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Prefacio' Hermenéutica da faticidade Propor questdes; questdes nao sao ocorréncias; questdes S80 tampouco “problemas” hoje em dia em uso, que “impessoalmen- te” assume ao acaso pelo que se ouve dizer e se Ié nos livros ou | que se acompanha pelo gesto de serem pensados em tao grande profundidade. Questées surgem na discussao e confronto com as “coisas”. E coisas ha af somente onde hé olhos. Evassim que deverao ser “colocadas” aqui algumas ques- tes, € muito mais na medida em que atualmente o questiona- mento caiu em desuso por causa do enorme negécio em rela- g80.a0s “problemas”. Além disso, trabalha-se em geral na inten- ao de solapar questionamentos e sua intencdo é cultivar a mo- déstia de uma fé cega. Declara'se que o sacrum [sagrado] € a lei da esséncia e, com isso, é levada a sério em sua época por sua fragilidade e falta de mercado que disso necessita. O tinico que interessa é 0 funcionamento sem atritos no que diz respeito ao “negécio"! Tornou-se maduro para a organizacao de falsida- de. A filosofia interpreta sua propria corrup¢ao como “ressurgi- mento da metafisica”. © companheiro em minha f busca foi o jovem Lutero e 0 modelo Aristételes, a quem Lutero odiava. Os impulsos me fo- ram dados por Kierkegaard e foi Husserl quem me abriu os olhos. Isso se dirige aqueles que s6 “compreendem” algo quando podem fazer a conta das influéncias histéricas, essa pseudocompreenséo da curiosidade laboriosa, ou seja, essa aversao a Unica coisa que de maneira decisiva realmente impor- 1. Titulo de Heidegger. O “Prefécio" néo fol apresentado durante as prelecoes. 12 Oniologia (Hermenéutica da facticidade) ta. Aqueles que se comportam dessa maneira deve-se facilitar a “tendéncia compreensiva’, de modo que eles possam afum: dar-se por si mesmos. Deles nada se deve esperar, Eles preoct: pam-se unicamente pelo pseudo. Parte | CAMINHOS DE INTERPRETAGAO DO SER-Ai OCASIONAL Faticidade € a designacao para o cardter ontolégico de “nos- 80" ser-ai “proprio”. Mais especificamente, a expresso significa: esse ser.ai em cada acasiao (fendmeno da “ocasionalidade”; cf. demorar-se, nao ter pressa, ser-afjunto-a, seraf), na medida em que é “ai” em set cardter ontolégico no tocante ao seu ser. Seraf no tocante a seu ser significa: no e nunca primordial mente enquanto objetualidade da intuicéo € da determinacao intuitiva, da mera aquisicao e posse de conhecimentos disso, mas ser.ai esta af para si mesmo no como de seu ser mais pré- prio. O como do ser abre e delimita 0 “ai” possivel em cada oca- 0. Ser ~ transitivo: Ser a vida fatica! O ser mesmo nunca é uma possivel objetualidade de um ter, na medida em que o ser de si mesmo lhe importa, : Ser-ai enquanto ser proprio em cada caso nao significa que seja uma relativizacao isolada no que é visto externamente como uum “individuo”, 0 “individuo” (solus ipse), porém, “propriedade” €um como do ser, uma indicagao do caminho possivel do estar desperto, Contudo, ndo como uma demarcacao regional no sen- tido de uma oposicao isoladora, Por conseguinte, por fatico chama-se algo que “é” articu- lando-se por si mesmo sobre um caréter ontolégico, o qual € desse modo. Caso se tome a “vida” como um modo de “ser”, 14 Ontologia (Hermenéutica da taticidade) entao, “vida fatica” quer dizer: nosso proprio ser-al enquanto “ai” em qualquer expresso aberta no tocante a seu serem seu carater ontolégico. 1 Hermenéutica § 2. O conceito tradicional de hermenéutica A expressao hermenéutica pretende indicar 0 modo unitario, de abordar, concentrar, acessar a ela, isto é, de questionar e ex- licar a faticidade. A palavra Epunveuruxt (Emorriin, téxvn) thermeneutica (ciéncia, arte)] deriva de Epunvederv, Ainveia, punveds [inter pretar, interpretacao, intérprete]. A etimologia da palavra ¢ obs cura’ Esté relacionado com "Epuiig [Hermes], o nome do deus mensageiro dos deuses. Mediante elgumas referéncias podese localizaro significado originario do termo e tornar por sua vez inteligivel o modo como seu significado vai se transformando. Platao: ot St nomntat odStv GA’ # Epunvig elo TV Osa’ (0s poetas sao somente os “mensageiros” dos deuses). Portanto, dos rapsodos, cujo trabalho consiste em recitar os poetas, se diz: Odxobv Epunvéwy Epunviis ylyveoee'; isto €: Nao sereis vos os mensageiros dos mensageiros? ‘ Epunveds [interprete] € aquele que comunica, aquele que informa alguém a respeito do que 0 outro “pensa’, isto é, aquele que transmite, aquele que reproduz 2.Cr. E, Boisaca, Dictionnaire étymologique, Heidelberg © Paris, 1916, p. 2828. 3.1on 534 e, ed, Bumet, Oxford, 1904. 4. Ibidem, 535 0. 16 Ontologia (Hermendutica da facticltade) @ comunicacao, a noticia; cf. Sofista 248 a 5, 246 e 3: dbepurjve- ve, informa, isto é, noticia © que os outros pensam, Teeteto, 209 a 5: Adyos [discurso] = THis o¥f¢ Stagopétn Tos Epunve(at [a expressao de diferencas]. Notificar & tornar explicita a diferenca de outros em relacao ao xorvdv [comum]. (CF. Teeteto 163 c: 0 que se vé nas palavras e 0 que os intérpretes comun’- cam); nao,uma concepcao teérica, porém, “vontade”, desejo e, além disso, ser, existéncia; ou seja, hermenéutica € a notificacao do ser de um ente em seu ser em relacdo a... (mim). Aristoteles: TH yAdTTH (KaTaypArat H gGotc) Ent te TY yedou Kai tiv bidAeKTov, Sv H HEV years dvayKatov (618 Kai mActooy Sndpxer), A 5° Epunyveta vex 100 8°. "O ente enquan to vivente necesita da lingua para saborear tanto como para con- versar a respeito da lida com as coisas; por isso, o saborear é um modo niecessério da lida com as coisas (sendo que, por isso, também se encontra em geral), 0 falar a alguém e o falar de algo, porém, com os demais (conversar a respeito de algo), existe ara garantir 0 verdadeiro ser do vivente (em seu mundo e com seu mundo)". Aqui Epunveta simplesmente substitu a palavra Sudden us [conversa], Isto é, 0 falar coloquial a respeito disso ou daquilo. No entanto, este falar a respeito de algo s6 ¢ 0 modo fati code realizar-se 0 ASyos, € 0 Adyos (a fala a respeito de algo) ocu: parse do SmAoGv'..] 73 oungépov Kal Td Brafiepdv’ (isto é, a fala faz com que o ente se manifeste, se torne acessivel, em sta ser ventia ou utilidade e em sua nao serventia ou inutilidade, a fim de télo em e a vista). Veja-se também Epunvesetv; Filéstrato’. Simplicii in Aristo- telis Physicorum Commentaria’. Péricles em Tucidides: katot 4uol rovodt» dv8pl dpyiceode 8¢ obBevos ofopen Hoouv elvan 5.De anima BB, 420 18s 6. Politica A 2, 1253 a 14s, 7. De Vitis Sophistarum, ed. CL. Kayser, Leipzig, 1871, volll,p. 11, fragmento 29. EmH, Diels, Die Fragmente der Vorsokratiker, Beriim, 1912, va. lp. 235, fragmento 19, 8. Ed. H. Diels, Commentarla in Aristotelem Graeca, Betlim, 1882, p. 329, fragmento 20. 1 Hermendutica 7 Wavai te Ta Séovra Kai Epunvedom raira, gASnOx™ Te Kal ypnudtwv xpe(aowv’ [E do mesmo modo, eu, de quem vocé tem Taiva, sou tdo competente quanto qualquer homem, pois penso saber e anunciar as medidas corretas como um bom pattiota e p estou acima da influéncia do dinheiro]. Aristoteles: Afyw 8é, ..., Atv elvat Thy b1& Tig Svopaatas tpunvetav" [quero digo que... a linguagem do discurso é a inter- Pretacdo através do pensamento]. Entre os “escritos” de Aristételes ha um transmitido sob o ti tulo Tlepi Epunvetas [Da interpretacao]. Trata do Adyos em sua funcdo fundamental: descobrir e tomar conhecido o ente. Segun- do foi indicado acima, o titulo resulta totalmente apropriado. Con- tudo, nem Aristételes nem seus sucessores imediatos na escola Peripatética estabeleceram este titulo para o escrito, Proveniente do legado de Aristételes, foi transmitido aos discipulos como “es- boco inacabado” e “sem titulo”. Na época de Andronico de Ro- des, porém, o titulo jé era utilizado. H. Meier, © qual com boas ra- 20es assegura a autenticidade do escrito, considera que a intro- -dugdo do titulo teria aparecido provavelmente pela primeira vez ha primeira geracdo sequinte a Teofrasto e Eudemo”’. No nosso caso, que a vor sirva de titulo & investigacao con- ‘ereta de Aristételes s6 possui importéncia para a historia de seu > significado. A funcao da fala é tomar acessivel algo enquanto tal, (© Aéyos tem a possibilidade assinalada do dandevery (desocul tar, colocar af a vista, & disposicao, o que antes estava oculto, en- coberto), (ima vez que 0 escrito trata disso, com razao chamase Tlepi Epunvetag. Através dos bizantinos este significado de Epunvevetv se ge- neralizou, correspondendo a nossa palavra “significar”; lavra, uma frase quer dizer algo, “possui um significad. platonismo do significado.) De betio Petoponnesiaco, ed. G. Boehme, Lep2lg, 1878, vol. I, 60 (5) p. 127. % 10. Postica Vi, 1450 13s © 1A. Die Echtheit der Aristotelischen Hermeneutik, em Archiv flr Geschichte der Philosophie 13, NF. 6 (1900), p. 2372. li 18 Ontotogia (Hermenéutica da facticidado) Filon chama Moisés de tpynveds 0£00, 0 hermeneuta de Deus” (o intérprete da vontade de Deus). Aristeu: 1 Tv “lovdatuv ypaypara “Eppmveras TpoaBET TaN (os escritos dos judeus necessitam de tradugao, interpretacao). Traduzir: tornar acessivel em lingua propria ou para a propria lin- gua 0 que se encontra em lingua estranha. Nas igrejas cristas, portanto, Epynveta equivale a comentario (enarratio); Epunveta dig nv dordrevxov [comentario do Octateuco]. Comentar, inter pretar: tratar de aclarar ou esclarecer o que se pretende dizer ver dadeiramente num escrito e, assim, tomar acessivel aquilo que se pretende dizer, facilitar 0 acesso a isso. Eppnveta = 2Erfynats [exe- gesel. Agostinho produz a primeira “hermenéutica” em estilo gran dioso, Homo timens Deum, voluntatern ejus in Scripturius sane- tis diligenter inquirit, Et ne amet certamina, pietate mansuetus; praemunitis etiam scientia linguarum, ne in verbis locutionibus- que ignotis haereat; praemunitus etiam cognitione quarumdam rerum necessariarum, ne vim naturamye earum quae propter st militudinem adhibentur, ignoret; adjuvante etiam codicum verite- te, quam solers emendationis ciligentia procuravit: veniat ita ins- tructus ad ambigua Scripturarum discutienda atque solvenda'* “Mediante quais armas haverd o homem de realizar a inter- pretagao de passagens da Escritura que nao estejam claras: com © temor de Deus, com 0 cuidado dinico de buscar na Escritura a vontade de Deus. Formado na piedade, para que nao tenha pra- zet em disputas verbais; provide de conhecimentos linguisticos, para que nao fique em suspenso diante de palavras ou locucdes desconhecidas; dotado com o conhecimento de certas objetuali- dades e acontecimentos naturais que venham a se inserir a pro- pésito de ilustracao, para que nao deixe de ver sua fraqueza de monstrativa, apolada no contetido de verdade...” 12, De vita Mosts Il, 23 (I, 188). Opera IV, ed. L, Cohn, Berlim, 1902, p. 244 13. Ad Philocratem epistula, ed. P. Wendland, Leipzig, 1890, p.4, fragmento 3. 14, De doctrina christiana, Patrologia Latina, ed. Migne (a partir daquicitado ‘como Migne), vol. XXXIV, Pais, 1845, iro Il, eap. 1,1, p. 65. 1 Hermendutica 19 No século XVI, aparece o titulo Hermeneutica sacra [Her menéutica sagrada], que ordinariamente também & denomina- do de Clavis scripturae sacrae” [Chave para a Sagrada Escti- rutua], Isagoge ad sacra literas” [Introducao para as Sagra- das Escrituras}, Tractatus de interpretatione" {Tratado sobre 2 interpretagao}, Philologie sacra" [Filologia sagrada} ‘A hermengutica ja no é mais 0 mesmo que interpretacao, as teoria ou doutrina das condicées, da objetualidade, dos meios, ‘da comunicacao ¢ da aplicacao pratica da interpretacao; cf. Johan- nes Jakob, Rambach: |. “De fundamentis hermeneuticae sacrae™” [“Dos funda- mentos da hermenéutica sagrada"]. Sobre a adequada dis- Posigdo na interpretacao de textos, 0 sentido dos textos. Il, “De mediis hermeneuticae sacrae domesticis™ [“Do senti- do interno da hermenéutica sagrada”]. Sobre a analogia da fé enquanto principio de interpretacao; as circunstancias, os afe- tos; a classificacao, o contexto; o paralelismo das Escrituras. Ill. “De mediis hermeneuticae sacrae externis et litterariis”” [*Do sentido externo e literal da hermenéutica sagrada”. So- bre os meios gramaticais, criticos, retéricgs, l6gicos e cientifi- cos. Tradugao e comentario. IV. “De sensus inventiva legitima tractatione™™ [“Da maneira propria de descobrir 0 sentido"}. Sobre a comunicacao e a 15.M. Flaciusiyricus, Clavis scripturae sanctae seu de sermone sacrarum Werarum, Basel, 1567. 16.5. Pagnino, sagogae ad sacra literas Liber unicus, Colonia, 1540 e 1542. 17... Frantze, Tractatus theologicus novus et perspicuus de interpretatio ne sacrarum scripturarum maxime legitima, Witenberg, 1619. 18.5. Glass, Pillologle sacra, qua fotiusV. et NT. seripturae t lus V. et NT. seripturae tum stylus et lite. ralura, tum sensus et genulnae interpretationis ratio expenditur, Jena, 1623, 19. institutiones hermeneuticae sacrae, variis observationibus copiosisst Malsque exemplls bibles ilustratae, Jena, 1723, onspectus toss ib Li er primus. 20. Ibidem, Liber secundus. 21. Ibidem, Liber tertus. 22. Ibidem, Liber quartus. ln 20 Ontologia (Hermenéutica da facticidade) demonstiacao, a aplicacao porismatica e pratica. (Porisma: ta, nopiCetv: inferir por meio de argumentos.) Schleiermacher, posteriormente, restringiu a ideia de herme- néutica, pois, em vista do caréter de geral e ativo (cf. Agostinho), da “arte (doutrina da arte) da compreensao”” da fala de outros, ele coloca-a em relacao, enquanto disciplina, com a gramatica e a retorica, com a dialética; essa metodologia é formal, e enquan- to *hermenéutica geral” (teoria ou doutrina da arte de compreen- der a fala dos outros de modo geral) abrange as hermenéuticas especiais, a hermenéutica teologica ¢ a hermenéutica filologica, A. Boeckh tiroti essa idela de hermenéutica para sua Enci: clopédia e metodologia das ciéncias filolégicas™. Dilthey adaptou o conceito de hermenéutica de Schleterma: cher como.“método da compreenséo” (“doutrina ou teoria da arte de interpretar textos”)”. Ele, porém, tomou por base uma anélise da compreensao como tale, incluindo no ambito de suas investigacées sobre o desenvolvimento das ciéncias do espirito, também prossequiu no desenvolvimento da hermenéutica. No entanto, justamente a partir desse ponto mostra-se uma restrigdo funesta na sua posicéo. Por isso, no desenvolvimento da verdadeira hermenéutica permaneceram esquecidas as épo- cas decisivas (a Patristica e Lutero), a0 seguir sempre a herme- rnéutica somente a partir de um ponto de vista tematico e, contu- do, enquanto nela se mostrava a tendéncia que ele considerava essencial - para a metodologia das ciéncias hermeneuticas do espitito. Esse Dilthey sistematicamente aguado de hoje em dia (como, por exemplo, Spranger) nao alcanca nem sequer de lon- ge a posicao de entdo, posicao ja demasiadamente restringida, afetada e pouco clara na direcao do essencial e fundamental. 23. Hermeneutik und Kritik m. bes. Bezichung auf das Neue Testament, 2 por F. Licke, Sémiliche Werke, parte l, vol. 7, Berim, 1938, p. 7. 24, Enzyclopadie und Methodologie der philologischen Wissenschaften, Leip, 187, 2. Die Entstehung der Hermeneutik, em Philosophische Abhandlungen, Chr Sigwart zu seinem 70. Geburtstage gewidmetv. B. Erdmann u.a., Tobingen, Friburgo, Leipzig, 1900, p. 190, 5. ed.,nas Gesammelte Schriften, vol. , Stat ‘art, Gottingen, 1968, p. 320. 1 Hermeneutica a § 3. Hermenéutica como autointerpretacao da faticidade No que se refere a investigacao seguinte nao é usado o titulo *hermenéutica” como significado modemo, muito menos no sen- tido tao estrito de uma teoria da interpretagao. Seguindo melhor ‘eu significado original, o termo significa: determinada unidade hha realizacao do épyevevetv (do comunicar), ou seja, da inter- Pretacdo da faticidade que conduz ao encontro, vis4o, maneira # conceito de faticidade. Optamos pelo significado original da palavra, porque, embo- Ta no fundo nao resulte como suficiente, no entanto permite des- tacar, indicando alguns elementos que sao eficazes para a inves- tigacao da faticidade. Com relacao a sua “objetualidade”, como forma pretendida para acessé-la, a hermenéutica indica que a ob- Jetualidade é um ser capacitado para a interpretacao e necessita- jo dela, que é inerente a esse seu ser o serinterpretado de algum 1odo. A hermenéutica tem como tarefa tomar acessivel o ser-ai ’proprio em cada ocasiao em seu caréter ontolégico do ser-ai mes- Umo, de comunicé-to, tem como tarefa aclarar essa alienacao de si -smo de que o ser.af é atingido. Na hermenéutica configura'se }0 ser-ai como uma possibilidade de vir a compreender-se e de jer essa compreensao. Tal compreensao, que se origina na interpretacio, é algo que iho tem nada a ver com o que geral mente se chama de compre- jer, um modo de-conhecer outras vidas; néo é nenhum entre- se com... (intencionalidade), mas um como do ser-ai mesmo; ve ser fixado terminologicamente como o estar desperto do ai para si mesmo. Ahermenéutica nao é um modo artificialmente concebido de ‘anélise que ¢ imposta ao ser-ai e perseguido por curiosidade. Se Sonsiderado a partir da propria faticidade, deve-se determinar quando e em que medida ela solicita a interpretacao proposta. ‘Assim, pois, a relacdo entre hermenéutica e faticidade nao & a |que se da entre a apreensao da objetualidade e a objetualidade preendida, & qual aquela somente teria de ajustar-se, mas 0 Merpretar mesmo é um como possivel distintivo do carter ontol6- [alco da faticidade. A interpretacao € algo cujo ser € o ser da pré- 2 Ontotogia (Hermenéutica da facticidade) pria vida fatica. Se chamarmos, mesmo que impropriamente, a faticidade como a “objetualidade” da hermenéutica (como as plantas so objetualidade da botanica), diremos que esta, a her menéutica, encontra-se em sua propria objetualidade (ou seja, ‘como se as plantas, 0 que sao e como sao, fossem a boténica) ‘A.unidade do ser que com isso se indica entre a hermenéut ca e sua “objetualidade” situa a iniciacao, a realizacao € a apro- priacao da hermenéutica temporaimente antes, pelo que tange a0 ser e, faticarnente, 0 colocar em obra de toda ciéncia. A even- tualidade de fracasso ¢ uma possibilidade fundamental, inerente ao seu ser mais proprio, O caréter de evidéncia de suas explica- Goes € essencialmente instavel; pretender anteporthe um ideal de evidencia e, sobretudo, uma tao excessiva “visao das esséncias”, seria nao conhecer 0 que a hermenéutica pode e deve fazer. O tema da:investigacao hermenéutica é 0 serai proprio em cada ocasido, justamente por ser hermenéutico, questiona-se so- bre o caréter ontolégico, a fim de configurar uma atencao a si mesmo bem enraizada. O ser da vida fatica mostra-se no que é no como do ser da possibilidade de ser de si mesmo. A possibil- dade mais propria de si mesmo que o ser-ai (a faticidade) é, € justamente sem que esta esteja “ai”, sera denominada existen: cia. Através do questionamento hermenéutico, tendo em vista de que ele seja 0 verdadeiro ser da propria existencia, a faticidade situa-se na posigao prévia, a partir da qual e em vista da qual sera interpretada. Os conceitos que tenham sua origem nesta explica- 0 sero denominados existenciais. “Gonceito” nao € um esquema, mas uma possibilidade de ser, do instante, isto é, constitui este instante; um significado pro- duzido, extraido; um conceito mostra a posicao prévia, quer di- zer, transpoe para a experiencia fundamental; mostra a concep: do prévia, isto é, exige 0 como do falar e questionar de alguém; ou seja, transpée o ser-ai segundo sua tendéncia para a interpre tacao © a preocupacao. Os conceitos fundamentais nao sao acréscimos posteriores, mas motivos condutores: deve-se tomar © ser-ai na acepgao de sua maneira de ser. A posicao prévia da interpretacdo, aquele que a dita posicao prévia nao pode estar presente de modo tematico como objetua- Hermenéutica 23 \de de um relato direto e completo, é precisamente o sinal de 1u cardter ontol6gico. Enquanto elemento constitutivo, ¢ certa- te decisivo, da interpretacao, que ela mesma é sendo com o l, compartilha seu carater ontolégico: possibilidade de ser. 2 possibilidade de ser é uma possibilidade de ser concreta, que ia faticamente segundo a situacao 4 qual é dirigido 0 questio- 1 hermenéutico em cada ocaisido. Portanto, a posicao prévia jo é nada que possa ser escolhido por algum capricho meu. “Avvida somente se deixa aclarar quando se viveu, do mesmo 1odo que Cristo comecou a explicar as escrituras e a mostrar mo ensinavam sobre ele - somente depois de ter ressuscita- " (Kierkegaard, Diario, 15/04/1838"). A questionabilidade fundamental na hermenéutica e em suas rspectivas: a objetualidade: o serai é somente nele mesmo. E, [mas somente enquanto est a caminho de seu si mesmo em vis- de sil Este modo de ser da hermenéutica, nao se trata de evi- té-lo nem de manipulé-lo substituindo-o artificiosamente; deve se tomé-lo decisivamente em conta. O qual se traduz no modo ‘¢omo se deve tomar a antecipacao do passo, na nica maneira ‘como se pode tomar. Esta “antecipacdo do passa” nao supde chegar ao término, mas precisamente tomar em conta 0 estar a gaminho, deixar-he 6 passo livre, abrirthe caminho, conservan- do a possibilidade de ser. E Resta possibilidade de ser coresponde, conforme a posicao prévia, uma questiorabilidade fundamental. Esta reluz em to- dos os caracteres ontologicos; questionabilidade dntica: culda- do, inquietude, medo, temporalidade. Na questionabilidade e fomente nela alguém pode assumir a posicao na qual se dé e para a qual se da algo a que se pode chamar pelo termo “fixo”. E {sso somerite se o fixavel, o que ainda nao esta fixado, enquanto ‘como do ser-ai, possul ser! Que acontece neste contexto com 0 © problema da morte? Na hermenéutica o primeiro que se tem de configurar é a po- sigdo a partir da qual seja possivel questionar de modo radical, 26. Die Tagebiicher 1834-1855. Selegao e tradugao de Th. Haecker. Leipzig, tem data, p. 92 (Munique, 4. ed, 1953, p, 99) i 4 Ontologia (Hermenéutica da facticidade) sem deixar se levar pela ideia tradicional de homem. (Questiona- vel é o problema da disposicao, como colocé-lo, se colocé-lo ou nao. Desde a questionabilidade nao se vera a possibilidade de ser como algo existencial concreto e auténomo?) Mais do que isso: a interpretacao parte do hoje, isto é, de uma determinada compreenséo mediana, da qual a filosofia vive ea partir da qual ela se expressa retroativamente. © impessoal possui algo certamente positive, nao € somente um fenémeno de abandono, mas é, enquanto tal, um como do ser.aifatico. © dominio da compreensao fatica nao é algo que se possa calcular jamais de antemao. Da mesma maneira, ndo se pode hormatizar sua repercussao na apreensdo e na comunicagao mediante expresses matematicas. No fundo isso é algo que, também, carece de importancia, visto que a hermenéutica apos- tana situacao e a partir disso possibilita a compreensao, Na compreensao hermeneutica nao hé nenhuma “general dade” que va mais além do formal. E, em caso de haver algo as sim, uma hermenéutica que se compreendesse a si mesma e que compreendesse sua tarefa ver sca obrigada a tomar distancia disso e voltaria a atencao ao ser-aifético. O “formal” nao é jamais algo independente, mas somente um recurso, um apoio do mun: do. A hermenéutica nao tem por objetivo a posse de conheci- mentos, mas um conhecer existencial, isto 6 um ser. A herme- néutica fala desde o ser interpretado e para o ser interpretado. O colocar em acao-hermenéutico - aquilo no que, como se disséssemos a uma carta, coloca-se todo -, isto &, € “como isto ou aquilo” em que se assume a faticidade de antemao, o carater ontologico decisivo que se coloca em acao, ndo pode ser uma in: vencao. Contudo, tampouco é algo que se possui de modo defini: tivo, mas surge e brota de uma experiéncia fundamental, no nos- 30 caso, de um estar desperto de carater filosofico, no qual 0 ser-ai se encontra consigo mesmo, em que o ser-ai aparece dian- te de si mesmo. Que o estar desperto seja 0 carater filoséfico quer dizer que esta ativo numa autointerpretacao originatia que a filosofia se deu a si mesma, constituindo essa interpretacao uma possibilidade decisiva e um modo de que o ser-ai se encon- tre consigo mesmo, que apareca diante de si mesmo. 1 Hermenéutica 25 + Ocontetido fundamental dessa auutocompreensao da filoso- fia a respelto de si mesma deve ser destacado e precisa ser seado de antemao. Para tal hermenéutica, isso significa: 1) Filoso- ‘fla ¢ 0 modo de conhecer que se dé na vida fatica, o modo como ser-aifatico se arranca de si sem precisar olhar para si mesmo e »coloca-se de modo inexoravel para si mesmo; 2) Enquanto tal, a fllosofia nao tem misao alguma de velar pela humanidade e pela cultura universais nem muito menos de salvar as geracées por- vindouras de uma vez para sempre da preocupacao de colo- carse questoes ou sequer reduzilas com pretensoes erréneas quanto a validade. A filosofia é 0 que pode ser somente enquanto .# de seu “tempo”. “Temporalidade”. O ser-ai opera no como do ‘ser agora, Mas isso nao significa, muito menos, ser o mais moderno pos- sivel, isto €, segundo as assim chamadas necessidades e imaginé- veis desejos publicamente propagados diariamente. Reconhe- ce-se todo o moderno no quao artificiosamente se furta ao pro- prio tempo e somente dessa maneira se procura um “efeito”. (indéstria, propaganda, proselitismo, economia monopolizado- 10, éxtorsdo intelectual.) Pelo contrério, aquilo pelo qual o serai aparece diante de si mesmo no citado estar desperto, quer dizer, o caréter ontol6gico, fo € algo que se possa calcular de antemao nem nada para @ humanidade em geral, nada para o publico, mas é a possibilida- de decisiva e determinada em cada ocasiao da faticidade concre- ‘te. Na medida em que se consiga gerenciar hermeneuticamente '@ faticidade e leva-la ao conceito aquela possibilidade resultara Mais clara. “Ao mesmo tempo”, porém, ela ja se consome a si Tesma. A existéncia enquanto possibilidade histérica determi- nada do ser-ai ocasional esté ja viciada na medida em que se exi- {ge dela estar presente de antemao diante da curiosidade filosofi- ‘ca que vivamente ja se Ihe esta apresentando. Ela nunca é “obje- tualidade”, mas ser; ela € ai somente enquanto “é” uma vida ‘uma ocasiao determinada. Na medida em que o colocar em agéo somente € desse modo, nao pode ser objetual algum de raciocinios universais ou de discussao piiblica. Esses nao sao mais que meios preferidos [| 26 Ontologia (Hermenéutica da facticidade) para combater a tempo o possivel choque de colocar em acéo no serai fatico. Essas exigéncias que hodiernamente tanto se di vulgam e em féo alto tom: 1) nao convém deter-se demasiada- mente nos pressupostos, mas olhar as coisas mesmas (filosofia que trata de coisas); 2) os pressupostos deveriam poder ser ex- postos diante de um piiblico geral razoavel, ou seja, deveriam ser plausiveis, o menos arriscado possivel - ambas as exigencias en- volvem-se na aparéncia da mais absoluta filosofia objetiva. Entre- tanto, ndo so mais que gritos mascarados de medo em relagéo a filosofia, A questao, entio, que lugar esta hermenéutica ocupa dentro do quado de tarefas “da” filosofia nao vai além de uma questo muito posterior, no fundo carente de importancia, quando nao uma questo radicalmente equivocada. O eventualmente estra- rho do titulo nao deve induzir a perder-se em reflexées vazias. A hermenéutica mesma nao passaré de uma trivialidade en- quanto o estar desperto para a faticidade, que é 0 que deve pro- duzHla, ndo estiver “ai”; todo falar sobre ela é um mal-entendido fundamental do que ela seia. Eu, de minha parte, suspeito, se me permitem esta observacéo pessoal, a hermenéutica nao € para nada filosofia, mas algo estritamente prévio e provisério, 0 que, desde logo, é sua natureza mais propria: nao se trata de acabar com ela 0 mais répido possivel, mas de manter-se nela © maior tempo possivel Hoje em dia estamos to sem animo e tao debiltados que ja nem somos mais capazes de suportar urna questao: de tal modo que, quando alguém dos filésofos curandeiros nao possui res- posta, passa-se ao seguinte. Essa demanda faz que tal oferta eresca. Em linguagem popular chama-se isso de “um interesse crescente pela filosofia”. A hermenéutica nao ¢ ela mesma filosofia; o que ela preten- de simplesmente submeter a “consideracéo bem-disposta” dos filésofos hodiemos uma objetualidade até agora relegada ao esquecimento. Que estas minticias passem hoje em dia im- pensadas é algo que a ninguém deve surpreender na grande in- dastria da filosofia, para a qual tudo esta enderecado e, suposta- mente, de nao chegar demasiadamente tarde ao - como se cos: ' 1 Hermenéutica a tuma dizer ~ “ressurgimento da metafisica” que agora comeca, ‘@m que a Unica preocupacao que se conhece é procurar-se, por melo de uma visdo das esséncias, uma amizade direta, o mais Derata eo mais cmoda possivel e, por sua vez, o mais rentavel, om o bom Deus”. BT Arcagt de Hldegger"Nenuma media com pete extranhosecom renciais e estruturas questionaveis; muito menos com enfase de sentido fundamental!” 2 Aideia de faticidade e 0 conceito de “homem”?* Na determinacao indicativa que fizemos do tema da herme- néutica, ou seja, da faticidade = nosso ser-ai proprio em cada caso, foram evitadas inicialmente expresses como ser-ai “hu- mano” ou “ser do homem” Qs conceitos de “hormem”, a saber: 1) ser vivo dotado de ra- 280 e 2) pessoa, personalidade, provém da experiéncia e visto de um mundo cujas condicdes objetuais nos sao dadas de ante- mao e ocasionalmente de uma maneira determinada. A primeira forma pertence ao contexto tematico que pode ser indicado pelo nlimero de objetualidades: planta, animal, homem, deménio, Deus. (Em principio, nao ha necessidade de pensar sobre uma experiencia biolégica especifica de tipo biologico ou cientifico-natu- ral em sentido modemo.) A segunda forma do conceito de homem nasce com a exposicao cristé das qualidades originais do ho- mem como criatura de Deus, baseada na revelacao veterotesta- mentaria. Em ambas as determinacdes conceptuais, o que esta em jogo € a fixacao dos elementos que configuram ou compéem algo previamente dado, que posteriormente, em funcéo de tais elementos, atribui-se um modo de ser ou se deixa na indiferenca de um ser real, Por outro lado, é necessario tomar cuidado com 0 conceito de “ser dotado de razao”, uma vez que tal conceito perde o de sivo do sentido de CGov Adyov Exov [ser vivo dotado de razao]. Na filosofia cientifica classica grega (Aristételes), Adyos nunca 28, Titulo de Heidegger. (A ideia de faticidade e 0 conceito de “homem” 29 ir dizer “razao”, mas fala, conversa. Portanto, o homem é¢ o que tem seu mundo ao modo do que ¢ falado”. E no estoi- 7 que comecajé a tvializarse tal conceito ¢, a partir disso, gem os conceitos de Adyos [raz40}, d0dia [sabedoria}, no- [crenga] como conceitos hipostatizados na especulacao e jofia helenisticas. Os conceitos de homem utilizados hoje em dia possuem sua {gem nos conceitos indicados, de modo que devemos voltar ra. ambas as fontes e desenvolver a ideia de pessoa com base Kant e do idealismo alemao, que se desenvolve através da li- cdo com a teologia medieval. § 4. 0 conceito de “homem” na tradigao biblica Aexplicacao da ideia de homem como pessoa, conceito que issimila 0 grego GGov Abyov Exov, é uma das passagens que se nverteram num dos classicos da teologia crist em muitos as- ctos; Genesis 1,26, LXX (Septuaginta): xai efnev 6 Oeds lourfowpev dvOpumiov Kar’ elxdva fyetépav Kai xa" Spotvaty HE disse Deus: “Fagamoso homem a nossa imagem ¢ aemelhan. 2". As palavras cixisv [imagem] ¢ dpofwatc [semelhanga] pos- tuem um sentido praticamente idéntico. (Aideia de Deus, obtido a partir de um olhar do homem situa- 0 religiosa ocasional. Ver ambos os aspectos.) Cf. Kuhn: ser ra- i¢lonal sensivel (natura [natureza], odota [esséncia, ser]) ~ um faer “pessoal” (Soctaots [hipostase], substantia [substancia]), pax alicujus veritatis de deo” et “alicujus amoris dei” [“capaz ide obter verdades de Deus” e “capaz de algum amor de Deus”). A historia da interpretacao desta passagem do Genesis come- {g2.com Paulo, 1Cor 11,7:dviip uv yap ok deter KaroxcAGrrrEo#en ‘Thy Kepodriy, cixBv Kal 85a qeou~ uJpavrewn [O homem nao deve cobrir sua cabeca, porque ¢ imagem e gloria de Deus} 29. “Semestre de verdo de [19]24 melhor” (adicionado mais tarde por Heidegger) 390. Die chrisiliche Lehre von der gollichen Gnade, | parte, Tubingen, 1868, pit 30 Ontologia (Hermenéutica da facticidade) Ch. 2Cor 3,18; Rm 8,29: drt oBg npoéyvw, Kol nposiproey oupndpgoug Tig eikdvog TOU viod adT0d, ets 79 elvar adTOV mpuréroxov Ev nodAoTc aBcAQ0TS [Aqueles que conheceu de an- temao, também os predestiniou a serem conforme a imagem de seu Filho, para que este seja 0 primogénito de muitos irmaos} Problema: a mulher, o que é? Taciano (cerca de 150), em seu Adyos npd¢"EAANVas: uSvOS BE 6 GvOpum0c cixav elkdv Kai potwars Tod B08, Aéyw BE evOpunov odxt Tav duora Tots CiSors npéTTovTa (ndo enquarto EGov [um animal]), dM& Tov Toppw yev Thc évopuRdTATOS pds obrdv BE TOV Dedv KEXupNKéTa (de maneira mais avanca- da)" [Sermo aos gregos: Somente o homem é imagem e seme- Thanga de Deus, quero dizer, o homem que faz coisas similares 0 animal, isto é, nao age como um animal, mas daqui em diante festé no caminho da humanidade ao aproximar-se do propio Deus]. Esta definidas aqui claramente as duas maneiras funda- mentais de entender o homer. Agostinho: Et dixit Deus, Faciamus hominem ad imaginem ct similitudinem nostram. Et hic animadvertenda quaedam et conjunctio, et discretio animantium. Nam eodem factum homi- nem dicit, quo bestias. Sunt enim simul omnia terrena animantia; et tamen propter excellentiam rationis, secundum quam ad ima- gine Dei et similitudinem efficitur homo, separatim de illo dicitur, postquam de caeteris terrenis animantibus solite conclusum est, dicendo, Et vidit Deus quia bonum est” [E disse Deus: “Facamos © homem & nossa imagem e semelhana”. Devemos observar como os animais so aqui agrupados e, ao mesmo tempo, man- tidos separados. A Escritura diz. que o homem foi feito no mesmo dia em que os animais, pois eles s8o todos como animais terres- tres. No entanto, por conta da exceléncia da razéo, segundo a qual o homem € feito 4 imagem e semelhanca de Deus, ela fala 31. Texte und Untersuchungen zur Geschichte der altchristchen Literatur, ed por Ow. Gebhardt e A. Hamack, vo. IV, 1, Lelpzig, 1888-1893, cap. 15 (68), p. 16, fragmentas 13-16. 32, De Genesi ad ltteram imperfectus liber, Migne, vol. XXIV, Paris, 1845, cap. 16, 55, p. 241 2 Aideia de faticidade e o conceito de “homem’ 31 dele em separado, depois que Deus acabou de falar dos outros -animais terrestres da maneira habitual, dizendo: “E Deus viu que ‘era bom". (Em vez de: Et factum est [E ele foi feito] e: et fecit, ‘Deus [e Deus fez]. Da mesma forma: Faciamus [Facamos] - Fiat” [Faca-se].) Tomas de Aquino: de fine sive productionis hominis prout di- “citur factus ad imaginem et similitudinem Dei [sobre o fim ou »termo da produgao do homem, na medida em que é dito ter sido felto a imagem e semelhanca de Deus} Quia, sicut Damascenus dict, lib. 2 orth. Fid., cap. 12, a princ., homo factus ad imaginem Dei dicitur, secundum quod per imag ;nem significatur intellectuale, et arbitrio liberum, et per se po: testativum, postquam praedictum est de exemplari, scilicet de ‘Deo, et de his quae processerunt ex divina potestate secundum Jus voluntatem, restat ut consideremus de ejus imagine, idest, de homine: secundum quod et ipse est suorum operum principi- um, quasi liberum arbitrium habens, et suorum operum potesta- tem’ [Pois, como nos diz Damasceno (De fide orthodoxa, livro 2, capitulo 12), 0 homern foi feito imagem de Deus, uma vez E que isso implica ser ele inteligente e livre para julgar e senhor de si mesmo, desse modo, portanto, temos de concordar agora ‘que Deus € a causa exemplar das coisas e que o homem possui, ‘8 partir de seu poder, o pensamento sobre sua vontade; assim, ‘continuamos a olhar para esta imagem, isto é, 0 homem como te das acdes que lhe sao proprias e que caem sob sua respon- bilidade e controle]. Este pardgrafo contém toda a estrutura jetodol6gica interna da obra principal da teologia medieval. ; Zwinglio: “ouch daB er [der mensch] sin ufsehen hat uf gott und sin wort, zeigt er klarlich an, daB er nach siner natur et- Was gott naher enerborn, etwas mee nachschlagt, etwas zii- Bugs zu jm hat, das alles on zwyfel allein darus flaBt, daB ernach CF. De Trinttate, Migne, vol. XLI, Paris, 1841, Liber Xil,eap. 7,12, p. 1004, 134.5. Thomas. (Parma) I, quaest. XCIl, prologus. 185. , Thomas, prologus a i! (partes grifadas por Heidegger) 2 Oniologia (Hermenéutica da facticidade) der bildnuB gottes geschaffen ist™ [“Assim também [o ho- mem| para ter olhos de Deus e atender a sua palavra, mostra claramente que, por sua natureza, é algo que nasceu préximo de Deus, que é mais parecido com ele € que possui uma rela- cdo especial com ele, do que se deduz sem divida que foi cria- do a imagem de Deus"]. Calvino: His praeclaris dotibus excelluit prima hominis ecn- ditio, ut ratio, intelligentia, prudentia, iudicium non modo ad ter- renae vitae gubernationem suppeterent, sed quibus transcende- rent usque ad Deum et aeternam felicitatem’” [O homem des.a- cou-se nestes nobres dons em seu estado inicial, quando a razéo, a inteligéncia, o julgamento nao s6 sao suficientes para 0 gover- no da sua vida terrena, mas também Ihe permitem passar além em direcao a Deus € a felicidade eterna]. ‘A partir daqui, através do idealismo alemao, a interpretago da personalidade chega a Scheler®. Em termos tradicionais, o proprio Scheler movese entre ques- tes cuja colocacio tornou-se antiquada e artificial. Unicamente Uevido ao modo fenomenolégico refinado de ver ¢ explicar tor- nase ainda mais nefasto”. Scheler procura definir a “posicao metafisica [...] dentro do todo do ser, do mundo e de Deus", 0 ‘género homo {humano]”. Ele quer livrar-se “da ligacdo miti- co-metaforica” da ideia e apoderarse da coisa mesma” 36. Von klacheit und gewdsse oder unbetroglche des worts gottes, em Werke, Vol I, Der deutschen Schriften erster Theil, urique, 1928, p. 58 (qifado por Heidegger) 37, Institutio |, 15,8 (grfado por Heidegger). 38. Ci. Zur Idee des Menschen, 1.ed,,em Abhandlungen und Aufsatze, vo. Leipzig, 1915, p. 319-367 (a partir daqui citado como Zur Idee des Menschen), ‘A. ed. apareceu como Vom Umsture der Werte. Abhandlungen und Aulsat- 2e, em Gesammelte Werke, vol 3, Bema, 1955, p. 173-196. 39. C. p. 346, 186 (aqui, como no que segue, 0 primeiro ndmero indice a cite. G0 da 1 ed, 0 segundo numero indiea a ctacao da 4. ed.) 40. bidem, p. 319, 173, 41. Ibidem, p. 320, 173, 2 A ideia de faticldade e o conceito de “homem 33 AA distingao entre 0 “homo naturalis’ [homem natural]"® da [ciencia natural, “unidade de caracteristicas com carater de coi- 30", “espécie zoolégica’, e homo historiae [homem histérico], ‘unidade ideal, que ¢ como o ‘homem’ aparece nas ciéncias do spirito € na filosofia"®, néo € mais que uma viséo distorcida da istingdo kantiana entre o conceito de natureza e conceito intel ivel. Segundo Scheler, “[...] um erro antropolégico”, se consi- lerado desde a intencionalidade ¢ a eidética. Mas tudo isso “de ra”, “Filosofia que se ocupa de coisas”! “O que seja o homem’” ~ sentido, viséo, hermenéutica desta uestdo! O homem ¢ “a intenco e o gesto da ‘transcendéncia’ jesma™”, aquele que busca a Deus, “um ‘entre’ [...] “limite”. “Animal-Deus, ambos assumidos), “um eterno ‘além’™*, a “por- de entrada” da graca”, “|..] a Gnica ideia de homem’ admissi- fel com sentido [€] um ‘teo-morfismo’, a ideia de um X, que € a .gem finita e viva de Deus, unt semelhante a ele - uma das infi- tas silhuetas recortadas sobre a grande parede do ser”. Enuncia- claramente: um panorama! Uma pintura, uma historia! Coincidentemente, Scheler esté tomando como sendo cua a ologia antiga (cf. também a gnose valentiniana: odpé, - pox Opa, isto & caro, anima, spiritus [earne, alma, espirito]) fontudo, enquanto os tedlogos antigos ao menos percebiam ue estavam falando de teologia, Scheler pée tudo de cabeca ra baixo ¢ arruina tanto a teologia como a filosofia. Tal método Passar por cima do fatico é aplicado com grande sutileza ¢ rspicdcia em seu livro. . Ibidem, p. 322, 174 Ibidem, p. 323, 175. Ibldem, p. 321, 173s. Ibidem, p. 346, 186. Ibiclem, p. 347s, 166. Ibidem, p. 348, 187. | Ibidem, p. 349, 187. 4 Ontologia (Hermenéutica da fact § 5. O conceito teolégico e 0 conceito de “animal rationale” ‘Ahermeneutica tem por tema o serai proprio em cada caso - en- quanto se questiona a respeito do seu carater ontolégico e de sua estrutura fenomenal; no que diz respeito a uma sistematica regional universal recorta nela um setor determinado a fim de realizar uma investigacao do sistema em vista de alguns fins determinados. No entanto, em relacao ao titulo para designar a regiao do ser € no que diz respeito & demarcacao que ele identifica como proprio, evitamos expressdes como ser-ai humano, ser humano, O conceito de homem, em qualquer das concepcoes categoriais legadas pela tradicao, impede inicialmente de ver aquilo que se deve ter em vista enquanto faticidade. A questao do que sejao homem ¢ distorcida ao desviar-se da visao daquilo que a questéo propriamente aponta, substituindo-o por uma objetualidade que Ihe é estranha (cf. Jaspers). ‘Ao chamar de homem o ser-ai que se iré investigar, coloca-se jé de antemao dentro de uma determinada concepgao categor- al, visto que o exame é levado a cabo seguindo a direcao da defi- nico tradicional de “animal rationale” [“animal racional”]. Ten- do tal definigao como direcao, definese a descricéo numa pers- pectiva determinada, sem que com ela se recuperem ativamente (08 motivos originarios de tal maneira de ver as coisas. ‘A propria definicao jé esta até mesmo desprendida do solo de origem e de qualquer possibilidade real de demonstragdo”, ¢ sua repercussao na filosofia modema (Kant) é também determi: nada por uma interpretacao em que continua a desempenhar motivos da teologia crista. © sentido das ideias de humanidade, personalidade, ser pessoa, s6 & compreensivel a partir destas fontes ~ enquanto determinada desteologizagao formalizadora Cf. Kant, Religido dentro dos limites da razdo pura, 1793". 49. Titulo de Heidegger: “Acréscimo & p. 4 (de seu manuscrito). A idela de fat Cidade © 0 conceito de homem". Este § 5 nao foi apresentado nas prelecoes, (até a p. 37). 150. Cf. Aristteles, Etica a Nicomago, A6. 51. Em Sammitliche Werke, vol. VI, ed. porG. Hartenstein, Leipzig, 1868, p. 120. ‘ideia de faticidade e 0 conceito de “homem” 35 Scheler® esta tao longe de compreender a posigéo funda- ental da ideia de pessoa de Kant que s6 considera o sentimen- de respeito como uma “excegao singular” e, nao querendo se conta de sua propria ideia de pessoa, s6 se difere da ideia ntiana de uma-maneira mais dogmatica e possibilita um ainda ior grau de confusao de fronteiras entre a filosofia e a teologia, seja, prejudica a teologia e a filosofia comprometendo suas ssibilidades determinadas de questionar criticamente. {Quando Scheler” define o homem enquanto “intencao e ges- da ‘transcendéncia’ mesma” ou como “aquele que busca a Deus”, nao difere fundamentalmente do “ter respeito com...” de fant, que é o estar aberto ao dever enquanto modo de confron- se com a lei O alcance do grau de confuséo que ocorre nessas aborda- Jens fundamentais de Scheler é indicada, entre outras coisas, lo fato de sua ideia de pessoa coincidir justamente, até mesmo teralmente, com a formulagéo que os reformadores, em aposi- {sd a0 Arist6teles trivializado pela escolastica, proporcionaram; ef, Zwinglio, Calvino. E, além disso, esquece-se precisamente Reste contexto, isto &, nv Lorilexto teolOgico, que ¢ preciso dist ‘guir fundamentalmente varios estados ou modos de ser do h ‘mem (status integritatis [estado de integridade], status corruptio- nls [estado de corrupcdo}, status gratiae [estado de gracal, sta- tus gloriae [estado de gloria]) e que nao podem ser trocados arbi- fariamente uns pelos outros. Quando Scheler diz: “Lutero foi o primeiro a defini-lo [a defi Ir o Homem] explicitamente como ‘caro’ (came)"™, deve-se ob- var que Scheler confunde aqui Lutero com o profeta Isaias F (40,6). Cf. Lutero: Porro caro significant totum hominem, cum fatione et omnibus naturalibus donis” [Came significa aqui o ho- 2, Der Formalismus in der Ethik und die materiale Wertethik, em Jahrbuch for Philosophie und phinomenologische Forchung 2 (1916), p. 266. BS. Zur Idee des Menschen, p. 346, 186. Ibidem, p. 325, 176 (qrifado por Heidegger. In Esaiam Prophetam Scholia praelectionibus collecta, mults in locis Ihon parva accessione aucta (1534), cap. 40,em Werke (edigao Erlangen), Exe- tica opera latina XXIl, ed, por H. Schmidt, Eslangen ¢ Frankfurt, 1860, p. 318. 36 Ontologia (Hermenéutica da facticidade) mem todo, com a razao e todos os dotes naturais]. Este em sta: tus corruptions, o qual, no entanto, esté totalmente determinadc de saida. A ele pertencem o ignorantia Dei [ignorancia de Deus} securitas [sequranca], incredulitas (descrencal, odium erga Deum Iraiva de Deus]. Trata-se de uma relacao negativamente determi nada contra Deus, de um confronto com Deus. Isso enquanto tal € constitutivo! A perspectiva que se tem do homem segundo a direcéo da definicao de “animal rationale” faz com que se veja dentro do mbito dos entes que junto com ele existe aommodo do vivente (plantas, animais) e, em particular, como o ente que possui lin- guager (Adyov Exov), que se refere ao seu mundo e que fala so- bre ele; seu mundo, que est ai antes de tudo na lida que € a ‘mpaétc [praxis] e que implica o ocupar-se em sentido mais am- plo. A definicéo posterior como “animal rationale”, entendida unicamente num sentido literal indiferente, isto é, como “ser vivo ou animal racional”, encobre o solo intuitive no qual se originou esta determinagao do ser humano. Esta definicéo, portanto, com caréter de tese ou de proposi- ‘cao chegaré a converter-se, no modo de se autocompreender a cconsciéncia crista da existencia, como o fundamento nunca ques- tionado da determinacdo teolégica da ideia de homem, da qual se formaria a ideia de pessoa (racional = capaz de conhecer). A de terminacdo teol6gica somente poderé ratificar-se conforme seu principio de conhecimento, isto 6, retornando a revelacdo, em particular a Escritura. Nessa direcao esta a definicao da passa- gem do livro de Genesis 1,26: xal_elnev 5 Bco<, Tlojowpey GvOpurtov Kar? elxdva FneTépav Kai KAO" dpotwory [E Deus dis- se: "Facamos 0 homem a nossa imagem e semelhanca”}. Se- gundo a fé, esta predeterminado que ser humano ¢ ter sido cria- do por Deus a sua imagem e semelhanca. Deixando de lado que a definicao grega tenha sido trivializada e tomada a partir de fora, a determinagao da esséncia do ser humano depende da ideie-

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