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O jornalismo bipolar e os gays

Metade dos leitores já teve a chance de ver os desenhos acima. A Revista da


Folha, cuja circulação se limita a parte do país, publicou-os no domingo
retrasado. As ilustrações emolduraram o relato sobre levantamento do
Datafolha que indagou aos paulistanos sua opinião sobre gays exercerem 11
profissões ou funções.

Os entrevistados se revelaram mais tolerantes com a sexualidade de cada


um do que o magistrado segundo o qual futebol é coisa de macho. Em suas
palavras, "jogo viril, varonil, não homossexual".

No mesmo dia, o jornal veiculou na seção "Tendências/ Debates" um artigo


do ministro Marco Aurélio Mello, do Supremo Tribunal Federal.

Intitulado "A igualdade é colorida", abria com o que a terminologia


militarizada do antigo esporte bretão denominaria de petardo. "São 18
milhões de cidadãos considerados de segunda categoria: pagam impostos,
votam, sujeitam-se a normas legais, mas, ainda assim, são vítimas de
preconceitos, discriminações, insultos e chacotas."

A mesma edição da Folha robusteceu a assertiva páginas adiante, na


revista. Pois o que são, se não preconceito e chacota, as imagens sobre os
homossexuais investidos nos cargos elencados na pesquisa?

O presidente da República, meio traseiro de fora, equilibra-se sobre um


salto plataforma e colore a cabeça à Pequena Notável. O ministro delineia
as pernocas com meia-calça arrastão. O senador ou deputado federal infla
peitões exuberantes e siliconados.

O militar combina bigodão, sunguete e jaqueta com barriguinha de fora. O


professor, o padre católico, o pastor evangélico e o juiz ou promotor de
Justiça desmunhecam com afetação capaz de fraturar ossos do pulso. O
jogador de futebol, pelado, se senta na bola.

Só faltou um chicotinho.

Não existem gays assim? Existem. Mas as caricaturas não sintetizam os


homens e as mulheres que optaram pelo amor entre iguais. Os estereótipos
reproduzem o olhar mais rasteiro sobre a diferença. Lenga-lenga
politicamente correta? Quem dera fosse. Essa amarra do pensamento em
nome do alegado bom-tom é uma patrulha que sufoca os espíritos e tolhe as
ações.
Por outro lado, desqualificar a recusa à homofobia rebaixando-a ao mal do
politicamente correto muitas vezes não passa de escudo de ocasião para
justificar a lança discriminatória. O deboche dos homossexuais é velhaco. A
novidade é o não a ele.

Intriga-me nas ilustrações seu contraste com um diário cuja tradição é


dedicar espaço noticioso e opinativo a todas as preferências sexuais. A
própria Revista da Folha acolhe a coluna "GLS", iniciais de gays, lésbicas e
simpatizantes.

Ao seu lado, na página sob a rubrica "Plural", um colunista escreveu em


maio, tratando da carta de mulher seduzida pelo coito anal com o marido:
"A sensação de entrega, para quem gosta [dessa relação], é inigualável, e
será fonte de prazer para vocês dois".

Leitores se insurgem? Nesse caso, dois. Mas o projeto editorial da Folha


contempla a diversidade. Faz bem.

A motivação para o trabalho do Datafolha foi o despacho de um juiz sobre


queixa-crime do futebolista Richarlyson contra um cartola do Palmeiras
que insinuou a homossexualidade do atleta são-paulino.

Além das lições a respeito de virilidade, Manoel Maximiano Junqueira


Filho sentenciou que, se gay, "melhor seria que [o jogador] abandonasse os
gramados".

Na contramão, 79% dos moradores da capital paulista, quase quatro em


cinco, aprovam os homossexuais no futebol (margem de erro de 3 pontos
percentuais para mais ou para menos).

A Folha incentivou o debate sobre a decisão judicial e o artigo do ministro.


Nela, contudo, saíram os desenhos que, para tantos leitores que me
procuraram, vitaminam o preconceito e insultam.

Esse jornalismo bipolar rejeita a homofobia, mas imprime lugares-comuns


homofóbicos. Filiam-se a ele os assuntos noticiados com exagero que logo
são esquecidos; o desequilíbrio editorial que se move entre os pratos da
balança; a leniência que se alterna com a postura inquisitorial.

O cartunista Caco Galhardo, autor das ilustrações, as defende: "As pessoas


estão mais abertas em relação ao politicamente correto. Baseado nisso, me
senti ainda mais à vontade para brincar com os profissionais
homossexuais".

"Fiz o trabalho com liberdade, jamais pensei em ofender, principalmente os


gays, contra os quais não nutro o menor preconceito. Achei divertido,
jamais ofensivo, e apostei no espírito da drag queen. Talvez esses desenhos
possam ser mais bem assimilados daqui a dois anos."

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