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 –  Sociedade  Brasileira  de  Estudos  Interdisciplinares  da  Comunicação  


XXXIX  Congresso  Brasileiro  de  Ciências  da  Comunicação  –  São  Paulo  -­‐  SP  –  05  a  09/09/2016

Paisagem Nordestina e os Ciclos do Cinema Nacional1

Manoel Meirelles Amorim Batista2


Universidade de Federal do Rio Grande do Norte, Natal, RN

Resumo

A paisagem nordestina no cinema pode ser pesquisada em dimensões ou camadas


sucessivas, tendo como referencial teórico os estudos de Geografia e Cinema decorrentes do
aprofundamento dos conceitos de paisagem cultural. A partir dessa referencia, analisaremos
a relação da paisagem nordestina com os ciclos do cinema nacional, analisando filmes
significativos de cada um dos ciclos e ressaltando elementos da paisagem natural, humana,
simbólica que compõem essas espacialidades cinematográficas.

Palavras-chave: cinema; ciclos nacionais; paisagem; geografia .

Introdução
O presente artigo tem como tema as relações entre a paisagem nordestina e os ciclos
pelos quais passou o cinema nacional. Dentro dessa análise, passaremos por filmes dos
principais ciclos do cinema brasileiro começando pelos ciclos regionais da década de 203,
destacando como recorte o Ciclo do Recife. Em seguida comentaremos o ciclo das grandes
companhias privadas, representadas pela Atlântida e Vera Cruz na década 50; avançaremos
para abordar o cinema moderno, por meio do Ciclo do Cinema Novo, durante a década de
60; posteriormente, versaremos sobre a paisagem nos filmes do Ciclo da Embrafilme,
dentro do modelo de financiamento estatal que se distendeu nos anos 70 a 90; e, por fim, o
Ciclo da Retomada, que desembocou no cinema contemporâneo, com as produções mais
recentes.

Noções prévias sobre paisagem


A abordagem da paisagem no cinema que faremos nos remete a estudos prévios
atinentes ao campo da geografia. A paisagem é considerada um conceito-chave em

1
Trabalho apresentado no GP Cinema do XVI Encontro dos Grupos de Pesquisa em Comunicação, evento componente do
XXXIX Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação.
2
Mestrando do Curso de Pós-Graduação em Estudos da Mídia – PPGEM da UFRN, email:
mmabmanoelmeirelles@gmail.com
3
Fernão Ramos separa o Cinema Paulistano e o Cinema Carioca, diferenciando-os dos Ciclos Regionais de Minas Gerais,
do Norte, do Nordeste e Sul-Sudeste, durante as décadas de 1910 a 1930, no Livro História do Cinema Brasileiro, 1987.

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Geografia4, sendo esse um dos elementos básicos utilizados para pesquisar as relações
sócio-espaciais e, em razão do aprofundamento desse estudo científico, os conceitos de
paisagem em Geografia tem sido usados como referencial teórico por outros ramos das
ciências humanas como sociologia, antropologia, história, comunicação, urbanismo,
arquitetura, paisagismo; tendo, portanto, íntima relação com formulações estéticas e
artísticas.
A origem do etimológica do termo paisagem remete ao período do Renascimento no
século XVI. A esse respeito Vicente P. Silva faz alusão a Roger Brunet para afirmar que:
“a palavra paisagem, no seu sentido etimológico, é aquilo que se vê
do país, o que pode ser compreendido como o que se tem ao alcance da
vista; aproxima-se da palavra italiana paesaggio, que surge na pintura
durante o Renascimento. Essa se refere ao que o olho abarca, ou capta, num
único golpe de vista, o campo do olhar” (SILVA, Vicente, p. 201, 2007).

Em geografia, o termo paisagem passou a ser sistematizado no século XIX, e início do


XX, sendo bastante contributivas as concepções de autores como Ritter Humboud e
Hommeuyerem – o qual introduziu o termo landcraft nesse ramo de estudos- para os quais a
ideia de paisagem estava ainda muito ligada a análise morfológica de sistemas naturais.
Ao desenvolver o conceito, outros autores incluíram a noção de que a paisagem possui,
além de elementos naturais (como relevo, clima, hidrografia, vegetação e fauna), elementos
funcionais relacionados a ação do homem, permitindo a abertura para o conhecimento de
fatores econômicos, urbanos, agrícolas, relacionados aos costumes, à tradição e à cultura, os
quais interferem e modificam a estrutura desses campos espaciais. Passa a haver a
percepção de que a composição morfológica da paisagem (que se refere ao estudo da
aparência externa da matéria) apresenta elementos naturais e artificiais, mas que,
certamente, o elemento humano é o fator morfológico mais importante. Nesse sentido
Vicente Silva menciona sinaliza a importância da ação do homem na formação das
paisagens culturais a partir dos estudos de Carl Sauer5:
“Formas da terra na paisagem natural, formas do mar e da
vegetação são fatores morfológicos, apresentados por Sauer, o qual
concluirá que se referem à composição inorgânica da paisagem. (...) Essa
composição, ao ser submetida à ação antrópica, é alterada e, em muitos
casos, destruída. O homem, como coloca o autor, é o fator morfológico
mais importante. A partir daí Sauer expõe os argumentos para a
compreensão das paisagens culturais.” (SILVA, Vicente, p. 208, 2007).
4
Para Alexandre Neves e Cláudio Ferraz (2011, p. 168), a Geografia “é objetivada via cinco conceitos-chave principais
que estão intimamente relacionados por serem as formas como os homens modelam, e transformam superfície, são eles:
Região, Lugar, Território, Espaço e Paisagem.”
5
Carl Ortwin Sauer (1889/1975) é um nome de grande destaque no pensamento geográfico, sendo considerado um dos
precursores da Geografia Cultural. Sobre o autor, ver Leo Name, O conceito de paisagem na geografia e sua relação com
o conceito de cultura (2010).

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Posteriormente, os estudiosos do tema chamaram a atenção para diversas dimensões na


paisagens, a depender sempre da acepção tomada pelo ponto de vista do observador. Nesse
sentido Milton Santos expande o entendimento do termo ao dizer que a paisagem não “é
formada apenas de volumes, mas também de cores, movimentos, odores, sons etc”
(SANTOS, 1988, p.61); ou ainda, aludindo ao processo histórico revelado nas paisagens
como “resultado histórico de uma acumulação de tempos, representando diferentes
momentos do desenvolvimento da sociedade”. (Santos, 1988 p. 38). Nesse sentido nos
parece esclarecedora e sintética a apresentação bastante reproduzida de Corrêa e Rosendahl:
“Na realidade, a paisagem geográfica apresenta simultaneamente
várias dimensões que cada matriz epistemológica privilegia. Ela tem uma
dimensão morfológica, ou seja, é um conjunto de formas criadas pela
natureza e pela ação humana, e uma dimensão funcional, isto é, apresenta
relações entre as suas diversas partes. Produto da ação humana ao longo do
tempo, a paisagem apresenta uma dimensão histórica. Na medida em que
uma mesma paisagem ocorre em certa área da superfície terrestre, apresenta
uma dimensão espacial. Mas a paisagem é portadora de significados,
expressando valores, crenças, mitos e utopias: tem assim uma dimensão
simbólica” (CORRÊA, Lobato e ROSENDAHL, Zeny, p. 08, 1998)

Percepções dessa natureza redimencionaram o papel de expressões culturais e artísticas


(como o cinema) na geografia e em ciências transdisciplinares, principalmente a partir da
releitura da teoria cultural proporcionada pelo cultural turn6, possibilitando o surgimento,
por exemplo, de ramos específicos relacionando Cinema e Geografia a partir de autores
como Peter Jackson, Doreen Massey e Denis Cosgrove.
Para análise que propomos no presente artigo, acepções como as de Denis Cosgrove
serão postas em ação, com importância salutar para esfera imaginativa e simbólica da
paisagem, ao evidenciar que “revelar os significados na paisagem cultural exige certa
habilidade imaginativa de entrar no mundo dos outros de maneira auto-consciente e, então,
representar essa paisagem num nível no qual seus significados possam ser expostos e
refletidos...” (COSGROVE,1998, p.103)7; bem como usaremos proposições de Ana
Francisca Azevedo sobre as estereotipação de paisagens cinematográficas, ao ressaltar que
“Trespassado de significados geográficos, o filme pode reproduzir ou desafiar

6
A esse respeito Corrêa e Rosendhal (2009, p. 09) esclarecem: A partir da renovação da geografia cultural, na qual
"significado" passou a constituir-se em "palavra-chave", cinema, música, literatura, pintura e outras artes tornaram-se
relevantes para os geógrafos, agora dotados de outras bases epistemológicas, teóricas e metodológicas que lhes permitem
interpretar as representações construídas pelos outros”.
7
Ver COSGROVE, Denis. In: SILVA, Vicente. Paisagem: concepções, aspectos morfológicos e significados. Uberlândia:
Revista Sociedade & Natureza, 19 (1), p. 210, jun. 2007.

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representações coletivas e estereotipadas sobre os lugares, pois cada filme enfatiza sempre
um determinado ‘olhar’ sobre o espaço”8.
Usando essas referencias, será feito um exame da paisagem nordestina no cinema
brasileiro (por meio do aprofundamento sucessivo dos seus elementos naturais, humanos,
subjetivos e simbólicos) visando relacioná-la aos ciclos do cinema nacional e ao contexto
de produção de seus filmes.

Os ciclos, os filmes e as paisagens nordestinas


A paisagem nordestina esteve presente nos diversos ciclos pelos quais passou o cinema
nacional e acompanhou diferentes tendências cinematográficas, conforme se desenvolveu
no decorrer da evolução desses ciclos.
Se por um lado esses diferentes ciclos trouxeram considerável variedade de concepções
estéticas e de linguagem (sendo bastante perceptível a influência do cinema clássico, em um
primeiro momento, passando para o moderno e posteriormente para as recentes tendências
do cinema contemporâneo), por outro lado, os temas escolhidos para criar uma dizibilidade
e visibilidade do Nordeste no cinema apresentaram certa constância, sendo periodicamente
retomados e reinterpretados.
As primeiras paisagens nordestinas em filmes de ficção remetem ao ciclo regional do
Recife, ocorrido na década de 1920. Os ciclos regionais foram iniciativas ocorridas fora do
Rio de Janeiro e São Paulo, tentando descentralizar a produção para outras áreas do país,
tais como Pernambuco, Minas Gerais, Rio Grande Sul, Paraíba e Amazonas, sendo o Ciclo
do Recife um dos que obteve maior destaque com 13 longa-metragens. Em Recife, esse
ciclo foi realizado por um grupo de jovens produtores, os quais dispunham de um desejo
profundo de realizar filmes, mas com uma base de financiamento praticamente inexistente,
tanto que seus realizadores dividiam seu tempo entre o cinema e outra profissão. Assim,
esse cinema não encontrou recursos para continuar suas atividades após a década de 30, em
razão do surgimento do cinema sonoro, o qual exigia investimentos mais volumosos.
Todavia, nesses filmes recifenses já percebemos em Aitaré da Praia (1925), de Gentil
Roiz, ou em Jurando Vingar, de Ary Severo (1925), a presença de conteúdos relacionados
à miséria, à violência, à religiosidade, ligados à dualidade entre sertão e litoral, campo e
cidade, os quais se acoplarão a outros elementos temáticos intermitentes para consolidar a

8 Ver AZEVEDO, Ana Francisca. Geografia e cinema. In: CORRÊA, Roberto Lobato e ROSENDHAL, Zeny (Org.). Cinema, Música e
Espaço, 2009, p. 99.

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construção imagética e discursiva do Nordeste. Em Aitaré da Praia, por exemplo,


verificamos a presença de imagens relacionadas ao dia-a-dia dos pescadores, indicado nas
paisagens litorâneas (com suas praias, jangadas e coqueiros), as quais de imediato são
contrastadas ao ritmo de vida acelerado da cidade (com seus prédios, avenidas e bondes),
aludindo à modernidade e ao desenvolvimento presentes na capital.
Trata-se de uma representação ainda simplista e sem maiores elaborações sobre a
paisagem, mas, elementos como esses, ajudam a estabelecer a visão que se tem da região
Nordeste decorrente de variadas linguagens, as quais vem sendo acumuladas ao longo de
décadas, passando por abordagens que vão desde a literatura, música, poesia, cinema,
jornais, televisão, bem como saberes científicos. Tais expressões formam camadas de
significação que se sobrepõe para estabelecer conceitos relacionados a cultura nordestina.
Há historiadores como Albuquerque Júnior que identificam uma maior atividade
inventiva na construção imagética e imaginária do Nordeste, principalmente no decorrer das
décadas de 1920 e 1960. Essa maior profusão na construção da dizibilidade e visibilidade
das espacialidades regionais ganhou maior expressão em decorrência da busca de
unificação em torno do discurso nacional sobre a cultura popular, especialmente a partir do
início do século XX, devido ao deslocamento dos eixos de poder e disputas políticas entre o
Norte (atual Nordeste) e o Sul (atual Sudeste), surgindo daí movimentos artísticos e
culturais que buscavam intensificar a identidade e os caracteres referentes a cada uma
dessas regiões. Sobre os discursos regionalistas do início do século XX Albuquerque
Júnior:
“A partir deste momento, para visualizar a nação em toda a sua
complexidade, os vários discursos, tanto no Norte quanto do Sul, partem
para análise do próprio espaço onde são emitidos(...) A busca da nação leva
a descoberta da região com um novo perfil. Diferentes saberes, seja no
campo da arte ou da ciência são mobilizados no sentido de compreender a
nação, a partir de um jogo de olhares que perscruta, permanentemente as
outras áreas e volta para si próprio (...)” (ALBUQUERQUER JR, Durval,
2012, p. 53)

Retomando a contextualização da paisagem nordestina nos ciclos do cinema


percebemos nas décadas de 40 e 50 o surgimento de grandes companhias de cinema como a
Vera Cruz (1949 -1954, em São Paulo) e Atlântida (1941-1962, no Rio de Janeiro) as quais
deram continuidade a esse processo de formar ou inventar identidades regionais a partir do
cinema. Nesse período marcado pelo perfil industrial, tem grande destaque a produção de

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filmes como O Cangaceiro,9 de Lima Barreto, lançado 1953, pela Vera Cruz, companhia de
filmes que buscava recriar o modelo de produção hollywoodiano no Brasil, tendo como
principal slogan “produção brasileira de padrão internacional”.
Quanto à crítica o filme é bastante elogiado em relação à forma e técnicas empregadas,
dadas as dificuldades da época. Mas, em contrapartida, há avaliações negativas em relação
ao seu conteúdo, as quais também podem ser analisadas a partir da estruturação da
paisagem cinematográfica.
Os aspectos naturais da paisagem revelam um Nordeste imaginado a partir do ponto de
vista de São Paulo, tanto que o filme foi rodado na cidade Vargem Grande do Sul, no
interior desse estado. Já na cena inicial apesar da fotografia de alto padrão, do inglês Chick
Fowle, é apresentado um céu bastante nublado que transporta o espectador pra longe da
paisagem sertaneja. Em outro momento, imagens de uma vegetação cerrada cada vez mais
densa e elevada também desmentem o pretenso realismo do filme, chegando ao ponto de
aparecer um índio trafegando semi-nú com um colar de dentes de onça em sua canoa para
encontrar os personagens do cangaço.
Em relação aos elementos da paisagem humana aparecem figuras típicas recortadas a
partir de referências construídas nos romances regionalistas da década de 3010, como o
padre ou beato, o sanfoneiro, danças de roda e um papagaio, mas esses elementos não tem
grande influência no desenrolar da narrativa, sendo usadas apenas como recursos
decorativos que ilustram a paisagem rural nordestina. Carregado de estereótipos, o filme
praticamente se limita a trazer os elementos indispensáveis para conseguir coesão lógica de
que a história se passa no ambiente do sertão. Glauber Rocha, foi uma das vozes que trouxe
críticas, desabonando o filme de Lima Barreto:
“Lima Barreto nada mais fez do que repetir um daqueles épicos
mexicanos nos planaltos paulistas vestidos de nordeste: e conservou o
espírito melodramático, o pitoresco fácil, a chantagem dos grandes planos
armados, numa montagem de choque, que aproveitava efeitos do velho
Cinema russo e outros mais imediatos do Cinema americano”. (ROCHA,
2003, p. 91 )

9
O filme de Lima Barreto é considerado o maior êxito da companhia Vera Cruz, tendo alcançado duas Palmas de Ouro no
festival de Cannes (de melhor canção e melhor filme de aventura) e distribuído para 84 países pela Columbia Pictures,
sendo considerado um modelo de filme industrial nacional bem sucedido.
10
Dentre os autores e romancistas da década de 30 que ajudaram a construir esse imaginário destacamos as oras: “O
Quinze” de Rachel de Queiroz, (CE); “São Bernardo”e “Vidas Secas” de Graciliano Ramos, (AL); “Bangüê”, de José Lins
do Rego, (PB); “Mar Morto” e “Capitães de Areia”, de Jorge Amado, (BA); “Casa-grande e Senzala”, de Gilberto Freyre
(PE).

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Além disso, a composição espacial das paisagens é feita de forma cartesiana, sendo
notada na fotografia geométrica que busca ângulos perfeitos e harmônicos. Essa tentativa de
controle absoluto da espaço - corolário da influência dominante do cinema clássico
americano - acaba criando uma atmosfera de artificialidade com rigidez excessiva e objetos
quase estáticos. Um exemplo disso é que mal se vê poeira no filme (falta mais poeira saindo
do chão nas danças de xaxado e nas cenas à cavalo), há carência de espontaneidade,
realismo e abertura maior ao acaso. Outro aspecto da paisagem que distoa é o uso excessivo
de cenas a cavalo, mas tal situação não passou despercebida por críticos como Adriano
Sousa:
“Como explicar os cangaceiros-centauros de Lima Barreto, quando
se sabe que os deslocamentos a pé eram característica vital do cangaço por
razões que incluem desde a origem sócio econômica dos cangaceiros até as
necessidades táticas impostas pelas peculiaridades do relevo e das
vegetações dos sertões? Os cangaceiros a cavalo equivalem a cowboys a pé
no western que serviu de modelo a Lima Barreto. (SOUSA, Adriano, 2009,
p 106)”

As incoerências apontadas contribuem para construir um mundo interno também


bastante raso para os personagens da trama. A paisagem subjetiva vivida pelos personagens
mostra os homens do cangaço entregues a uma barbárie anárquica e desprendida de
qualquer contexto social (econômico ligado as condições fundiárias) e antropológico. Nessa
construção, como não é expressada qualquer justificativa que aponte em outro caminho, o
espectador é levado a crer que a maldade dos cangaceiros é intrínseca e decorre unicamente
de sua índole malévola ou de uma tragédia familiar individual. Trata-se da paisagem
nordestina vista pelos olhos do outro, feita de uma perspectiva extrínseca e despreocupada
em se aprofundar nos códigos da cultura local, em relação a uma região que já possuía um
discurso forjado pela literatura e romance regionalistas desde a década de 30, mas que ainda
carecia de construção imagética mais elaborada a ser desenvolvida no cinema.
Avançando no tempo, em 1962 é lançado O Pagador de Promessas dirigido Anselmo
Duarte, baseado na peça teatral homônima de Dias Gomes, sendo o único filme brasileiro a
receber a palma de ouro de melhor filme em Cannes até os dias atuais. Anselmo Duarte
havia sido galã em filmes da Vera Cruz e das chanchadas da Atlântida, e apesar do sucesso
no circuito internacional do filme, recebeu diversas críticas em nível nacional,
principalmente dos cineastas alinhados ao Cinema Novo, os quais consideraram a obra
acadêmica e ainda muito eivada da influência americana. De certa forma a obra apresenta
um misto entre o estilo hollywoodiano e entre as modernas tendências cinemanovistas,
como percebemos nos comentários de Fernão Ramos:

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Anselmo fazia parte da velha guarda oriunda da chanchada e da


Vera Cruz e nunca “se deu muito bem com os ‘meninos’ do jovem cinema.
Em O PAGADOR DE PROMESSAS apresenta toda uma temática próxima
ao Cinema Novo, mostrando, além do universo ficcional carregado de
‘brasilidade’, a questão da opressão e sofrimento popular.(…) Apesar do
mesmo núcleo temático e de personagens e universo ficcional próximos, a
distância com relação ao Cinema Novo se estabelece ao abordarmos a
forma narrativa através da qual este conteúdo é disposto (...)”. (RAMOS,
1987, p. 340-341)

Quanto à descrição paisagística, percebemos na sequência inicial uma significativa


evolução da linguagem por meio do uso de atributos naturais da paisagem como recurso
narrativo. No decorrer dos 7 minutos iniciais, sem qualquer diálogo, o diretor consegue
apresentar o conflito disparador do enredo em que o personagem principal, Zé do Burro, faz
uma promessa em um terreiro de candomblé e passa a carregar sua cruz atravessando
diversas nuances espaciais do Nordeste. Zé do Brurro sai do sertão árido, caracterizado por
cactos, solo rachado, animais sofrendo com a seca, caminha até locais com chuvas,
chegando a regiões com climas mais amenos, prossegue até o litoral, representado
inicialmente pelos coqueiros e praias, posteriormente pela vida noturna e moderna da
capital Salvador. Por fim, o protagonista completa seu trajeto, chagando a escadaria de uma
igreja barroca, local em que pretende pagar sua promessa. A partir daí passa a ser
evidenciada predominância de elementos humanos na composição da paisagem do filme,
comportando conflitos diversos, em que se desenvolverá a história.
A paisagem sonora potencializa os conflitos e a hibridização da cultura nacional que são
temas centrais dessa história. A trilha sonora por um lado enaltece a fé e a determinação
com que o personagem cumpre sua promessa, por meio da grandiosidade da música sacra e
erudita; ao mesmo tempo, por outro lado, mistura e opõe na mesma sequência a música
africana marcada por tambores e instrumentos artesanais, a exemplo de canções de
capoeira, de carnaval, samba e boemia, as quais remetem a força da cultura negra e a
criatividade popular. Esses elementos sonoros são espelho da rica paisagem humana
mostrada na película. A rua da escadaria em frente a Igreja, a partir da chegada do homem
do campo, Zé do Burro, se torna palco para um universo diversificado de personagens do
qual enumeramos: o padre, o cafetão, o jornalista, o policial, o comerciante, o capoeirista, o
poeta, as baianas de acarajé, todos dividindo e competindo pelo mesmo espaço. Essa
paisagem condensa os conflitos nacionais da época, os quais se revelavam em oposições
dualistas entre o rural e urbano, litoral e interior, catolicismo e candomblé, posições

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ideológicas à direita e à esquerda, marcando a tentativa de sobrepor a cultura erudita à


popular. Durval Albuquerque ressalta que nesse filme:
“a problemática relação entre cultura popular e erudita é nele
trabalhada no sentido de ter suas fronteiras rompidas, em nome de uma
produção de uma cultura nacional e popular, gestada por cima, com
aceitação do popular desde que dentro das regras ditadas pelo erudito. (...)
Esse filme expressa a ilusão populista da conquista paulatina pelo povo de
espaços institucionais, pela institucionalização de suas demandas como uma
conquista de poder.” (ALBUQUERQUE JR, Durval, 2012, p. 53)

O Pagador de Promessas torna bastante clara a exacerbação das incoerências sociais no


espaço urbano, enfatizando o desejo do povo de fazer parte do ambiente social e da cultura
oficial do país, mas, o mesmo popular é proibido de entrar na igreja por forças ligadas a
ordem, representadas pelo padre e por policiais. Tais conflitos demonstram a preocupação
que havia em integrar a cultura rural e nordestina à civilidade da cultura urbana oficial.
Nesse sentido cabe explicitar que Zé do Burro, representando o elemento popular, não tem
fala na sequência inicial e só passa a ter voz quando chega no ambiente espacial da cidade.
Opondo-se diametralmente ao padrão de produção profundamente influenciado pelo
cinema americano, o Cinema Novo passa a buscar, a partir da década de 60, um
rompimento com a forma clássica de fazer cinema estabelecida pelas grandes companhias
inspiradas no modelo estrangeiro. Acompanhando movimentos que despontaram em várias
partes do mundo, com destaque para inspiração maior do cinema de francês e italiano
(tendo como principais expoentes Godard e Rosselini), o cinema moderno brasileiro
também apostou na autoralidade em contraposição ao cinema clássico americano.
Nesse novo cinema a tentativa de forjar elementos caracterizadores da identidade
nacional e regional passou a ser perseguida por meio de um denso aprofundamento na
cultura popular, incorporando seus signos, apropriando-se de seus costumes e valores. Se
nos ciclos anteriores a busca pelo popular era feita a partir de um olhar distanciado,
implicando uma hierarquia que indiretamente ainda opunha cidade e campo, mundo
civilizado e atrasado, por outro lado, os participantes do Cinema Novo se dispunham
utilizar a influência adquirida a partir da cultura estrangeira para mergulhar na forma como
o povo enxergava a realidade e, a partir dessa mistura, fazer emergir uma abordagem
estética distinta, consciente da suas limitações técnicas, mas que buscava incorporar tais
deficiências em uma colagem que fundaria as bases de um novo cinema.
Dotados de um viés ideológico marxista, esses cineastas buscaram por meio de suas
obras atingir o inconsciente coletivo e despertar o povo –quase de maneira pedagógica- para
a necessidade de se opor a injustiça e opressão através de um processo que culminaria com

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a revolução. Essa posição adotada é esclarecida por Durval Albuquerque no seguinte


trecho:
“O Cinema Novo retoma a problemática modernista da necessidade
de conhecer o Brasil, de buscar suas raízes primitivas, de desvendar o
inconsciente nacional por meio de seus arquétipos para, a partir deste
desvendamento, didaticamente ensinar ao povo o que era o país e como
superar a situação de atraso, agora nomeado de subdesenvolvimento e de
dependência externa”. (ALBUQUERQUE JÚNIOR, Durval, 2011, p. 305)

É nessa época que surgem os filmes Os Fuzis, de Ruy Guerra (1964), Deus e o Diabo na
Terra do Sol, de Glauber Rocha (1964) e Vidas Secas de Nelson Pereira dos Santos (1963),
que compõem a chamada trilogia do sertão, considerado por muitos, a exemplo Ismail
Xavier (2001, p. 28), momento de auge do Cinema Novo. Em Deus e o Diabo na Terra do
Sol, a modernidade é percebida no uso de diversas influências cinematográficas e
artísticas11 para construir um universo atemporal, usando alegorias e imagens que tendem
ao mítico para caracterizar os personagens e os espaços que habitam. Ao mesmo tempo,
todo esse conglomerado de influências é envolto e amarrado pela linha popular da literatura
de cordel e repentista, a qual é fortemente sentida nas cenas em que cego cantador assume a
função de narrador ao cantarolar a trajetória de vida dos participantes da história.
Seguindo este diapasão, as paisagens construídas nesse filme dispõe de várias camadas
que se entrelaçam e vão do mítico ao real proporcionando a multiplicidade e simultaneidade
de visões sobre um mesmo objeto, em um processo de apreensão semelhante ao da pintura
cubista. A esse respeito, Pedro Pereira explica que:
“No processo de dramatização de determinados momentos
históricos do país, o filme reinventa a realidade, urdindo tempo, espaço,
biografia e geografia, sempre em novas configurações imaginativas, e
possibilitando visão alternativa dos personagens e dos episódios. Narrando
uma história do Brasil, a película não se contenta em apresentar o real, ou
identificar ‘personagens reais’; antes, prefere (re)criá-los alegoricamente.”
(PEREIRA, Pedro, p. 25, 2008)

Os elementos da paisagem natural são trazidos por Glauber Rocha de forma ampla,
com uso de muitos planos abertos, os quais enfatizam a dimensão vasta do sertão. Ele cria
a sensação de uma paisagem que parece infinita e intransponível, uma fardo pesado, na
medida em que a natureza se impõe ao homem rural de forma rústica, tornando-o pequeno
diante dessa força maior. Para reforçar essa sensação, usa como recurso -o qual demonstra a

11
“Deus e o Diabo instaura um novo paradoxo estético ao conjugar várias influências, começando pela tragédia grega (o
cego Júlio é o fio condutor), passando pelo western (a exploração dos grandes espaços) e por Luis Buñuel (o assassinato
de Sebastião), até chegar a Sergei Eisenstein (a matança dos beatos é influenciada pela escadaria de Odessa de O
Encouraçado Potenkin) e Akira Kurosawa (os rodopios dissonantes de Corisco, entre outros).”(SETARO, Andre, 2010, p.
79)

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habilidade do autor em construir metáforas espacializantes- o olhar fixo que os personagens


apontam em vários momentos do filme para o horizonte distante, momento em que se
perdem em suas reflexões, desapontados por não ter como ultrapassar sua existência
trágica, fato que os traz de volta ao tempo da natureza, um tempo cíclico e mítico.

A forma quase naturalista de apresentar a paisagem é abandonada nos momentos de


efervescência e conflitos sociais. Casos em que a calmaria é rompida por uma descarga de
emoções crescentes e moduladas até a metáfora final em que o sertão se torna mar. A pacata
paisagem sertaneja é transgredida por rompantes de violência e cólera, como no assassinato
do Coronel por Manuel ou do Santo Beato por Rosa. O homem é apresentado como produto
deste meio, mas decorre de uma história, de uma trajetória social. As dimensões da
paisagem coberta pelo sol se erguem em um meio transformado pela força exploradora do
latifúndio e da ideologia messiânico-carismática, surgindo daí o nome do filme.

Por outro lado, essa complexificação das camadas de significação em níveis cada
vez mais densas torna o conteúdo –bem como as paisagens- nos filmes do Cinema Novo
muito herméticos. Tal fato já aponta uma contradição no movimento cinemanovista
representada pelo descompasso entre a intenção de aproximar-se da cultura popular e o uso
de uma estética vanguardista pouco acessível às grande massas. Além disso, as contradições
inerentes ao Cinema Novo vão se ampliar a partir de 64 com o golpe militar, momento em
que, os militares reagem por meio de censura e dura repressão, especialmente a partir de 68,
com o AI-5, gerando a prisão e exílio de vários cineastas, dentre eles Glauber Rocha (entre
71 e 76). Isso coloca esses artistas em outra perspectiva em relação ao ideal revolucionário
e suas utopias, pois essa nova realidade, vai trazer modificações nas temáticas – e
consequentemente nas paisagens - de seus filmes que gradualmente passam a se afastar da
elemento popular regional para chegar em temas mais próximos da classe média, visando
maior alcance de público. A esse respeito Malafaia Wolney faz interessante reflexão:

“Trata-se, pois, de um retorno à condição social de origem; esses


artistas e intelectuais eram todos de classe média e ousaram apostar suas
fichas num processo de radicalização e de realização de reformas
consideradas essenciais para a sociedade brasileira. As reformas não
vieram; veio, sim, o golpe militar, que destruiu a perspectiva reformista,
colocando em cena a brutalidade do Estado autoritário.” (WOLNEY,
Malafaia, 2012, p. 18 e 19)

Essas incoerências se tornaram mais evidentes quando setores do próprio regime


militar, que reconheciam a importância que o Cinema Novo tinha no cenário internacional,

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colocam em prática seus interesses em disputar o mercado interno de produtos culturais que
era amplamente dominado por empresas e estúdios estrangeiros. Nesse período muitos
cineastas, inclusive os do Cinema Novo, passam a ter uma posição dúbia ora criticando, ora
sendo coniventes com o regime militar. A partir desse contexto foram desenvolvidas
políticas de cotas para exibição filmes nacionais e foi criada a Embrafilme (Empresa
Brasileira de Filmes S/A), empresa estatal que se encarregou da produção distribuição
cinematográfica em todo território nacional. As produções dessa empresa estatal envolviam
filmes com temáticas populares, abordados por meio de uma linguagem simples, usando
diretores de prestígio, preferencialmente internacional, e atores que já tinham aproximação
com o público devido a participação na televisão. Foi uma abordagem que permitiu a
aproximação entre os diretores cinema autoral e o grande público.
Entre o surgimento da Embrafilme em 1969 e seu fechamento em 1990 foram
alcançadas muitas das maiores bilheterias nacionais. Um filme que se tornou símbolo desse
novo ciclo de produção foi Dona Flor e Seus Dois Maridos, de Bruno Barreto (1976),
sendo o segundo filme com maior público na história do cinema nacional, ultrapassado
apenas por Tropa de Elite 2, de José Padilha, em 2010. A respeito da produção de Dona
Flor e seus Dois Maridos, Malafaia Wolney afirma:
“O filme seguiu o modelo de sucesso já proposto anteriormente:
elenco televisivo, roteiro conhecido, trilha sonora de qualidade, técnica
aperfeiçoada e sexo, muito sexo. Obviamente, para esse sucesso contribuiu,
e muito, o fato de a atriz Sonia Braga protagonizá-lo.(...) A identificação do
público com a história e com suas personagens foi total.” (WOLNEY,
Malafaia, 2012, p. 150)

Filmado em 1976 na cidade de Salvador, cronologicamente a história se passa em 1943,


sendo baseada no romance de homônimo de Jorge Amado. A paisagem em Dona Flor
voltou a se aproximar de uma construção realista e naturalística, afastando-se de maiores
elaborações estéticas e criativas que pudessem ser mal apreendidas pelo público. Por se
focar um drama doméstico da classe média urbana, os elementos da natureza nessa
paisagem quase não aparecem em cena e praticamente em nada influenciam na trama da
história. Já em relação aos elementos humanos que compõem a paisagem há uma
preocupação em melhor apresentar e descrever os elementos da baianidade criada pelo
romance de Jorge Amado. Elementos da cultura baiana são valorizados no decorrer da
película por meio das receitas de culinária ensinadas por Dona Flor, bem como das
enfeitadas cerimônias de candomblé feitas para afastar o espírito do Vadinho, primeiro

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marido da protagonista, que morre durante as festas de carnaval e representa a figura do


malandro gigolô.
Ainda em relação à construção humana da paisagem há dois grupos que se
antagonizam. O primeiro é formado por indivíduos que seguem as regras de convivência e
procuram manter a ordem social, os quais são representados por figuras como as beatas, as
amigas de Dona Flor, Teodoro (segundo marido da protagonista), o padre e outros vizinhos
coadjuvantes. Essas pessoas tem como referência tanto a moral, como as normas cristãs e o
badalo da igreja funciona, compondo a paisagem sonora, como medida temporal que
determina o ritmo de vida dessa comunidade. Em contraste, há o grupo dos boêmios,
prostitutas e poetas que levam uma vida desregrada, vivem nos ambientes de jogos de azar,
bares e bordéis, tendo Vadinho como figura de referência. Eles representam alegria das
festividades e o desbundar em farras cotidianas. Há momentos em que Vadinho, trata mal a
esposa, chegando a bater nela quando precisa de dinheiro e os traços de machismo são
também revelados pela desvalorização social do trabalho feminino, como o de Dona Flor,
por ser professora de culinária. Entretanto, esses dramas são colocados de forma bastante
simplista e com o mínimo de complexidade, de maneira que a paisagem interna da maior
parte dos personagens é pouco explorada, sendo praticamente unidimensionais e de
comportamento previsível.
Esse tipo de produção que obteve bastante sucesso no ciclo da Embrafilme, sendo
perceptível a busca constante pela aproximação com público. Nesse sentido, o ingrediente
do humor aparece como um elemento amenizador de antagonismos e conflitos da sociedade
brasileira, sendo usado frequentemente de forma criativa e inteligente. Essa fórmula de
sucesso, composta de vários dos elementos que já haviam sido testados com êxito na
televisão, permanece mesmo após o fim da Embrafilme e pode ser encontrada em filmes do
ciclo posterior da Retomada.
Posteriormente, com o decorrer dos anos 80 a máquina estatal da Embrafilme se tornou
pouco eficiente devido disputas internas no campo cinematográfico (para decidir que tipo
de projetos seriam financiados), burocracia exagerada e denúncias de corrupção. Em meio a
críticas da imprensa e do setor, em 1990, o presidente Fernando Collor extinguiu a
Embrafilme e demais órgãos estatais responsáveis pela atividade cinematográfica. Após um
período de baixíssima produção e consequente afastamento do público, a atividade foi
readquirindo força em razão do modelo de incentivo fiscal (com desconto de IR para
empresas que investem em produções nacionais) estabelecido pela Lei Rouanet, Lei do

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Audiovisual e posteriormente a Ancine (ampliando a participação de estatais como


Petrobrás e BNDES nesse financiamento indireto) os quais possibilitaram ciclo da
Retomada. O filme Carlota Joaquina, de Carla Camurati, em 1995, marca o início desse
novo ciclo que viabilizou a retomada da produção e do interesse do público pelo cinema
nacional, estendendo-se até o cinema contemporâneo. 12
Esse novo modelo permitiu a convivência e o delineamento de tendências diversificadas
de produção, surgindo subgrupos que vão desde o modelo do cinema comercial, estando
mais preocupado com o público e resultados de bilheteria (tendo predominância da Globo
filmes ocupando cerca de 70% desse segmento) até o chamado cinema autoral, de caráter
mais independente, mais voltado para o desenvolvimento da linguagem e inovação estética,
tendo também maior reconhecimento em festivais internacionais.
No âmbito da paisagem nordestina, autores como Guel Arraes (Auto da Compadecida,
2000 e Lisbela e o Prisioneiro, 2003) e Cacá Diegues (com Tieta, 1999, e Deus é
Brasileiro, 2000) são exemplos de diretores que deram continuidade a suas produções
dentro do modelo do cinema comercial contemporâneo. Nesses filmes também são
recorrentes o uso do estereótipos e do humor para facilitar a aproximação com o público. A
esse respeito Luiz Zanin Oricchio:
“A fórmula de sucesso passa pela excelência da qualidade técnica,
por atores conhecidos do elenco global e boas histórias, contadas sem
qualquer ousadia que possa oferecer dificuldade a um público de cultura
audiovisual formada pela televisão” (ORICCHIO, Luiz, 2008. P. 145)

No cinema autoral, a paisagem nordestina contemporânea vem sendo trabalhada por


autores que procuram ampliar os horizontes dessas espacialidades, colocando em debate a
diversidade, a transformação e atualização que compõem essa paisagem. Esses novos
diretores (que tiveram seus trabalhos incentivados a partir de políticas de descentralização
regional da produção em nosso cinema) demonstram, por exemplo, em filmes como Som ao
Redor, de Kleber Mendonça (2012), que as questões fundiárias e conflitos rurais migraram
para a paisagem urbana, gerando concentração de renda, violência e urbanização
descontrolados; outras vezes, em filmes como Céu de Suely, de Karim Aïnouz (2006), é
trabalhada a figura do migrante que deixa o Sudeste e retorna para Nordeste, portando
bagagens transculturais, em constante desterritorialização; já em Boi Neon, de Gabriel
Mascaro (2015), o vaqueiro é mostrado de forma sensível, integrado ao glamour da

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Há autores que apontam a dificuldade em estabelecer um marco inicial para o cinema contemporâneo nacional: “Como
estabelecer um marco para o início do cinema brasileiro contemporâneo? A opção mais adotada tem sido datá-la a partir
de uma espécie de grau zero, que encerra um ciclo e não vai a parte alguma, pelo menos no início: o desmanche operado
no início do governo de Fernando Collor (1990-1992) [...]”(ORICCHIO, 2008, p. 139)

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iconografia pop e ao mundo da moda; e no Baile Perfumado, de Lírio Ferreira e Paulo


Caudas,1997, aparece a figura de Lampião como sanguinário e feroz, mas também desejoso
do mundo moderno, interessado em fotografia, cinema, gramofone, whisky e perfume
francês, ao mesmo tempo que foca o sertão como uma paisagem verde e abundante,
evidenciando que a seca na região é periódica e freqüente, mas definitivamente não é
constante.
Por fim, não é execessivo sublinhar que a abordagem desses cineastas contemporâneos
trazida para essa discussão não pretende negar a verossimilhança dos estereótipos usados
de maneira cristalizada em outras produções, mas sim apontar novas perspectivas que
também integram essas paisagens e espacialidades.

REFERÊNCIAS
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Cortez, 2011.

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Percurso – NEMO, v. 3, n. 1 , p. 163-181, 2011.

ORICCHIO, Luiz. Cinema Brasileiro Contemporâneo (1990-2007). In: BAPTISTA, Marcelo.


Cinema Mundial Contemporâneo. São Paulo, Papirus, 2008.

PEREIRA, Pedro. O Sertão Dilacerado. São Paulo: Lua Nova, 74: p.11-34, 2008

RAMOS, Fernão. História do Cinema Brasilero. São Paulo: Art Editora, 1987.

ROCHA, Glauber. Revisão Crítica do Cinema Nacional. São Paulo: Cosac & Naify, 2003.

SANTOS, Milton. A Natureza do Espaço. 4 ed. São Paulo: EDUSP, 2009

SETARO, André. Escritos sobre Cinema. Salvador: Azougue Editorial, 2010.

SOUSA, Adriano. Os cavalos de Lima Barreto (O cangaceiro). In: SILVA, Marcos e CHAVES,
Bené (Org.). Cenas brasileiras: o cinema em perspectiva multidisciplinar. Natal: EDUFRN, 2009

SILVA, Vicente. Paisagem: concepções, aspectos morfológicos e significados. Uberlândia:


Revista Sociedade & Natureza, 19 (1): 199-215, jun. 2007.

WOLNEY, Malafaia. Imagens do Brasil: O Cinema Novo e as metamorfoses da identidade


nacional. Tese de Doutorado do Programa de Pós-Graduação em História, Política e Bens Culturais
da FGV/RJ. Rio de Janeiro, 2012.

XAVIER, Ismail. O cinema brasileiro moderno. São Paulo: Paz e Terra, 2001. (2.ed. São Paulo:
Paz e Terra, 2004.

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