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As tropas internam-se na mata.

À frente e nos flancos, os auxiliares humbes de Pacheco Leão movem-se


sorrateiros por entre as árvores e o mato rasteiro, espiolhando os segredos da floresta. Penetram em
zonas amortalhadas num silêncio de túmulo, apenas ferido pelo resfolegar dos cavalos e pelos sons
abafados das passadas e dos murmúrios dos soldados. Dos esconsos do arvoredo escapa-se por vezes a
sugestão de uma presença, um sobressalto, uma quase imperceptível vibração. Os Humbes imobilizam-
se e põem-se à escuta, curvados, tensos, de narinas frementes e olhos esgazeados, perscrutando as
imediações: mas é somente uma impressão, um estremecer de folhagens, um fortuito jogo de sombras,
uma espécie de ilusório sussurro.

Não há vestígios do inimigo, e o destacamento prossegue o avanço. Às seis e meia, com uma hora de
marcha e perto de três quilómetros percorridos, atinge uma clareira, a Chana A. Pinto de Almeida faz um
pequeno alto para descanso. Ao redor dos invasores, na perfumada e branda manhã africana, a quietude
é absoluta, a ponto de poder pensar-se que o inimigo resolveu finalmente debandar diante da ofensiva
portuguesa.

Este sossego não passa, todavia, de uma cortina de ilusões. A verdade é que a mata fervilha, agora como
no princípio, de guerreiros cuamatos prontos para o combate.

Entre os lengas, o dia 24 foi um precioso espaço de discussões da estratégia a perfilhar. O


reconhecimento de Gomes da Costa constituiu para eles o sinal de que os Portugueses tencionam enfim
arrancar-se à sua surpreendente inacção. Deduzem que o itinerário escolhido para a progressão decisiva
coincidirá com os trilhos explorados naquela ocasião. Dissimulam então os seus espiões na mata
fronteira ao quadrado lusitano e ao correr das pistas do presumível avanço inimigo. Dirigem depois as
etangas para as ruínas enegrecidas das povoações arrasadas nas proximidades da Chana B, mais ou
menos a uma légua do rio.

Neste local propício a emboscadas - uma extensa clareira cercada de arvoredos e polvilhada de arbustos
e morros de salalé -, aprestam-se para colocar em campo a sua táctica de combate favorita, o fundo-de-
saco. Fazem com que os homens se desdobrem em torno da clareira, escondidos entre as árvores,
deixando apenas livre, como a boca de uma armadilha, a entrada correspondente ao trilho que vem da
Chana A. À frente postam-se os atiradores, e, à retaguarda, os homens munidos de armas brancas, re-
servados para o choque de um eventual corpo-a-corpo.

Ao romper do dia 25, mensageiros velozes trazem a notícia há muito aguardada: os Portugueses
deixaram finalmente o acampamento e avançam para o interior. Mas há uma particularidade estranha.
Em vez de um golpe avassalador com todo o exército, a coberto das bocas de fogo guardadas junto do
rio, eles decidem-se por uma surtida limitada, com meio milhar de homens e duas peças, parecendo
contentar-se com a repetição do reconhecimento anterior. Os Cuamatos alegram-se com este
providencial fraccionamento. Daí em diante, sem que de tal logrem aperceber-se, os Portugueses têm
todos os gestos medidos por espiões que se confundem prodigiosamente com as sombras e os acidentes
da mata, como se fizessem parte da paisagem. É assim que os lengas tomam conhecimento de que os
seus vaticínios se confirmam: com efeito, passo a passo, a coluna portuguesa encaminha-se inexora-
velmente para a Chana B, agora transformada, em termos militares, numa vastíssima zona de morte.

Após um repouso ligeiro, os invasores retomam a progressão, inflectindo lentamente para nordeste a
partir da Chana A. A mata apresenta-se cada vez mais cerrada, e é com dificuldade que os homens
conservam a formação. A dado instante, o tenente Roby, o capitão Morais e uma ordenança, todos a
cavalo, adiantam-se à guarda avançada do alferes Vendeirinho e desembocam, isolados, na Chana B. Os
relógios marcam sete horas e trinta minutos da manhã. A cerca de trezentos metros, de um e de outro
lado da clareira, avistam-se as cubatas assinaladas pelo reconhecimento de Gomes da Costa.

Os cavaleiros percebem de súbito um movimento brusco e fugidio nas imediações. São dois guerreiros
cuamatos, surpreendidos a descoberto pela inesperada iniciativa dos inimigos. Deitando a galope, os
cavaleiros gritam-lhes que não fujam. Os negros fazem ouvidos de mercador e correm a bom correr,
procurando esgueirar-se para a protecção da mata. Um deles desaparece em segundos, mas o outro não
tarda a ver-se ultrapassado pelo capitão Morais. Quando este sustém a carreira e volta o cavalo na sua
direcção, o guerreiro apruma-se, gigantesco e desafiador, diante do português, e, de zagaia em punho,
dispõe-se a vender cara a vida. No momento em que Morais carrega sobre ele, o cuamato esquiva-se e
despede com violência a zagaia. Alcançado em cheio, um pouco abaixo do mamilo esquerdo, o capitão
dobra-se sobre a montada. O guerreiro salta, procura o corpo-a-corpo. Morais, que por milagre não foi
colhido mortalmente, atinge-o na cabeça com a espada. O africano cambaleia, mas torna à carga,
aferrando-se com desespero à perna direita do adversário para o derrubar do cavalo. Morais dispara o
revólver Abbadie sem resultados visíveis. Acorre João Roby, que logo trata de acometer o cuamato à
espadeirada. Este defende-se e fere-o ligeiramente na mão. Vale então a ordenança, o soldado número
21 do Esquadrão de Dragões, que prostra o corajoso adversário com um tiro de espingarda.

Num relance horrorizado, os três cavaleiros dão-se enfim conta da terrível ameaça que se acoita no
arvoredo circundante, de onde se eleva, medonho, um som rouco de buzinas e de clamores de guerra.
Roby, Morais e a ordenança voltam para trás e vão ao encontro do destacamento, que acaba de penetrar
na chana. Quando ecoam no descampado as primeiras descargas dos Cuamatos, Pinto de Almeida
manda tocar o clarim para que se forme o quadrado. Na face da frente, orientada para nordeste,
alinham dois pelotões do contingente do Batalhão Disciplinar. Nos ângulos assestam-se as duas peças de
artilharia. A face da esquerda é defendida pela 6ª Companhia Indígena e a da direita pela 16.ª. À re-
taguarda, virados para o trilho que acabam de percorrer, ficam os soldados da Companhia Europeia de
Infantaria e o pelotão de dragões apeados.

O quadrado, dentro do qual se abrigaram já os pelotões de dragões montados e os auxiliares, é, no meio


do capim amarelecido da chana, uma ilha de corações desenfreados.

Os soldados, de mãos enclavinhadas nas armas, espreitam taciturnos a floresta, a cento e cinquenta
metros de distância. Apesar de iludido o efeito da surpresa, a posição dos guerreiros de Igura é invejável.
Miram dos seus esconderijos, quase invisíveis, as precipitadas manobras dos invasores. Os lengas estão
satisfeitos: têm os Portugueses encurralados, bem no centro da zona de morte para que se deixaram
arrastar.

Abrigados por detrás dos troncos das árvores e dos morros de salalé, os Cuamatos despejam sobre o
quadrado uma mortífera barreira de fogo. Alguns trepam às copas das árvores, de onde beneficiam de
um magnífico campo de visão. Os atiradores que esgotam as munições são logo substituídos pelos
companheiros das segundas linhas, havendo, portanto, um corrupio contínuo, que mantém viva e sem
afrouxamentos a cadência dos disparos.

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