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SAPIENTIAM AUTEM NON VINCIT MALITIA

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O Imbecil Coletivo: Bandidos & Letrados


Um país acachapantemente previsível

Amigos sugerem-me que escreva alguma coisa sobre o caso do banqueiro-cineasta Moreira Salles, que se
notabilizou menos como diretor de filmes do que como protetor do traficante Marcinho VP. Seria bom
escrever, sim. Na verdade, já escrevi. Escrevi com cinco anos de antecedência, e o fiz não por ser dotado de
especiais virtudes proféticas, mas por viver num país acachapantemente previsível. Sim, onde as pessoas não
pensam, elas agem por reflexos condicionados, e com um pouquinho de observação o mais sonso aprendiz
de Pavlov já fica sabendo tudo o que vão pensar, dizer, fazer e padecer até o último dia de suas vidas, se é
que isso é vida. “Bandidos & Letrados” foi publicado no Jornal do Brasil em 26 de dezembro de 1994
(depois reproduzido em O Imbecil Coletivo, Rio, Faculdade da Cidade Editora, 1997). O sr. Moreira Salles
e Marcinho VP já estavam lá, sem os seus nomes, é certo, mas descritos com todos os detalhes da
programação cibernética que molda os seus destinos padronizados. Na verdade, nunca me senti tão pouco
profeta como ao constatar agora, pela milésima vez, que Aquilo Del Nisso. Aquilo sempre dá nisso. É um
miserável e repetitivo samsara. Terei de escrever, agora, sobre aonde vai dar a gestão do sr. Luís Eduardo
Soares no cargo de guru policial, sobre aonde vai dar o seu plano de armar os habitantes dos morros
(alegadamente para que “se policiem a si mesmos”) após ter desarmado os habitantes do resto da cidade?
Ora! Vou exercitar meus dons proféticos onde pelo menos haja alguma surpresa. O Brasil não precisa de
profetas. Precisa apenas de cidadãos capazes de admitir o peso do óbvio antes de ser esmagados por ele.
Leiam e verão. – O. de C.

Entre as causas do banditismo carioca, há uma que todo o mundo conhece mas que jamais é mencionada,
porque se tornou tabu: há sessenta anos os nossos escritores e artistas produzem uma cultura de idealização
da malandragem, do vício e do crime. Como isto poderia deixar de contribuir, ao menos a longo prazo, para
criar uma atmosfera favorável à propagação do banditismo?

De Capitães da Areia até a novela Guerra sem Fim, passando pelas obras de Amando Fontes, Marques
Rebelo, João Antônio, Lêdo Ivo, pelo teatro de Nelson Rodrigues e Chico Buarque, pelos filmes de Roberto
Farias, Nelson Pereira dos Santos, Carlos Diegues, Rogério Sganzerla e não-sei-mais-quantos, a palavra-de-
ordem é uma só, repetida em coro de geração em geração: ladrões e assassinos são essencialmente bons ou
pelo menos neutros, a polícia e as classes superiores a que ela serve são essencialmente más (1).

Não conheço um único bom livro brasileiro no qual a polícia tenha razão, no qual se exaltem as virtudes da
classe média ordeira e pacata, no qual ladrões e assassinos sejam apresentados como homens piores do que
os outros, sob qualquer aspecto que seja. Mesmo um artista superior como Graciliano Ramos não fugiu ao
lugar-comum: Luís da Silva, em Angústia, o mais patológico e feio dos criminosos da nossa literatura, acaba
sendo mais simpático do que sua vítima, o gordo, satisfeito e rico Julião Tavares — culpado do crime de ser
gordo, satisfeito e rico. Na perspectiva de Graciliano, o único erro de Luís da Silva é seu isolamento, é agir
por conta própria num acesso impotente de desespero pequeno-burguês: se ele tivesse enforcado todos os
burgueses em vez de um só, seria um herói. O homicídio, em si, é justo: mau foi cometê-lo em pequena
escala.

Humanizar a imagem do delinqüente, deformar, caricaturar até os limites do grotesco e da animalidade o


cidadão de classe média e alta, ou mesmo o homem pobre quando religioso e cumpridor dos seus deveres —

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