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O destino de Lisístrata: uma adaptação para o cinema da comédia de Aristófanes

Autor(es): Duarte, Adriane da Silva


Publicado por: Annablume Clássica
URL URI:http://hdl.handle.net/10316.2/24401
persistente:
DOI: DOI:http://dx.doi.org/10.14195/1984-249X_7_12

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digitalis.uc.pt
7
jul.2011
issn 2179-4960

R E V I S T A

C L Á S S I C A

ARCHAI JOURNAL: ON THE ORIGINS OF WESTERN THOUGHT


desígnio 7 jul.2011

O DESTINO DE LISÍSTRATA. UMA


ADAPTAÇÃO PARA O CINEMA DA
COMÉDIA DE ARISTÓFANES
Adriane da Silva Duarte*

DUARTE, A. S. (2011). “O destino de Lisístrata. Uma


adaptação para o cinema da comédia de Aristófanes”. Archai
n. 7, jul-dez 2011, pp. 123-129.

RESUMO: Nesse artigo faz-se uma análise do episódio


* Professora associada da
Universidade de São Paulo. E-
E ntre as comédias de Aristófanes,
“Lisístrata”, dirigido por Christian-Jaque para o filme Des- mail: asduarte@usp.br Lisístrata é a que melhor representa para os
tino de Mulher (Destinées, França, 1954), uma adaptação leitores atuais os percalços do século que passou.
para o cinema da comédia homônima composta por
Seu enredo conjuga uma greve sexual deflagrada
Aristófanes em 411 a. C. Estudou-se o episódio em seu
pelas mulheres, discursos antibelicistas, invasão
contexto, atentando para os pressupostos que determina-
ram a adaptação da peça grega, bem como a sua recepção no de prédios públicos como forma de protesto,
século XX. Especulou-se sobre outras possibilidades de trans- enfim, estratégias reconhecíveis aos que viram
por a comédia grega para o cinema, exemplificando com a no transcorrer de cem anos dois conflitos de
chanchada Carnaval Atlândida (Brasil, 1952). proporções mundiais, inúmeros outros de
ALAVRAS-CHA
PALA VRAS-CHAVE:
VRAS-CHA VE: Lisístrata; comédia grega antiga;
expressão regional, a revolução sexual, a ascensão
Aristófanes; Destino de Mulher; Christian-Jaque; cinema;
de movimentos operários, as conquistas dos
adaptação da obra literária.
direitos das mulheres. Na peça de Aristófanes,
LY S I S T R A
ATT A ’ S FFA
AT E . A F I L M A D
DAA P TTA ON OF
A T IIO as mulheres gregas, sob a liderança de Lisístrata,
ARI
ARIST OPHANES’ COMED
STOPHANES’
ST COMEDY Y. recorrem à abstinência sexual para forçar seus
maridos a pôr fim a vinte anos de guerra entre
ABSTRACT: This paper compares “Lysistrata”, the
Atenas e Esparta. Como se isso não bastasse,
episode directed by Christian-Jaque to the movie Destinées
ocupam a Acrópole e seus edifícios de modo a
(France, 1954), to its aristophanic model, the comedy
Lysistrata (second half of the fifth century b. C.). Besides impedir o acesso ao tesouro público e,
discussing the contemporary significance of Greek comedy, conseqüentemente, o financiamento do conflito.
recreated in a completely different cultural and historical Apesar da vacilação feminina, os homens acabam
context (the after Second World War years), it investigates cedendo, premidos por necessidades fisiológicas,
the specific reasons for this particular choice and the
e contratando as tréguas entre as cidades gregas,
resulting changes. Finally, Christian-Jaque’s “Lysistrata”
o que também assegura a volta da paz doméstica.
is considered in relation to Carnaval Atlântida (Brasil,
1952), another contemporary attempt of transposing Greek Sendo a comédia grega antiga um gênero
comedies’ issues to motion pictures universe. profundamente ancorado em seu contexto
K E Y - W O R D S : Lysistrata; Ancient Greek Comedy; imediato, a ponto de ter a sua recepção vinculada
Aristophanes; Destinées; Christian-Jaque; cinema; literary às notas explicativas, qualquer semelhança com
adaptation.

123
1
1. Em se tratando de
a realidade contemporânea deve soar suspeita . 1972); Lysistrata, de Yannis Negrepontis (Grécia,
Aristófanes, nem mesmo a
Diante da constatação da opressão das mulheres 1987). Mas a história de Lisístrata na tela grande performance está livre das
notas. Em As Nuvens e/ou um
gregas, e muito especialmente das atenienses, e remonta ao cinema mudo. Segundo Pantelis
deu$
u$ chamado dinheiro,
de que a guerra era antes regra do que exceção Michelakis, inúmeras peças gregas foram filmadas adaptação recente de Hugo
Possolo das comédias Nuvens e
no mundo antigo - sua importância para a entre 1908 e 1939, figurando entre elas uma Pluto, de Aristófanes, para o
economia a tornava moralmente aceitável -, versão dessa comédia (e, no gênero, somente grupo Parlapatões, criou-se o
5 personagem Nota de Roda-pé.
percebe-se o quanto a comédia de Aristófanes se dela) . Um personagem interrompia sua
inscreve no âmbito da fantasia. Para o público Infelizmente o acesso a esses filmes é muito fala e introduzia ao palco a Nota,
um ator acocorado sobre um
masculino que aplaudiu Lisístrata em 411 a. C. difícil no Brasil, pois, por um lado, em geral não skate (talvez uma versão
moderna do enciclema) que
um movimento organizado de mulheres contra a se trata de obras primas que justifiquem sua
tratava de esclarecer as
guerra era tão improvável quanto a viagem de exibição em mostras e cineclubes e, por outro, o passagens difíceis para o público.
Terminada a explicação, a Nota
Dioniso ao reino dos mortos para resgatar acervo de nossas cinematecas é bastante lacunar.
era puxada de volta aos
Eurípides, em Rãs, ou o golpe de estado dos Resta, portanto, contar com os azares da bastidores.

pássaros sobre os deuses olímpios, em Aves, programação de filmes na televisão. Foi um acaso 2. (CALVINO, 1993, p.11).
comédias aristofânicas consideradas fantásticas. assim que propiciou o contato com uma outra
3. Significativamente a peça
Mesmo que justamente aquilo que faz adaptação de Lisístrata, parte do filme Destino de figura entre os dez títulos
6
Lisístrata tão atraente e significativa para as Mulher (Destinées, França, 1954) . sugeridos por Victor Hanson e
John Heath no seu programa
últimas gerações de leitores esteja em contradição Destino de Mulher reúne três episódios militante para o fomento da
leitura dos clássicos gregos
com os princípios que ditaram sua composição, confiados a diferentes diretores. “Lisístrata”,
(HANSON e HEATH, 2001 p. 264).
não desautoriza de modo algum a leitura que filmada por Christian-Jaque e estrelada por sua
4. Devo esses dados à pesquisa
hoje se faz dela. Uma das características dos esposa, Martine Carol, fecha essa trilogia
ainda inédita de Zélia de Almeida
clássicos é a sua polissemia, ou seja, a capacidade dedicada a mostrar a situação da mulher em Cardoso sobre a presença do
teatro greco-romano nos palcos
de assumir significados diversos de acordo com tempo de guerra. Os episódios que a antecedem, paulistanos de 1990 a 2000.
as expectativas de quem o lê, porque, como diz “Elisabeth” e “Jeanne”, ficaram ao encargo de
5. Cf. Early films adaptations of
Calvino, “um clássico é um livro que nunca Marcello Pagliero e de Jean Delannoy, Greek tragedy: cinema, theatre,
2
terminou de dizer aquilo que tinha para dizer” . respectivamente. Os três diretores eram bastante culture, in http://
www.apaclassics.org/
A inesgotabilidade do clássico é o que permite atuantes na França nas décadas de 40 a 60. AnnualMeeting/04mtg/abstracts.
Para uma lista das adaptações
que ele perdure guardando consigo o frescor da Embora tenha empregado o termo “trilogia”
recentes de Lisístrata com links,
novidade. E o encanto de Lisístrata parece estar para me referir ao filme, uso a palavra não no http://www. fordham.edu/
3 halsall/ancient/
mesmo longe de se esgotar . Só para dar uma seu sentido mais comum, o de três obras
asbookmovies.htlm.
idéia de sua popularidade, somente três peças seqüenciadas abordando uma mesma história (no
6. Agradeço a Profª Dr.ª Maria
de Aristófanes foram encenadas na cidade de São cinema, a trilogia do Poderoso Chefão, por Cecília de Miranda Nogueira
Paulo durante a última década do século que exemplo), mas no da obra única dividida em três Coelho a menção ao filme e o
empréstimo de uma cópia dele,
passou: Paz, Assembléia de Mulheres e Lisístrata, partes. Tanto a forma quanto a posição ocupada ainda em VHS!
mas enquanto as duas primeiras tiveram apenas por Lisístrata em Destino de Mulher são
7. A cada festival dramático
uma montagem cada, a última foi encenada sete interessantes, pois remetem, de forma livre, à grego os tragediógrafos
4 7
apresentavam três tragédias e
vezes por grupos distintos . trilogia dramática e também à ordem adotada
um drama satírico. Por vezes
Dito isso, não é de estranhar que Lisístrata nos festivais antigos, cujo dia se encerrava com essas tragédias desenvolviam um
mesmo tema, como é o caso da
predomine de forma quase que absoluta entre as a apresentação uma comédia, após a exibição de
Oresteia, trilogia de Ésquilo que
adaptações de Aristófanes para o cinema. Uma três tragédias. Em razão disso, talvez, os trata da saga de Orestes e é
composta pelas peças
busca na internet revela cinco filmes que trazem espectadores deixassem o teatro menos sombrios Agamemnon, Coéforas e
a heroína aristofânica entre 1950 e 1990: The e mais leves do que se o fizessem imediatamente Eumênides.

second greatest sex, de George Marshall (USA, ao final das tragédias. No filme, essa última
1955); Escuela de seductoras (Espanha, 1962); The intenção é explícita. O mestre de cerimônias, um
Girls, de Mai Zeterling (Suécia, 1968); Lysistrata, vulto masculino que representa o destino, ao
de Georgos Zervoulakos (USA, em grego moderno, introduzir a adaptação da comédia de Aristófanes

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a denomina “divertida”, por oposição aos arbítrio, mas apenas os observa, registra e avalia,
episódios anteriores, que ele chama de assumindo para si o mesmo papel crítico do
“melancólico” e “sublime”, respectivamente. Assim público.
a “comédia” sucede dois episódios cuja atmosfera Destino de Mulher é sobre o destino de
é trágica, visando a desanuviar o ânimo dos três mulheres submetidas a um mesmo problema,
espectadores. a guerra. Nos primeiros episódios são
Esse não foi o único fator para o apresentados temas, que serão retomados de
estabelecimento da ordem que os episódios forma mais leve no último, em especial o da
ocupam no filme. Eles estão dispostos de acordo incompatibilidade entre Eros (amor) e Polemos
com uma cronologia inversa, ou seja, do passado (guerra). Em “Elisabeth”, a viúva de um soldado
mais recente para o mais remoto. A primeira americano convocado a lutar na Itália viaja ao
história, “Elisabeth”, que é contemporânea à pequeno vilarejo onde ele foi sepultado para levar
realização do filme, se passa logo após a Segunda de volta seu corpo aos Estados Unidos. Ela é
Grande Guerra e, portanto, está mais próxima da recebida na casa em que o marido se refugiara e
vivência dos espectadores da época. Note-se que descobre que ele teve um filho com a italiana
o filme foi realizado apenas nove anos após o que o acolheu. A revolta cede quando ela se dá
armistício, quando falar da Guerra, especialmente conta que a criança é antes filha da guerra do
na Europa, devia ser penoso por estarem suas que do amor, sendo fruto de um único encontro
lembranças e conseqüências ainda bem vivas. O amoroso - o soldado é morto pelo inimigo no dia
segundo segmento, “Jeanne”, situa-se na Idade seguinte, ao tentar fugir. A paisagem é dominada
Média e mostra um momento da vida de Joana pela vista do cemitério, que não nos deixa
D’Arc, a donzela guerreira de aura quase mítica. esquecer as vidas perdidas. A conversa entre as
Por fim, “Lisístrata”, cuja ação se localiza na mulheres lembra os casamentos desfeitos, os filhos
Grécia clássica e é de teor puramente fantástico, que não nasceram e os que, tendo vingado,
é a que está mais afastada do presente, cresceram sem pai. Por fim, Elisabeth decide
propiciando, portanto, um maior distanciamento deixar tudo como está e, resignada, parte para
da parte do público. Conscientemente, buscou-se os Estados Unidos.
esse envolvimento emocional decrescente não só Em “Jeanne”, Eros igualmente está
na adoção de uma linha do tempo às avessas, excluído, uma vez que sua protagonista ao mesmo
mas também no grau de realismo de cada episódio, tempo é a personificação da guerra e a virgem
variando do muito ao nada comprometido com a de Orléans. Essa conjunção de virgindade e
representação realista da guerra. Dessa maneira, espírito guerreiro de Joana D’Arc a aproxima da
“Elisabeth” pode ser considerado o segmento deusa grega Palas Atena, que eclode da cabeça
histórico, “Jeanne”, o mítico e “Lisístrata”, o de Zeus, seu pai, já em armas, e que nunca se
ficcional. une a mortal ou a deus algum. É como se uma
Isso mostra que, apesar de serem fruto da dimensão anulasse a outra - a guerreira, a
8
1 Essa incompatibilidade só vale concepção de distintos diretores, cada segmento erótica . No filme, a toda hora essa premissa
para as mulheres, pois Ares, o
ilumina o outro, não devendo ser analisado tem que ser recordada. As prostitutas zombam
deus que representa a
carnificina das batalhas, une-se isoladamente, pois de fato os três formam um da castidade de Joana; ela mesma, num momento
a Afrodite, a deusa que
representa o amor erótico para
conjunto. Esse todo é articulado pela figura do de insatisfação, declara que vai abandonar a luta,
os gregos. Destino, que apresenta cada história. Nisso há se casar e ter filhos, já que “ninguém precisa
um propósito claro de controlar a recepção, pois mais da virgem”. Barreta, um dos generais que
esse personagem é também um duplo do aluga seus serviços ao rei de França, interrompe
espectador. Logo no início ele adverte que, ao um encontro amoroso com a visita de Joana
contrário do que julga o senso-comum, o Destino declarando que não se pode passar a vida fazendo
não rege nossos atos, que são fruto do livre amor. Em primeiro plano nesse episódio está não

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a morte dos maridos, como no anterior, mas a buscam consolo junto às cortesãs, denominadas,
dos filhos. A criança que morre, de fome ou não obstante, como “um derivativo desprezível”.
doença, em decorrência da guerra, ilustra a Então é preciso que também elas adiram ao
aniquilação que ela traz consigo e que não atinge movimento pacifista, se não a greve estaria
apenas os que estão na frente de batalha. O comprometida, pois o bom-burguês vai ao bordel
desespero materno é contraposto à falta de por mais que em ambiente familiar lhe torça o
sensibilidade dos generais, mercenários que têm nariz. Na peça grega, a greve está restrita às
na guerra um meio de vida. Joana, ao contrário, esposas não porque os homens não pudessem
apesar de ver a guerra como missão divina, não encontrar outras formas de satisfazer o desejo
é insensível à dor e intercede junto a Deus para sexual, mas porque somente as mulheres legítimas
que a criança reviva, ainda que tão somente para estavam habilitadas a gerar filhos cidadãos. O
ser batizada. O milagre de Joana, ela mesma enfoque é, portanto, antes público do que
uma encarnação dessa antinomia eros/polemos, privado. Uma cidade sem cidadãos, mesmo
é permitir à criança morrer duas vezes. habitada por centenas de bastardos, não é mais
Em “Lisístrata” essa questão será retomada, digna desse nome.
só que dessa vez eros será apresentado como Da mesma, forma a cena é deslocada da
uma potência vital, capaz de confrontar e subjugar Acrópole, o centro religioso da cidade, para a
polemos, o agente letal. Lisístrata incorpora eros Assembléia e o interior das casas. No primeiro
e o general Cálias, seu marido, polemos. Quem caso, faz-se uma sátira da forma como os políticos
conhece a comédia de Aristófanes, já encontra profissionais manipulam o povo e desprezam os
nesse ponto um motivo de estranhamento. Em que discordam deles. Essas cenas parecem
sua peça não há menção ao marido da heroína, inspiradas em uma outra comédia de Aristófanes,
embora seja de se supor que ele exista, uma vez Acarnenses, em que o camponês Diceópolis, único
que a greve é conduzida apenas pelas esposas na Assembléia a defender a paz, é rechaçado
dos cidadãos. Esse silêncio sobre o cônjuge torna violentamente pela maioria. No filme, o cidadão
Lisístrata imune às fraquezas que atingem as suas que ousa contestar as opiniões dos líderes políticos
companheiras, propensas a furar a greve, e a é impedido de falar pela multidão. Embora a
envolve numa aura de castidade, que reforça sua situação seja familiar aos leitores de Aristófanes,
capacidade de liderança. a crítica à Assembléia contém um elemento
Mas as diferenças entre o roteiro e a comédia reacionário, na medida em que desqualifica a
não param nisso e são vários os momentos em opinião pública. O segundo caso é ainda mais
que nos perguntamos se de fato se estamos diante esclarecedor. A conseqüência de tornar os
da mesma Lisístrata. A começar da concepção da aposentos domésticos o cenário para sedução e
personagem principal, descrita pelo Destino como suplício masculino é fazer privada uma questão
uma mulher “tão frívola quanto sábia”, que sabe pública. No texto de Aristófanes as mulheres
como ninguém usar do “capricho”, arma secreta ocupam a Acrópole e o Partenon, locais de alta
feminina, para obter o que deseja. Essa visão da simbologia para a cidade. Substitui-los na trama
mulher como um ser voluntarioso e superficial, pelas casas e pela Assembléia implica na exclusão
um bibelô, é tipicamente burguesa, sendo essa da dimensão religiosa, que embasava a revolta
ideologia predominante na adaptação da peça. Do feminina. Num determinado momento da peça, o
original, manteve-se tão somente o argumento: coro de mulheres que apóia a heroína lembra o
as mulheres gregas, por meio de uma greve sexual, papel que as mulheres desempenham nos cultos
9
conseguem convencer os homens a pôr fim à cívicos desde a mais tenra infância (638 ss) : 9. A tradução é de minha
autoria, cf. Aristófanes. Duas
guerra. comédias: Lisístrata e As
A moral burguesa dita o tom do segmento. Nós, ó cidadãos, um discurso tesmoforiantes (ARISTÓFANES,
2005).
Os homens, em resposta à ação das mulheres, útil à cidade estamos iniciando.

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E é natural! Ela me educou esplendidamente e Lisístrata essa estratégia é desfigurar seu plano
me fez requintada: de ação. No caso do roteiro talvez se trate de um
logo aos sete anos fui arréfora; caso de contaminação voluntária entre as
além disso, com dez anos, fui moleira para a comédias aristofânicas, mas que não ajuda a
fundadora; compreender a personagem.
despindo o manto cor de açafrão, fui ursa nas Esteticamente a adaptação cinematográfica
Braurônias; de Lisístrata está marcada de um lado pela
e uma vez fui canéfora, uma linda menina precariedade, de outro pelo exagero. O cenário,
segurando os figurinos, os adereços são mal acabados,
uma fieira de figos secos. lembrando as condições de um teatro amador. Os
elmos parecem feitos de papelão e os cenários
Desde os sete anos, elas participam de uma de compensado, de tal forma que é uma benção
série de rituais de iniciação à puberdade com o que o filme não seja colorido. Por outro lado há
intuito de preparar-se para o casamento e a um excesso de signos que buscam evocar a Grécia:
maternidade. Virgindade e boa origem eram na decoração de interiores, o friso grego
requisitos para a escolha das meninas que predomina, até mesmo nas cortinas (!) e os vasos
representariam todas as demais como arréforas, se multiplicam; na arquitetura, os mármores e
moleiras, canéforas, rara ocasião em que elas as colunas. As falas dos personagens estão cheias
ocupam o espaço público, já que, depois de de alusões mitológicas e históricas. Todos os
casadas, viverão como reclusas. Esses ofícios deuses têm que ser invocados nos juramentos -
rituais estão estreitamente ligados à Acrópole, por vezes até os romanos! Excessiva também é a
sendo que a maior parte deles reflete a celebração interpretação dos atores, que se esmeram nas
de Palas Atena, a deusa que domina a colina caretas, nos biquinhos, no olhar esbugalhado. A
sagrada e a cidade de Atenas, da qual é trama propicia a exposição das atrizes em seus
fundadora (v. 643). Assim sendo, a começar da ângulos mais favoráveis e a exploração de um
própria deusa e de suas sacerdotisas, o sexo humor picante.
10
10. A sacerdotisa de Atena feminino sempre governou a cidade alta , o que Como esses traços estão ausentes dos
Polias, quando da apresentação
de Lisístrata, chamava-se
dá às mulheres o direito de estar lá. O serviço episódios anteriores, que se querem mais
Lisímaca. A coincidência entre os religioso também tem expressão cívica e molda a realistas, é forçoso admitir que são propositais.
nomes, cujo significado é o
mesmo – Dissolvetropa (ou
identidade social da mulher como ateniense. De fato a estética de “Lisístrata” é a da
batalhas), é sugestiva e muitos Resgatar esse passado é afirmar o direito de voz chanchada, em que pese a falta dos números
comentadores aceitam que
Aristófanes tinha em mente a no debate público, reforçado ainda mais pela musicais característicos do gênero que conhece
sacerdotisa quando nomeou a ausência dos maridos. Há um vazio de poder que seu apogeu justamente no período em que se
protagonista de sua comédia.
lhes dá a oportunidade de agir, já que ao realiza o filme.
afastamento dos jovens, em campanha, soma-se O termo chanchada carrega forte carga
a incapacidade dos velhos na gestão dos bens pejorativa, designando normalmente uma comédia
públicos. musical de baixa qualidade artística e forte apelo
Assim, a Lisístrata do filme que ocupa a popular. Sem sombra de dúvida, constitui um
Assembléia para reivindicar a paz se distancia cinema de entretenimento, que se insere
muito da heroína da comédia, que contrapõe a abertamente na indústria cultural. Algumas das
Acrópole e suas práticas à política rasteira que censuras que recaem sobre o gênero, também
se faz nas cercanias da ágora ateniense. É são feitas à comédia grega antiga: enredos
verdade que em Assembléia de mulheres, outra frouxos, piadas de mau-gosto, apelo ao sensual.
peça de Aristófanes, as mulheres, disfarçadas de Guardadas as (grandes) diferenças que as
homens, votam a passagem do poder das mãos separam, não há como negar que, como a comédia
masculinas para as femininas. Mas atribuir a aristofânica, a chanchada seja um gênero

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carnavalesco, no sem sentido mais amplo. Cecílio B. de Milho cedem diante dos encantos
Essa relação com o carnaval no Brasil, onde da cultura popular. O professor apaixona-se por
o gênero alcançou enorme sucesso, não é apenas uma atriz que lhe ensina a dançar o mambo e o
pontual como revelam os títulos de algumas das produtor cede aos apelos da filha e do futuro
chanchadas mais representativas como Carnaval genro (Eliana e Cyll Farney), empenhados em rodar
no Fogo (1949), Carnaval Atlântida (1952), Carnaval um musical.
em Caxias (1953) e Carnaval em Marte (1954). A O ponto alto do filme é quando Xenofantes,
chanchada promove um revés em que os ainda um compenetrado acadêmico, contracena
malandros tornam-se heróis, a autoridade é com o falso conde Verdura (José Lewgoy) numa
rebaixada, a paródia dos gêneros sérios é regular cena da Ilíada. Ao conde cabe o papel de Páris e
- não só o cinema americano é parodiado, também ao professor o de Helena de Tróia. O leitor de
o são os clássicos da literatura, como, por exemplo, Aristófanes vai imediatamente se lembrar de uma
Romeu e Julieta de Shakespeare em Carnaval no cena de As tesmoforiantes, comédia produzida no
fogo e um Candango na Belecap (1961). mesmo ano que Lisístrata. Nela, Mnesíloco,
Essa digressão é para mostrar que, na travestido, recita as falas de Helena compostas
minha opinião, o fato de Christian-Jaque ter por seu parente, o tragediógrafo Eurípides, que
optado pela estética da chanchada poderia ter atua como Menelau.
constituído o seu grande trunfo, pois o gênero Não só o travestismo aproxima Carnaval
era no momento de realização do filme o que Atlântida d’ As tesmoforiantes. A chanchada, gênero
melhor poderia traduzir as características da cinematográfico de menor prestígio, parodia os
comédia de Aristófanes. Se o filme não alcança solenes filmes épicos, cujo orçamento milionário
os resultados esperados, traindo o espírito da contrasta com o seu. Não só os imita, mas torce-
peça grega em que se inspira, os motivos são, lhes o nariz, mostrando que qualquer tentativa
sobretudo, de ordem ideológica. de fazer um épico nas condições de produção de
Carnaval Atlântida, chanchada de José Carlos uma chanchada resultaria ridículo. Assim, o
Burle produzida no Brasil quase que ao mesmo musical que Cecílio B. de Milho sonha produzir,
tempo em que se rodava Destino de mulher na se parece com a “Lisístrata” de Christian-Jaque,
Europa, ilustra bem meu ponto de vista. Como em que cenários e figurinos são de uma
nota Sérgio Augusto, “nenhuma outra fita do precariedade constrangedora e os atores,
gênero brincou tão explicitamente com as canastrões. A única saída é não levar a sério
labaredas da carnavalização, provocando a mais nem a si mesmo nem seu objeto, mesmo que
expressiva vitória simbólica do popular sobre o este seja a venerada Grécia Antiga. Em As
culto, da farsa sobre o épico, do esculacho sobre tesmoforiantes, a tragédia é posta em cena através
o solene e [...] de Dioniso sobre Apolo, consignada da paródia da obra de Eurípides, ele mesmo
11
numa chanchada” . Nesse filme, a cultura grega, personagem da peça. Levado ao palco cômico, o 11. Augusto (AUGUSTO, 1989, p.
122). Devo a esse estudo outros
sinônimo de erudição pedante, rende-se à alegria drama trágico perde a pose e é pretexto para tantos dados sobre a chanchada
despretensiosa do samba. A paródia está no boas gargalhadas. O tragediógrafo, na pele de nacional.

centro da trama, visando aos épicos uma cafetina, deve recorrer a um número musical
hollywoodianos. O produtor de cinema Cecílio B. estrelado por uma beldade desnuda para distrair
de Milho (Renato Restier), dono da Acrópole o guarda e libertar seu parente da prisão,
Filmes, contrata o professor cultura grega garantindo assim um final feliz para a trama.
Xenofontes (Oscarito) como consultor de uma Assim como o professor Xenofantes, Eurípides
adaptação da Ilíada. Os empregados do estúdio termina por incorporar o espírito da comédia.
(Grande Otelo, Colé), no entanto, sonham realizar Em que pese a menção explícita, há mais
uma comédia carnavalesca. Aos poucos a de Aristófanes em Carnaval Atlântida do que na
solenidade de Xenofantes e a determinação de “Lisístrata” de Destino de Mulher, pois uma

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preserva o espírito carnavalesco da comédia grega em canal a cabo da TV. Globonet, em 2003.

que a outra procura cercear. BURLE, C. (1952). Carnaval Atlântida. Brasil. Cópia em
VHS, a partir de exibição em canal a cabo da TV. Globonet,
em 2003.
Recebido em junho de 2011,
aprovado em junho de 2011.
Referências secundárias

REFERÊNCIAS BIBLOGRÁFICAS E AUGUSTO, S. (1989). Esse mundo é um pandeiro. A


CINEMA
CINEMATTOGRÁFICAS
OGRÁFICAS chanchada de Getúlio a JK. São Paulo: Cia das Letras.
CALVINO, Í. (1993). Por que ler os clássicos. São Paulo:
Companhia das Letras.
Referências primárias
HANSON, V., HEATH, J. (2001). Who killed Homer? The
demise of classical education and the recovery of Greek
ARISTÓFANES (2005). Duas comédias: Lisístrata e As
wisdom. San Francisco: Encounter Books.
tesmoforiantes. Tradução, apresentação e notas por A.
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