vez a pessoa do cristão, seu pensar e agir,
não é excluída, mas incluída e solicitada. Ele se constitui, por dizê-lo
assim, no segundo sujeito da ação ética.

109
O imperativo de 5, 8 adquire, no entanto, uma forma ainda
mais expressiva, porque o autor cita um velho hino de batismo (5, 14):
"Levanta-te de entre os mortos, e Cristo te iluminará!" Isso é uma
inversão realmente admirável da seqüência que havíamos conhecido
até aqui, pois designa-se nitidamente o agir do cristão como a pre­
missa para a posterior ação de Cristo. Portanto, uma recaída no modo
de pensar judaico ou grego? Todavia o contexto elimina semelhante
suposição. O batizando atua pessoalmente também no batismo; não
sofre somente uma ação em si mesmo; pois o batismo não é nenhum
fenômeno da natureza nem tampouco uma coação mágica que o
homem apenas tivesse que tolerar. A mudança da morte para a vida
ou das trevas para a luz precisa de ser também ato do batizando. A
conexão, ao que parece antiqüíssima, de batismo com parênese encon­
trou aqui uma formulação clássica, bem aguçada. O autor, que espera
tudo do mistério da salvação contido em Cristo (cf. 1, 3ss; 2, Iss),
não tem receio algum em citar essa parênese de batismo! Ê evidente
que ele não sente nenhuma contradição diante da doutrina da graça,
na forma como gerações posteriores a sentiram. No próprio chamado,
na verdade, reside ao mesmo tempo a habilitação para proceder
daquela maneira, ou seja, despertar do sono dos pecados, levantar-se
da morte, optar pela vida e agarrá-la, para expressá-lo com uma
ilustração diferente.
O contexto de que falávamos apresenta em 4, 32 e 5, 2 funda­
mentação cristológica da ética: "Andai no amor, como também Cristo
vos amou" (5, 2); "Perdoai-vos uns aos outros, como também Deus
em Cristo vos perdoou" (4, 32). Isso constitui praticamente o con­
traponto de 5, 14. Contudo estamos cônscios de que o autor prova­
velmente nem sequer teceu pessoalmente essas considerações. De
qualquer modo, não devemos entender o apelo do hino de batismo
num sentido moral perfeicionista. Toda a teologia da carta aos Efésios
torna-o impossível.
Em 5, 15 e 6, 12 fala-se do caráter de luta escatológica da
situação da comunidade. Razão pela qual os cristãos devem tornar-se
"fortalecidos no Senhor" (6, 10) e revestir-se da "armadura de Deus"
que está à sua disposição. Ela é descrita nos detalhes em 6, 13ss. (A
origem histórica do material ilustrativo não pode ser aqui analisada;
cf. os comentários exegéticos). O agir de Deus e a atuação da comu­
nidade estão, novamente, entrelaçadas numa unidade inseparável.
O agir de Deus é o precedente e o fundamental. As armas de Deus
servem para que a comunidade resista nos "dias maus" e se man­
tenha inabalável, ainda mais que ela não tem de enfrentar carne
e sangue, mas poderes demoníacos (6, 11 e 16). A comunidade
tem condições para sair vitoriosa dessa luta, mas não há espaço
para otimismo nem perfeicionismo. O mundo, por conseguinte, não

no
é o material dócil e maleável da ação cristã, ele se opõe à Igreja.
Nessa luta vigora a lei de combate entre Cristo e os demônios, entre
a luz e as trevas. Não obstante, esse "realismo" não tem nada a ver
com desesperança, pois a comunidade pode revestir-se das eficazes
armas de Deus. Cristão devem combater como os "soldados de Deus".
As armas são a palavra de Deus, a mensagem salutar da paz, o
Espírito e a fé; o que bem merece ser observado. Nada é dito a
respeito das forças e dos feitos morais do homem. Eles, na verdade,
nem poderiam oferecer resistência às potestades demoníacas.
À maneira de Paulo, a carta aos Efésios também assimilou material
da tradição, a saber, em 5, 3-7 um catálogo de vicios e em 5, 8-21
um catálogo de virtudes. A renúncia aos pecados concretos e a citação
deles provavelmente terão sido partes do "catecismo" de ensino batis­
mal. Era necessário dizer justamente aos batizandos o que era bom
e mau segundo a acepção cristã, bem como imbuí-lo sempre de novo
às jovens comunidades. Citam-se, pois, entre outros, indecência,
avareza, piadas frívolas e palavras vãs. Os cristãos não devem ser
co-participantes dos pecadores nem dos pecados (5, 7).
Às trevas — como vimos — contrapõe-se a luz, ou seja, no nosso
caso as virtudes "pneumáticas" da bondade, da justiça, da verdade,
da sabedoria e da compreensão da vontade de Deus. Por meio delas
eliminam-se âs "obras infrutíferas das trevas" (5, 11). Isso tudo são
variações dos catálogos que conhecemos de Gl 5, 19ss, nos quais
são citados ainda uma porção de outros vícios e virtudes. Dessa
forma a velha e a nova vida são radicalmente contrapostas, não
podendo haver nenhuma dúvida quanto ao caminho da comunidade
de Cristo. Como em Paulo, também na carta aos Efésios não existe
o problema da exeqüibilidade, pois do poder do Senhor pode ser
produzido o "fru to da luz". A luz é sempre também fruto da luz.
b) A carta aos Efésios acolheu também um catálogo de normas
para a vida doméstica (5, 22-6, 9) que revela modificações apreciáveis
em comparação com Cl 3, 18ss em particular uma sólida fundamen­
tação cristológica. Esclarece de forma unívoca o que se deve enten­
der por amor dos maridos às esposas: Ele é o amor de Cristo, o qual
se entregou pela comunidade a fim de santificar e purificá-la (5, 25s);
os homens devem amar suas esposas como "seus próprios corpos"
(5, 28). Com esse amor justifica-se, portanto, a submissão da mulher
ao homem, não, porém, o direito de que o homem a domine. As
relações "naturais" entre ambos, bem como o fato do matrimônio,
são subentendidos e transferidos agora para o nível do corpo de
Cristo, daquele corpo cuja cabeça é Cristo. As normas para os
cônjuges são deduzidas do mistério da unidade que envolve Cristo
e sua comunidade. Por isso submissão e amor não se excluem, prin­
cipalmente porque a "agápe" é mais do que obediência. A trans-

111
formação pode ser constatada de maneira bem palpável em 5( 24,
onde se diz que as esposas devem estar sujeitas aos maridos assim
como a Igreja o é ao seu Senhor. O “ grande mistério" do matrimônio
(5, 31ss) consiste em que no corpo de Cristo ele se torna uma repro­
dução da comunhão entre Cristo e a comunidade, uma comunhão
vivencial divina. Ela toma conta do matrimônio entre cristãos e lhe
dá sua configuração. Premissa evidente dessa concepção, que per­
tence à eclesiologia peculiar da epístola, é a eficácia real de Cristo
em seu corpo. Em oposição à doutrina matrimonial católica, a carta
não fala em parte alguma de um "sacramento" do matrimônio; o
matrimônio não "é " um sacramento em si, dado pela sua natureza,
nem tampouco se torna um através do influxo do corpo de Cristo.
A malfadada tradução de "mystérion" (segredo) por "sacramentum",
na Vulgata, constitui-se num mal-entendido de conseqüências funestas.
Se compreendermos o adjetivo "cristão", obviamente desgastado, em
seu sentido profundo e correto, podemos afirmar: O presente catálogo
de normas para a vida doméstica foi quem transformou o matrimônio
de fato no "matrimônio cristão" (envolvido pela comunidade, pelo
corpo de Cristo!) e por esse exato motivo tornou-se uma força capaz
de modificar a história. No entanto, não foi Cristo quem instituiu
o matrimônio, mas Deus, o Criador. Como ordem social do amor
entre os sexos, o matrimônio é um fenômeno pré-cristão, no qual
vivem também judeus e pagãos. No Novo Testamento não encon­
tramos nenhum sacramento que as pessoas — no caso em questão,
os cônjuges — poderiam administrar a si mesmas.
Os escravos devem servir aos senhores terrenos como se o fizes­
sem a Cristo. Eles são "servos de Cristo" (6, 5ss). Resulta daí a
admoestação para a docilidade, "como ao Senhor, e não como a
homens" (6, 7). O divino Juiz está acima de senhores e escravos.
(Não nos é possível abordar aqui detalhadamente a importante dife­
renciação dos termos "sujeição", "submissão" e "obediência", feita
por Else Káhler no livro "Die Frau in den paulinischen Briefen" — cf.
o índice de literatura para o cap. III.)
O material tradicional do catálogo de normas para a vida do­
méstica, portanto, foi integrado na cristologia e eclesiologia da carta.
Circunstância pela qual a frase que o introduz, em 5, 21, reza:
"Sujeitai-vos uns aos outros no temor de Cristo." É esse o critério
válido para todos, independente da posição em que cada um se
encontra. Não se altera, com ele, a posição jurídica do homem, da
mulher e dos escravos.
Constata-se, pois, que o catálogo de normas para a vida domés­
tica na carta aos Efésios ultrapassa de longe Cl 3, 18ss, em primeiro
lugar devido à fundamentação cristológica do amor e, em segundo

112
lugar, pela integração do matrimônio no corpo de Cristo, na comunhão
da comunidade do Senhor.
O catálogo de normas para a vida doméstica, da carta aos
Efésios, é um dos rudimentos mais significativos para a origem e o
desenvolvimento das grandezas sociais cristãs-mundanas, tais como o
"matrimônio cristão", a "casa cristã" e mais tarde também o "povo
cristão". Portanto, aquelas formações sociais em que penetrou o
"éthos" da Igreja, dando-lhes nova configuração e unindo da maneira
mais estreita a Igreja com as ordens "profanas". Ao analisarmos as
cartas pastorais conheceremos mais um rudimento dessa espécie. O
que a carta afirma sobre a luta escatológica não foi, com isso, revogado,
mas essa luta antes é extravasada para a amplitude das ordens sociais.
c) Toda a ética dessa epístola pode ser resumida também na
simples fórmula: "andar de modo digno na vocação" (4, 1), ou:
aceitar-se mutuamente no amor (4, 2), ou: preservar a unidade do
Espírito pelo vínculo da paz (4, 3). A paz possui, evidentemente,
uma qualidade dúplice, a saber, a qualidade escatológica da salvação,
e a qualidade ética, da comunidade fraternal. Podemos verificar
aqui como soteriologia e ética perfazem originalmente uma unidade.
Em comparação com essa constatação, nossas distinções hodiernas são
decididamente secundárias e por isso precisam de ser sempre de
novo transpostas criticamente, quando queremos compreender decla­
rações neotestamentárias. O mesmo vale para os conceitos de justiça
e verdade em 5, 9, ou para o conceito do Espírito em 4, 30.
Em conformidade com Paulo a carta aos Efésios conclama os
cristãos para formarem juízo próprio, a fim de examinarem o que é
agradável a Deus (5, 10). Eles devem entender qual é a vontade de
Deus e possuem as capacidades para tanto (5, 17; cf. Rm 12, 2). A
faculdade de discerni-la têm aqueles que são "luz" (5, 8s) e possuem
o Espírito. Constitui a atividade da razão renovada pelo Espírito
Santo (4, 23); o que também pode ser expresso na forma imperativa.
Por isso 5, 18 diz paradoxalmente: "Enchei-vos do Espírito!" Em resul­
tado, a forma básica da parênese paulina foi preservada na carta aos
Efésios. Da mesma forma continua em vigor a compreensão escato-
lógico-ética do batismo.
A mais importante fórmula sumária que incorporou em si a
quinta-essência do pensamento paulino, encontra-se em 2, 8-10: Pela
graça sois salvos, não por força humana, e essa graça é unicamente
dádiva (cf. Rm 3, 24). "Somos criados em Cristo Jesus para boas
obras, as quais Deus de antemão preparou para que andássemos
nelas." É decididamente impossível expressar de maneira mais clara
e exata a unidade de cristologia, doutrina da graça e ética. Deus em
Cristo é o verdadeiro autor das boas obras. A justiça é presente de
Deus e, concomitantemente, ato do cristão. Ou, em concordância

113
com 4, 32 e 5, 2, poderíamos afirmar: Como amados, os cristãos amam
(cf. Paulo, em Cl 3, 12).
A situação na carta aos Efésios é idêntica à paulina: O "éthos"
está localizado, por assim dizer, entre o "perfectum praesens" (evento
salvífico consumado e ao mesmo tempo presente) da salvação, por um
lado (cruz, ressurreição, batismo, dotação gratuita do Espírito), e
o "fu tu ru m " da salvação, por outro. Essa ética, por conseguinte,
existe somente no "tempo da Igreja", não antes, no paganismo e
judaísmo, nem "depois", na plenitude do reinado de Deus. O dia
da salvação é ao mesmo tempo o dia da luta ética, do amor e das
boas obras, do "fru to da luz". Aqui está o lugar, ou melhor, o
tempo da ética cristonômica, pneumática, de Paulo e da carta aos
Efésios.

2. As cartas pastorais

A ética do cristianismo integrado na sociedade

Se analisarmos agora as cartas pastorais, constataremos logo a


grande diferença no nível teológico. É mister que desçamos das
altitudes da teologia de Paulo e da carta aos Efésios. O "paulinismo"
das cartas pastorais é incomparavelmente mais modesto, mais simples
e, por assim dizer, mais pacato do que na carta aos Efésios. Quase
não se pode falar de uma fundamentação teológica profunda da
ética nas cartas pastorais. Elas estão interessadas em oferecer exor­
tações e motivações sólidas para a organização das comunidades.
Contudo transmitem também fórmulas corretas da doutrina paulina
da justificação.
Anuncia-se com elas uma nova era da Igreja. Ela se vê obrigada
a instalar-se no mundo por um prazo mais longo. Não é possível
conservar a alta tensão da esperança imediata. As perguntas da
segunda e terceira gerações são outras do que as dos primeiros con­
vertidos. Na história das igrejas resultantes da missão no séc. XIX
pode-se estudar exatamente a mesma translação. E também os novos
problemas da ordem eclesiástica e da ética, estreitamente entrelaçados
nas cartas pastorais, têm sua justa razão de ser. Não é lícito que os
desqualifiquemos precipitadamente do ponto de vista teológico. As
razões para isso são tanto mais óbvias, porque nossas comunidades
atuais se assemelham em muito maior proporção ao cristianismo das
cartas pastorais do que ao paulino. Por essa razão precisamos de
recusar-nos a aplicar às cartas pastorais a categoria protestante-pietista
da "apostasia" de Paulo, ou do "catolicismo prim itivo", no sentido
pejorativo da palavra.
As cartas pastorais dão continuidade à linha da tradição que
encontramos nos catálogos de normas para a vida doméstica e em

114
Rm 13: Consiste numa cidadania cristã ou num cristianismo inte­
grado na sociedade (Martin Dibelius).
A tarefa histórica que transparece nas cartas pastorais é conso­
lidar a igreja no mundo por meio de regulamentos eclesiásticos, peto
fortalecimento dos cargos eclesiásticos, por meio de instruções éticas
para uma vida cristã "ordeira" e pacífica da casa. Em todos os
aspectos vísa-se á criação de tradição e costumes. Essas cartas já se
encontram no meio do processo de formação de tradição. E evidente
também que elas se dirigem já aos discípulos de Paulo, portanto, a
um segundo grupo de autoridades eclesiásticas. Para o autor desco­
nhecido são importantes a preservação da "sã doutrina", a afirmação
e proteção da Igreja contra as heresias gnósticas, a ordem interna da
comunidade e os pré-requisitos para o exercício de cargos eclesiais,
tais como de bispo e diácono. Devido a tais tendências, as cartas
pastorais exerceram uma influência histórica muito relevante. Elas
representam o primeiro estágio da Igreja tal qual ela existe ho|e,
isto é, da Igreja "instituída", ordenada pela tradição, pelos cargos e
pelo direito eclesiástico.
Para as cartas pastorais é particularmente característica a combf-
nação do testemunho de Cristo, ou da doutrina paulina da justificação,
reproduzida em fórmulas corretas (cf. II Tm 1, 9; Tt 3, 5), com a
ética da ordem da sociedade — uma combinação que pode ser encon­
trada ainda hoje em muitas comunidades evangélicas. Semelhante
"síntese" provoca a pergunta se a doutrina da graça não é, apesar
de tudo, ameaçada pelas concepções morais vigentes. Por outro
lado é preciso reconhecer que, p. ex., as exortações a Timóteo, para
que dê testemunho inabalado da fé (II Tm 1, óss,- cf. I Tm 1, 18ss) são
vigorosas e não permitem nenhum tipo de transigência no tocante
à verdade divina do Evangelho. Nesse sentido também esses do­
cumentos traçam uma linha divisória muito clara diante do mundo.
Evidencia-se que ela foi necessária devido ao perigo do gnosticismo,
uma religião redentora que, aos olhos do homem da Antiguidade
tardia, tinha que parecer extraordinariamente semelhante ao cris­
tianismo.
Que é, pois, a cidadania cristã já por vezes mencionada?
Característica para ela é, por exemplo, o postulado de que os cristãos
devem viver uma vida tranqüila e pacífica, em piedade ("eusébeia"
— um termo típico para esses escritos) e honradez (I Tm 2, 2). Ou,
então, lemos em Tt 2, 12 que os cristãos devem viver "sensata,
justa e piedosamente" — o que são conceitos basilares da moral e
religiosidade helenistas da época. À graça de Deus, que traz a
salvação a todos os homens (Tt 2, 11), é atribuído um caráter peda­
gógico: Ela "nos educa" a vivermos conforme é dito em Tt 2, 12.
Educa também para a renúncia aos desejos mundanos, aos quais os

115
cristãos precisam de abdicar. O limite com o "m undo", portanto,
é traçado sobretudo com conceitos morais. A verdadeira vida cristã
se manifesta nas boas obras (I Tm 2, 10). Para as mulheres elas
consistem principalmente em submissão ao marido, castidade e
decência (I Tm 2, 9). Muito estranha é, entretanto, a assertiva que
se segue logo depois, de que a mulher é salva mediante o "dar
à luz", caso persevere na fé, no amor e na santificação (I Tm 2, 14s).
Isso está relacionado com uma interpretação específica, judaica, da
história da queda: Não Adão, mas Eva, a mulher, foi quem se deixou
seduzir — que suporte excelente para o patriarcalismo! A frase sobre
o parir salvífico pode ser judaica, mas não é cristã. Ela é absoluta­
mente incompatível com as fórmulas da doutrina da graça, prove­
niente de Paulo, fórmulas essas relatadas nas mesmas cartas — e
isso apesar das condições cristãs referentes à conduta das mulheres,
que lhes são acrescentadas. Permanece espantoso que um autor que
luta de maneira tão severa contra a heresia nem sequer tenha notado
essa contradição irreconciliável. Patenteia-se aqui claramente a ameaça
de uma moral civil judaizante para a "sã doutrina" de Cristo e da
graça.
Nada mais podemos sentir da enorme amplitude do pensamento
paulino, da superabundância do Espírito e dos carismas, dos paradoxos
de Paulo, tais como poder e fraqueza, viver e morrer, sofrimento e
alegria. O autor das cartas pastorais não gosta dos extremos, sejam
eles de caráter pneumático ou ascético. Ele se empenha por mode­
ração e disciplina, as quais para ele fazem parte bem natural da
devoção.
Tt 1, 9 demonstra que nesse estágio histórico é possível manter
a união entre a graça e a obra cristã: O apego à "palavra fiel de Deus"
da parte dos presbíteros precisa de estar relacionado com diversas
virtudes sociais, como a irrepreensibilidade. Não devem ser bebe­
dores, nem procurar brigas, etc. Devem dar exortações embasados
na "sã doutrina" (p. ex., I Tm 1, 10; II Tm 4, 3; Tt 1, 9). Na realidade
nada encontramos das fundamentações teológicas de Paulo e da carta
aos Efésios. É pressuposta como já existente a conexão entre graça
e procedimento ético. Por outro lado, porém, não se procedeu sim­
plesmente a uma adoção de uma ética secular, pois o autor pensa
com seriedade poimênica na vivência cristã, em especial natural­
mente na dos que exercem um cargo. A doutrina é quem fornece
a norma da vida cristã, nisso o autor persevera. Di-lo em formulações
simples, muitas vezes compactas, e compreensíveis por todos.
De forma correspondente é formulada também a posição con­
trastante, a saber, a ligação entre ateísmo e desregramento. Os
hereges são apresentados como pessoas depravadas (I Tm 6, 3ss;
II Tm 3, 8). Está dada, com isso, a possibilidade de que aquele

116
que se sabe melhor, caia em moralismo. A ética das cartas pastorais,
entretanto, prefere o caminho intermediário. Razão pela qual se
rejeita também o rigorism o ascético. As viúvas jovens, por exemplo,
deveriam casar novamente (I Tm 5, 14). Evidentemente os adversários
gnósticos proibiam o matrimônio (I Tm 4, 3). O bispo deve ser casado,
se bem que esposo de uma só mulher (I Tm 3, 2; Tt 1 , 6 ) . — Todos
os alimentos devem ser desfrutados mediante agradecimento. Tudo
que Deus criou é bom, e não condenável (I Tm 4, 3ss). A Palavra
de Deus e a oração o santificam. Assim, o "éthos" das cartas pastorais
é determinado por entendimento, sensatez e moderação cristãs. É
uma ética sóbria e ao mesmo tempo praticável, que se mantém inde­
pendente tanto do libertinismo como do ascetismo da época.
Digno de nota é que, em contraposição ao ascetismo, se fala da
boa Criação de Deus. Recorre-se desse modo à fé veterotestamentária
na Criação, para dar combate à gnose. E com efeito, ela deu exce­
lentes resultados na dura luta da Igreja primitiva com a gnose. Inicia,
portanto, já nas cartas pastorais a validação da instituição do Criador,
da qual faz parte sobretudo também o matrimônio, é óbvio que com
isso se tornou impossível dar continuidade ao ascetismo parcial de
Paulo (recomendação do celibato espontâneo), como o destacamos
em I Co 7. Nessa questão existe um contraste considerável entre
Paulo e o autor das cartas pastorais, de modo que podemos afirmar
partindo somente dele que: Quem redigiu I Co 7 de maneira alguma
pode ter escrito as cartas pastorais.
No quadro provisório até aqui delineado inserem-se agora per­
feitamente os rudimentos de uma ética cristã da fam ília, que as cartas
apresentam. Sim, elas manifestam até mesmo tradição fam iliar cristã,
por exemplo, em II Tm 1, 3 .5 , onde se citam os ascendentes e a fé
da avó e da mãe. É o fenômeno de uma fé herdada, tal como ela
é característica para a terceira geração. É o início da nossa situação
cristã, uma vez que todos nós provimos do cristianismo legado a nós.
Circunstância idêntica apresenta-se em II Tm 3, 15: "que desde cedo
conheces as sagradas letras". Aqui está o início da educação cristã,
da orientação dos filhos e da juventude para a fé herdada e para
uma vida em obediência e disciplina (I Tm 3, 4.1 2 ; 5, 10; Tt 1, 6).
As mulheres cristãs devem dar à luz filhos (I Tm 2, 15; 5, 14). As
crianças devem ser bem educadas (I Tm 3, 4 .1 2 ; 5, 10; Tt 1, 6).
Ressalta-se, outrossim, o dever de cuidar dos membros mais idosos
da família e da comunidade (I Tm 5, 4 .8 .1 6 ). Virtudes da família
são disciplina, obediência, moderação e simplicidade. As mulheres
não devem ostentar vestidos e atavios preciosos (I Tm 2, 9ss). Seu
verdadeiro adorno são boas obras.
É preciso honrar as viúvas e os velhos. Quem não cuida de sua
fam ília é um renegador da fé (I Tm 5, 8). Não se nota mais nenhum

117
cristãos precisam de abdicar. O limite com o "m undo", portanto,
é traçado sobretudo com conceitos morais. A verdadeira vida cristã
se manifesta nas boas obras (I Tm 2, 10). Para as mulheres elas
consistem principalmente em submissão ao marido, castidade e
decência (I Tm 2, 9). Muito estranha é, entretanto, a assertiva que
se segue logo depois, de que a mulher é salva mediante o "dar
à luz", caso persevere na fé, no amor e na santificação (I Tm 2, 14s).
Isso está relacionado com uma interpretação específica, judaica, da
história da queda: Não Adão, mas Eva, a mulher, foi quem se deixou
seduzir — que suporte excelente para o patriarcalismo! A frase sobre
o parir salvífico pode ser judaica, mas não é cristã. Ela é absoluta­
mente incompatível com as fórmulas da doutrina da graça, prove­
niente de Paulo, fórmulas essas relatadas nas mesmas cartas — e
isso apesar das condições cristãs referentes à conduta das mulheres,
que lhes são acrescentadas. Permanece espantoso que um autor que
luta de maneira tão severa contra a heresia nem sequer tenha notado
essa contradição irreconciliável. Patenteia-se aqui claramente a ameaça
de uma moral civil judaizante para a "sã doutrina" de Cristo e da
graça.
Nada mais podemos sentir da enorme amplitude do pensamento
paulino, da superabundância do Espírito e dos carismas, dos paradoxos
de Paulo, tais como poder e fraqueza, viver e morrer, sofrimento e
alegria. O autor das cartas pastorais não gosta dos extremos, sejam
eles de caráter pneumático ou ascético. Ele se empenha por mode­
ração e disciplina, as quais para ele fazem parte bem natural da
devoção.
Tt 1, 9 demonstra que nesse estágio histórico é possível manter
a união entre a graça e a obra cristã: O apego à "palavra fiel de Deus"
da parte dos presbíteros precisa de estar relacionado com diversas
virtudes sociais, como a irrepreensibilidade. Não devem ser bebe­
dores, nem procurar brigas, etc. Devem dar exortações embasados
na "sã doutrina" (p. ex., I Tm 1, 10; II Tm 4, 3; Tt 1, 9). Na realidade
nada encontramos das fundamentações teológicas de Paulo e da carta
aos Efésios. É pressuposta como já existente a conexão entre graça
e procedimento ético. Por outro lado, porém, não se procedeu sim­
plesmente a uma adoção de uma ética secular, pois o autor pensa
com seriedade poimênica na vivência cristã, em especial natural­
mente na dos que exercem um cargo. A doutrina é quem fornece
a norma da vida cristã, nisso o autor persevera. Di-lo em formulações
simples, muitas vezes compactas, e compreensíveis por todos.
De forma correspondente é formulada também a posição con­
trastante, a saber, a ligação entre ateísmo e desregramento. Os
hereges são apresentados como pessoas depravadas (I Tm 6, 3ss;
II Tm 3, 8). Está dada, com isso, a possibilidade de que aquele

116
que se sabe melhor, caia em moralismo. A ética das cartas pastorais,
entretanto, prefere o caminho intermediário. Razão pela qual se
rejeita também o rigorismo ascético. As viúvas jovens, por exemplo,
deveriam casar novamente (I Tm 5, 14). Evidentemente os adversários
gnósticos proibiam o matrimônio (I Tm 4, 3). O bispo deve ser casado,
se bem que esposo de uma só mulher (I Tm 3, 2; Tt 1 ,6 ). — Todos
os alimentos devem ser desfrutados mediante agradecimento. Tudo
que Deus criou é bom, e não condenável (I Tm 4, 3ss). A Palavra
de Deus e a oração o santificam. Assim, o "éthos" das cartas pastorais
é determinado por entendimento, sensatez e moderação cristãs, é
uma ética sóbria e ao mesmo tempo praticável, que se mantém inde­
pendente tanto do libertinismo como do ascetismo da época.
Digno de nota é que, em contraposição ao ascetismo, se fala da
boa Criação de Deus. Recorre-se desse modo à fé veterotestamentária
na Criação, para dar combate à gnose. E com efeito, ela deu exce­
lentes resultados na dura luta da Igreja primitiva com a gnose. Inicia,
portanto, já nas cartas pastorais a validação da instituição do Criador,
da qual faz parte sobretudo também o matrimônio. É óbvio que com
isso se tornou impossível dar continuidade ao ascetismo parcial de
Paulo (recomendação do celibato espontâneo), como o destacamos
em I Co 7. Nessa questão existe um contraste considerável entre
Paulo e o autor das cartas pastorais, de modo que podemos afirmar
partindo somente dele que-, Quem redigiu I Co 7 de maneira alguma
pode ter escrito as cartas pastorais.
No quadro provisório até aqui delineado inserem-se agora per­
feitamente os rudimentos de uma ética cristã da família, que as cartas
apresentam. Sim, elas manifestam até mesmo tradição fam iliar cristã,
por exemplo, em II Tm 1, 3 .5 , onde se citam os ascendentes e a fé
da avó e da mãe. É o fenômeno de uma fé herdada, tal como ela
é característica para a terceira geração. É o início da nossa situação
cristã, uma vez que todos nós provimos do cristianismo legado a nós.
Circunstância idêntica apresenta-se em II Tm 3, 15: "que desde cedo
conheces as sagradas letras". Aqui está o início da educação cristã,
da orientação dos filhos e da juventude para a fé herdada e para
uma vida em obediência e disciplina (I Tm 3, 4 .1 2 ; 5, 10; Tt 1, 6).
As mulheres cristãs devem dar à luz filhos (I Tm 2, 15; 5, 14). As
crianças devem ser bem educadas (I Tm 3, 4 .1 2 ; 5, 10; Tt 1, 6).
Ressalta-se, outrossim, o dever de cuidar dos membros mais idosos
da família e da comunidade (I Tm 5, 4 .8 .1 6 ). Virtudes da família
são disciplina, obediência, moderação e simplicidade. As mulheres
não devem ostentar vestidos e atavios preciosos (I Tm 2, 9ss). Seu
verdadeiro adorno são boas obras.
É preciso honrar as viúvas e os velhos. Quem não cuida de sua
família é um renegador da fé (I Tm 5, 8). Não se nota mais nenhum

117
vestígio da possibilidade de que a exigência do discipulado de Jesus
rompa também com os laços familiares, quando a decisão pelo reinado
de Deus é dificultada pela piedade filial. Deus se torna, numa formu­
lação extrema, o conservador e patrono da família, assumindo desse
modo o lugar dos deuses domésticos pagãos. Contudo ele permanece
ao mesmo tempo o Deus da graça, que faz proclamar a salvação a
todos os homens, e o Criador do mundo. Ocorre uma junção singular
de universalismo e patriarcalismo cristão.
Toda a ética das cartas pastorais é realista e realizável, a mais
afastada possível do idealismo utópico. Tanto na educação como na
organização da vida doméstica ela é muito bem aplicável. Todavia
falta-lhe a fundamentação escatológica e pneumatológica, que é ca­
racterística para Paulo. Isso não quer dizer que a expectativa escato-
lógica tenha sido abandonada de completo. Em Tt 2, 12s mencionam-se
expressamente a "bendita esperança" e a espera pela manifestação
de Deus e do Salvador Cristo Jesus. No entanto não se pode mais
falar de uma esperança imediata. É necessário instalar-se no mundo.
Obviamente falta de todo a "dialética da existência escatológica"
como Paulo a desenvolveu. Por outro lado não se depreende nada
a respeito da grande crise da esperança imediata que supostamente
teria abalado a Igreja prim itiva depois de Paulo. Por muito tempo
tal crise fo i defendida na pesquisa neotestamentária, sem que, no
entanto, houvesse provas suficientes nos textos. Ela se deveu a uma
valorização demasiadamente alta da chamada esperança imediata,
que não raro assumiu o caráter de uma "lenda entre os estudiosos".
Mas é bem verdade que as pessoas passaram a viver mais acentuada-
mente da presença da salvação manifesta do que do futuro, o que
por sua vez eleva a importância da ética.
Faz parte desse contexto também o acento dado ao mundo
como Criação de Deus em contraposição à gnose. Ele adquire simples­
mente um peso maior, quando nem amanhã nem depois de amanhã
não acontecerá mais o fim do mundo. Por isso matrimônio e relações
sexuais não são maculados (veja acima). As cartas pastorais adotam
uma posição diretamente oposta à asserção dos gnósticos de que
Jesus teria vindo "para destruir as obras do gênero fem inino". O
cristianismo das cartas pastorais seguramente deu uma contribuição
considerável para proteger a Igreja diante da dissolução no gnosti-
eismo.
De mais a mais, é preciso constatar como sendo característico
para semelhante posição uma estreita ligação de ordem eclesiástica
e ética. Bispo, diácono e presbítero têm de preencher certas condições
morais, p. ex., devem ser "maridos de uma só m ulher" e bons chefes
de fam ília. O mesmo vale para as assim chamadas viúvas a serviço

118
da comunidade, que devem ser experimentadas em toda boa obra
(I Tm 3, Iss; 5, 9ss).
Em Tt 2, 3ss deparamos também com uma ampliação do catálogo
de normas para a vida doméstica: Homens idosos, mulheres velhas
e mulheres jovens, moços e escravos são estimulados è sensatez, à
disciplina e às boas obras. A tônica de todas as exortações é a mesma:
Devoção, obediência e probidade devem distinguir os cristãos. —
Em Tt 3, 1 e I Tm 2, lss é ordenado que se ore pelo imperador e
pelas autoridades estatais, às quais se deve obedecer, é a continuação
de Rm 13, que também é testemunhada em I Pe 2, 13ss, agora
complementada pelo incentivo à oração. Com isso é adotado um
costume judaico. Nem judeus nem cristãos podiam tomar parte no
culto pagão ao imperador. O contraste radical contra o culto a César
naturalmente se evidencia somente no Apocalipse de João, na última
década do século I, sob o imperador Domiciano. Por exemplo, o cap.
13 encara o culto a César como o endemoninhamento e como a
"hybris" do Império. A oração pelo imperador passa a ocupar o lugar
da veneração das imagens de César. É essa a lealdade positiva dos
cristãos. A oração a eleva acima da simples moral de súditos, de
natureza secular.
A ética de honestidade pia e de boa cidadania contém também
um perigo: a acomodação àquilo que todo o mundo considera bom e
correto. Perde-se o caráter do amor de Cristo e da sua comunidade, o
qual transcende qualquer moral. O argumento de que todas as coisas
foram criadas puras pode facilmente obnubilar a oposição entre pe­
cado e Criação, oposição essa que constitui a essência deste tempo
do mundo. O pecado transforma-se, então, em mera transgressão
de regras morais, ele é "aburguesado". A ética de Paulo e da carta
aos Efésios, ao contrário, seguramente não estava ameaçada desse
perigo. O resultado é uma simplificação do antagonismo escatológico
de Igreja e mundo (cf., p. ex., Ef 6, 10ss) em um contraste meramente
moral. O pecado torna-se corrupção, e santificação e pureza trans­
formam-se em honestidade.
Por outro lado, porém, deve ser ressaltada também a intenção
legítima dessa ética: Ela oferece normas praticáveis, com as quais é
possível criar ou, respectivamente, manter a ordem na comunidade.
As normas são adequadas para a educação cristã. Quem pode ser
nomeado bispo e diácono? Uma pergunta que precisa de ser respon­
dida com regras inequívocas. Não é possível dispensar, então, a
fixação de certas qualidades humanas e morais. O bispo também
tem que ter condições de pregar e ensinar. Capacitação "teológica"
e social justapõem-se (o que é válido ainda hoje). Será, portanto, que
a Igreja já está iniciando aqui o caminho no qual ela se transformará
em "instituição moral", e no fim do qual aparecerá como a chamada

119
Igreja nacional ou Igreja estalai? A Igreja das cartas pastorais não
sucumbiu a esse perigo. Atendo-se ao Senhor divino, Jesus Cristo,
à graça de Deus e à substância da "sã doutrina", ela foi preservada
de degenerar numa instituição moral. É verdade, porém, que essa
Igreja não foi capaz de manter vivo o cristianismo carismático da
plenitude do Espírito — que podemos chamar, em síntese, cristianismo
"extraordinário", em contraposição àquele integrado na sociedade. É
isso que a separa de uma comunidade paulina como, p. ex., a
coríntia.
Do ponto de vista da ética social como da história social possui
máxima importância, promissora para o futuro, a estreita e íntima
conexão entre a Igreja e a casa, exibida pelas cartas pastorais. Ela
se constitui, ao lado dos catálogos de normas para a vida doméstica,
no segundo ponto de partida para a formação das ordens sociais
quase que bipolares, cristãs-mundanas, de que falávamos acima, no
inciso sobre a carta aos Efésios. Dessa união de Igreja e casa partiram
muitas forças de ordem ética para a sociedade. Por outro lado, é
compreensível que ainda não se constatam relações igualmente es­
treitas com outras grandezas sociais, p. ex., o Estado. Os cristãos
daquele tempo não eram nem magistrados nem soldados, e uma
atividade política existia unicamente de cima para baixo, no Império
estruturado hierarquicamente.
Sem dúvida podem ser chamados não-paulinos o destaque dado
à idéia da Criação bem como a moral natural-cristã e a educação
racional-cristã. A soteriologia e a doutrina da graça, no entanto,
estão muito mais enraizadas na tradição paulina do que, por exemplo,
as da primeira carta de Clemente. Também nas cartas pastorais é
possível verificar uma investida contra o ultrapaulinismo gnóstico, a
qual se expressa no apego à ordem vigente da Criação.
Anuncia-se, por conseguinte, mas sem o emprego desta fórmula,
o posterior tema da "nova lei". Conhecem as cartas pastorais ainda
os imperativos da graça ou apenas uma lei de costumes instituída
pela Igreja? Seria por demais unilateral defender essa última afir­
mação, porque as cartas pastorais persistem na doutrina da salvação,
na verdade divina do Evangelho de Cristo. Cristo não é transformado
de novo num "segundo Moisés", ele continua sendo o Redentor di­
vino, doador de salvação e vida. Contudo transparece o perigo de
que a fé salvífica da Igreja e a moral secular poderiam, um dia,
desagregar-se.
3. A primeira epístola de Pedro
Cristo, o protótipo do amor e do sofrimento
O nível teológico de I Pedro é consideravelmente superior ao
das cartas pastorais. O "paulinism o" de I Pedro não apenas vive de

120
fórmulas herdadas, mas representa um desenvolvimento autônomo
da teologia de Paulo. Esse documento consiste principalmente num
sermão exortativo, mas os imperativos são justificados teologicamente
por indicativos da mensagem da salvação. No centro está, além do
mandamento do amor, a exortação para uma conduta santa.
a) Diversos estudiosos defendem a opinião de que 1, 3-4, 11
(onde se verifica uma cesura) estão baseados sobre uma parênese
batismal, e a absorveram. Dirigida originalmente a recém-batizados,
ela assumiu, na presente carta, a forma de uma lembrança do batismo.
Ao falarmos das primeiras comunidades helenistas (cap. II, item 3),
apontávamos para o significado do batismo e da parênese batismal
para o surgimento da ética cristã primitiva. Se nossa carta fala em
1, 3 do acontecimento de que Deus "regenerou" os cristãos "para
uma esperança viva", ela não faz uma declaração genérica e abstrata
sobre a ação salvadora de Deus, mas uma concreta, pois ela descreve
exatamente aquilo que aconteceu no batismo. A redenção assumiu
nele sua forma histórica concreta, tornou-se um acontecimento na
vida dos antigos pagãos, atualmente cristãos. Também a exortação
de despojar-se de toda a malícia (2, ls) deve ter pertencido desde
sempre ao conteúdo central das parêneses batismais. Em 3, 21 cita-se
expressamente o batismo: Ele salva pelo poder da ressurreição de
Jesus Cristo (cf. Rm 6, 3ss; Ef 5, 26). Seu efeito é duplo: por um
lado, salvação do pecado e da descrença, da veneração dos ídolos
pagãos, mas também, por outro lado, purificação e santificação, nova
conduta em lugar da velha (cf. I Co 6, 11). A afirmação pode receber,
como em Paulo, a forma de exigência (1, 13ss). Exige-se um com­
portamento santo, contraposto aos desejos que dominaram os atuais
cristãos antes, no tempo da "ignorância". O contraste entre outrora
e agora (cf. o item 1 deste capítulo, sobre a carta aos Efésios) foi
provocado justamente pelo batismo. Ele demarca a mudança, o
câmbio existencial da perdição para a salvação, do pecado para a
santificação.
A exortação da santidade é fundamentada em 1, 16 com o
mandamento central veterotestamentário ao povo de Deus: "Sede
santos, porque eu sou santo" (Lv 11, 44). Esse Deus, porém, julga
cada um segundo a sua obra, motivo por que se requer um "proce­
dimento em temor" — o que vem a ser um embasamento escatológico
para a exortação (1, 17s). A isso se acrescenta imediata mente a
menção do evento salvífico manifesto: Os cristãos foram resgatados
pelo precioso sangue de Jesus Cristo (1, 19s). Assim como o novo
comportamento é, graças ao batismo, simultaneamente ato de Deus
e exigência, pode-se falar do amor fraterno também de uma dúplice
maneira: A purificação para o amor ao irmão resulta do estar regene­
rado, ao mesmo tempo, porém, ela é novamente solicitada (1, 22s).

121
O que aconteceu no batismo deve ser apropriado e realizado pelo
agir da comunidade.
Do imperativo que exorta ao amor fraternal retorna-se logo em
seguida à fundamentação com o indicativo da salvação, pois os cristãos
foram regenerados de semente incorruptível pela Palavra de Deus
viva (1, 23). Tal relação estreita e íntima de imperativo e indicativo
corresponde à estrutura da ética paulina (cf. capítulo III, item 3).
Fazer o bem pode ser simplesmente designado como a vontade de
Deus (2, 15). Nesse contexto deparamos com um paradoxo, o qual
igualmente nos lembra Paulo: Como os verdadeiramente livres os
cristãos são ao mesmo tempo os escravos de Deus (2, 16). Por isso
não devem fazer de sua liberdade um "pretexto para a maldade"
(cf. Rm 6, lls s e Gl 5, 13ss). É significativo que semelhante asserção
é feita no contexto do catálogo dé normas para a vida doméstica, no
qual pouco antes se exigiu a submissão ao imperador e a seus magis­
trados (2, 13s).
b) No que respeita, pois, a esse catálogo, ele se aproxima
muito do da carta aos Efésios (Ef 5, 22ss), porquanto também está
ampliado e enriquecido por fundamentações teológicas e cristológicas
(2, 15ss; 2, 19ss; 3, 4ss). A disposição diverge da de Cl 3, 18ss
e Ef 5, 22ss. No início encontra-se a admoestação para a sujeição
ao imperador e às autoridades (2, 13), o que, aliás, coincide com
catálogos helenistas de normas para a vida doméstica. Seguem-se
primeiramente as exortações aos escravos (2, 18ss), que são estimu­
lados a servirem também aos senhores "perversos". Isso porque
representa graça perante Deus que alguém sofra injustamente em
tribulações (2, 19s). A declaração é justificada com a indicação do
sofrimento de Cristo, que não cometera nenhum pecado. Deixou com
isso um "exem plo" para o discipulado dos cristãos (2, 21ss). Por
intermédio dele os cristãos foram libertos do pecado — a saber,
pela sua cruz — , a fim de que vivam para a justiça (2, 24). A linha
de pensamento faz lembrar direta e vivamente Rm 6, 11 e 18,
tanto no que se refere à concepção da libertação quanto ao emprego
de palavra justiça. Partindo da exortação aos escravos, o autor pene­
trou profundamente na teologia da cruz. O pensamento do sofrimento
inocente de escravos cristãos constitui a ponte para a cristologia.
Somente depois dessa exposição cristológica segue-se a admoes­
tação às esposas (3, Iss). Em concordância com os demais catálogos
de normas para a vida doméstica o mandamento é que elas sejam
submissas a seus maridos. A explicação mais detalhada, no en­
tanto, é peculiar para o autor de nossa carta. As mulheres são
remetidas ao exemplo de mulheres santas da velha aliança, como,
p. ex., Sara (3, 5ss). Esboça-se um tipo de imagem da mulher cristã:
A cristã não sobressai por enfeites exteriores ou vestidos luxuosos,

122
mee pela pessoa interior do coração e pela natureza imperecível de
ura espírito manso e tranquilo (3, 3s). Os homens devem conviver
sensatamente (com discernimento) com suas esposas, porque elas são
a parte mais frágil, tratando-as com honra, porque são "co-herdeiras
da graça da vida" (3, 7). É expressivo que aqui a exigência é
justificada pelo pensamento de igual participação na graça. A infe­
rioridade social da mulher, como nos demais catálogos, não é nem
criticada nem abolida, mas a relação homem — mulher dentro da
comunidade é profundamento modificada pela igualdade de co-
herdeiros. A conseqüência obrigatória foi que a mulher não mais
podia ser meramente um objeto da dominação e do desejo de posse
do marido. Pm todos esses elementos por nós destacados o catálogo
de normas para a vida doméstica, de I Pedro, aparece como uma
evolução singular e independente da antiga tradição.
O trecho 5, lss oferece um acréscimo ao catálogo de normas para
a vida doméstica, com exortações para os presbíteros e os mais
jovens. Os presbíteros devem ser bons pastores e exemplos para o
"rebanho de Deus" (a comunidade); são advertidos diante da ganân­
cia; devem desempenhar sua função com alegre prontidão e dedi­
cação. Não foram instituídos como "dominadores" sobre a comunidade
(5, 3) — uma exortação memorável para todos os tempos e todas as
igrejas! Novamente não falta uma breve fundamentação cristológica.-
Quando o "Supremo Pastor" se manifestar, eles receberão a imar­
cescível coroa da glória (5, 4), a saber, caso tiverem sido exemplares
para o rebanho a eles confiado. De maneira similar às cartas pas­
torais, também aqui o "éthos" do catálogo de normas para a vida
doméstica e a ordem eclesiástica se misturam.
Não nos é possível investigar aqui se o preparo para sofrimento
futuro desempenhou um papel importante já na parênese batismal
original e mais antiga. Encarado a partir da situação dos recém-
batizados, a idéia é bem admissível. As dificuldades e os fardos,
aos quais eles se expunham no seu meio-ambiente, sua parentela
e seu círculo de conhecidos pagãos, precisavam de ser no mínimo
consideráveis. Para novos cristãos era sábio e útil um preparo que
fazia compreender o sofrimento como conseqüência necessária da
aceitação da mensagem salvífica. Em nossa carta, no complexo
1, 3-4, 11, tal preparação exerce, pelo menos, uma função importante
(2, 13ss; 3, 13ss; 4, lss). Caso o autor tenha sido impelido para
essas exortações de prontidão ao sofrimento por meio de uma situação
específica, isso não comprova que não poderia ter havido formas
mais antigas de parênese batismal que procurassem alertar cristãos
recém-batizados para sofrimentos iminentes e prepará-los mediante
exortações à paciência e perseverança. A primeira epístola de Pedro
compreendeu — e também nisso ela é semelhante a Paulo — que agir

123
e sofrer estão inseparavelmente entrelaçados na existência cristã e
que essa unidade possui como protótipo o próprio amor e sofrimento
de Cristo.
Uma vez que nessa "carta" está viva também a consciência
escatológica: "O fim de todas as coisas está próxim o" (4, 7; cf.
1, 20 e 5, 8ss), será acertado afirmar, por fim , que as exortações
de I Pedro representam uma vigorosa evolução da parênese de Paulo
e que possuem, particularmente como sermão de lembrança batismal,
para nós um imenso valor tanto histórico quanto teológico.

124
Capitulo V

A EPÍSTOLA DE TIAGO

A justiça ativa das boas obras


No ponto mais distante de Paulo, na paisagem do Novo Testa­
mento, encontramos a "carta" de Tiago. Na realidade nem se trata
de uma carta, mas de um escrito essencialmente parenético que,
nesse aspecto, é único no Novo Testamento. Por esse motivo ele
sempre de novo provocou a indignação daqueles que, como Lutero,
provêm de Paulo. Amantes da estatística calcularam que nos 108
versículos desse escrito se encontram nada menos de 54 imperativos.
A epístola de Tiago compõe-se de ditos isolados e séries de ditos, ou
de pequenos "tratados". Seu único objetivo é instruir cristãos para
a prática de boas obras e, em conexão, enunciar também as neces­
sárias exortações. Para o autor importam os cultos de ação. Nesse
mister ele utiliza muitíssimo material da parênese judaica e helenista,
que naquele tempo era mundialmente difundida e ultrapassava as
fronteiras de religiões e culturas.
Certamente não se poderá esperar de tal coletânea de ditos pare-
néticos uma esquematização sistemática. A concatenação das frases
é solta. Sobretudo inexiste na quase totalidade o embasamento teo­
lógico, e os imperativos aparecem na maioria desthuídos dos indi­
cativos da salvação que os fundamentam, conforme o conhecemos de
Paulo e da carta aos Efésios. Sem nenhuma dúvida toma vulto com
isso o perigo de uma "ética isolada", uma mera moral. Sempre
chamou a atenção dos exegetas que o nome Jesus é mencionado
apenas duas vezes (1, 1; 2, 1).
Não obstante, Lutero incorreu em injustiça ao designar a carta
de Tiago uma "epístola de palha", é necessário, entretanto, que
entendamos a peculiaridade da carta a partir de sua intenção —
sem dúvida unilateral — uma intenção que também tem um justo
lugar na Igreja, onde o decisivo é a vida cristã, e~não apenas convicções
teológicas. Na carta de Tiago manifesta-se energicamente a neces-

125
sidade existencial da Igreja em formação, de enfrentar as tarefas da
vivência cotidiana. Unicamente a partir desse enfoque é possível
fazermos jus à peculiaridade desse escrito. Tiago trata de perguntas
práticas do dia-a-dia, tais como os "pecados da língua", a pobreza
e riqueza, a sabedoria falsa e verdadeira, fé e obras, etc. Não desco­
brimos nele nenhuma interpretação rabínica da lei, nem tampouco
a ética filosófica grega, mas, em contrapartida, múltiplas tangências
com a literatura de sabedoria judaica e o acervo de ditos dos sinóticos.
A sabedoria de que ele fala conduz a uma vivência em boas obras.
Ela nos enriquece com compaixão, pacifismo, sinceridade e outros
"bons" frutos (3, 13ss. 17ss). De importância decisiva é o "fruto da
justiça" (3, 18; cf. também Mt 5, 7 .9 .2 0 ; cap. 23).
É bem compreensível, por isso, que a pergunta pela relação de
fé e obras possui uma importância especialmente grande para o
autor, ou melhor, o redator do acervo de ditos (2, 14-26), Seria
i.ompletamente desacertado em itir prontamente um juízo a partir
de conceitos paulinos. Em primeiro lugar Tiago deve ser compre­
endido a partir de sua singularidade e das tradições que lhe são
peculiares e que por ele foram assimiladas. Existe naturalmente o
problema teológico "Paulo e Tiago". Mas ele na verdade surgiu
apenas porque encontramos os dois autores no cânone do Novo
Testamento. Se Tiago não estivesse no cânone, mas se fosse arrolado
fora dele, juntamente com o "Ensino dos Doze Apóstolos" (Didaquê)
ou a primeira carta de Clemente, na literatura da era pós-apostólica,
ião se teria chegado à idéia de comparar de modo especial Tiago
com Paulo, ou até de encará-lo como um crítico de Paulo.
A tese central do autor é: Fé sem obras é morta! Vida cristã
concretiza-se em boas obras. Tiago, no entanto, emprega um con­
ceito de fé bem diverso do de Paulo, para quem a fé é fé justifi-
cadora no feito salvífico de Deus em Cristo, uma fé que engloba
em si a obediência vivencial ativa dos "escravos" de Cristo. Tiago,
por sua vez, fala, em comparação com Paulo, de uma fé racional,
a saber, de que existe apenas um Deus, e semelhante fé os demônios
também possuem (2, 19). Tendo-se, pois, como pressuposto esse
conceito teórico de fé, a fé, sem obras, realmente é morta, e torna-se
urgentemente necessário acrescentá-las. Uma fé teórica pode ser tão
desapiedada como mostra o exemplo de 2, lós. Não existe a mínima
menção, em Tg 2, 14ss, de um "andar no Espírito" (Gl 5, 25) que
integra fé e agir numa unidade indissolúvel. Tiago vê diante de si
a dicotomia de ambos e a degeneração da fé. Como, porém, não
se reporta à fé plena em Cristo para solucionar o problema, resta-lhe
apenas o recurso ao acréscimo das obras à fé. Justamente por isso
nos parece fora de cogitação que Tiago tenha polemizado contra
Paulo. Afinal, ele desconhece completamente a compreensão de fé

126
daquele! Se tivesse pretendido discutir pelo menos com um poucc
de seriedade com Paulo, ele teria que ter enfocado a sua fé em
Cristo e o seu conceito de Espírito, deveria ter entrado em diálogo
com Rm 6 e 8 e com Gl 5. Não, Tiago nem sequer se defronta com
Paulo, mas com a pergunta do seu próprio tempo, é somente nosso
paulinismo protestante que introduz aqui de contínuo uma "polêmica
contra Paulo", para a qual faltam na realidade todas as premissas.
Isso porque o estranho monoteísmo teórico não é absolutamente uma
base para dialogar com Paulo. Tampouco está comprovado que a
problemática de 2, 14ss se tenha tornado possível somente depois
de Paulo. O problema bem poderia ter surgido já na cristandade
prim itiva helenista antes de Paulo, visto que qualquer conflito cristão
com a ótica judaica teria que conduzir forçosamente a essa pergunta.
Nas cartas pastorais também não temos um conceito de fé igual ao
de Tg 2. Todavia, como advertência contra uma consciência teórico-
racional de Deus, a sua antítese permanece legítima, o que não deveria
ser obscurecido. Nesse sentido, portanto, a fé é aperfeiçoada pelas
obras (2, 21ss). Hoje somos sumamente críticos, quando ouvimos de
uma "ação conjunta" de fé e obras (2, 22) e levantamos logo uma
acusação por causa de sinergismo, porém, encarada a partir da situação
e posição de Tiago, essa formulação é absolutamente compreensível,
pois ela combate um conceito degenerado de fé. Da mesma forma
é também exagerada a incriminação de "nomismo", sobretudo porque
outras afirmações de Tiago o excluem. Tiago não é um nomista
judaico, porém possui uma concepção de justiça muito similar à de
Mateus.
Dificilmente se enquadraria no "nomismo" o fato de que em
Tiago a legislação ritual não possui nenhuma importância. Ele, porém,
faJa da "le i da liberdade" (1, 25; 2, 12). Ela é a lei "perfeita" ou
"régia". No seu conteúdo, ela' provavelmente poderá ser designada
como o mandamento do amor (cf. M t 22, 39s). Para a misericórdia
não há juízo; quem não usou de misericórdia é submetido ao julga­
mento (2, 13). De semelhantes frasès podemos deduzir o conteúdo
da "lei da liberdade", é nesse sentido que os cristãos devem ser
praticantes da palavra (1, 19ss). Serviço genuíno a Deus é "visitar
viúvas e órfãos na sua angústia, e a si mesmo guardar-se incontami-
nado do mundo" (1, 27). A renúncia pertence também para Tiago ao
cumprimento positivo do mandamento do amor. M uito próximo está
aqui M t 25, 31 ss: Os justos que herdam o reino são aqueles que
saciaram os famintos, visitaram os presos, etc., enfim, que serviram
a todos os miseráveis. A o que parece ocorre aqui a mesma concen­
tração e simplificação do processo como na tradição sinótica de Jesus,
especialmente no evangelista Mateus. Isso não pode realmente ser

127
chamado de nomismo, isso é antes de tudo a pregação legítima do
mandamento do amor.
Falta naturalmente, como já dizíamos, a argumentação teológica,
exceção feita à declaração de 1, 18, de que somos gerados "pela
palavra da verdade" como as "primícias de suas criaturas"; desta­
cam-se aqui conjuntamente a volição de amor e o poder criador de
Deus. Ao que parece, a "nova" criação é imaginada como o restabe­
lecimento da primeira.
Não foi ainda esclarecida satisfatoriamente a origem histórica
do conceito "lei da liberdade". De acordo com 2, 12 ela é uma lei
que julga, o que denota proximidade com o pensamento judaico. Ela
não tem nada a ver com os conceitos modernos da liberdade e da auto­
nomia, independentemente de que Tiago não a entende como uma
lei pesada, coerciva. O que o distingue, novamente, do pensamento
judaico. Ela quer significar provavelmente, como Mt 5, 20, a justiça
melhor e superior, no sentido do cumprimento do mandamento do
amor.
Foi acentuada com razão a proximidade de Tiago com os pais
apostólicos. Ela se baseia sobre o fato de ele haurir da larga cor­
rente da tradição parenética, que na época era "internacional". Não
se deveria falar de um caráter "judaico-cristão" da parênese de Tiago,
apesar das reminiscências do livro de Provérbios, Jesus Siraque e a
sabedoria. O grego correto e culto que o autor escreve não pode
ser a linguagem de um palestino.
Contudo é preciso acrescentar mais algumas características teoló­
gicas do modo de pensar de Tiago. Em 2, 5 lemos a respeito da
eleição dos pobres por Deus (cf. Mt 5, 3 e par.). Esse elemento
coincide em particular com o cunho que a tradição de Jesus adquiriu
em Lucas, denotando, porém, que Tiago também sabe falar do prévio
ato salvífico de Deus. Os pobres escolhidos serão os que herdarão
c reino de Deus. O conceito "pobre" não admite ser espiritualizado,
como resulta do drástico anúncio do Juízo iminente aos ricos (5, Iss).
Sabe-se que também Paulo fala de que Deus escolheu aquilo que nada
é no mundo (I Co 1, 26s). Os eleitos, no entanto, precisam de ser
os praticantes da palavra (Tg 1, 19ss; cf. M t 5, 13ss; 7, 21 ss). A
isso correspondem as palavras de juízo contra os ricos que negam aos
trabalhadores o seu justo salário (5, lss). O Juiz torna sua a causa
dos pobres. Isso corresponde, por sua vez, aos "ais" de Lucas contra
cs ricos (6, 24ss,- cf. 16, 19ss). Tais palavras de Tiago estão plenas
da consciência escatológica da proximidade do Fim. O Juiz divino
já está diante da porta (5, 7 e 9). A advertência recebe uma funda­
mentação escatológica. Também nesse ponto existe uma convergên­
cia de conteúdo com a tradição sinótica. Acumular tesouros nos úl­
timos dias, como os ricos (5, 3), leva à condenação.

128
Também Tiago combate os desejos dos homens (cf. os catálogos
de vícios). É um elemento comum a toda a parênese cristã e também
Paulo não o desconhece. Em Tiago deve-se apontar em especial para
4, 1-12. Todos os delitos como inveja, contendas, vaidade, palavras
rancorosas, etc. são atribuídos a que o homem está preso aos "dese­
jos". "Amizade com o mundo é inimizade com Deus" (4, 4; cf. I Jo 2,
15). Nessa questão Tiago, tal como Paulo ou João, conhece apenas
uma alternativa radical. Isso na realidade representa mais do que
simples moral, isso é reconhecimento cristão de que o homem está
ameaçado pela sua rendição aos bens e poderes terrenos ou, respec­
tivamente, pelo desejo por eles. Os eleitos devem ser encontráveis
no lado de Deus, uma exigência que vale também para os seus atos.
A graça é concedida aos humildes, não aos arrogantes (4, 6). Ela está
próxima unicamente dos que se sujeitam a Deus. Perguntamo-nos:
Acaso a obediência se torna condição para a obtenção da graça? Con­
tudo, de forma semelhante às exigências sinóticas aos discípulos, isso
é apenas um lado da questão. A eleição, o ser gerado pela Palavra
(cf. acima) são pressupostos. A purificação das mãos do pecador e a
santificação dos corações, no entanto, precisam de ser evidentemente
ação pessoal do cristão. Tiago não unificou num só conceito teológico
essas duas afirmações, pois não se interessa nisso, e muito menos é
um teólogo no sentido mais restrito da palavra. Em todas as variantes
importa para ele a exigência de uma justiça de atos. É necessário ser
"praticante da lei" (4, 11). Essa lei exclui que se julgue e calunie com
desamor o irmão — e então ela pode ser unicamente a "le i" do amor
(cf. M t 7, 1; Rm 14, 4). Somente a Deus compete salvar e condenar;
ele é o único "Legislador" e Juiz (Tg 4, 12). O cristão está debaixo, e
não acima da lei de Deus (4, 11).
Em Tiago encontramos a chamada terminologia jurídica condicio­
nal. Sua forma é a seguinte.- Se fizerdes isso e aquilo, p. ex., prati­
cardes a misericórdia e fordes pacíficos, Deus se aproximará de vós.
Também esse ponto corresponde ao pensamento sinótico. Segundo
M t 5, 7 e 9 são os misericordiosos e os pacificadores que alcançam o
reino de Deus. A linha de ataque de Tiago dirige-se sempre contra
uma fé pervertida, portanto, contra algo que Paulo nem sequer cha­
maria de fé. Tiago está, pois, objetivamente de acordo com aquela
tradição sinótica que resume a lei no duplo mandamento do amor a
Deus e ao próximo (Mt 22, 35ss, par.). Quem a cumpre é um justo.
Constitui culpa do homem se ele separa a sua fé do agir obediente.
Também em Tiago não se pode verificar nada a respeito do problema
da exeqüibilidade. A lei foi dada para que fosse cumprida. Quem sabe,
talvez exista também na fórmula "lei da liberdade" uma reminiscên­
cia ou, até, uma adesão à tradição sobre Jesus? Poderíamos recordar
palavras como Mt 7, 12 e 11, 28ss. A melhor ajuda para a interpre-

129
tação, porém, é oferecida por Barnabé 2, 6: "a nova lei de nosso
Senhor Jesus Cristo sem o jugo da coerção". Provavelmente Tiago terá
retirado sua fórmula da tradição, interpretando-a depois conforme o
seu pensamento. Talvez a fórmula proceda da sinagoga helenista. Em
Tiago nada mais se evidencia acerca de uma luta em torno da lei. A
combinação de lei e liberdade poderia representar uma redefinição e
concomitantemente uma delimitação intencionais. Fora de cogitação
permanece que alguém se eleve acima da lei e a julgue. Ele deixaria
de ser, então, praticante da lei (4, lis ) . Afinai, ela é o mandamento
de Deus, e nisso reside sua dignidade. A conexão com a proibição de
falar com hostilidade contra o irmão e de julgá-lo demonstram nova­
mente com clareza que se trata do mandamento do amor. Em 2, 8
o mandamento do amor é expressamente citado segundo Lv 19, 18,
ele é a "lei régia". Se lemos em 2, 13 que "a misericórdia triunfa
sobre o Juízo", isso quer dizer que justamente ela cumpre a lei.
O desapiedado, no entanto, é submetido ao Juízo. O amor está em
concordância com a vontade de Deus (cf. M t 25, 31ss).
Em conseqüência, a importância de Tiago — embora unilateral
— reside em que ele se constitui num pregador incansável da lei
"régia" no sentido do mandamento do amor ao próximo. Sob esse
aspecto, passam para o segundo plano os defeitos daquilo que ele
expõe, de forma "aditiva", sobre fé e obras. No que se refere a
Paulo podemos dizer que Tiago, sem defrontar-se sequer com ele,
deu relevo a apenas um elemento da existência cristã, a saber, à
obediência nas boas obras e, em destaque, na prática do amor. Isso
não pode ser uma correção a Paulo, pois ninguém falou disso de
maneira mais clara do que Paulo! Em contraposição Tiago é ainda
hoje uma correção salutar a toda fé que degenerou em teoria, em
puro saber de Deus, em "teologia", uma correção a toda religiosidade
egoísta, que desconsidera o próximo e que sempre representa uma
grande tentação da comunidade cristã.
A seu modo, também Tiago é um "apóstolo" do amor.

130
CAPÍTULO VI

OS ESCRITOS JOANINOS

O amor fraterno como a passagem da morte para a vida

Enquanto a carta de Tiago representa um documento puramente


parenético, os escritos joaninos constituem o seu pólo oposto. Pode­
ríamos até perguntar: Será que tem algum sentido procurar por uma
"ética" em tais escritos? O que em Tiago e Paulo assim chamamos,
inexiste quase totalmente em João: parênese múltipla e pormenori­
zada, instruções para as mais diversas situações da comunidade ou
de grupos. Provindo de Paulo ou da carta aos Efésios, temos a
impressão de uma enorme redução de perguntas e afirmações éticas.
Contudo precisamos de avaliar imparcialmente também o tipo joanino
em sua peculiaridade, uma tarefa que não é realizada se julgarmos
precipitadamente João a partir de Paulo ou mesmo a partir da tradição
sinótica. Sobretudo está fora de cogitação incorrer numa "paulini-
zação" de João. Ele age ao seu modo e fala a sua própria linguagem.
Não é necessário que, por isso, deixemos de ver as estreitas tangên-
cias de conteúdo entre Paulo e João. No que concerne à ética, elas
consistem em particular numa opinião essencialmente idêntica sobre
o homem no mundo.
Toda a teologia de João é cristologia; isso terá influências
também para a ética, para cujo estudo precisamos de ater-nos em
primeira linha à primeira epístola de João. Cristo é o enviado de
Deus para o mundo. O envio significa redenção. Cristo é a ressur­
reição, a verdade e a vida. Nas palavras "eu sou" o Revelador divino
manifesta o seu ser, o qual é ao mesmo tempo sua missão, pois quem
nele crê possui a vida e escapou do julgamento. Cristologia vem
a ser aqui soteriologia. Em torno desse centro giram, com formula­
ções sempre diferentes, todas as meditações de João. Sob esse
aspecto ele representa o pólo oposto mais extremo a Tiago.
Em confronto com hereges gnósticos, a primeira epístola de
João afirma que o decisivo é a confissão ao Cristo que se mani-

131
festou na carne (I Jo 4, 2). Nessa confissão nota-se o Espírito de
Deus. O que a comunidade tem "ouvido desde o começo", isso
deve permanecer nela. Transparece aqui uma paralela ao pensamento
da tradição nas cartas pastorais. A origem última do evento salvífico
é o amor de Deus, que se expressa no envio de seu Filho ao mundo
(4, 9ss). Ele é a reconciliação pelos nossos pecados (2, 2 e 4, 10).
Ele superou o mundo ("kósmos"; cf. Jo 16, 33: "Eu venci o mundo").
1. Sob "kósmos" deve ser entendido:
a) a Criação toda, todas as coisas feitas por meio do "lógos"
(Jo 1, lss);
b) o mundo como escuridão e mentira, sem vida e verdade —
num paralelo ao conceito paulino do mundo do pecado e da morte
(Jo 1, 4s; cf., p. ex., I Jo 2, 15ss);
c) o lugar da missão do Filho (Jo 3, 16) e, com isso, da Igreja.
Da vitória de Cristo sobre o "kósmos" participa tudo o que é "nascido
de Deus"; isso supera o mundo (I Jo 5, 4). Razão por que a vitória
pode ser tanto atribuída a Cristo como à fé (5, 4).
Resulta daí também a renúncia ao mundo, que é expressada
com enérgicas palavras dualistas, originárias da gnose. Não se deve
amar o mundo (I Jo 2, 15ss). Naquele que ama o mundo não está
o amor do Pai. A "concupiscência da carne" e dos olhos não provém
de Deus. Mas o mundo perece, e da mesma forma, as suas concupis­
cências; "aquele, porém, que faz a vontade de Deus, permanece eter­
namente" (2, 17). Essa última expressão surpreenda talvez aquele
que não se familiarizou com o pensamento de João, que parte de
cima (envio do Revelador, ser nascido de Deus, etc.). O crente, ou
o que é nascido de Deus, "de cima" (cf. também Jo 3, lss!), contudo,
é ao mesmo tempo um agente que ama os irmãos. Nesse sentido
é correto dizermos que a doutrina da salvação inclui, em João, a
ética — o que mais uma vez forma uma paralela substancial com
Paulo e a carta aos Efésios. No evangelho de João 3, 20s, fala-se
por isso da "prática da verdade". Quem pratica o mal, odeia a luz.
Há, pois, obras realizadas "em Deus" (3, 21; cf. I Jo 1, 6). Como
vemos, o conceito de mundo possui também uma faceta moral: O
mundo é o lugar dos maus, dos que não fazem a vontade de Deus.
Os discípulos de Cristo, em contraposição, não pertencem a esse
mundo. Eles não são "do mundo", não participam do seu ser. Cristo
elegeu os discípulos, ordenando-lhes que dêem "frutos" (sem maiores
especificações; Jo 15, 16). O mundo odeia os discípulos, assim como
odiou anteriormente a Cristo. Se os discípulos fossem "do mundo",
o mundo os amaria como algo que lhe é pertinente. No entanto
Cristo os elegeu para fora do mundo (Jo 15, 18ss).
Sem a "prática da verdade" (ou da justiça) é inconcebível para
João uma vida a partir de Deus. Conforme sua compreensão é lícito

132
dizer: Fé sempre é também ação. Em João não é necessária, por conse­
guinte, uma adição no estilo da carta de Tiago. Fé é amor para com os
irmãos. Isso porque amor, amor fraternal, é o conteúdo do agir. Ser
nascido de Deus e amar são a mesma coisa. "Passamos da morte
para a vida, porque amamos os irmãos (I Jo 3, 14). Isso foi dito no
sentido de uma existência de fato e real, o que não exclui que haja
nisso também uma "exortação indireta" (R. Bultmann). O amor é
o sinal da mudança escatológica da existência. Nele se verifica o
que aconteceu com a pessoa. João não estagna no dualismo de
declarações ontológicas. A vida a partir de Deus significa o agir
daqueles que amam. Quem odeia seu irmão está na morte, separado
de Deus, e não possui a vida eterna (3, 14ss; 2, 11). Todo aquele
que pratica o pecado é seu escravo, mas Cristo liberta dessa escra­
vidão (Jo 8, 34). Quem permanece na palavra de Cristo, será libertado
pela verdade (i. é, por Cristo pessoalmente; 8, 32).
2. Em João pode-se falar de um tríplice sentido da palavra
amor:
a) o amor de Deus pelo mundo (Jo 3, ló);
b) o amor de Cristo, que deixa sua vida em favor de seus
amigos (Jo 10, 11; 15, 13; I Jo 3, 16);
c) o amor do cristão nascido de Deus, pelos seus irmãos. Quem
não vivência esse amor também não é nascido de Deus (veja acima).
Foi totalmente suspensa qualquer separação entre salvação e
mandamento, entre cristologia e ética. O novo ser é amor. O amor
é uma única realidade divina, à semelhança de I Co 13, que flui
de Deus através de Cristo em direção dos seus, e de um irmão para
o outro. Amando, os membros da comunidade cristã situam-se dentro
do acontecer do amor divino. Ética é teologia, e vice-versa. Estar
na dimensão da luz divina é amor (I Jo 2, 7ss). Quem ama seu
irmão permanece na luz (2, 10). Quem, no entanto, afirma estar
na luz mas odeia seu irmão, esse se encontra nas trevas (2, 9).
Tudo isso causa a impressão de que João seria capaz de falar
de amor apenas ontologicamente, isto é, no sentido de afirmações
acerca de sua essência divina.
Não obstante, ele fala também do "antigo" e "novo manda­
mento" do amor (2, 7s): Ele é antigo, porque a comunidade o possui
"desde o princípio", e novo, porquanto é verdade divina e porque
agora brilha a luz verdadeira. Conseqüentemente, é novo no sentido
escatológico. Igualmente o evangelho de João, em 13, 34 e 15, 12,
cita o novo mandamento do amor. O imperativo, portanto, não é
absorvido pela ontologia. O que corresponde em substância (não na
forma de expressão) à ética de Paulo. O novo mandamento do amor
é fundamentado com o amor de Cristo: "que vos ameis uns aos
outros, assim como eu vos amei" (13, 34; 15, 12). O "assim como"

133
possui um sentido causal. E nisso visa-se a auto-entrega de Jesus
na cruz: A partir da cruz define-se o que é amor.
Todavia João fala permanentemente apenas do amor de irmãos,
como que voltado para dentro. Não trata do amor universal ao
próximo, dirigido a todos. Os homens no mundo parecem ter-se
desvanecido diante dos olhos de João Em comparação com o Sermão
do Monte e com o agir do Bom Samaritano (Lc 10, 29ss) isso constitui
uma considerável redução e unilateralidade. Do amor de Deus pelo
mundo o olhar deveria com certeza dirigir-se tanto a todos os homens
como aos que crêem. Na primeira epístola de João também se
constata tal restrição.
Ademais, inexistem também quaisquer diferenciações e "aplica­
ções" do mandamento para grupos ou situações específicas dentro
da comunidade, algo em que Paulo é sobejamenfe rico. Embora
seja possível que se fala, no plural, de "guardar os mandamentos"
(2, 3), isso não passa de uma fórmula tradicional. N o,fundo trata-se
unicamente do mandamento do amor. Instrutiva, porém, é a decla­
ração em 2, 3 de que o conhecimento é identificado com o cumpri­
mento dos mandamentos. Sob esse aspecto o cristianismo de João
não é sob hipótese alguma místico, mas de todo ético-prático. Na­
quele que não cumpre os mandamentos não está a verdade (2, 4).
Ter comunhão com Cristo e andar nas trevas, i. é, sem amor, excluem-
se mutuamente (1, 6). Assim também lemos em 4, i20: Quem asse­
vera que ama a Deus, mas odeia seu irmão, é um "mentiroso".
O que não deve ser compreendido com respeito à veracidade subjetiva,
mas à constituição existencial do homem, a seu ser separado da
verdade divina.
3. Em comparação com as cartas pastorais é surpreendente
que nos escritos joaninos não se encontram quaisquer vestígios da
moral de cidadania cristã. João não é impulsionado por semelhante
interesse na conformação da vida secular-cotidiana no matrimônio e
na casa. O contraste radical com o mundo ,não permite que surjam
tais tendências. Em correspondência, também não aparecem as ordens
sociais mundanas. Por outro lado, porém, não se formulam tampouco
mandamentos ascéticos. Para a comunidade toda vale o mandamento
de não amar o mundo (2, 15), mas não se deduzem daí consequên­
cias ascéticas concretas. Poderia ser que essa exortação aponta em
direção de uma "ascese intramundana" que não demanda nenhuma
ascese alimentar e sexual e conserva a pessoa integrada em sua
existência dentro da sociedade, sem contudo atribuir qualquer valor
positivo a essa atitude. Sob essas condições também não se fala da
relação do amor para com os vínculos terrenos. O poder político
aparece apenas em Jo 18, 28ss, no confronto de Jesus e Pilatos,
porém nesse momento não entram em questão instruções éticas.

134
Uma tradição relacionada com Rm 13, Iss, no entanto, transparece
da resposta de Jesus a Pi latos: "Nenhuma autoridade terias sobre
mim, se de cima não te fosse dada" (Jo 19, 11).
Ao que parece havia as seguintes duas possibilidades por volta
do final do primeiro século ou do início do segundo: a de João, com
seu afastamento do mundo, e a da ética de cidadania cristã das cartas
pastorais. Contudo seria totalmente insuficiente se quiséssemos ca­
racterizar essas duas atitudes com "negação do mundo" e "afirmação
do mundo", pois os termos são por demais genéricos. A atitude
sócio-centrada das cartas pastorais não tem nada em comum com
aquilo que o homem moderno designa como afirmação do mundo,
com o seu otimismo racionalista ou naturalista, isso porque permanece
crítica. João, por sua vez, não é pessimista, porquanto o Filho de
Deus se manifestou na carne; a luz verdadeira resplandece agora
(Jo 1, 14ss; I Jo 2, 8). A salvação está no mundo. Com a referida
diferença de João em comparação com a ética das cartas pastorais,
toda ética cristã posterior, também a de hoje, está colocada diante
de uma decisão importante, a qual, no entanto, não podemos perscru­
tar aqui.
Ocorre uma certa diferenciação da comunidade em I Jo 2, 12ss,
onde são endereçadas crianças, jovens e pais. Contudo verifica-se
logo que isso nada tem a ver com a parênese individual concreta
no estilo paulino. O único mandamento dirigido a todos é: Não
amai o mundo (2, 15).
4. Constitui um problema à parte a questão da ausência de
pecado no cristão, levantada por afirmativas de I João. Em 5, 18
lemos que quem é nascido de Deus não vive em pecado; e em 3, 9,
que não pode pecar quem é nascido de Deus. É a conseqüência
direta do dualismo escatológico entre Deus e mundo, que João
expressa de forma absoluta, sem relativizações nem delimitações.
Por outro lado, porém, 5, 16 fala de que um irmão comete pecado,
e 1, 9, do perdão dos pecados, de que os membros da comuni­
dade carecem, encontrando-o em Cristo, que purifica de toda a
injustiça. Em resultado, existe o pecado do cristão, a despeito da
tese acima enunciada! Sobre esse fato baseiam-se, na verdade, as
inúmeras exortações do Novo Testamento. Sem ele toda a parênese
seria supérflua. Em 1, 8 lê-se até muito clara e enfaticamente: Se
dissermos que não temos pecado nenhum, a verdade não está em
nós. Encarar o pecado do cristão como uma "exceção" seria uma
saída que não se justifica em absoluto pelos textos. Deparamo-nos,
então, com uma contradição interna em João?
É evidente que João vê o dilema na existência cristã. Recor­
demo-nos de Paulo em 1 Co 3, lss, onde ele responsabiliza os co-
ríntios por sua carnalidade e lhes demonstra que o viver no Espírito

135
deve ser acompanhado também do andar no Espírito. O cristão é
nascido de Deus e, não obstante, necessita o perdão, nunca pode
prescindir da graça. Isso está em concordância com a descrição da
luta entre "Espírito" e "carne" feita por Paulo em Rm 8, 4ss e Gl
5, 13ss. A solução do dilema, no entanto, é o perdão dos pecados
para cristãos através de Cristo. Esse é o paralelo joanino para o
chamado de volta a Cristo, em Paulo. Devido ao dilema, a comu­
nidade necessita também o mandamento. Devemos amar os irmãos
(3, 11), não agindo ao modo de Caim, que assassinou seu irmão.
Poderíamos falar também do paradoxo da dádiva da liberdade diante
do pecado: De um lado está o crente realmente gerado de Deus, de
outro, a sempre necessária confissão dos pecados pelo cristão. João
foi o prim eiro na cristandade primitiva — conforme a opinião de R.
Bultmann — que compreendeu e formulou com clareza esse paradoxo
(cf. 3, 6 .9 e 1, 6-10).
Outra particularidade do pensamento joanino na primeira epístola
é a diferenciação dos pecados. Ela se revela tão pouco compreensível
a partir do dualismo escatológico de João que se externou a suposição
de que essa ordem gradual dos pecados deva ser atribuída a um
"redator eclesiástico" da primeira carta de João. Em 5, 16 é men­
cionado um pecado que não conduz à morte. Como dizíamos, tal
distinção é estranha em vista do forte dualismo escatojógico em
João. Oposto ao pecado perdoável encontra-se o pecado que leva
à morte e não é remissível. Pelo segundo nao se devem fazer inter­
cessões. Ao que parece, a prática da vida comunitária tornou neces­
sária a diferenciação. Já em Paulo descobrimos um início dela: O
que pecou por impudicícia é excluído da comunidade em 1 Co 5, lss,
por causa da gravidade de seu delito, e "entregue a Satanás" (I Co
5, 5); uma sentença condenatória que, todavia, de forma alguma era
proferida sobre todos os pecadores. Por exemplo, não acontece o
mesmo com os cristãos que se dirigem a tribunais pagãos (I Co 6, lss).
Lamentavelmente João não nos diz o que seria um pecado que leva
ou não leva à morte. Citou-se a blasfêmia contra o Espírito Santo,
que é imperdoável (Mc 3, 29). Evocou-se Hebreus 6, 4ss, a apostasia
da fé, que torna impossível um segundo arrependimento. Será que
João também tem em mente a renegação da fé? Acaso ele a enxerga
na heresia cristológica, na forma dos "anticristos" (2, 18ss) que sur­
giram da comunidade? Isso seria possível, visto que João condena
categoricamente tais hereges porque negam a encarnação do Filho
de Deus. O que, com efeito, significava a negação da graça e do
Evangelho. A Igreja aceitou por base que existem pecados remis-
síveis, construindo sobre ela a sua disciplina penitencial. Por isso
começa em 5, 16 a tentativa de uma graduação dos pecados. A
advertência diante da idolatria (5, 21) igualmente faz com que con-

136
cluamos que o pecado para a morte possa significar a negação total
de Deus e Cristo. A frase de 5, 16, de que não se deve interceder
por aqueles que cometem um pecado de morte, está em flagrante
contradição com o mandamento universal do amor, do Sermão do
Monte, que culmina na exigência de amor ao inimigo e de inter­
cessão pelos perseguidores dos discípulos (Mt 5, 44). O pecador "para
a morte", afinal, é o que mais precisaria da intercessão da comunidade.
A tentativa de isolar-se vence aqui a livre abertura do mandamento
de amor de Jesus, representando, assim, novamente uma forma pe­
culiar de redução da compreensão do amor segundo o Sermão do
Monte (de Mateus).
Quando Jo 15, 3 e 17, 19 falam de que Cristo purifica e santi­
fica os discípulos santificando-se a si próprio em favor deles, e
quando Cristo ora em Jo 17, 15 pela proteção dos discípulos diante
do mal, isso demonstra mais uma vez que João tinha plena consci­
ência do problema e do conflito do pecado dos cristãos dentro da
comunidade.
Possuem importância ética em João alguns elementos da tra­
dição judaica, os quais o distinguem da gnose helenista. Ele fala,
conforme vimos, de "manter os mandamentos" e do "novo manda­
mento", do cumprimento da vontade de Deus. Emprega o antago­
nismo justiça — injustiça tanto no sentido cristológico como ético. Na
vida a partir de Deus, receber e fazer constituem uma unidade. O
novo nascimento de cima é ao mesmo tempo amor para com o irmão.
Superou-se assim toda a ética meritória e de obras, tão perfeitamente
como em Paulo. O elemento novo em João, entretanto, revela-se
justamente em que é amor a Deus cumprirmos os seus mandamentos
e em que seus mandamentos "não são penosos" (I Jo 5, 3), ao que
parece, devido à nova realidade escatológica de sermos cristãos. Os
mandamentos não são penosos para aquele que é nascido de Deus.
A lei outorgada por Moisés foi abolida pela revelação do Filho de
Deus (Jo 1, 17). O mandamento agora reza: crer e amar (I Jo 3, 23).
No fundo a ética joanina, portanto, consiste nessas duas partes:
renegar o mundo e amar os irmãos. O imperativo e o indicativo
estão na mais estreita vinculação: O novo ser é simultaneamente
dever. Isso distingue João de Tiago e o coloca ao lado de Paulo.
Contudo João carece daquela abundância de instruções pormenori­
zadas que é característica paça Paulo. Por isso não admira que a
ética da igreja se nutriu mais da parênese concreta e que seguiu
concomitantemente o caminho da ética de cidadania cristã, oferecendo
por outro lado, mais tarde, na forma do monasticismo também uma
resposta ascética à exigência de João de não amar ao mundo. Duas
modalidades de vida cristã já se nos apresentavam em I Co 7.
Contudo o Novo Testamento não fala da posterior ordem hierárquica,

137
isto é, da sobreposição dos "perfectí" (perfeitos), ou seja, dos monges,
aos cristãos "comuns" que vivem no mundo. Há apenas uma classe
de cristãos, sem detrimento das autoridades eclesiásticas de apósto­
los e dirigentes de comunidades. A exigência joanina de renunciar
ao mundo refere-se, em verdade, à comunidade toda, e não a uma
parte dela. A resposta parcial ascética da Igreja posterior se constitui,
portanto, numa redução da ética joanina.
Em contrapartida é preciso conscientizar-se de que o ressenti­
mento do protestantismo moderno contra a ascese é inadequado para
proporcionar uma compreensão de I Co 7 ou I Jo 2, 15ss. A ascese
é legítima aos olhos do Novo Testamento quando é entendida como
ascese de obediência, e não com finalidade de redenção (como na
gnose), livre de toda justiça pelas obras, bem como da presunção de
uma perfeição especial, em suma, é legitima como uma expressão
da entrega total a Cristo. Ela estabelece um sinal para o fato de que
a Igreja não pode comprometer-se, unificar-se com o mundo. Nesse
ponto a palavra da ética joanina é digna de toda a atenção.

138
CAPÍTULO VII

AS MISSIVAS DO APOCALIPSE DE JOÃO

O chamamento à segunda "meia-volta"


Dado que o Apocalipse de João aparece apenas à margem nos
compêndios da teologia do Novo Testamento, motivo pelo qual a
sua teologia não foi ainda avaliada suficientemente, queremos pelo
menos tentar transmitir uma idéia acerca do "éthos" das missivas de
Ap 2 e 3, concluindo dessa maneira a nossa exposição.
O autor do Apocalipse de João vê a situação da Igreja de seu
tempo — os anos 90 do primeiro século — caracterizada pela circuns­
tância de que ela se encaminha para a perseguição e o martírio. Seu
intuito é prepará-la para essa aflição, para essa luta. Começa a
grande batalha entre Cristo e o poder demoníaco oposto do Anti-
cristo. Sofredora e perseguida, a Igreja está do lado de Cristo. O
reino antagônico demoníaco é representado historicamente pelo
Império Romano, que se absolutiza no que concerne à religião me­
diante o culto ao imperador, incorrendo na "hybris".
Novamente deparamos com um contraste importante dentro do
Novo Testamento, a saber, com uma grandeza oposta à Igreja que
inicia a se instalar no mundo, com uma posição contrária à ética
cristã integrada na sociedade (cartas pastorais). É que no Apocalipse
de João avistamos uma Igreja ameaçada pelo poder demoníaco, que
se descobre conduzida para o sofrimento e que não se pode instalar
no mundo. Essa Igreja não cresce para dentro do mundo, pois que o
mundo procura destruí-la e a ameaça com a morte. Numa situação de
perseguição pelo Império, não é mais possível abordar os temas
da ética cristã na sociedade, das virtudes do cidadão cristão, da
ordem comunitária, da configuração da vida familiar, do comporta­
mento das mulheres, etc. Agora é preciso oferecer resistência, pelo
sofrimento, ao endemoninhamento do mundo por um Império que
a si mesmo se diviniza. O sangue dos santos é derramado. Resta
unicamente a possibilidade de observar os mandamentos de Deus e
preservar o testemunho de Jesus (Ap 12, 17).

139
Duas perguntas preocupam o autor do Apocalipse, um profeta
cristão desconhecido: Que é? e: Que há de ser? À primeira pergunta
respondem as sete missivas a comunidades da Ásia Menor, que, ao
que parece, devem representar vicariamente toda a Igreja. Por inter­
médio da palavra profética Cristo põe a descoberto a verdadeira
realidade e situação dessas comunidades, ele louva e reprova as
comunidades de diversas maneiras (Quanto à estrutura das missivas,
cf. a explanação de Eduard Lohse, NTD vol. 11).
Que resulta, pois, no tocante à verdadeira situação da Igreja?
Como em Paulo ou nas cartas pastorais, a gnose ameaça também
aqui a Igreja. Segundo Ap. 2, 15 e 2, 20 ela aparece às comunidades
na pessoa dos chamados nicolaítas e dos adeptos da falsa profetiza
Jezabel. João rebate energicamente em nome de Cristo qualquer
mescla, qualquer sincretismo com tais movimentos. Às heresias ele
anuncia o Juízo (2, 16.22). A culpa das comunidades é tolerarem
essas correntes gnósticas. A acusação é dirigida contra a idolatria
e contra o comer de carne ofertada a ídolos. Cita-se um lugar-comum
gnóstico: "reconhecer as profundezas de Satanás" (2, 24). O reco­
nhecimento serve provavelmente à superação do demoníaco, mas
é encarado pelo vidente "João" como a abominação por excelência
da idolatria e apostasia. A essa última refere-se também a figura
do "praticar a prostituição", presente em ambas as passagens.
Ao lado do perigo de contemporizar com a gnose, o que equiva­
leria a um abandono da fé em Cristo, assoma outra ameaça, ética,
no sentido mais restrito: A comunidade de Éfeso decaiu da altitude
em que no início se encontrava. "Tenho contra ti que abandonaste o
teu primeiro amor" (2, 4). Em Ap 3, 1 lemos com referência à comu­
nidade de Sardes que ela está "m orta", uma sentença profética que
sempre de novo revivesceu e foi repetida na história da Igreja.
Acerca da comunidade de Leodicéia declara-se em 3, 14ss que ela
é tépida, nem quente nem fria. A comunidade vive numa falsa
segurança (3, 15). O Cristo que se aproxima a vomitará da sua
boca. Ele arrasará essa pia auto-segurança.
Em semelhantes pronunciamentos constatamos que não se pode
pensar nem de longe numa contemplação idealista da situação da
Igreja. Arrefece o calor do "prim eiro amor". Ocorrem acordos alta­
mente perigosos com os gnósticos, tais pessoas são toleradas nas
comunidades, ê essa a realidade das comunidades cristãs após 45-50
anos de história eclesiástica na Ásia Menor. Representa como que
um modelo daquilo que sucede sempre de novo na Igreja.
Como soa, em face disso, a exigência do profeta cristão? Ela
se chama "m eia-volta" (cf. 2, 5 .1 6 .2 1 ; 3, 6 e 19). O apelo é levan­
tado em todas as missivas. Evidentemente é pressuposta a possibílú
dade de tal segunda "meia-volta". Não se trata da conversão da

140
idolatria do paganismo para o Deus vivo e para Cristo, mas da
"meia-volta" dentro da comunidade de Cristo, por causa do pecado
que nela foi cometido. Portanto, trata-se de retorno a Crislo, negação
da heresia, retorno ao primeiro amor. Assim também os coríntios
segundo II Coríntios tiveram que ser trazidos de volta, da desobediên­
cia à obediência. A "segunda meia-volta" é o retorno de cristãos
para Cristo. — Isso vem a dar um novo sentido a essa palavra, em
comparação ao uso de "metánoia" ("meia-volta") na proclamação de
Jesus. O chamado dessa segunda meia-volta é a reação à história
de decadência das comunidades. É uma graça de Cristo que os
cristãos e as comunidades pecadoras recebem a oportunidade do
retorno. Por conseguinte, ouvimos no Novo Testamento não apenas
um chamado à "meia-volta" dirigido a judeus e pagãos, mas também
a cristãos. E conseqüentemente não existe uma história da fé e das
normas da Igreja que transcorresse sempre no mesmo nível. Há
rupturas, apostasias, entibiamentos, atrofiamentos — mas também há
a possibilidade de obter nova vida mediante a "meia-volta".
Neste ponto é necessário e útil que tenhamos presente a posição
cposta da carta aos Hebreus. Em 6, 4-6 ela declara com toda a agudeza
e radicalidade que não existe mais a possibilidade de um segundo
arrependimento e de uma renovação, por meio dele, para os apóstatas,
os quais uma vez se tornaram participantes do Espírito Santo e pro­
varam os poderes do mundo futuro. É que esses renegadores da
fé crucificam mais uma vez o Filho de Deus. A queda da nova
existência escatológica do cristão no abismo da descrença e do pecado
é definitiva e irreparável (cf. R. Schnackenburg, Christliche Existenz
nach dem Neuen Testament I, pp. 54s). No exemplo de Esaú Hb
12, 17 expressa o mesmo pensamento, ao que parece, para ressaltar
a enorme importância da decisão por Cristo e pela fé cristã. Temos
diante de nós um dos casos em que precisamos de decidir-nos pes­
soalmente, entre afirmações contrapostas uma à outra nos textos,
a favor de um ou outro caminho, de uma ou outra forma de procla­
mação ética, porque aqui uma fórmula de conciliação seria impossível
e inimaginável.
Há que levantar agora a questão: Como, afinal, essa nova
"meia-volta" é praticável? Naturalmente não se apela à livre força
de decisão moral do homem autônomo. Não se incorre em pres­
suposições idealistas judaicas nem modernas. A possibilidade para
a segunda "meia-volta" reside exclusivamente no próprio Cristo, ele
a oferece às comunidades, o que se patenteia em 3, 19ss. O amor
de Cristo significa castigar a comunidade. Cristo está diante da
porta da comunidade. Nessa presença de Cristo a nova decisão pode
ser tomada, o retorno pode ser consumado. Abre-se assim o cami­
nho para o triunfo, para o "vencer" no sentido escatológico; cf. os

141
ditos sobre o vencedor no fim de cada missiva. Na hipótese contrária
existe apenas o Juízo. Por isso o apelo insistente-. "Quem tem ouvidos
ouça o que o Espírito diz às igrejas!" (3, 22; cf. 2, 17).
Também as missivas falam das obras: "Conheço as tuas obras"
(2, 2 .19), contudo não no sentido judaico-legalista. Em foco está
antes a vida toda da comunidade, que se configura nas obras. No
lugar em que Paulo emprega “ andar segundo o Espírito", lemos em
Ap 2-3 o termo resumido "as obras". E nesse sentido que o Senhor
diz à comunidade, julgando-a e prometendo-lhe a graça: "Conheço
as tuas obras." A p 19, 8 fala positivamente dos "atos de justiça dos
santos", que os ornamentam. Com respeito aos mártires que "morrem
no Senhor" lemos: "As suas obras os acompanham" (14, 13), a saber,
rumo à vida eterna. São elas as "boas" obras, dignas do reino de
Deus (cf. M t 25, 31ss, onde os "justos", isto é, os que praticaram
ajuda em amor, herdam o reino de Deus). As boas obras constituem
a realidade escatológica da existência cristã. Segundo 3, 2 as obras
da comunidade de Sardes não são "íntegras (perfeitas) na presença
do meu Deus".
Existem naturalmente definições ou circunscrições mais concretas
dessas obras. No Apocalipse de João emprega-se com freqüência o
termo "hypomoné", o qual não deveria ser traduzido por "paciência".
"Paciência possui uma conotação muito moral, muito conforme a
esforço humano. Trata-se, porém, de uma "virtude" escatológica, qual
seja, a perseverança no sofrimento, dirigida para o alvo escatológico.
Tal perseverança somente é possível porque o dia de Cristo se
aproxima. Nessa perspectiva "perseverança" pode designar a atitude
global da comunidade que se encaminha para o Fim. Em 1, 9 João
se denomina irmão e companheiro dos cristãos a que se dirige, partici­
pante das suas tribulações e da sua perseverança. Sofrimento, tribula­
ções (no sentido da aflição dos últimos tempos) e perseverança perfa­
zem uma unidade. Como a comunidade de Filadélfia "guardou a
palavra da perseverança", também ela será resguardada "da hora da
tribulação" (3, 10).
Indagamos agora: Como são fundamentadas as exigências da
"meia-volta" e das obras? O pensamento do Apocalipse revela-se
não menos fiel à cristologia do que o de Paulo ou dos escritos joaninos.
Cristo é o divino Senhor da Igreja e do mundo. Ele é o "Rei dos reis
e o Senhor dos senhores" (19, 16; cf. 17, 14). Nos capítulos 2-3 ele
se-nos apresenta tanto como o Senhor da Igreja, que ordena e julga,
como o que concede graça e vida. Vimos como é ele quem oferece
às comunidades a nova possibilidade de vida com a "meia-volta".
As palavras introdutórias das missivas, "estas coisas diz. . .", colocam
diante da comunidade o Cristo em toda a sua glória e autoridade
divinas. O mesmo vale para os ditos finais das missivas. Já agora

142
o divino Juiz universal inicia com o julgamento das comunidades.
Se combinássemos as palavras de autoridade no início das missivas
entre si, a cristologia se apresentaria a nós em toda a sua plenitude.
As comunidades agem diante do Vencedor escatológico vindouro. No
Espírito o Senhor e Juiz da Igreja já está presente. Ele não é apenas
o que se aproxima, mas também o que já agora está presente. Embora
a conexão de futuro salvífico e imperativo ou de presente salvífico
e imperativo seja expresso somente de maneira figurada, a saber, nas
palavras do próprio Cristo, é acertado falarmos de uma fundamentação
escatológica e cristológica da exigência. Razão pela qual também
não se pode encontrar nenhum vestígio de ética meritória.
Uma concepção singular e característica para esse escrito encon­
tra-se nos chamados ditos sobre o vencedor, no final das missivas,
a concepção do "triunfar": ''Ao vencedor, dar-lhe-ei. . .", seguindo-se
depois a promessa da salvação escatológica, de participação na vida
eterna, no senhorio de Cristo, etc., nas mais diversas ilustrações. O
vencedor da tribulação "derradeira", que se conserva fiel a Cristo,
recebe a recompensa celestial. O triunfar, no entanto, não se realiza
a partir da força religiosa ou moral do indivíduo, mas por causa de
sua comunhão com Cristo, a qual ele confirma persistindo no teste­
munho e na prática de obras. Em última análise é, portanto, um
vencer em conjunto com o Vencedor Cristo, o qual prostra ao chão
todos os poderes demoníacos. A contraposição dos dois agentes, o
vencedor e Cristo, contudo, expressa condizentemente que o cristão
e comunidade são pessoas que agem com responsabilidade, e não
títeres nem instrumentos totalmente passivos de um poder divino
coercivo. Para as bem-aventuranças (Mt 5, 3ss), aliás, vale o mesmo,
no que tange à relação de ação e anúncio da salvação. Em Jo 16,
33 o termo aparece atribuído a Cristo: "Eu venci o mundo." Na
primeira epístola de João falava-se da fé que venceu o mundo (5, 4).
A diferença entre a asserção das missivas e a dos escritos joaninos
reside em que a primeira está relacionada de maneira escatológico-
futura com a promessa da salvação vindoura, ao passo que nas fórmulas
joaninas predomina nitidamente o "perfectum praesens": A vitória foi
definitivamente conquistada.
Assim como os sinóticos ou Paulo, também o Apocalipse se atém
à antiga concepção da recompensa. Todavia recompensa é graça,
porque Cristo é o doador, porque não se premia nenhum esforço.
Pode-se evocar a parábola dos trabalhadores da vinha (Mt 20, lss),
em que o salário é fixado pela livre e soberana benignidade do senhor
(Mt 20, 14ss). A cristologia do Apocalipse exclui qualquer recaída
no moralismo judaico. Na cristologia está fundada, por assim dizer,
a pureza de sua ética. Apesar de todas as tribulações e tentações
podemos triunfar — através de Cristo. Isso é ao mesmo tempo

143
admoestação e consolo para uma Igreja que precisa de encaminhar-se
ao sofrimento. Demais disso, o Apocalipse está imbuído de máximo
realismo. Nos cap. 13 e 17s ele mostra que a maioria da humanidade
adere ao reino do Anticristo. Aos santos se contrapõem os "habitantes
da terra", os quais não sabem achar o caminho da fé. Apesar disso,
Ap. 4 permanece em vigor: a saber, a glorificação da majestade divina
do Criador que fez o universo. Não existe, por conseguinte, uma
depreciação gnóstica do mundo no livro do Apocalipse. Ao cap. 4
correspondem os cap. 21 s com sua mensagem escatológíca da "nova"
Criação. Compare-se com isso a importante fórmula do "reino sobre
o mundo" ("kósmos"; 11,15). O senhorio de Cristo é senhorio sobre
o mundo. A Criação não é abandonada pelo Criador. Em contra­
dição extrema com o gnosticismo, o Criador e o Redentor constituem
um só Deus. Assim Cristo responde não apenas à pergunta da culpa,
mas também à pergunta do poder, quem será o Senhor do mundo.
E nisso está, em última análise, o sentido da ética cristã. Todo o
amar e perseverar, todo o sofrer e todas as boas obras não serão
infrutíferas e em vão.
Partindo desse ponto, podemos tomar posição frente à muito
controvertida questão do quiliasma (Ap 20, 4), a estranha visão do
domínio provisório de mil anos do Senhor sobre a terra. Sairemos
com isso do âmbito das missivas pelo fato de que épocas posteriores
deram uma interpretação ética a 20, 4. A passagem acolheu uma
concepção da expectativa futura do judaísmo tardio que trata de um
estágio prévio (de caráter "citerior") à consumação definitiva. Contudo
o cerne da afirmação de 20, 4 é o domínio conjunto de Cristo e dos
mártires, aos quais, então, se faz justiça. Em relação com isso está
o motivo de que Cristo não desiste de seus direitos sobre este mundo,
mas os concretiza. Não se trata de um reino universal de Cristo
resultante da força de vontade cristã de estruturar o mundo, como
mais tarde o idearam sonhadores e entusiastas. Tais concepções,
igualmente chamadas quiliastas, estão completamente fora do pensa­
mento escatológico do Apocalipse. Não existe, portanto, — ao con­
trário dos quiliastas dos sécs. XVI e XVII — uma ética quiliasta. Por
outro lado o trecho deixa bem claro — numa ilustração mitológica —
que: O reino de Cristo não é nenhum Além celeste. Pelo contrário,
como em 11, 15, está em questão o senhorio de Cristo sobre o mundo.
Por meio de tal declaração, porém, o Apocalipse presta indiretamente
um serviço importante à ética cristã: Tornam-se visíveis o horizonte
escatológico e, concomitantemente, a limitação da ética. Ela recebe
um quadro de referência e, assim, também seu sentido, é óbvio
que necessita ser sublinhado o caráter simbólico de semelhantes
concepções apocalípticas. Em afirmações escatológicas sempre é ina­
dequado empregarmos nosso conceito de tempo, visto que elas versam

144
jusíamente sobre o "fim " do tempo do mundo. Decisiva, porém, é
a asserção cristológica feita através de 20, 4.
Também o reino do Anticristo é "citerior", não do Além. Realiza-
se sobre esta terra como domínio sobre pessoas. Somente vista a
partir desse reino, torna-se evidente a importância escatológica da
comunidade de Cristo, que se opõe ao domínio do Anticristo e que
preserva também o testemunho do Criador. Ambas, Igreja como
anti-igreja não rnais existirão no reino perfeito de Deus (cap. 21; cf.
20, 11), contudo essa afirmação precisa ser modificada, porque na
forma do povo redimido de Deus, congregado de todo o mundo,
também a Igreja alcança a sua perfeição. Nesse reino não mais se
necessitam parênese nem ética. O reino de Deus é o cumprimento
ilimitado de tudo aquilo que a ética do Novo Testamento se propõe:
a santidade, a justiça, a paz e o amor. Isso, no entanto, significa
ao mesmo tempo que as obras da comunidade não são algo perdido
(14, 13).
No Apocalipse de João a ética igualmente demarca o estado
intermediário da Igreja entre a Páscoa e o fim do mundo. A antinomia
entre Criação e poder demoníaco em que a Igreja se vê inserida,
não se dissolve numa fórmula teológica. Para ela existe unicamente
a resposta da redenção escatológica.

145
CO N C LU SÃO

A unidade da ética neotestamentária

São surpreendenlemente amplas as envergaduras na ética do Novo


Testamento, de Mateus a Paulo, de Paulo a Tiago e das cartas pastorais
até João. Em face de lai variedade de formas — muitas das quais ainda
nos são desconhecidas por carência de fontes! — é necessária e justi­
ficada a pergunta pela unidade da ética neotestamentária. Quem aplica
meros critérios históricos pode naturalmente contentar-se com simples
justaposições e contraposições de formas, de "confissões" éticas. Nós,
entretanto, visamos a uma apreciação cristã-teológica quando pergun­
tamos pela unidade da ética do Novo Testamento que engloba e trans-
passa multiformidade e contrastes.
Sem dificuldades podemos constatar essa unidade mais ou menos
nos seguintes quatro pontos:
1. no que respeita ao mandamento do amor, que representa
sempre, nos sinóticos e em Paulo, em Tiago e João o centro e a norma
máxima da ética. Todos os escritos por nós analisados evidenciaram-se
como presos a esse mandamento de Cristo, o "novo" mandamento. Sua
concretização nas mais diversas situações históricas, porém, é múltipla
e deixa aberto um amplo espaço de opções.
Dois traços destacam-se, no entanto, dentre essa multiplicidade
como os mais importantes:
a) o amor como amor pelos pobres, miseráveis e oprimidos de
toda espécie (cf. Mt 25, 31ss; Lc 10, 29ss);
b) o amor pelos irmãos na comunidade, vínculo da unidade e
da fraternidade (I Jo passim; Cl 3, 14; cf. Ef 4, 3. 32).
Vimos na verdade que qualquer esquematização dos textos é
impossível, pois João, por exemplo, se restringe unilateralmente à
exigência do amor fraternal.
2. O segundo ponto principal em que podemos constatar uma
unidade essencial é a relação crítica, distanciada, diante do mundo.
Sem dúvida há múltiplas variações e diferenças. A compreensão crítica

147
do mundo pode ser concebida de forma rigorosamente teológica e
escatológica, como em Paulo e João, ou pode ter conotação moral,
como nas cartas pastorais, na proporção em que elas visam determi­
nados vícios e delitos. Em Paulo verificamos que ambas as posições
não se precisam em absoluto excluir mutuamente. Mesmo quan­
do a esperança imediata passa para segundo plano, o mundo não se
torna um valor perene ou um cosmos de duração eterna. A relação
com o mundo continua crítica. A ética da cidadania cristã e a perspec­
tiva escatológica delimitam-se mutuamente (cf. H.-D. Wendland, Kirche
und W elt im Neuen Testament; veja o índice de literatura). No próprio
Tiago a parênese preservou o pano-de-fundo escatológico. Diante dos
ricos ela pode assumir a forma de anúncio do Juízo.
3. O terceiro fato, em relação ao qual podemos verificar uma
unidade essencial, é que em todos os escritos do Novo Testamento
se trata de ética da comunidade para a comunidade, cuja purificação e
santificação está em pauta. Essa ética não possui o caráter de uma
reflexão sistemática, tal como foi elaborada mais tarde com auxílio de
conceitos filosóficos, mas é proclamação ética na forma de instruções
e advertências. Mesmo em Paulo ela continua sendo teologia querig-
mática, muito embora ele tenha sido o que mais progrediu na questão
da fundamentação teológica, característica em que é igualado apenas
pela carta aos Efésios. Os imperativos, contudo, podem ser formulados
também quase sem acompanhamento do indicativo, conforme obser­
vamos em Tiago. Não obstante, também ele pressupõe a comunidade
e se dirige a membros de comunidades. Apenas poucas normas uni­
versais transcendem as fronteiras da comunidade, tais como, em
primeira instância, o mandamento do amor ou o compromisso geral
diante do domínio político.
4. Em todos os escritos do Novo Testamento, até mesmo em
Tiago, estão entrelaçadas a escatologia e a ética, embora de maneiras
muito distintas. A forma escatológico-futura pode aparecer ao lado de
outras — como o demonstra Paulo — as quais partem do acontecimento
salvífico já concretizado. Em João predomina univocamente essa última
forma, o "éschaton" presente. Na situação pré-pascoal, é compreensível
que a menção do futuro e vindouro reino de Deus ocupe o primeiro
plano. Tendo em vista o todo, podemos, portanto, falar de uma ética
escatológica e de uma escatologia ética no Novo Testamento. A vinda
do reino de Deus fundamenta a ética cristã e constitui a sua "peculia­
ridade", a qual, como vimos, não deve ser procurada nas exigências
materiais isoladas.
No que respeita às demais fundamentações teológicas da ética,
é muito grande a amplitude das variações das bases teológicas. Vai
desde a ausência quase total em Tiago até os embasamentos minucio­
sos em Paulo, no autor da carta aos Efésios e em João.

148
O elemento comum não é uma teologia, mas o solo da comuni­
dade e a fé em Cristo. Em decorrência disso é imperioso que se faça
justiça também às outras formas da teologia e ética neotestamentárias,
ao invés de instituir um cânone privado para paulinistas, etc. Teologia,
na verdade, pode existir apenas no plural, pois que trabalha com
concepções e termos. Tal é também a situação no Novo Testamento.
Por isso seria desacertado construir artificialmente uma unidade teo­
lógica. Não se deve tentar fazê-lo partindo de Paulo, nem tampouco
projetá-lo para trás a partir do dogma da Igreja antiga. Muitas teolo­
gias — mas um só Senhor! Muitas éticas — mas um mandamento do
amorl
Ë dessa forma que vale o veredito teológico de que unidade e
multiformidade não se contradizem. Há um "cantus firm us" que sus­
tenta e conduz o canto. As coisas se quebram em pedaços somente
para aquele que não compartilha a fé no único Senhor da comunidade.
Contudo quem tiver essa fé pela graça de Deus, esse poderá falar de
sã consciência e com bons motivos de uma unidade da ética do Novo
Testamento, cujas linhas basilares tentamos expor.
Todavia, para que aquilo que dizíamos sobre a unidade da ética
do Novo Testamento não seja decididamente entendido mal, no sen­
tido da idéia de um sistema fechado, retornamos por fim mais uma
vez à ética do Sermão do Monte. Todas as demais fórmulas e tradições
éticas no Novo Testamento precisam ser medidas nele como sendo a
primeira e a última instância crítica. Ele é e continua sendo a eterna
"inquietação" de toda ética cristã, a começar pela ética do Novo Testa­
mento. A exigência radical, absoluta e universal do Sermão do Monte
rompe todos os sistemas de moral, tanto no sentido teórico como social
e prático da palavra. Ela é a inimiga de qualquer espécie de moralis-
mo e farisaísmo cristãos. Contrapõe-se a toda religião a-ética de
origem e natureza mágicas ou místicas. O Sermão do Monte desmas­
cara a insuficiência de toda ética meramente "humana" e de todas as
(necessárias) convenções morais e dos tabus éticos da sociedade. O
Sermão do Monte preserva aberta a ética do Novo Testamento e
transpõe todas as afirmações e tradições isoladas, em direção do
"éschaton" do reino de Deus, porque ele próprio, como exigência da
nova justiça, como o mandamento do amor ao próximo e ao inimigo,
dá testemunho do reino de Deus iminente e de sua perfeição: o amor,
que age como o próprio Deus (Mt 5, 48), o qual é o amor e misericór­
dia absolutas e ilimitadas. Por isso partem do Sermão do Monte sem­
pre de novo salutares e discernentes abalos e transformações do
'éthos" herdado e historicamente fixado da Igreja.

149
Í N D I C E

Introdução. Considerações sobre o conceito de Ética ............... 5

Capítulo I: Jesus. A proclamação da aproximação do reinado


de Deus como ética escatológica
Nota prévia metodológica ......................................................... 9
1 . Reino de Deus e "meia-volta" ........................................... 11
2. A lei de Deus ...................................................................... 14
3. O mandamento do amor ..................................................... 19
4. O sentido do Sermão do Monte ..................................... 22
5 . Reino de Deus e mundo ..................................................... 29
6. A exiqüibilidade do mandamento ..................................... 34
7. O discipulado ........................................................................... 37
8 . Sumário: Ética escatológica ..................................................... 39

Capítulo II: A Comunidade Primitiva. Formas e fórmulas no­


vas da ética
Nota prévia metodológica ............................................................ 43
1 . Situação pré e pós-pascal ..................................................... 43
2. A primeira comunidade judaico-cristã e a lei ............... 48
As primeiras comunidades helenistas ................................. 55

Capítulo III: Paulo. O evento salvífico em Cristo como funda­


mento e alvo da ética
1. A estrutura básica: acontecimento salvífico e ética . . . . 61
2. Lei e liberdade ......................................................................... 68
3. O amor como norma máxima da ética ............................. 72
4. A ética de Paulo como ética comunitária ........................ 77

151
5. As ordens sociaisdo mundo . . ...................................... 83
a) Comunidade e mundo .................................................. 84
b) A autoridade política ..................................................... 87
c) O matrimônio ............................................................. 91
d) A posição da mulher ..................................................... 96
e) Os escravos ............................................................. 99
6 . A validade universal dos mandamentos e sua relação
com o Espírito ...................................................................... 100

Capítulo IV: Os escritos deuteropaulinos ....................................... 107


1 . A epístola aos Efésios. O "éthos" na unidade do corpo
de Cristo ................................................................................. 108
2. As cartas pastorais. A ética do cristianismo integrado na
sociedade ........................................................................... 114
3. A primeira epístola de Pedro. Cristo, o protótipo do amor
e do sofrimento ............................................................. .. ■ ■ 120

Capítulo V: A epístola de Tiago


A justiça ativa das boas obras .............................................. 125

Capítulo VI: Os escriíos joaninos


O amor fraterno como a passagem da morte para a vida . . 131

Capítulo VII: As missivas do Apocalipse de João


O chamamento à segunda "meia-volta" ................................... 139

Conclusão: A unidade da éticaneotestamentária ........................... 147

152
INDICE DE PASSAGENS BÍBLICAS

ANTIGO TESTAMENTO

GÊNESIS LEVÍTICO DEUTERONÔMIO

15, 4 49.
1, 27 3 2. n , 44 121.

1, 27s 9 6. 19. 18 2 0 . 130.


JEREMIAS
2, 24 3 2. 9 6 . 22, 13 51.

NOVO TESTAMENTO

MATEUS 5, 20 18. 53. 54. 6, 10 39.


126. 128.
6, 11 32.
3, 2 11. 5, 20ss 54.
6, 12s 30.
4, 17 11. 5, 21 ss 12. 16. 18. 23.
6, 14s 36.
5-7 24. 29. 54.
5. 12. 23. 44.
6, 19 31.
5, 3 5, 22 29.
51. 128.
6, )9 s3 49. 50.
5, 3ss 5, 23s 34.
10. 11. 23. 36.
48. 143.
6 , 21 31.
5, 23ss 19.
5, 3-12 6, 24 50.
24. 5. 23-25
27-28 17. 6, 2 4 s3 50.
5, 6 64.
5, 32 32. 33. 6, 25ss 31.
5, 7 11.
5, 7 22. 35. 126. 5, 39 72. 6, 33 18. 31. 32. 49.
129. 51.
5, 43ss 18. 19. 20. 23.
5, 9 11. 22. 35. 25. 54. 7, 1 129.
126. 129. 5, 44 72. 137. 7, lss 24.

5, 13ss 24. 128. 5, 44ss 20. 21. 7, 7ss 36.


5, 13-16 23. 35. 5, 45 19. 7, 11 30.
5, 17 23. 53. 5, 48 19. 149. 7, 12 129.
5, 17-19 15. 18. 53. 6, 1 54. 7, 13s 35.
5, 18 53. 6, Iss 24. 7, 16ss 36.

153
7, 16. 20 21. 25, 32ss 36. LUCAS
7, 17ss 18. 21. 25, 46 54.
5, 1ss 37.
7, 19 29. 28, 18ss 13.
5, 8 29.
7, 21ss 12. 25. 27. 29.
35. 54. 128. MARCOS 5, 32 12. 29.
8, 19ss 38. 6, 20ss 1 1. 23. 44. 51
1, 15 10. 1 1. 35. 48.
10, 5 15. 6, 24s 49.
1, 16ss 37.
10, 5ss 46. 6, 27ss 21.
1, 17s 38.
10, 7 39. 6, 36 19.
1, 21s 15.
10, 17s5 46. 6, 43s 36.
1, 44 15.
10, 24s 38. 9, 2 39.
2, 14 38.
10, 26ss 46. 9, 57ss 12. 31. 38.
2, 18ss 15.
11, 19 32. 9, 60 39.
2, 22 15.
11, 28ss 55. 129. 10, 26 15.
2, 27 16.
11, 28-30 16. 10, 29ss 20. 22. 134.
3, 1ss 15. 147.
12, 33 36.
3, 29 136. 0, 38 ss 38.
12, 36 29.
4, 19 51. 12, 13s 30.
18, 3 13.
7, Iss 16. 21. 12, 16ss 49. 52.
18, 15ss 46.
7, 13 15. 12, 21 49.
18, 18 55.
7, 15. 17ss 16. 13, lOss 15.
18, 21 ss 30. 55.
9, 43ss 29. 30. 14, Iss 16.
18, 23ss 36.
10, Iss 17. 32. 57. 91. 14, 26 12. 21.
19, 9 32.
96. 100.
14, 26ss 95.
19, 12 30.
10, 6-8 96. 14, 28-33 35.
19, 16ss 51. 91.
10, 8 14, 33 38.
20, Iss 143.
10, I ls 33. 92. 15 13. 29.
20, 14ss 143.
10, 17ss 14. 35. 15, Iss 12.
22, 34ss 54. 15, 7. 10 12. 13.
10, 18 29.
22, 35ss 129. 15, 11 ss 12. 13.
10, 22 35.
22, 39s 127. 16, 19ss 128.
10, 25 51.
23 54. 126. 18, 13 13.
10, 27 35.
23, ls 15. 18, 18ss 49.
10, 28ss 39.
23, Iss 53. 19, 2ss 52.
10, 42ss 33.
23, 13ss 54.
• 12, 14ss 33.
23, 14 19. JOÂÔ
12, 28ss 19.
23, 15ss 54.
12, 34 20. 1, Iss 132.
25, 14ss 36.
12, 40 19. 1, 4s 132.
25, 31 ss 21.25. 54. 127.
130. 142. 147. 13 28. 1, 14ss 135.

154
1, 17 137. 2, 17ss 14. 13 5. 6. 73. 9C.
101. 115. 119.
3, Iss 132. 3-5 65.
13, 1 88.
3, 16 132. 133. 3, 24 62. 113.
13, ls 88.
3, 20s 132. 5-8 68. 77.
13, Iss 57. 79. 100.
3, 21 109. 5, 5 72. 104. 102. 135.
8, 32. 34. 133. 6 61. 62. 65. 66. 87.
13, 1-7
127.
10, 11 133. 73.
13, M O
6, 2ss 47. 56.
13, 34 5. 18. 44. 72. 74. 89.
13, 3s
133. 6, 3ss 64. 121.
13, 5ss 89.
15, 3 137. 6, 11 122.
13, 8ss 77.
15, 12 18. 133. 6, 1 Iss 24. 47. 56. 64.
66. 102. 105. 13, 8-10 66. 70. 76. 88
15, 13 133.
122. 59.
13, 11
15, 16. 18 ss 132.
6, 12 65. 13, 11 ss 28. 88.
16, 33 132. 143.
6, 14ss 69. 13, 14 62. 70. 109.
17, 15 137.
6, 15ss 65. 14 95. 101.
17, 19 137.
6, 16ss 69. 14, Iss 76.
18, 28ss 134.
6, 18 122. 14, 4 129.
19, 11 135.
7 71. 104. 14, 7s 69. 76.
20, 21 ss 46.
7, 7ss 104. 14, 10 37.
7, 12. 14 69. 72. 14, 13-15, 6. 7 6.
ATOS
7, 24 104. 76.
14, 14. 15
2, 42ss 48. 8 61. 90. 127.
14, 14. 20 85.
4, 32 48. 8, Iss 62 .66. 73. 104.
15 95. 101.
4, 36s 48. 8, 2 71.
15, 1ss 76.
5, Iss 48. 8, 4 63. 66. 71. 76.
15, 7 76.
103. 104. 105.
6 56. 15, 30 72.
8, 4ss 136.
17, 30s 58. 16, 1 .3 98.
8, 18 ss. 26 63.
18, 1. 18 98.
8, 31 ss 68.
21, 9 97. 1 CORÍNTIOS
8, 37s 84.

ROMANOS 10, 4 55. 62. 69. 104. 1, 18ss 62. 63.


12. 73. 81. 1, 26 128.
1 90. 12-13 76. 1, 26ss 52.
1, 18-3, 20 58. 70. 12, 2 75. 102. 113. 100.
1, 26-28
1, 21 ss 58. 12, 13-13, 10 73. 1, 31 63.
1, 32 85. 12, 13 ss 71 .72. 88. 101. 2, 6ss 92.
2, 14s 56. 85. 12, 14 43. 55. 65. 92. 104.
3, Iss
2, 15 35. 86. 12, 14ss 45. 135.

155
3, 2 H» 84. 7, 7 92. 101. 11, 23s» 43.

3, 21-23 69. 7, 9 92. 12 79.

4, 8 63. 7, 10 43. 45. 93. 12-14 45.

4, 8ss 63. 7, 10s 92. 12, 4ss 77. 79.

4, 12 43. 7, 12ss 93. 103. 12, 12ss 79.

4, 14ss 46. 102. 7, 14. 15. 17 94. 12, 28ss 79.

4, 17 46. 102. 7, 19 6 3 .6 9 . 77. 104. 12, 31 77.

5, Iss 46. 78. 101. 7, 21. 22 94. 13 72. 73. 133.


136.
7, 24 94. 13, Iss 25. 66. 74.
5, 3ss 78.
7, 25 93. 13, 4-7 73. 74. 76.
5, 5 136.
7, 25ss 98. 13, 5ss 85.
5, 7 47.
7, 28 92. 13, 6 74.
5, 7s 64.
7, 29ss 28. 59. 84. 93. 13, 8-13 73.
5, 10s 77.
7, 31. 32ss 93. 13, 13 72.
5, 12 78.
7, 35 92. 93. 14 79.
6 81.
7, 39s 98. 14, 1 104.
6, Iss 78. 90. 101.
7, 40 45. 93. 14, 26ss 80.
105. 136.
8 45. 66. 67. 72. 14, 33ss 97.
6, 7 55.
75. 76. 95. 101.
14, 33-35 97.
6, 7ss 78. 81. 103.
15, 3ss 43. 62.
Ó, 8 101. 8-10 79.
15, 12ss 63. 83.
6, 9 67. 78. 8, Iss 70. 73.
16, 14 104.
6, 9s 56. 8, 9 68. 70.

6, 10 57. 101. 8, 9ss 70.


II CORÍNTIOS
6, 11 47. 48. 61. 78. 8, 13 70.
121.
9, 19ss 71. 73. 3, 17 47.
6, 12 63. 70. 95.
9, 21 105. 5, 10 24. 37. 54. 67.
6, 12ss 91. 96. 102.
10 45. 66. 67. 72. 5, 17. 18ss 84.
105.
75 .76. 95. 101.
6, Iss 62.
6, 15ss 63. 103.
6, 2 11.
6, 15-20 63. 10, 16s 65.
6, 6 73.
6, 19 69. 10, 23 63.
11, 28s 73.
7 5. 52. 77. 91. 10, 23ss 70.
93. 95. 96. 98.
'0 , 24
101. 117. 137. GÁLATAS
138. 10, 26 76. 85.

7-10 81. 11, Iss 97. 3, Iss 68.

7, Iss 91. 11, 3ss 85. 97. 98. 3, 13ss 69.


7, 4 92. 98. 11, 11 97. 3, 15ss 69.
7, 5 92. 11, I l s 98. 3, 27 62. 109.

1 56
3, 28 96. 97. 98. 100 5, 15 110. 3, 18ss 43. 57. 82. Ç
98. 99. 111.
4, Iss 69. 5, 17 113.
112. 122.
5 61. 67. 127. 5, 18 113.
3, 18-4, 1 81.
5, 6 61. 74. 5, 21 112.
3, 22s 86.
5, 13 6 8 .7 0 .9 1 .1 0 4 . 5, 22ss 57. 81. 95. 98
3, 23s 81.
122.
5, 13-26 64. 66. 67. 68.
73. 105. 122. 5, 22-6, 9 111. 4, 1 81. 99.
136.
5, 24 112.
5, 14 70. 77. 1 TESSAIONICENSES
5, 25s 111.
S, 16ss 103.
5, 26 121.
4,3 102.
5, 19ss 56. 66.
5, 28 111.
4, 3s 95.
5, 20s 62.
5, 3 Iss 112.
4, l i s 86.
5, 22 56. 67. 72. 76.
6, 5ss 112.
101. 104. 109.
6, 10 110.
5, 23 104. Il TESSAIONICENSES
6, lOss 119.
5, 25 62. 63.76. 103.
104. 126. 6, 11. 12. 3, 6ss 86.
,
6 2 70. 71.
f3ss. 16 110.

1 TIMÓTEO
EFÉSIOS FILIPENSES

1, 10 116.
1, 3ss 110. 2, Iss 73. 1, 18ss 115.

2, Iss 110. 2, 5ss 43. 73. 2, Iss 119.

2, 8-10 113. 4, 5 75. 2, 2 115.


4, 1. 2 113. 4, 8 7. 56. 75. 79. 2, 9 116.
84.
4, 3 113 147. 2, 9ss 117.
4, 17ss 109. 2, 10 116.
4, 22ss 109. GCXOSSENSES 2, 14s 116.
4, 23 113. 2, 15 117.

4, 30 109. 113. 1, 8 72. 3, Iss 119.

4, 32 110. 114. 147. 1, 15js 84. 3, 2 117.

5, 2 110. 114. 2, 10. 20 84. 3, 4. 12 117.

5, 3-7 111 . 3, 5ss 109. 4, 3ss 117.

5, 8 110. 3, 9 109. 5, 4. 8 117.

5, 8s 109. 113. 3, 9ss 109. 5, 9ss 119.

5, 8-21 111. 3, 11 96. 5, 10 117.

5 ,9 113. 3, 12 114. 5, 14 117.

5, 10 109. 113. 3, 14 77. 147. 5, 16 117.

5, 14 110. ï 3 ,1 8 81. 6, 3ss 116.

157
II TIMÓTEO 2, lss 52. 3, 5ss 122.

2, 5 128. 3 7 123.
1, 3. 5 117. 123.
2, 5ss 52. 3, 13ss
1, 6ss 115.
2, 8 130. 3, 21 121.
1, 9 115.
2, 12 127. 128. 4, lss 123.
3, 8 116.
2, 13 127. 130. 4, 7 124.
3, 15 117.
2, 14ss 126. 127. 5, lss 123.
4, 3 116.
2, 14-26 126. 5, 8ss 124.

2, 16s 126.
TITO
2, 19 126. 1 JOÃO

1, 6 117. 2, 21ss 127.


1, 6 132. 134.
1, 9 116. 3, !3ss. 17ss 126.
1,6-10 136.
2, 355 119. 4, 1-12 129.
1, 8. 9 135.
2, 11. 12 115. 4, 4 129.
2, 2 132.
2, 12s 118. 4, 6 129.
2. 3. 4 134.
3, 1 119. 4, 11. 12 129. 130.
2, 7s 72. 133.
3, 5 115. 5, lss 51. 128.
2, 7ss 133.
5, 3 128.
HLEMOM 2,8 135.
5, 7. 9 128.
2, 9 133.
6, 24ss 128.
V. 12-14 99. 2, 10 72. 133.
V. 14ss 99. 2, 11 133.
1 PEDRO
V. 17 99. 2, 12ss 135.

1, 3-4, 11 ■ 121. 123. 2, 15 129. 134. 135.


HEBREUS
1, 13ss 121. 2, 15$s. 17 132. 138.

1, 16 121. 2, 18 ss 136.
6, 4ss 136.
1, 17s, 19s 121. 3, 6 136.
6, 4-6 141.
1, 20 124. 3, 9 135. 136.
12, 17 141.
1, 22s 121. 3, 11 72. 136.

1, 23 122, 3, 14ss 133.


TIAGO
2, ls 121. 3, 16 133.

1, 1 125. 2, 13ss 57. 81. 119 3, 23 72. 137.


122. 123.
1, 18 128. 4, 2 132.
2, 15ss. 16
1, 19ss 127. 128. 4, 9ss 132.
18ss. 19ss.
1, 25 127. 21 ss. 24 122. 4, 10 72. 132.

1, 27 127. 3, lss 122. 4, 19 72.


CN
O

123. 134.
■5?

2 127. 3, 3s

2, 1 125. 3, 4ss 122. 5, 3 137

158
5, 4 132. 143. 2, 19 142. 13 90. 119. 144.
5, 16 135. 136. 137. 2, 20 140 14, 13 142. 145.
5, 18 135. 2, 21 140 17-18 144.
5, 21 136. 2, 22. 24 140 17, 14 142.
3 139. 19, 8 142.
APOCALIPSE 3, 1 140. 19, 16 142.
3, 2 142. 20, 4 144. 145.

1, 9 142, 3, 6 140. 20, 11 145.

2 139. 3, 10 142. 21 145.


2-3 142. 3, 14ss 140. 21-22 144.

2, 2 142. 3, 19 140.

2, 4 140. 3, 19ss 141. ESCRITOS


EXTRACANÔNICOS
2, 5 140. 3, 22 142.

2, 15 140. i 144.
BARNABÉ
2, 16 140. 11, 15 144.

2, 17 142. 12, 17 139. 2, 6 130.

159
Na Teologia contemporânea, uma Ética do
Novo Testamento na forma do presente livro
é algo de novo — e de oportuno. Pois a abor­
dagem deste tema acerta com uma situação
muito receptiva, já que reina incerteza em
questões de ética e moral, e muitos anseiam
por respostas orientadoras para sua realização
humana, nestes tempos de pluralismo e relati­
vidade. Na parte introdutória o autor define
a metodologia que haverá de respeitar o
caráter peculiar das exigências éticas do
Novo Testamento. Expõe então o tema à
base da pregação de Jesus, da Comuni­
dade Primitiva, de Paulo e das cartas
deutero-paulinas, de Tiago e dos escri­
tos joaninos. Conclui elaborando a
unidade e a vigência permanen­
te dos princípios éticos do
Novo Testamento.

A EDITORA

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