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20 de setembro de 2020
Processo: 725/47.0FKSLB.B9.L1
Afonso Santos (autor)
v.
Flicker Pt (ré)
I. Questões em debate:
1) Devem os art. 7.º do Regulamento (UE) 2016/679 do Parlamento Europeu e do
Conselho, de 27 de abril de 2016, relativo à proteção das pessoas singulares no que diz
respeito ao tratamento de dados pessoais e à livre circulação desses dados e que revoga
a Diretiva 95/46/CE (“RGPD”) e o art. 8.º da Carta dos Direitos Fundamentais da
União Europeia (“Carta”) ser interpretados no sentido de que um titular de dados
pessoais pode dar um consentimento válido ao tratamento dos seus dados pessoais,
caso tal tratamento seja condição à prestação de um serviço digital?
2) Deve a Lei 78/2020, de 15 de abril, que transpôs a Diretiva (UE) 2019/770 do
Parlamento Europeu e do Conselho, de 20 de maio de 2019, sobre certos aspetos
relativos aos contratos de fornecimento de conteúdos e serviços digitais, e em
particular o art. 2.º desta última, em conjugação com o art. 38.º da Carta ser
interpretado no sentido de que um contrato de prestação de serviços ou conteúdos
digitais, baseado numa transmissão de dados contrária ao RGPD cai dentro do
escopo da Diretiva (UE) 2019/770?
3) Deve o art. 81.º do Código Civil, em conjugação com o art. 7.º do RGPD ser
interpretado no sentido em que o responsável pelo tratamento de dados pode exigir
quantias derivadas da frustração das suas expectativas, pelo facto do titular dos dados
pessoais ter retirado o seu consentimento?
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II. Factos
1. A Flicker.Inc é uma empresa multinacional sediada nos Estados Unidos da América
cuja atividade se desenvolve em torno da gestão de uma rede social, o Flicker. Esta rede
social é a mais utilizada em termos mundiais e, em Portugal, ocupa uma posição
hegemónica face às outras redes sociais disponíveis. Dado o papel proeminente no
mercado português, a Flicker.Inc possui uma subsidiária sua no território nacional, a
Flicker Pt.
3. Nesta política de privacidade, a Flicker afirma recolher dados com quatro finalidades:
(i) personalizar o feed da rede social; (ii) fornecer dados estatísticos aos seus parceiros
empresariais, nomeadamente anunciantes, dando-lhes a conhecer o nível de eficácia do
marketing feito; (iii) comunicar com os utilizadores, nomeadamente através de e-mail e
(iv) de modo a realizar e apoiar investigações e inovações sobre questões importantes
para o bem social, avanços tecnológicos, interesse público, saúde, etc. Nesse sentido,
são recolhidos dados relativos às hiperligações que o utilizador utiliza, bem como os
conteúdos criados e partilhados, quer seja publicamente, quer seja em mensagens
privadas, a sua geo-localização, as transações efetuadas a partir do marketing exposto na
rede social, bem como informações fornecidas por terceiros sobre o utilizador e os seus
contactos (e-mail, preponderantemente).
4. Assim, a rede social mostra-se lucrativa graças à sua grande eficácia em termos
publicitários. Sendo gratuito, o Flicker aglomera uma infindável quantidade de
utilizadores que se juntam com o propósito de se conectarem uns com os outros à
distância. Por isso, de um ponto de vista empresarial, mostra ser o fórum ideal para
publicitar produtos e serviços, algo feito pela Flicker, a troco de uma comissão. Assim,
o Flicker fornece às empresas espaços publicitários na sua rede e, de modo a tornar esta
atividade o mais eficaz possível, fornece os dados de geolocalização, gostos nas páginas,
hiperligações utilizadas e conteúdos partilhados pelos utilizadores às empresas em
causa.
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5. Assim sendo, nos últimos 5 anos o Flicker cresceu exponencialmente, tornando-se na
maior rede social a nível global. Se, por um lado, à medida que mais utilizadores se
registam na rede, mais serão aqueles que quererão também entrar - na medida em que
para falarem umas com as outras através do Flicker, todos os envolvidos precisam de se
registar na rede - por outro, também as empresas se mostram cada vez mais propensas a
investir na publicidade nestes meios, dado o número de utilizadores em causa.
6. Uma dessas pessoas é Afonso Santos, um jovem recém chegado à Faculdade de
psicologia. Neste seu admirável novo mundo, mostrou ser necessário estar ligado aos
seus colegas e professores, pelo que, a outubro de 2018, criou a sua conta no Flicker.
Nesse processo, deu o seu nome, idade, contacto telefónico e e-mail. Para além disso,
carregou no botão indicativo de que aceita a política de privacidade do Flicker após ter
lido atentamente todas as condições aí presentes, tendo concordado com as mesmas.
7. Durante os seus primeiros anos de Licenciatura, o Afonso constatou que tinha um
certa gosto e interesse por certas condições do foro psicológico, principalmente o
Transtorno Dissociativo de identidade, pelo que dedicou uma parte substancial do seu
terceiro ano do curso a estudar esse tema. Em particular, interessou-lhe enormemente
conhecer casos reais de pessoas que vivem diariamente com essa condição, os mais
recentes avanços científicos no sentido de mitigar os seus efeitos - ex. fármacos - e
participando em palestras do setor. Nesse sentido, aproveitou o Flicker para potenciar
o seu estudo. Assim, começou a seguir páginas comunitárias e grupos fechados de
debate sobre este transtorno, falando diretamente com psicólogos ou mesmo pacientes
de modo a obter o seu testemunho. Também utilizou a rede social e os anúncios que
por vezes eram expostos para ver os medicamentos que eram vendidos ao público para
mitigar os efeitos da doença. Para além disso, tomou como o seu novo hábito matinal
dos sábados fazer voluntariado no Centro Nacional do Estudo do Transtorno
Dissociativo de Identidade, onde teve oportunidade de interagir com os pacientes que
frequentam este Centro. Para além disso, dado que o seu pai, Fernando Santos, é
farmacêutico, era comum visitá-lo na sua farmácia para verificar os medicamentos que
ia recebendo relativos a esta doença.
8. Embora estas suas novas atividades lhe tenham permitido aprender bastante sobre o
tema, passado pouco tempo começaram a trazer-lhe problemas a nível pessoal. Ora,
passados uns dias de começar estes seus novos projetos, passaram a surgir com uma
frequência exagerada anúncios de medicamentos para tratar o Transtorno Dissociativo
de Personalidade, não só no Flicker, como fora dele. Sempre que Afonso usava o
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Moodle, o seu motor de busca na internet predileto, os anúncios divulgados eram 90%
sobre esse transtorno, quer fossem fármacos, contactos de centros privados de
tratamento, etc. Também no seu motor de busca de videos favorito, o YouToo, os
anúncios expostos durante os vídeos que via eram sempre relacionados com o
transtorno e sobre formas de o enfrentar. Por último, começou ele próprio a receber
chamadas diárias de centros de tratamento que lhe perguntavam se pretendia obter
cuidados médicos e de modo a obter ajuda sobre como lidar com a sua condição.
10. Completamente desfeito pelo sucedido, Afonso tentou descobrir a origem desta
informação, tendo contactado o apoio ao consumidor do Flicker. Aqui, disseram-lhe
que os dados relativos aos grupos a que pertencia na rede social, bem como as partilhas
feitas, mensagens enviadas e hiperligações utilizadas eram enviadas às empresas
parceiras do Flicker, que depois categorizariam os dados obtidos da forma que mais se
adequaria com os seus interesses, nomeadamente para efeitos da publicidade feita, quer
seja no Flicker ou em qualquer outra entidade que providencie oportunidades de
marketing direto. Não só esses dados, mas também a localização de Afonso seria
fornecida, de acordo com a política de privacidade por este lida e aceite aquando do
registo. Nestes termos, o Flicker nada mais fez do que dar cumprimento ao que foi
celebrado entre as partes, tendo fornecido os dados recolhidos às empresas que
publicam na rede social, de modo a providenciar aos utilizadores da rede os anúncios
que mais se adequam aos seus interesses.
11. Chocado pela situação, Afonso afirmou que nunca tinha dado o seu consentimento a
uma divulgação total dos seus dados, que, como sucedeu, pode ter efeitos gravosos para
qualquer utilizador da rede social, pelo que pede a destruição total dos seus dados
armazenados e transmitidos a terceiros pela Flicker. Por sua vez, a empresa afirma que o
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consentimento dado pelo Afonso, no momento do registo cumpriu todos os requisitos
impostos pelo RGPD, em particular o do art. 7.º, tendo sido livre, específico,
informado e explícito, pelo que, nesta fase, o que Afonso poderá fazer será apenas
remover o seu consentimento, sem que tal afete a licitude do tratamento feito até
então. Ou seja, de acordo com a empresa, não poderá Afonso pedir a eliminação
retroativa dos dados, mas apenas para o futuro, caso retire o seu consentimento,
validamente fornecido no momento da criação da sua conta. Deixa contudo a ressalva
que, caso o pretenda fazer, terá de ressarcir a Flicker pelas expectativas frustradas, ao
abrigo do art. 81.º do Código Civil.
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vigente permite que os dados pessoais possam ser vistos como uma contraprestação
similar a dinheiro, num contexto digital.
14. Em segundo lugar, a relação entre o Direito do Consumo e a Proteção de Dados é
patente nesta situação. Contudo, o Tribunal tem dúvidas sobre qual a melhor forma de
aplicar ambos os ramos a esta questão. Se considera que questões relacionadas com a
validade do consentimento devem ser deixadas ao RGPD, tem dúvidas sobre os efeitos
que uma possível invalidade do tratamento terá no contrato (ou aparência de contrato)
que daí surge. Por isso, querem ouvir as partes também sobre esta questão, de modo a
clarificar a aplicação do RGPD e da Lei 78/2020 a esta situação.
15. Por último, pretendem que as partes os clarifiquem sobre a conjugação do art. 81.º do
Código Civil com o RGPD, mormente com a forma como a remoção de
consentimento é enquadrada. Ora, de que forma se pode exigir que o titular de dados
tenha de ressarcir o responsável pelo tratamento se o RGPD enquadra a remoção do
consentimento como algo que deverá ser livre e sem entraves?
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