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ORIGENS DA HERMENEUTICA Numa obra anterior tratei da representagdo que a arte @ sobre- tudo a literatura, dé da individuac3o do mundo humano. Tratase agora de fesolver 0 problema do conhecimento cientifico dos in- dividuos e até das grandes formas da existéncia humana singuler, na sua generalidade. Seré esse conhecimento possivel? @ que meios serdio necessérios para 14 chegar? Este 6 um problema da maior importéncia. A nossa actividade pressupde sempre a compreensio de outras pessoas; uma grande parte da nossa felicidade consiste em sentir estados de alma alheios; lologia @ a histéria, assentam na hipdtese desta compreensio do singular poder adquirir um valor objectivo. © sentido historico permite ao homer moderno ter presente no es- pitito, todo o pasado da humanidade; gracas a ele, o homem ultra- passa 6s limites do sou préprio tempo e pode actualizar em si todo © passado da humanidade; usar a forga desse passado e reencontrar ‘todo o seu’ encanto equivale a um notdvel acréscimo de felicidade. E se, por um lado, as ciéncias morais sistematicas tiram leis gerais, e vastas relacbes, desta apreensgo objectiva do singular, também a ‘sua base consiste nos processos de compreensio e de interpretapdo. Mas a sua exactidao, tal como a da histéria, depende de saber se a compreensio do singular pode adquirir uma validade universal. ‘Como vemos, encontramos no dom{nio das ciéncias morais um pro- blema que Ihes 6 préprio e as distingue das da natureza, E claro que as primeiras t8m sobre as segundas a vantagem de © seu objecto néo ser um dado fenomenal dos sentidos, um simples reflexo de uma realidade numa consciéncia, mas a propria realidade, fotima e imediata, que a experiéncia interna nos revela. Contudo, ‘© modo como conhecemos esta realidade, levanta grandes dificulda- des no que respeita & sua apreensdo objectiva, Nao as vamos expor 149 HERMENEUTICA ORIGENS DA HERMENEUTICA aqui; para mais, a experiéncia interna, através da qual apercebo os meus proprios estados, é incapaz. de, por si s6, me tornar consciente da minha individualidade particular. E s6 pela comparac&o de mim ‘com 0$ outros. que experimento o que hd em mim de individual; 86 assim me consciencializo do que é diferente do outro, e Goethe tem toda a razio ao afirmar que sendo esta a experiéncia mais im: Portante de todas, é contudo muito dificil, e que a nossa idei jcerca da natureza e dos limites das nossas forgas é sempre muito imperfeita, Em relagdo ao outro, primeiro apenas 0 conhecemos do exterior, sob a forma de dados sens(veis, gestos, sons e accBes, SO reproduzindo os diversos indicios que chegam aos nossos sentidos, Podemos reconstituir a interioridade que Ihe corresponde. Todos os elementos desta reconstituicio, a matéria, a estrutura, os tragos mais individuais, devem ser obtidos da nossa realidade viva, Mas como & que uma consciéncia individualizada pode, através dessa reconsti- ‘tuigdo, elevar-se a conhecimento objectivo de uma individualidade alheia, completamente diferente? Que proceso é este que tem to Poucas semelhangas com os outros processos do conhecimento? Chamamos compreensio (Verstehen) 20 processo pelo qual, juda de signos percebidos do exterior através dos sentidos, conhecemos uma interioridade. E 0 uso da lingua; e s6 se pode obter uma terminologia psicolégica fixa, que tanta falta faz, se os autores conservarem, regularmente, todas as expressbes que ja esto solidamente estabelecidas, perfeitamente delimitadas e aptas a pres- tar servicos. A compreenséo da natureza — interpretatio naturae — é uma_expressio figurada. Mas também chamamos, embora incorrecta- mente, compreensdo, 2 apreensfo dos nossos estados particulares. Digo por exemplo: «No compreendo como pude agir assim» e at nto me compreendo nem a mim proprion. Quero dizer com isto que uma manifestaggo minha, que se integrou no mundo sensfvel, ma parece vir de um estranho, ¢ que no sou capaz de a interpretar enquanto tal ou, no segundo caso, que caf num estado que me parece alheio a mim. Por isso. chamamos compreensiio'ao processo através do qual conhecemos algo de ps(quico partindo de signos sensiveis que sfo a manifestagio do psiquico. 160 Esta compreenstio vai da compreensso dos balbuceios infantis 8 do Hamlet ou da Critica da Razéo Pura. Nas pedras, no mérmore, ha misica, nos gestos, na palavra e na escrita, nas acgées, nas orga- nizagdes eoondmicas e nas constituigdes, é sempre o mesmo esp/rito humano que a todos se dirige requerendo interpretacdo; e na medida ‘em que depende das condig5es e dos meios comuns deste modo ‘de conhecimento, o processo de conhecimento deve apresentar sempre caracteres comuns. O mesmo se passa quanto aos aspectos fundamentais. Se, por exemplo, quero compreender Leonardo da Vinci, tenho de interpretar as acces, quadros, desenhos e escritos, tudo isto de uma forma homogénea e sintética. ‘A compreensio tem diversos graus, que dependem, em primeiro lugar, do interesse. Se este fr limitado, a compreensio também 0 seré. Com quanta impaciéncia escutamos algumas explicagées! SO Fetemos um ponto que tem para nés importdncia prética e ndo nos interessamos, 0 minimo, pela vida interior da pessoa que estd a falar. Palo contrérin, noutros casos, detectamos © mais pequeno gesto fisionémico, qualquer palavra que permita penetrar nela. Mas mesmo a atenggo mais tensa s6 se pode converter num proceso regular com 0 qual se alcance um grau controlével de objectividade quando a manifestagdo vital f6r fixada e assim pudermos voltar constante- mente a ela. Chamamos exegese ou interpretacdo a esta arte de compreender as manifestagSes vitais fixadas de uma forma durdvel. Neste sentido, existe também uma hermenéutica que tem por objecto esculturas ou quadros, F. Aug. Wolf jé tinha reclamado uma herme- néutica e uma critica arqueolégicas. Welcker defendeu firmemente esta atitude e Preller esforgouse na sua realizaglo, sublinhando jé que semelhante interpretacdo de obras mudas devia apoiar-se sempre ras explicagdes literdrias, Nisto reside a extraordindria importéncia da literatura na compreensto da vida espiritual e da histéria, porque a interioridade Humana s6 na linguagem encontra a sua expresso completa, exaus- tiva e objectivamente compreensivel. Por isso, a arte de compreender 6 centrada na interpretacdo dos vest(gios da existéncia humana con- tidos nos escritos. 151 HERMENEUTICA ORIGENS DA HERMENEUTICA A exegese destes documentos e 0 estudo critico que necessa- riamente @ acompanha foi, por conseguinte, o ponto de partida da filologia, Esta 6, essencialmente, a arte pessoal e @ virtuosidade articular que se manifesta num tal estudo dos monumentos escritos, @ & sb em relacdo com esta afte e com estes resultados que se pode desenvolver qualquer outra interpretago de monumentos ou de aces transmitidas pela hist6ria. Podemos enganar-nos acerca dos motivos de acco dos personagens hist6ricos; as pessoas que agem sob 0s nossos olhos podem até induzir-nos em ‘erro sobre os seus ‘motivos. Mas @ obra de um grande escritor, de um grande inventor, de um génio religioso ou de um verdadeiro filésofo s6 pode ser a expresso auténtica da sua vida interior; na sociedade humana, cheia de mentiras, uma obra deste género ¢ sempre verdadeira e, diferentemente de todos 0s outros testemunhos fixos, 6 susceptivel de uma interpretagio integral e objectiva; inclusivamente ¢ ela que esclarece outros monumentos artisticos de uma época e as aces hist6ricas dos contemporéneos. . Esta arte da interpretagio desenvolveu-se tio progressiva, re- gular, e lentamente como a interrogago da natureza através da experiéncia. Nasceu da genial virtuosidade do fil6logo e é ainda ela que a faz subsistir. De acordo com a sua natureza, transmite-se sobretudo através do contacto pessoal com os grandes virtuosos da ‘exegese ou do contacto familiar com as suas obras. Mas toda a arte procede segundo regras, que ensinam a ultrapassar as dificuldades. Ensina-nos 0 resultado da arte pessoal. Assim, rapidamente, surgiu da arte da interpretagio a exposicSo das suas regras. A hermentutica nasceu do conflito entre estas regras, do antagonismo entre as diver- sas formas de interpretar obras essenciais e da necessidade conse- quente da fundamentacéo das regras. E a arte de interpretar os mo- numentos escritos. Estabelecendo a possibilidade de uma interpretago universal- mente vélida através da andlise da compreensio, a hermenéutica tende, afinal de contas, a resolver todo 0 problema geral com que ‘comecamos este ensaio. A andlise da experiéncia interna acrescenta-se 152 a da compreensio e as duas, em conjunto, foiecem a prova de que as ciéncias do espirito sfo capazes de um conhecimento que tem den- tro de certos limites, validade universal, pelo facto de serem deter- minadas pela forma como nos so dados os factos ps/quicos na forma origindria. Gostaria agora de mostrar o desenvolvimento histérico regular da hermenéutica; como é que a necessidade de uma compreensto profunda e indiscut(vel vai engendrar a virtuosidade filolégica que faré, por sua vez, surgir regras, a ordenagdo das mesmas segundo uma finalidade, finalidade que foi mais rigorosamente circunscrita pela situagio momentanea da ciéncia até que a andlise da compre- ensio forneceu uma base segura para o estabelecimento de regras, A arte de interpretar (‘epu nve ia) nasceu na Grécia, fruto da neocssidade de ensiner. As controvérsias espitituais a propdsito de Homero e de outros poetas eram muito apreciadas em todos os parses de lingua helénica no tempo da Aufkiarung grega. A interpretaggo adquiriu uma base mais segura 20 entrar em contacto com a retérica, com 0 sofistas e as escolas de retdricos, pois que af encontrava, aplicada & eloquéncia, uma tei geral da composig&o literdria, Aristételes, esse grande classificador e analista do mundo. orgénico, dos Estados, e das produces literérias, ensina na sua Retorica a decompér uma obra nas suas partes, @ distinguir os estilos, a reconhe- cer 0 efeito do ritmo, do perfodo, da metéfora. Os exemplos ex- Pressivos do discurso tais como 0 exemplo, o entimema, a sentenca, a ironia, a metéfora, a ant/tese, so ainda definidos de uma forma mais simples na Retdrica a Alexandre. © a sua Pottica tem expres- samente como objecto a forma interior e exterior e os meios de acedo que resultam para a poesia e os diferentes géneros de natu- reza ou de finalidade. ‘A arte da interpretaco deu um passo novo e muito importante com a filologia alexandrina, Reuniu-se, nas bibliotecas, a heranga 183 HERMENEUTICA ORIGENS DA HERMENEUTICA literdtia da Grécia, fizeram-se recensbes de textos e através de um sis- tema técnico de signos foi possivel anotar, nos textos, o resultado deste trabalho critico. Eliminaram-se as obras apécrifes e fizeram-se catdlogos de todas as existéncias. A filologia como arte de recensear textos, de os criticar, de os interpretar e de avaliar o seu valor, ba- seada na inteligéncia (ntima da lingua, passou entéo a ter uma existéncia, sendo uma das ultimas e das mais auténticas criagdes do espirito grego, uma vez que este, desde Homero, tinha como um dos impulsos mais poderosos, 0 prazer de ouvir discursar. E os grandes filblogos alexandrinos comecaram a consciencializar'se das regras ‘contidas na sua técnica genial. Aristarco jé tinha compreendido que ea necessério estabelecer © explicar os textos de Homero com 0 apoio de um estudo rigoroso e profundo do uso da linguagem nesses ‘textos. Hiparco fundou com plena consciéncia a interpretagio objec- tiva baseandose numa investigagao historico-literéria, assinalando as fontes de Os Fendmenos de Arato, e interpretando este poema de acordo com aquelas. Se certos poemas atribuidos a Hesfodo foram reconhecidos como apécrifos, se um grande nimero de versos foi eliminato das epopeias homéricas, se 0 itimo canto da /I/ade foi declarado posterior, tal como e mais unanimemente ainda, uma parte do pendiltimo e todo 0 ultimo canto da Odisseia, tudo isto foi feito gragas a uma utilizaggo magistral do principio de analogia; © apoio este deu origem a uma espécie de canon do uso da linguagem, do cfrculo de representacBes, da unidade interna e do valdr estético de um poema, eliminando-se 0 que estava em contradioo com ele. A aplicago de um semelhante canon estético-moral por Zenédoto e Aristarco verifica-se, claramente, na forma como fundamentam as antiteses: 5 ro axpencs, isto é si quid heroum vel deorum gravita tem minus decere videbatur.” Aristarco também se apoiou em A\ t6teles. A consciéncia metédica acerca do proceso adequado de inter pretago foi ainda mais reforcada na escola alexandrina devido ao an- tagonismo com a filologia de Pérgamo. Conflito de tendéncias her- menéuticas que tinha larga importdncia para a hist6ria universal, pois apareceu_num novo plano da teologia cristi e dele dependem duas grandes concep¢des historicas sobre poetas e escritores religiosos. Crates de Mallos introduziu na filologia de Pérgamo o prin- cfpio estdico da interpretacdo alegsrica. A autoridade que este método de interpretacgo manteve durante muito tempo deve-se, em primeiro lugar, a ter acabado com a contradiggo entre os documentos religiosos antigos ¢ uma filosofia avancada. Por esta razao foi igual- mente necesséria aos intérpretes dos Veda, de Homero, da B/blia e do Corfo. Arte to indispensével quanto vi, assentava, contudo, uma visio profunda da produtividede religiosa e poética, Homero 6 um vidente e as contradigdes que se nos apresentam entre as suas intuigdes profundas e as grosseiras representacdes sensiveis,s6 podem ser explicadas se considerarmos, estas ultimas,como simples meios de expresso poética. Mas ao interpretar-se esta circunsténcia como forma intencional de encobrir o sentido pneumatico por meio de imagens, nasceu a interpretagao alegéri " Se nfo me enyany, este antagonismo encontrase, embora em circunstancias diferentes, no conflito entre as escolas teolégicas de Alexandria e de Antioquia. A sua base comum era, naturalmente, ‘que 0 Antigo eo Novo Testamento estavam ligados por uma intima ligago de profecia e realizacio; pois assim 0 exigia 0 recurso as Profecias e aos prességios no Novo Testamento, Partindo deste pos- tulado, a Igreja Crist colocava-se numa situaco complicada em rela- ‘940 aos seus adversdrios no que respeitava 8 exegese dos seus textos sagrados. Face aos Judeus, tinha necessidade da interpretagdo alegéri ca para introduzir @ teologia do Verbo no Velho Testamento; pelo contrétio, face aos gnésticos, tinha de evitar uma aplicagdo exces- siva do método alegérico. Seguindo o caminho tragado por Filon, Justino e Irenev tentaram estabelecer regras para delimitar 0 emprego deste método, Na luta contra os Judeus e os gnésticos, Tertuliano Procede como eles, mas também desenvolve regras fecundas para uma melhor exegese, embora, para dizer a verdade, nfo thes seja sempre fiel, Na Igreja grega,o antagonismo exprime-se na oposigio de princfpios. A escola de Antioquia explicava os seus textos atendo- “$e a0s princrpios gramético-historicos. Assim, Teodoro de Antioquia 155 HERMENEUTICA 86 via no Céntico dos Cénticos um simples epitalamio e no livro de Job a simples elaboragéo pottica de uma tradicdo historica. Re- jeitou os titulos dos Sa/mos e negou a ligacdo directa com Cristo a um grande ndmero de profecias messignicas. Nao admitia um duplo sentido dos textos, mas apenas uma ligago superior entre os factos. Pelo contrério, Fflon, Clemente e Origenes distinguiam, nos pré: prios textos, um sentido pneumstico de um sentido real. ‘ E também de notar, quanto a transformagao desta arte de i terpretagio numa hermenéutica de cardcter cientifico, que as pr meiras teorias hermenéuticas de que temos conhecimento nasceram, deste conflito. J em Frion existem kavéves © ndyoirns adArropias ‘que séo aplicadas no Antigo Testamento e nos quais a interpretagao deste se deve apoiar. Origenes, no quarto livro do seu tratado nept “apx%ww e Santo Agostinho no terceiro livro da sua Doctrina chris- tiana fundaram uma teoria hermenéutica coerente 4 qual depressa se opuseram duas obras hermentuticas da escola de Antioquia in- felizmente perdides: ris Swapopd Oewplus qui wAdirqup’ wes de Diodoro e De allegoria et historia contra Origenem de Teodoro. um A partir do Renascimento, a exegese @ as suas regrat, entraram numa nova etapa. A linguagem, as condicées de vida e a nacionalida- de, tinham estabelecido a separacdo com a antiguidade cléssica e latina. A interpretagao consistia, ainda mais neste momento do que outrora, em Roma, em situar-se numa vida espiritual alheia, por meio de estudos gramaticais, técnicos e histricos. E esta nova filologia, polimatia'e critica, trabalhava largamente com simples relagbes e fragmentos. Devia, assim, ser construtiva e criativa de uma forma nova. A filologia, a hermenéutica e a critica também atingiram ‘um estado mais avangado. Os quatro séculos seguintes forneceram- -nos uma literatura hermenéutica abundante, constituindo duas correntes diferentes, uma vez que as duas grandes forcas que se tentava assimilar eram as obras cléssices, por um lado @ os escritos biblicos, por outro, O conjunto de regras da filologia cléssica chama- 156 | aes ORIGENS DA HERMENEUTICA vase ars critica, Estas obras, entre as quais se destacavam as de Scioppius, Clericus e a obra inacabada de Valerius, continham, na primeira parte, uma teoria hermenéutica, Numerosos ensaios e pré- logos tratavam de interpretatione. Mas a constituigdo definitiva da hermenéutica deve-se a interpretagdo biblica. A obra mais impor- tante ¢ talvez a mais profunda foi a Clavis de Flacius (1567). Pela primeira vez nesta obra, surge organizado em sistema, todo 0 conjunto de regras de interpretago encontradas até a altura, gragas a0 postulado segundo 0 qual, procedendo tecnicamente de acorde com as regras, deveria obter'se uma compreensio indiscu- tivel dos textos. Este ponto de vista tedrico que domina efectiva- ‘mente a hermenéutica, foi imposto a Flacius pelas lutas do século XVI. Flacius tinha de combater em duas frentes. Tanto os anabap- tistas como @ Contra-Reforma catélica afirmavam a obscuridade das Sagradas Escrituras. Ao opérse a esta afirmagio, Flacius segue a escola de Calvino que muitas vezes tinha efectuado o percurso da interpretagtio aos princtpios que a Inspiram. A tarefa mais urgente, Para _um luterano deste tempo, era refutar a doutrina catdlica da ‘tradigéo, que tinha acabado de ser reformulada. Neste conflito com © princ(pio escriturério protestante, 36 se podia fundar o direito da tradigdo a interpretar as Sagradas Escrituras se se mostrasse a impos- sibilidade de deduzir uma interpretaco suficiente e incontestével, unicamente partido dos escritos brblicos. O coneflio de Trento, que se reuniu de 1545 a 1863, ocupou-se destes problemas a partir da Sua quarta sesso © em 1564 publicou-se a primeira edigiio autén- tica destes Decretos. Foi Belarmino, o representante do catolicismo de Trento, quem mais tarde, uns anos depois da obra de Flacius, combateu, agudamente, num panfleto de 1581, a inteligibilidade da Biblia e tentou,desta forma, provar a necessidade da tradic#o para @ completar.. Estas lutas levaram Flacius a demonstrar, hermenéuti- camente, 2 possibilidade de uma interpretaggo com valor universal; No esforco de concluir positivamente esta tarefa, foi tomando cons. ciéncia dos meios e das regras para a sua solugdo, meios e regras que enhuma hermengutica anterior tinha ainda achado. 157 HERMENEUTICA Se 0 intérprete encontra dificuldades no seu texto, dispde de um meio sublime para as resolver: a unidade que as Escrituras encon- tram na religio cristé viva Se transpusermos isto da mentalidade dogmatica para a nossa, este valor hermenéutico da experiéncia re- ligiosa é apenas um caso particular do principio segundo 0 qual toda a interpretago se apoia, sobretudo, numa base real. Mas este prin- lpio religioso de interpretacgo & acompanhado de princ‘pios racio- nais. © primeiro deles é a interpretagdo gramatical. Juntamente com ela, Flacius reconhece também e sobretudo a importancia do princrpio psicolégico ou técnico, segundo o qual uma passagem iso: lada deveré ser interpretada em funcdo da intengfo e da composi¢o da obra inteira, E. é também o primeiro a usar metodologicamente, para esta mesma interpretaco técnica, os dados da retérica sobre a unidade interna de uma producéo literéria, a composigdo e os elementos expressivos desta. Este caminho foi preparado pela trans- formagéo que Meléncton efectuou na retérica aristotélica, Mas Flacius teve consciéncia de ter sido o primeiro a tirar metodicamente partido, para a interpretago do pastagens isoladas, dos recursos contides no contexto: a intene&o, a proporgo e a congruéncia das rsas partes. Coloca o seu valor hermenéutico sob um ponto de 1a geral da metodologia: «Pois, de uma maneira geral, a inteli idade das diversas partes do todo resulta também das suas re- lagSes com 0 todo e com as outras partes delén. Estuda eta forma interior de uma obra até no estilo e nos seus diferentes elementos expressivos @ define, com muita agudeza, caracter(sticas do estilo de S. Paulo e de S. Jodo. Era um grande progresso, embora dentro dos limites da concepgio ret6rica. Toda a obra escrita por Melancton € por Flacius é, com efeito, concebida e compreendida segundo estas regras. E uma espécie de autémato Idgico revestido de imagens de figuras de estilo, As insuficiéncias formais. da obra de Flacius foram superadas pela hermenéutica de Baumgarten, em que se afirmou simultanea- mente uma segunda grande corrente teolégico-hermenéutica. Com efeito, foi através dos Nachrichten von einer Hallischen Bibliothek de Baumgarten que a Alemanha comecou a ter conhecimento, jun- 158 ORIGENS DA HERMENEUTICA ‘tamente com os intérpretes holandeses, dos livres pensadores ingle- se que interpretavam o Antigo Testamento com base na etnologia. Semler e Michaelis formaram-se com 0 seu contacto e participagao nos trabalhos. Michaelis foi o primeiro a aplicar uma concep¢io historica coerente da Iingua, da hist6ria, da natureza e do direito do Antigo Testamento a interpretagdo. Semler, percursor do grande Cristian Baur, quebrou a unidade candnica do Novo Testamento, mostrou e muito bem que era necessério compreender as diferentes Esorituras em fung&o do seu cardcter local, deu-|hes uma nova uni- dade que residia numa concepedo histérica viva das lutas primitives entre o cristianismo judaico eo cristianismo mais livre ena sua Vor- bereitung zur theologischen Hermeneutik, reduziu, resolutamente, toda esta ciéncia @ dois princ(pios: interpretar apoiando-se no uso linguistico e em circunsténcias histéricas. Foi assim que a tradigéio se emancipou do dogma e estava fundada a escola gramético-hist6rica. O espirito subtil e prudente de Eesti criou no seu /nterpres a obra claéssica desta nova hermenéutica. Com essa leitura, Schleiermacher pode decorvolver 2 sua prépria hermentutice; & verdade, também, ue estes progressos se efectuaram dentro de limites fixos. Na méo destes exegetag, a composicéo, a textura espiritual de todos os escritos de um certo perfodo, reduz-se aos mesmos fios: as ideias do local e da época em causa, Segundo esta concepeio pragmética da histéria, a uniformidade religiosa e moral da natureza humana é unicamente limitada do exterior pelas circunstancias locais e momen. téneas. A natureza humana é a histérica. Até entdo a hermendutica cléssica ¢ a biblica tinham seguido caminhos distintos. No seria possivel considerd-1as como aplicagbes de_uma hermenéutica geral? O wolfiano Meier deu est passo, em 1757, no seu Versuch einer allgemeinen Auslegungskunst. Efectiva- mente, ele concebia a sua ciéncia de uma forma t80 geral quanto possivel ¢ incumbia.a de tracar as regras que deveriam ser observa- das em qualquer interpretacdo de signos. Mas o seu livro mostra, uma vez mais, que no é possivel inventar novas ciéncias enquanto se tiver perspectivas arquitecturais ou de simetria. Desta forma s6 se fazem janelas falsas através das quais a visto € impossivel. Uma herme- 159 HERMENEUTICA ORIGENS DA HERMENEUTICA néutica fecunda s6 poderia elaborar-se num eépirito que unisse a virtuosidade de interpretacdo filolégica a uma verdadeira faculdade filos6fica, Foi o caso de Schleiermacher. Vv As condigdes em que este trabalhava, isto é, 2 interpretacdo das obras de arte por Winckelmann, a endopatia genial de Herder para a alma dos povos e das épocas, a nova filologia de inspiraco estética de Heyne, de Fr. Aug. Wolf, e dos seus disc(pulos entre os quais figurava Heidorf — com quem Schleiermacher convivia inti- mamente pois estudavam juntos Plato —, tudo nele se unia a0 mé- todo da filosofia transcendental alem&, método que consistia em re- cuar, para além dos dados da consciéncia, até a uma faculdade cri dora, homogénea e inconsciente, que produz em nés toda a forma do mundo. Da unigo destes dois elementos surgiu a sua arte peculiar de interpretagio e a constituico definitiva de uma hermenéutica cientifica. Até essa altura, a hermenéutica tinha sido, na methor das pOteses, um conjunto de regras tendo todas uma finalidade comum que era estabelecer uma interpretago com validade universal. Tinha distinguido as diversas fungSes que intervinham na interpretacto como interpretacdo gramatical, hist6rica, retérico-estética e «objecti- vay; nutrindo-se do virtuosismo filolégico de muitos séculos, tinha tomado consciéncia das regras que estas funcées deviam observar. Para além destas regras, Schleiermacher recuou até a andlise da compreensio, logo até a0 conhecimento da prépria acea0 intenc nal, e deduziu daf a possibilidade de uma interpretacSo universal- mente valida, assim como 0s meios, os limites e as regras desta, Mas 86 pode analisar 0 compreender como. um «reproduzir», um «re- construir», apoiando-se na sua relagio viva com o proprio proceso de producdo literdrio. Ele reconheceu na intuigo viva do processo criador, do qual surge uma obra literéria de qualidade, a condicgo do conhecimento deste outro proceso que, de um conjunto de signos escritos, obtém uma obra acabada e nela descobre a intenc&o a mentalidade do autor. 160 ‘Mas para resolver 0 problema assim colocado era necessério uma nova intuic&o psicolégico-histérica. Seguimos a relagéo de que aqui se trata desde a relacdo que existia entre a exegese grega e a ret6rica como teoria de uma determinada forma de producéo li- teréria. No entanto a concepcdo dos dois fenémenos em questo continuou sempre légico-retérica. Apenas conhecia produtos Iégicos que tinham uma unidade e uma composigio Idgicas e eram, em se- guida, revestidas por figuras de estilo e por imagens. Neste momento recorre-se a conceitos totalmente novos para compreender uma pro- dugao literéria, Presentemente, existe uma faculdade que, através de uma ac¢do criadora, homogénea e inconsciente, recebe e elabora as primeiras sugestBes de uma obra. Af esto indissoluvelmente unidas receptividade e criagio esponténea. A individualidade opera até a raiz dos cabelos e em cada uma das palavras. A sua manifes- tago suprema esté na forma externa e interna da obra literéria, Ora, esta obra vai de encontro a necessidade insacidvel da nossa indivi- dualidade se completar com a intuigo da individualidade de outro. A compreensio e a interpretago intervém pois sempre, inclusivamente, na propria vida; atingem a perfeico na arte de explicar obras podero- sas e de mostrar @ sua unidade no esp/rito do autor. Esta era a nova concepgao na forma particular que assumiu no espfrito de Schleier- macher. Esta conquista, a constituiggo de uma hermenéutica geral, teve por aliada uma circunstincia favordvel: 0 facto das novas intui- ‘es psicolégico-histéricas terem sido transformadas pelos contem- pordneos de Schleiermacher e pelo préprio numa arte filolégica de interpretagdo. Com Schiller, Wilhelm Von Humboldt e os irm&os Schlegel, 0 espfrito aleméo acaba de se virar da produgSo literdria para a inteligibilidade do mundo histérico. Foi um movimento po- deroso que influenciou Bockh, Dissen, Welcker, Hegel, Ranke, Savigny. Friedrich Schlegel foi o introdutor de Schleiermacher na arte filolégica. As ideias que inspiraram os seus trabalhos sobre a poesia grega, sobre Goethe e sobre Bocécio eram as da forma interior da obra, da histéria evolutiva do escritor e da totalidade da litera- tura articulada em si mesma. Por trés destas realizacdes particulares 161 HERMENEUTICA da arte da reconstrugdo filolégica, nutria-o plano de uma ciéncia da critica, de uma ars critica que assentava numa teoria da faculdade da criacdo literéria. Por aqui se nota como este plano estava préximo da hermenéutica e da critica de Schleiermacher. Foi também de Schlegel que partiu a ideia da tradugéo de Plato. Nela se desenvolveu a técnica da nova interpretago que Bockh e Dissen imediatamente aplicaram a Pindaro. Plato deve ser compreendido como artista-filésofo. A finalidade da interpretacdo 6 a unidade entre 0 cardcter da meditagio filoséfica em Plato e a forma artistica das suas obras. Nele, a filosofia confundese ainda com a vida e estd intimamente ligada ao didlogo, e a sua traducdo 6 unicamente uma fixagdo destinada 4 meméria. Deve pois ser um didlogo, ¢ de tal forma art(stico que nele se reproduze a associacdo viva das ideias, Mas, simultaneamente, cada didlogo deve, segundo @ unidade rigorosa do pensamento platénico, continuar qualquer coisa de anterior, preparar qualquer coisa de posterior e levar a sua contribuig&o as diversas partes da filosofia. Se cansideramos os didlogos deste ponto de vista, os principais formam um conjunto que revela a intencdo secreta de Platiio. Apenas a apreenso desta sébia conexdo permite, segundo Schleiermacher, uma verdadeira compre- enso de Plato; 0 estabelecimento da cronologia das suas obras, ida que deva coincidir, na maior parte dos casos, com a propria conexéo, ¢, comparativamente, menos importante, Na sua famosa recenso, Bockh péde dizer que esta obra mestra descobriu, pela primeira vez, Plato para ciéncia filolégica. Ora, a uma tal virtuosidade filolégica aliava-se, pela primeira vez, no espitito de Schleiermacher, uma faculdade filos6fica genial, formada pela filosofia transcendental, que oferecia exactamente ‘meios para a colocago e resoluggo do problema hermenéutico em geral. Assim surgiu a teoria geral da ciéncia e da arte da interpretago. Schleiermacher, que queria inaugurar com ela o seu curso de ‘exegese em Halle, elaborou 0 primeiro esboco no outono de 1804, lendo 0 Interpres de Ernesti. S6 possuimos a Hermenéutica que assim 162 ORIGENS DA HERMENEUTICA surgiu, de uma forma muito pouco efectiva. Foi sobretudo Bockh, aluno ‘de Schleiermacher, quando este ensinava em Halle, que a tor- nou influente através das paginas magnificas que Ihe consagrou nas aconferéncias sobre a enciclopédia filosdficay. Vou destacar, da Hermenéutica de Schleiermacher, 28 propo- sigdes que me parecem directamente ligadas ao posterior desen- volvimento. Qualquer explicago de obras escritas ¢ apenas o desenvolvi mento do processo de compreenso que se estende @ totalidade da vida e se aplica a qualquer espécie de discurso e de escrito. A andlise da compreensto é, por conseguinte, a base em que se fundamentam. as regras de interpretagdo. Mas s6 se pode efectuar em conexao com a andlise da produgio das obras literdrias, O conjunto de regras que fixa os meios e os limites da exegese deve apoiar-se na relacdo entre ‘a compreensio e a producao. (...) E ele que aparece a dificuldade central de qualquer herr: néutica. Trata-se de compreender 0 conjunto de uma obra com a ajuda de palavras e de combinagéo de palavras; ora a plena compre. enséo do pormenor pressupde j4 a do todo! Este citculo vicioso repete-se no que diz respeito & relagdo entre uma obra particular € personalidade e evolucgo do autor; encontramos novamente este circulo vicioso quando entramos em consideraggo com a relacdo entre a obra 0 género literdrio a que pertence. Foi na /ntroducéo 4 Republica de Plattio que Schleiermacher, na prética, melhor resol- veu esta dificuldade, e nos apontamentos das suas conferéncias sobre ‘exegese encontro outros exemplos do mesmo método. Comecava ‘com uma sinopse do plano, que se podia comparar a uma leitura ligeira, abarcava a conex8o inteira as apalpadelas, esclarecia as difi- culdades e parava em todas as passagens que permitisser entrever ‘a composicgo, S6 entio comecava a interpretacdo propriamente dita, Encontramos aqui os limites tedricos de toda a explicago; damo-nos conta de que a exegese s6 pode desempenhar a sua tarefa até certo ponto. Toda a interpretacio é pois relativa e sempre imperfeita. Individuum est ineffabile. a 163 HERMENEUTICA Schleiermacher rejeita decomposico do proceso exegético em interpretaggo gramatical, hist6rica, estética e cobjectivay que estava em uso, Para ele estas distingSes s6 significa m que a explica- ‘¢0 pressupde conhecimentos gramaticais, histéricos, cobjectivosp estéticos, que podem influir em todas as operagSes. Mas 0 processo de interpretaco, s6 pode decompér-se nos dois aspectos implicados no conhecimento de ume cria¢do espiritual impressa em signos lin- guisticos: a interpretago gramatical, que segue a construgo progres- siva do conjunto do texto, e # interpretacdo psicoldgica, que consiste em colocar-se, em primeiro lugar, no centro do proceso criador, © af passar 4 forma exterior e interior da obra e em procurar por fim 2 unidade das obras de um autor através da sua personalidade e da sua evolugio. Assim chegdmos a0 ponto a partir do qual magistralmente, Schleiermacher, desenvolve as regras da hermenéutica. A sua teoria da forma interior e da forma exterior ¢ fundamental, e os elementos do uma tooria goral da eriagdo literdria que seria 0,organon da histéria literétia, que af se encontram, so particularmente interessantes. A finalidade ultima da hermenéutica ¢ compreender 0 autor melhor do que ele proprio se compreendeu; proposic#o que é a con- sequéncia necesséria da teoria da criago inconsciente. v Fagamos o balanco. A compreensio 36 se torna uma exegese susceptivel de possuir validade universal no que diz respeito aos mo- numentos literdrios. Se a interpretagdo filolégica tomar consciéncia do seu método e da sua.legitimidade na hermenéutica, Fr. Wolf tem todo 0 direito de considerar mediocre a utilidade pratica de seme- Ihante disciplina em comparagZo com a experigncia viva. Mas além desta utilidade prética para a propria interpretagdo, parece-me que ‘a hermenéutica desempenha um segundo papel que é 0 papel essen- cial: estabelecer, teoricamente, contra a irrupgdo constante da arbi: trariedade romantica e do subjectivismo céptico no dominio da 164 ORIGENS DA HERMENEUTICA historia, a validade universal da interpretago, base de toda a certeza histérica. Integrada no conjunto que a gnoseologia, a Idgica e a meto- dologia das ciéncias morais constituem, a hermenéutica é um inter- medidrio importante entre a filosofia e as ciéncias historicas e uma ‘base essencial das ciéncias do espitito. COMPLEMENTOS TIRADOS DOS MANUSCRITOS. ‘Sobre compreensio e hermenéutica ‘A compreenséo & um caso particular da tentativa de conheci ‘mento, que no sentido mais lato designa todo 0 processo através do qual nos esforcamos por adquirir um saber com um valor universal. Propotigfo 1. Chamamos compreensio ao process através do qual as manifestagbes sensivelmente dadas nos revelam a-pré- pria vida psfquica. Proposigdo 2. Por mais diferentes que sejam as manifestacdes sensfveis da vida psfquica, a sua compreenséo deve apresentar carac- teres comuns impostas pelas condigdes jé indicadas, deste modo de ‘conhecer. Proposigiio 3. Chamamos exegese, interpretacdo, a arte de compreender as manifestagdes escritas da vida, A interpretago 6 uma questo de habilidade pessoal e a sua per- feigo depende da genialidade do exegeta; com efeito, ela assenta numa afinidade fntima, potenciatizada pela familiaridade com 0 autor resultante de um estudo constante. Assim Wickelmann, influ- enciado por Plato, (ver Justi), Plato interpretado por Schieier- ‘macher, etc. Aqui reside o que a interpretacdo tem de adivinhacao. 165 HERMENEUTICA a ee (...) Mas exactamente porque esta genialidade ¢ muito rara e ‘a exogese também deve ser praticada e ensinada por espiritos bem menos dotados é necessdrio: Proposigfio 4a que a arte dos.exegetas de génio seja fixada em regis deduzidas dos seus métodos ou nas que eles préprios criaram. Porque toda a arte humana se afina, melhora e supera na sua aplicagdo, se, de alguma forma, se conseguir transmitir 0 resul- tado da vida do artista para as geragSes posteriores. S6 é posstvel dar & compreensfo um aspecto técnico quando a linguagem oferece uma base firme e quando existem grandes criagdes com valor dura- douro que provoquem discussgo pela diversidade da sua interpre- tagiio: neste caso, 0 conflito entre os artistas geniais da exegese deve ‘tentar resolver-se através de regras de validade universal. O contacto com o intérprete de génio ou com a sua obra & com certeza o melhor estimulante para cada um na arte de interpretar textos. Mas a brevi- dade da vida impée-nos a reducdo do caminho mediante o estabele- cimenta de métocos ja encontrados © das rogras por olee aplicadas, Chamamos hermenéutica a esta técnica de interpretaggo das mani- festacdes vitais fixadas por escrito, Proposigfio 4b. Deste modo podemos determinar a natureza da hermenéutica e legitimar, em certa medida, a prdtica. Contudo, se ela no parece suscitar, presentemente, todo o interesse desejado pelos seus defensores, creio que isso se deve ao facto de no ter acolhido os problemas resultantes da situago actual das ciéncias, 0 que @ tornaria muito mais interessante, Esta disciplina (a hermenéu- ica) teve um destino muito especial. Ela chama a atengo, no seio de um grande movimento histérico que converteu em tarefa urgente dessa disciplina a compreensio da existéncia hist6rica individual, mas desaparece imediatamente na sombra. Foi o que aconteceu no mo- mento em que a interpretao dos textos sagrados do.cristianismo era uma questéo vital para o protestantismo. Depois e em conexio com 0 desenvolvimento da conscitncia histérica do século XIX, foi renovada por Schleiermacher e por Bockh durante um certo ‘tempo, e pude viver a época em que a Enciclopédia de Bockh, que 166 ORIGENS DA HERMENEUTICA assentava, inteiramente, nestes problemas, era considerada 0 Unico caminho de acesso ao santudrio da filologia. Se Fr. Aug. Wolf se ex- primiu negativamente quanto ao papel desempenhado pela herme néutica na filologia, e efectivamente desde entiio contou com poucos. continuadores e representantes, é porque a sua forma anterior jé estava eqgotada. Mas 0 problema @ que se consagrava, reaparece hoje com uma nova e mais geral forma. Proposigo 5. A compreenséo, entendida em sentido lato, tal como é necessdrio que se apresente agora, constitui o método fun. damental para todas as operagdes das ciéncias morais... Assim como nas ciéncias da natureza 0 conhecimento das leis s6 € possivel me- diante 0 nimero e a medida aplicados as experiéncias e as regras contidas nelas, assim também, nas ciéncias do esp/rito, qualquer pro- posigdo abstracta s6 pode ser justificada pela sua relacio com a vida psiquica tal como se nos revela na experiéncia e na compreensio. Ora, se a compreensso esté na base das ciéncias do esprrito (proposigéio 6), a sua anélise tripla, da perspectiva da teoria do conhe- cimento, da légica e da metodologia, é uma das tarefas principais para a fundaco das ciéncias do espitito. Mas a importancia desta tarefa aparece sobretudo quando tomamos consciéncia das dif culdades que a natureza do entendimento pressupde no que respeita a prética de uma ciéneia com uma validade universal. Primeira aporia. Cada um esté como que encerrado na sua consciéncia individual e esta consciéncia individual comunica sub- jectividade a qualquer interpretago das coisas. O problema que aqui se colocou foi jé expresso, noutros termos, pelo sofista Gorgias: a istir um saber, aquele que o detém ndo poderia transmiti-lo a mais inguém. Deste modo acaba-se com o problema e com 0 pensamento. Temos entdo que arranjar uma solucéo. A possibilidade de captar algo estranho é um dos problemas mais profundos da teoria do co- nhecimento. Como € possivel que uma individualidade possa trans- formar em conhecimento abjectivo com valor universal 0 dado sen- sivel que é, para ela, uma manifestagdo vital de uma outra indivi 167 HERMENEUTICA ORIGENS DA HERMENEUTICA dualidade? A condigéo de que depende esta possibilidade consiste no facto de nenhuma manifestacéo individual estranha poder apre- sentar alguma coisa que néo esteja, também, contida na individuali- dade viva que a percebe. Encontramos as mesmas funcBes e os mes- ‘mos elementos constitutivos em todos os homens, e s6 a sua impor- téncia pode diferir. £ 0 mesmo mundo externo que se reflecte nas ‘suas representagdes. Por isso deve existir na vida uma faculdade que Ihe seja inerente. A ligacdo, etc., reforgo, diminuigdo: transpér 6 transformar. Segunda aporia. Extrair 0 todo do detalhe e sequidamente o detalhe do todo. A totalidade de uma obra exige que se chegue & individualidade do autor, ao conjunto literdrio de que depende. © método comparado faz-me compreender cada obra e até cada fra- 88 com mais profundidade. A compreenso resulta, pois,do todo ue, no entanto resulta, por sua vez, do pormenor. Tereeira sporia. Qualquer estado pa/quico ¢ jé compreendid Por nés partindo das excitagdes exteriores que o provocaram. Com- Preendo o édio pelo prejutzo causado a uma vida. Sem esta referén- cia ser-me-ia impossivel representar as paixSes. 0 meio é pois indis- pensével @ compreensto. Levando as coisas a0 extremo,a compre- ensfo no difere da explicacdo, na medida em que esta é poss/vel neste dominio, E, por sua vez,a explicagdo pressupde uma compre- ensto perfeita. Em todas estas questdes pde-se em relevo o facto de 0 pro- blema epistemolégico ser sempre o mesmo: como é possivel dar lugar a um conhecimento universal a partir das experiéncias, Mas apresenta-se aqui em condi¢ées particulares inerentes 4 natureza das experiéncias vividas no dominio das ciéncias do espitito, que so: a estrutura como conexo constitui na vida psiquica o vivo, conhecido, a partir do qual se determina o singular. ‘Temos pois,s portas da ciéncia do espirito,a andlise da com- Preenso como problema gnosiolégico essencial. Partindo dele e 168 tendo como ultimo objectivo a sua solugo, a hermenéutica rela- cionase intimamente com os grandes problemas que apaixonam 0. Pensamento contemporaneo, isto 6, a constituigio e a legitimidade das ciéncias morais, Estes problemas e prine(pios adquirem uma actualidade viva, A solugdo destes problemas epistemolégicos conduz a0 pro- blema Idgico da hermenéutica, Também este é sempre 0 mesmo em todo o lado. As mesmas operagées Idgicas (contrariamente 4 opinigéo de Wundt) existem nas ciencias do espitito e nas da natureza. Indugdo, andlise, construcéo, comparacdo. Trata-se agora de saber qual é a forma particular que revestem no campo de experiéncia das ciéncias do espirito. A indu- ‘80, cujos dados so 0s fenémenos.sensivels, realiza-se aqui, como em toda a parte, na base de um saber respeitante a um conjunto, Nas ciéncias fisico-quimicas, este é constitu‘do pelo conhecimento matematico das relagdes quantitativas, nas ciéncias biolégicas pela adaptagdo da vida aos seus fins e nas ciéncias do esprito, pela es- trutura da vida mental. A base em questo ndo 6 pois uma abstrac- so légica mas um conjunto real fornecido pela vida. No entanto, este conjunto ¢ individual e por conseguinte subjectivo, e é isso que determina a tarefa e a forma desta indugio. As operages légi- cas desta tm uma forma mais precisa gragas & natureza da expressio linguistica. Logo, esta teoria da indugio, especificase no dominio limitado da linguagem mediante a teoria da lingua, a gramética. Natureza especial da determinaggo particular do conjunto que é conhecido (pela gramética) das significagées indeterminadas (varié- veis) em limites determinados e nos elementos sintécticos formais. Esta induoSo completa-se com 0 método comparativo que determina © singular e torna mais objectiva a sua concep¢ao estudando as suas relagSes com outras singularidades, e conduz a compreensio do singular enquanto todo (conjunto) Elaboraco do conceito de forma interior. Mas apreender a realidade 6, necessariamente, descobrir a vida (ntima que se esconde 169 HERMENEUTICA por trés.da forma interior da obra particular e do conjunto destas obras. E diferente nos diversos ramos da criagio. No poeta ¢ a fa- culdade ‘criadora; no filésofo, o conjunto da concepego da vida e do mundo; nos homens de acco, a sua atitude pratica em relaclo 8 realidade; nos religiosos, etc. S, Paulo, Lutero). Daf @ conexfo da filologia com a forma suprema da intel géncia hist6rica. Interpretacao e exposicao historica s8o as duas faces. do aprofundamento entusiasta. Tarefa infinita. estudo dos processos comuns a todo 0 conhecimento e da sua ‘especificagso sob. as condigdes em que se desenrolam transinite os resultados & metodologia. O seu objecto é a génese do método e a sua especificacdo nos diversos dominios da hermenéutica. Um exem- plo: a interpretacdo dos poetas é uma tarefa particular. A regra que convida a uma melhor compreensio do autor em relagdo a possi lidade de compreensio por parte deste, permite resolver o problema que consiste em encontrar a ideia de uma criag8o pottica. NEo exis- te sob a forma de pensamento abstracto mas como conjunto incons- ciente que influi na organizagdo da obra e se revela na sua form: terior. O poeta no necessita de ter consciéncia dela e além disso nunca o seria completamente. E 0 comentador que a destaca, o que 6 talvez 0 supremo triunfo da hermenéutica. As regres que actual- mente presidem a procura da universalidade devem ser completadas pela exposi¢go dos métodos criadores dos intérpretes de génio que encontramos em diversos dom{nios, Porque aqui radica a forga es- timulante. De todos os métodos das ciéncias do espitito eis o que importa pér em prética. O conjunto é entéo um método da genial dade criadora. As regras abstractas jé encontradas por ela so sub- Jectivas. A derivago de regras que possuem valor universal dedu- ‘zem-se da teoria do conhecimento. Enfim, 0s métodos hermenéuticos, formam, conjuntamente com a critica literdria, filologia e histéria, um todo que conduz & explicacdo dos fenémenos singulares., Entre a interpretagao e a expl ‘cago néo existem limites perfeitos, mas apenas uma diferenciagio 170 ORIGENS DA HERMENEUTICA gradual. Porque a compreensto ¢ uma tarefa infinita. Mas nestas disciplinas a linha dé demarcago consiste no facto da psicologia @ da ciéncia dos sistemas serem aqui empregadas como sistemas abstractos, De acordo com o principio segundo o qual apreensio e valora- ‘¢80 esto indissoluvelmente ligados, a critica literdria acompanha, ne- cessariamente, © proceso hermenéutico; élhe imanente, Nao existe ‘compreensio desprovida de um total sentimento de valor, mas s6 através da comparagdo & que 0 valor adquire objectividade e univer- salidade. Isto também pressupde a determinacao das normas do gé- nero, por exemplo do drama. Este é 0 ponto de partida da critica filol6gica. Ela estabelece a finalidade geral da obra e exclui as partes que a contradizem. Cf. Lachmann, 0 Hordcio de Ribbeck, etc, Ou tira de outras obras uma norma e exclui as que no so conformes a esta: cf. a critica de Shakespeare e a de Platao. A critica literéria €, pois, a condigéo preliminar da critica filol6gica, pols € precisamente ‘0 choque do incompreensivel e a significancia que a suscitam, e a critica literdria ¢ auxiliada pela critica filolégica de que € 0 aspecto estético. Originalmente, a critica historica, € unicamente um ramo da critica, tal como a critica es- tética. A evolucdo posterior que alf conduz a histéria literéria, & estética, etc., conduz aqui & historiografia, etc, Como Bockh diz, e muito bem, a filologia é: «a cogniggo do que 6 produzido pelo esprrito humano» (Enzyklopadie, 10). Quando paradoxalmente, acrescenta: «isto é, do que ¢ conhecido», admite, indevidamente, a identidade do que é conhecido e do que 6 produ- zido. Na realidade todas as forgas espirituais colaboram na produ- go e quer num poema quer numa epfstola de S. Paulo, hé muito mais do que um mero conhecimento. AA filologia, na sua acepedo mais lata, & apenas 0 conjunto coe. rente das actividades que permitem a compreensio dos aspectos m1

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