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EDGARD RODRIGUES ROCHA JUNIOR1

RESPONSABILIDADE CIVIL PELA PERDA DE UMA CHANCE:


ANTAGONISMOS NA CHANCE DE VIVER

RESUMO

À luz das teorias da responsabilidade civil, vemos, nas jurisprudências


externas, casos norteadores no que diz respeito a uma incipiente modalidade de
dano moral-patrimonial instituído a partir da perda de uma chance. Destarte, este
trabalho visa diferenciar a reparação do ato ilícito pela perda de uma chance da
reparação por danos emergentes e por lucros cessantes, e também analisar dois
casos médicos pioneiros, porém antagônicos acerca da chance perdida. O primeiro
caso a ser analisado será o Acórdão Perruche, o qual causou grande alvoroço na
sociedade francesa quando a Corte de Cassação foi conivente com o pleito de
Nicolas Perruche, uma criança deficiente que, representada por seus pais, alegou
viver uma vida injusta por ter perdido a chance de ter sido abortado, tal o desejo de
sua mãe, devido a erro médico em um diagnóstico de rubéola intra-uterina. O
segundo caso ocorreu no estado de Massachusetts (EUA), onde a família de
Kimiyoshi Matsuyama impetrou uma ação contra o médico, Dr. Neil S. Birnbaum,
pela perda de uma chance de cura devido a um diagnóstico tardio de câncer
estomacal, pelo qual o paciente veio a sucumbir.

PALAVRAS CHAVES: Acórdão Perruche – Matsuyama v. Birnbaum –


Responsabilidade Civil – Perda de uma Chance.

1
Acadêmico do curso de Direito pela UEL - Universidade Estadual de Londrina.
2

RESPONSABILIDADE CIVIL PELA PERDA DE UMA CHANCE:


ANTAGONISMOS NA CHANCE DE VIVER

CONSIDERAÇÕES INICIAIS

A responsabilidade civil nasce com a necessidade de se reparar o dano


causado por ato ilícito. No passado, quando ocorria lesão a um direito, conforme
explicita Paulo Nader2, sua reparação ficava a cargo da própria vítima ou de seus
familiares. Com a popularização da lex talionis, representada pela máxima “olho por
olho; dente por dente”, um novo paradigma surge nos átrios da justiça privada:
“Quando surgiu a chamada pena de talião, (...) houve um progresso. Se,
anteriormente, não havia qualquer critério convencionado, a retribuição do mal pelo
mesmo mal estabelecia a medida da reparação”. Assim, a vingança privada passaria
a ser ordenada de acordo com a intensidade do delito e não conforme a noção
pessoal de justiça.

Se no Código de Hamurabi, a adoção da pena de talião imputava a reparação


do dano com outro dano de igual intensidade devido ao principio da reciprocidade,
por muitas vezes, em vez de se fazer justiça, acumulavam-se dois erros. Por isso,
em legislações posteriores, como na Lex Duodecim Tabularum3, o dano passou a
ser reparado tal o prejuízo econômico acarretado pelo ato ilícito. Quando
institucionalizado, esse novo critério de reparação ficou conhecido como
composição tarifada e, posteriormente, com a Lex Aquilia, passou a doutrinar que “o
resgate deveria ser [pago] no valor real da coisa” 4.

Com o passar do tempo, essa visão “quase inata” de justiça passou a ser
modificada por várias legislações, as quais, munidas de fundamentação teórica,
transmutaram cada vez mais o valor representativo da reparação pecuniária oriunda
do evento danoso.

Devido às transformações jurídicas ocorridas, na atual jurisprudência, a


responsabilidade civil passa a abranger todos os princípios e normas que regulam a

2
NADER, Paulo. Introdução ao Estudo do Direito. 30ª Ed. - Rio de Janeiro: Forense, 2008.
3
Lei das XII Tábuas, 449 a.C.
4
NADER, Paulo. Introdução ao Estudo do Direito. 30ª Ed. - Rio de Janeiro: Forense, 2008, p. 345.
3

obrigação de indenizar5 decorrentes dos atos ilícitos6, conforme previsto no art. 927
do Código Civil7.

O instituto da responsabilidade civil, por ser em sua essência uma entidade


extremamente dinâmica, deve sempre ater-se às novas concepções jurisprudenciais
e também às teorias que permeiam as necessidades da sociedade. 8

No que tange exclusivamente a reparação dos atos ilícitos por meio de


indenizações monetárias, a desenvoltura da responsabilidade civil alcança maior
amplitude quando uma nova e complexa categoria de dano ganha forma.

Conhecida como perda de uma chance, essa nova teoria de dano exige uma
concisa performance interpretativa dos juristas modernos para sua total
compreensão pois, tantos seus preceitos, como seus resultados, confundem-se em
muito com os danos emergentes e com os lucros cessantes.

Felizmente, para o jurista moderno, a jurisprudência nos banha com histórias


interessantes, onde podemos perceber que a grande complicação sobre a “perda de
uma chance” não se encontra em seu caráter técnico e sim, em seus
desdobramentos jurídico-filosóficos.

Destarte, o presente trabalho buscará situar a teoria da perda de uma chance


entre os danos patrimoniais anteriormente citados, para assim podermos estudar a
ulterior aplicabilidade da mesma, e também, iluminar o caminho percorrido pela
transmutação de uma possibilidade de sucesso ou fracasso, em um bem
patrimonial.

Feito isto, iremos então analisar dois casos pioneiros em suas jurisdições,
mas distantes acerca da chance pleiteada. Ambos os casos são oriundos do
fervilhante caldeirão de embates filosóficos pelo qual é conhecido a medicina, nos

5
VENOSA, Silvio de Salvo. Código Civil Interpretado. – São Paulo: Atlas, 2010, p. 837.
6
Assim definido pelo “Art. 186. Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou
imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato
ilícito.” E também pelo “Art. 187. Também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo,
excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos
bons costumes.”
7
“Art. 927. Aquele que, por ato ilícito (arts. 186 e 187), causar dano a outrem, fica obrigado a repará-
lo.”
8
VENOSA, Silvio de Salvo. Código Civil Interpretado. – São Paulo: Atlas, 2010, p. 838.
4

trazendo visões sobre uma possível limitação da chance quando esta esbarra às
portas da vida e da morte.

1 VICEJAR DE UMA TEORIA

A doutrinação da teoria da “perda de uma chance” é algo recente, que,


advinda da jurisprudência franco-italiana, ainda busca sua consolidação. Não
obstante, muitos são os casos precedentes dessa teoria, ocorridos em diversas
partes do globo, os quais se tornariam parte de um longo processo de
aprimoramento ao passo do recrudescimento de novas tecnologias 9 e políticas
sociais10.

GODOY (2007) cita com primor um caso ocorrido no ano de 1884, no


município de Northampton (Massachusetts – EUA), em que foi julgado o caso
Dietrich v. Inhabitants of Northampton 11, no qual uma mulher sofreu um aborto
espontâneo ao tropeçar e tombar devido a uma calçada defeituosa. Da ocorrência
do sinistro, a criança, nascida prematura, veio a falecer em seguida. A decisão da
Corte alegou que, por ser impossível o feto viver fora do ventre materno, o mesmo
não poderia impetrar ação.

Situando ainda a importância da parafernália tecnológica para a obtenção de


resultados precisos, Godoy complementa: “(...) não havia tecnologia aplicada à
medicina capaz de determinar, no século XIX, se o aborto teria sido resultado de
12
uma causa natural ou de uma ação danosa que mereceria ser indenizada.” Sendo
assim, por mais que a morte tenha sido injusta, reclamação alguma poderia vingar,
pois não haveria a indispensável comprovação do nexo de casualidade13 necessário
para se ligar o fato ocorrido ao agente causador do dano.

Em meados do ano de 1964, uma ação baseada na teoria da perda de uma


chance foi julgada e acatada pela Corte de Cassação Francesa. Neste pleito, um
9
Tecnologias estas representadas pela maior possibilidade de aferição de resultados quando
utilizado em juízo, por exemplo, para se explicitar um nexo causal.
10
Entenda-se por políticas sociais, as conquistas normativas precípuas ao amadurecimento
jurisprudencial como um todo, tal como as consolidações das leis do trabalho; garantias de direito ao
infante; disseminação dos direitos humanos, etc.
11
Dietrich v. Inhabitants of Northampton, 1884 (996 P2d 447).
12
GODOY, Gabriel Gualano de. Acórdão Perruche e o Direito de Não Nascer. Curitiba:
Universidade Federal do Paraná – UFPR, 2007, p. 12 – 13.
13
“É preciso estar certo de que, sem este fato, o dano não teria acontecido. Assim, não basta que
uma pessoa tenha contravindo a certas regras; é preciso que sem esta contravenção, o dano não
ocorreria.” DEMONGUE, Réne. Traité des Obligations em general, v.4, n.66.
5

médico foi obrigado a indenizar a parte requerente, uma criança que teve seus
braços desnecessariamente amputados para uma suposta facilitação do parto, em
uma indenização pecuniária.

Tal decisão foi notável, pois precedeu uma nova abordagem sobre a
responsabilidade de quem comete a infração e a flexibilização na indispensabilidade
do nexo causal, para assim se preservar os direitos de reparação à vítima.

GUIMARÃES (2009), desta maneira analisa a decisão final da Corte Francesa


sobre o caso:

“Entendeu-se (...) que entre o erro do médico e as graves consequências, a


ser a invalidez do menor, não se podia estabelecer de modo preciso um nexo
de causalidade. A Corte de Cassação assentou que presunções
suficientemente graves, precisas e harmônicas podem conduzir à
responsabilidade. Tal entendimento foi acatado a partir da avaliação do fato
de o médico haver perdido uma chance de agir de modo diverso,
condenando-o a uma indenização de 65.000 francos.” 14 

É comum se dizer então, a respeito da doutrina francesa, que o instituto da


perte d’ une chance, em comparação com outras jurisprudências, é mais flexível. Na
experiência italiana, por exemplo, em seu primeiro caso, fica evidente a
preocupação do jurista em evidenciar a real possibilidade e magnitude da chance
perdida. Tal caso ocorreu em 1983 e diz respeito a um processo seletivo para a
ocupação de cargos de motorista em uma determinada empresa na cidade de
Roma.

Conforme relata Simão de Melo,15 após terem sido submetidos a diversos


exames médicos necessários para a seleção, alguns candidatos ao labor foram
simplesmente impedidos de participar das ulteriores provas de direção e
conhecimentos básicos, exigidos para a conclusão da triagem. Ocorrido este fato
injusto, os candidatos lesados acionaram os mecanismos judiciais e impetraram uma
ação por indenização pela perda de uma chance.

14
GUIMARÃES, Janaína Rosa. Perda de uma chance: considerações acerca de uma teoria.
Revista Jus Vigilantibus, 30 de julho de 2009. Artigo disponível no sítio: http://jusvi.com/artigos/41209,
capturado em 20.11.2010
15
MELO, Raimundo Simão de. Direito Ambiental do Trabalho e a Saúde do Trabalhador. 2ª Ed. -
São Paulo: LTr, 2006.
6

De acordo com o relato, em uma primeira instância, o juiz consentiu


favoravelmente ao pleito dos concorrentes. No entanto, o tribunal Romano foi
contrário a decisão proferida, alegando que o dano não era factual, e sim,
meramente potencial.

Dando continuidade à rusga, em uma última instância, a Corte de Cassação


Italiana terminou por garantir o direito à reparação do dano pela chance perdida. A
corte entendeu que os candidatos não requisitavam uma espécie de reparação por
lucros cessantes, uma vez que a obtenção do objeto desejado - o emprego de
motorista - não passava de mera expectativa. Então, diferentemente das resoluções
francesas, a corte fez uma espécie de “decomposição” do dano causado pela perda
de uma chance até conseguir enquadrá-lo como sendo, no caso julgado, um bem já
incorporado ao patrimônio do candidato quando este se submete e cumpre as
exigências formais do processo seletivo.

Dessa forma, quando a empresa os impede de concluir o processo sem


qualquer respaldo argumentativo válido, a mesma acaba minando a chance real de
obtenção do emprego. Ocorrido isto, esta culmina por violar o patrimônio do
participante, configurando assim o ato ilícito, neste caso, julgado passível de
reparação por danos emergentes oriundos de uma chance perdida.

Analisando-se os três casos anteriores, observa-se, no primeiro, que a idéia


acerca da teoria da perda de uma chance já era comum, mas ainda muito obscura.
Posteriormente, por causa da desenvoltura dos juristas franceses e italianos, nota-se
que a prática fundamentou uma teoria.

2 NOVA CATEGORIA DE DANO PATRIMONIAL

O dano, segundo Venosa, consiste basicamente no prejuízo, econômico ou


não, sofrido pelo agente.16 Norteados pelos artigos 402 e 403 do atual CC 17, os

16
VENOSA, Silvio de Salvo. Código Civil Interpretado. – São Paulo: Atlas, 2010, p. 850.
17
“Art. 402. Salvo as exceções expressamente previstas em lei, as perdas e danos devidas ao credor
abrangem, além do que ele efetivamente perdeu, o que razoavelmente deixou de lucrar”.
7

danos patrimoniais podem então ser divididos em danos emergentes e lucros


cessantes. 18

Os danos emergentes são aqueles onde uma notável redução patrimonial


ocorre em detrimento do ilícito. É o caso de, em um acidente automobilístico, o custo
imediato do conserto, ou seja, é aquilo que a vítima efetivamente perdeu. Já os
lucros cessantes configuram uma previsão de dano com base no que a vítima
razoavelmente deixará de lucrar devido ao sinistro. Seria, pois, no caso de um
acidente onde a vítima fosse um taxista, o ressarcimento econômico pelo período
em que este ficaria impossibilitado de trabalhar. 19

O dano pela perda de uma chance, por sua vez, é classificado por alguns
juristas como sendo um tipo de dano emergente e por outros, como lucros
cessantes. Já foi visto que, de acordo com a doutrina italiana, a chance pode ser de
fato um bem incorporado ao patrimônio. Se um dano ocorre perante o patrimônio
onde a chance repousa, obviamente a perda dessa chance deverá ser ressarcida,
assim como os eventuais danos emergentes ocasionados devido à chance perdida,
como, por exemplo, eventuais danos psicológicos devido à frustração. 20

Se comparado a perda de uma chance aos lucros cessantes, notar-se-á que o


primeiro nunca acarretará o último. Para se fundamentar uma reparação por lucros
cessantes, a doutrina diz que se deve ter a certeza plena de que o dano imputará na
frustração de ganhos ou na prevenção de prejuízos futuros.

Um caso hipotético se faz necessário para a transposição dessa lacuna.


Imaginemos então um cidadão, que ao atravessar a rua para ir a uma entrevista de
emprego, é atropelado por um carro, sofrendo várias injúrias que o impedem de
participar de tal entrevista. O vitimado por sua vez, jamais poderá requerer em juízo
que o infrator pague uma pensão, durante o tempo de sua recuperação, baseada no
salário oferecido pelo emprego ao qual vislumbrava, pois nada prova que se o

18
“Art. 402. Salvo as exceções expressamente previstas em lei, as perdas e danos devidas ao credor
abrangem, além do que ele efetivamente perdeu, o que razoavelmente deixou de lucrar”.
“Art. 403. Ainda que a inexecução resulte de dolo do devedor, as perdas e danos só incluem os
prejuízos efetivos e os lucros cessantes por efeito dela direto e imediato, sem prejuízo do disposto na
lei processual.”
19
VENOSA, Silvio de Salvo. Código Civil Interpretado. – São Paulo: Atlas, 2010, p. 851.
20
MELO, Raimundo Simão de. Direito Ambiental do Trabalho e a Saúde do Trabalhador. 2ª Ed. -
São Paulo: LTr, 2006.
8

mesmo participasse da entrevista, seria contratado. Outrossim, não se pode negar


que uma chance factual de obtenção de emprego foi perdida.

Conforme argumenta PEREIRA (1999), a certeza torna-se um elemento


primordial para se provar a integridade e assim possibilitar a reivindicação legal
acerca de uma chance perdida:

“É claro, então, que, se a ação se fundar em mero dano hipotético, não cabe
reparação. Mas esta será devida se se considerar, dentro na ideia de perda
de uma oportunidade (pert d’une chance) e puder situar-se na certeza do
dano.” 21

A teoria da perda de uma chance, quando iluminada por SAVI (2006), pode
ser enquadrada como uma terceira espécie de dano patrimonial, a qual se encontra
entre, e não, em danos emergentes ou em lucros cessantes:

“A perda de uma chance séria e real é hoje considerada uma lesão a uma
legítima expectativa sucessível de ser indenizada da mesma forma que a
lesão a outras espécies de bens ou qualquer outro direito subjetivo tutelado
pelo ordenamento.” 22

Ao passo em que foi exemplificada a noção da perda de uma chance como


um dano independente, resta agora elucidar a maneira pela qual será atribuído valor
pecuniário à chance perdida.

A partir do momento em que a chance é perdida, deve-se calcular o montante


indenizatório guiando-se pelo princípio de que o valor agregado à chance nunca
poderá ser igual ou maior que a totalidade do prêmio. A chance não pode ser vista
como uma certeza de êxito e sim como uma possibilidade de obtê-lo, e é justamente
na probabilidade matemática de se alcançar esse êxito, que se encontra o valor a
ser ressarcido pela chance perdida.

Um instrutivo exemplo pode ser traçado por meio de um inusitado fato


ocorrido nas olimpíadas de Pequim, em 2008, durante prova de saltos com varas.

21
PEREIRA Caio Mário da Silva. Responsabilidade Civil. 9ª Ed. Rio de Janeiro: Forense, 1999, p.
45.
22
SAVI, Sérgio. Responsabilidade Civil por perda de uma chance. São Paulo: Atlas, 2006, p. 101.
9

Enquanto se preparava para seu salto, a atleta brasileira Fabiana Murer


percebeu que uma de suas varas havia desaparecido. A saltadora entrou em
desespero, pois em meio a um importante evento desportivo, que são as
Olimpíadas, ela via todo seu sonho e empenho sendo minados devido à falta de
organização do evento.

Depois de procurar em vão seu equipamento, Fabiana decidiu saltar com


outra vara, porém a mesma não era adequada para a realização daquele salto. O
resultado foi pífio, pois uma atleta, detentora do recorde sul-americano ao saltar 4,8
metros na ocasião dos jogos pan-americanos, teve um desempenho muito aquém
do esperado, não vencendo, em três tentativas restantes, a barreira dos 4,65m.

Fabiana Murer teve, de fato, a chance de conquistar uma importante medalha


olímpica, perdida. No entanto, a saltadora não poderia pleitear a obtenção de uma
medalha, pois, mesmo que ela saltasse com seu devido equipamento, a certeza do
êxito não era certa.

Por outro lado, Fabiana poderia sim, caso houvesse um prêmio em dinheiro,
requerer uma indenização monetária por ter perdido a chance de obter esse lucro. O
valor seria então definido de acordo com o prêmio, por exemplo, definido em milhão
de dólares, somente para quem alcançasse o primeiro lugar.

Logo, se houvessem dez competidoras no total, cada uma delas teria 10% de
chance de vitória, ou seja, no momento em que Fabiana perde a chance de
participar da prova, o valor de US$100.000,00 – os 10% de um milhão – poderá ser
reivindicado por ela, pois “o grau de probabilidade é que fará concluir pelo montante
da indenização.” 23

3 COMPLICAÇÕES ACERCA DA CHANCE PERDIDA: NASCIMENTO, VIDA E


MORTE

Dentro do instituto da perda de uma chance, novas problemáticas vêm à tona


representadas pelo contexto de wrongful birth, wrongful life e wrongful death action.

23
NORONHA, Fernando. Direito das obrigações. São Paulo: Saraiva, 2003, p. 666.
10

Uma ação por wrongful birth (nascimento injusto), é aquela impetrada pelos
pais que, na oportunidade de interromper uma gravidez 24, a fim de se evitar dar à luz
a um ser com problemas congênitos, não o fazem, por desconhecimento do fato,
devido à negligência médica.

A ação por wrongful life (vida injusta), em muito se assemelha com a de


wrongful birth, a exceção dá-se perante o autor da ação. Neste caso, a ação não é
mais figurada pelos pais e, sim, pelo filho que reclama viver uma vida penosa. Por
causa das diferentes seqüelas inerentes às deficiências congênitas, é comum aos
pais, quando acionam a justiça alegando wrongful birth, representarem o filho,
quando incapaz, em uma ação por wrongful life.

Aglutinando situações além da esfera médica, está à ação por wrongful death
(morte injusta), onde a família pleiteará, em juízo, a reparação dos danos oriundos
do falecimento de um membro, tendo a morte deste sido causada por ato ilícito
(negligência; homicídio, etc.).

Transpondo-se esses três tipos de ações para os domínios da perda de uma


chance, percebe-se que algumas complicações filosóficas podem surgir: é cabível,
por exemplo, o nascimento ser considerado um dano? Poderia alguém alegar que a
vida “injusta” de um infante é pior que a não-existência? E por fim, como se pode
calcular o valor por uma chance de viver?

À luz da experiência francesa e norte-americana, o presente trabalho tentará


responder essas perguntas através de uma breve análise sobre dois casos
antagônicos. O primeiro deles abrangerá os temas da wrongful birth e wrongful life,
pois relata a história de um infante que, representado por seus pais, reclama a perda
de uma chance de não nascer. O seguinte, por se tratar de um caso onde a família
reivindica uma reparação pela perda de uma chance de cura, limitar-se-á aos
terrenos da wrongful death action.

Ao fim, pode-se dizer que aquele preferiria não nascer. Este último, por sua
vez, continuar existindo.

24
Estando-se amparado pelas regulamentações legais de determinado país. No território brasileiro,
por exemplo, a prática do aborto é considerado crime contra os direitos do nascituro. Conforme
regulamentado pelo Art. 128 do Código Penal, “Não se pune Aborto praticado por médico: ‘I – se não
há outro meio de se salvar a vida da gestante; II - se a gravidez resulta de estupro e o Aborto é
precedido de consentimento da gestante ou, quando incapaz, de seu representante legal’.”
11

3.1 PELA CHANCE DE NÃO NASCER

A francesa Josette Perruche, durante a quarta semana de sua segunda


gestação, notou que havia algo errado em sua primogênita, com então quatro anos
de idade. Ao perceber que menina apresentava incomuns erupções na pele, Josette
e seu cônjuge procuraram auxílio médico.

O médico que examinou a criança constatou que as erupções cutâneas eram


conseqüência de uma rubéola. Tempos depois, os mesmos sintomas da filha
apareceram na mãe.

A Sra. Perruche, preocupada com sua gravidez, procurou um médico para


que fosse aferido se o feto também teria sido afetado pela doença. Caso o fosse,
Josette deixou claro sua intenção de interromper a gravidez. Entretanto o médico,
munido dos exames laboratoriais, disse que tudo estava bem com o bebê e que
Josette poderia, sem maiores problemas, dar à luz a criança. Assim, no dia 14 de
janeiro de 1983, nasceu o menino Nicolas Perruche.

Tempos mais tarde, o garoto passou a apresentar graves problemas


neurológicos, além de surdez, cardiopatias e deficiência intelectual. 25 Obviamente,
um erro médico havia ocorrido e, a partir de então, a família Perruche passou a
travar diversos conflitos pelos tribunais franceses.

Levando-se em consideração os princípios da wrongful birth action, poder-se-


á, agora, responder a primeira das três problemáticas levantadas no tópico anterior.

O nascimento de Nicolas, per si, não configuraria um dano, nem aos pais,
nem à criança. Entretanto, no momento em que ocorre uma negligência por parte do
médico em diagnosticar o feto corretamente, este mina as possibilidades de Josette
Perruche findar a gravidez e assim evitar futuras despesas financeiras, inerentes a
condição física de seu filho. Por isso, uma indenização na importância de
$250.000,00, relativo aos custos que teriam com Nicolas, foi concedida aos pais. 26
Deste modo, comprova-se que Josette Perruche de fato perdera uma oportunidade

25
GODOY, Gabriel Gualano de. Acórdão Perruche e o Direito de Não Nascer. Curitiba:
Universidade Federal do Paraná – UFPR, 2007, p. 31.
26
LYSAUGHT, M. Therese. Wrongful life? The strange case of Nicholas Perruche. Human Life
Review; Winter: Research Library, 2002, p. 165
12

de realizar um aborto, ou, assim interpretado juridicamente pela Cour de Cassation,


a chance de se evitar prejuízos futuros.

A segunda problemática levantada repousa sobre o pleito por wrongful life,


onde Nicolas figura como autor. Representado por seus pais, uma vez que o mesmo
é considerado juridicamente incapaz, Nicolas reivindica reparação de danos por
viver uma vida injusta.

Esse pleito gera um grande entrave jurídico e filosófico, pois a vida injusta de
Nicolas é decorrente senão de sua condição excepcional de existência. Como já foi
provado, a deficiência fora causada quando este estava no útero de sua mãe, assim,
não se pode dizer que há nexo de casualidade entre a negligência médica e a
deficiência de Nicolas. Desse modo, o único meio pelo qual poderia ser evitado a
wrongful life, seria se não houvesse um nascimento, ou seja, o único meio de se
satisfazer o pleito de Nicolas seria evitando sua doença, e o único modo disso
acontecer seria por meio do aborto. Nicolas então vislumbra uma indenização não
somente por levar uma vida sofrível, mas, outrossim, pela perda de uma chance de
não ter existido.

Depois de aproximadamente 12 anos de entraves judiciais, finalmente a Corte


francesa deu um parecer final sobre o intrigante Arrêt Perruche27:

“Considerando, todavia, que, a partir do momento em que os erros cometidos


por um médico e um laboratório na execução de contratos firmados com Mme
X... tenham impedido esta de exercer sua escolha de interromper a gravidez
com o objetivo de evitar o nascimento de uma criança atingida por uma
deficiência, esta última pode requerer a reparação do dano resultante dessa
deficiência causada pelos erros considerados.”

No momento em que a Corte francesa permite que Nicolas, em tese, 28 figure


como autor dessa ação, ela inevitavelmente assume uma posição que não leva em
consideração a inviolabilidade e o respeito com a vida.

27
Arrêt n° 457, Cass. Fr., 17 nov. 2000.
28
Dito tese, pois este tem sua vontade representada por seus pais.
13

Godoy cita o poeta João Cabral de Melo Neto, ao expressar o julgamento da


mais alta corte francesa a qual imputou uma “resolução de morte para uma criança
que foi trazida à vida.” 29

Por não escutar, por não falar e por não agir, devido à inanição do corpo, o
jurista é inclinado a pensar que a vida de Nicolas não passa de uma existência
vazia; uma massa sem alma, tal como é retratado o caboclo brasileiro, estereotipado
por Monteiro Lobato, cuja existência não interfere no mundo:

“No meio da natureza brasílica, tão rica de formas e cores, onde os ipês
floridos derramam feitiços no ambiente e a infolhescência dos cedros, às primeiras
chuvas de setembro, abre a dança dos tangarás; onde há abelhas de sol,
esmeraldas vivas, cigarras, sabiás, luz, cor, perfume, vida dionisíaca em escachôo
permanente, o caboclo é o sombrio urupê de pau podre a modorrar silencioso no
recesso das grotas. Só ele não fala, não canta, não ri, não ama. Só ele, no meio de
tanta vida, não vive...” 30

Ao acreditar que Nicolas perdeu uma chance de não existir e, principalmente,


acreditar que essa chance seria a solução para todos os seus problemas, o Estado
de Direito culmina por esquecer que existem várias pessoas que, nas dificuldades
da vida excepcional, encontram toda a grandeza de seu espírito e a real importância
de uma chance de viver.

3.2 POR UMA CHANCE DE CURA

Kimiyoshi Matsuyama morreu no mês de outubro no ano de 1999, por um


câncer tardiamente diagnosticado por seu médico, Dr. Neil S. Birnbaum.

Matsuyama iniciou tratamento com o Dr. Birnbaum em julho de 1995. Em seu


histórico médico, constava que o homem sofria severas e continuas crises de azia
desde 1988. Seu último médico, antecessor do Dr. Birnbaum, deixou explicito nos
registros que uma investigação minuciosa, por meio de endoscopia, em todo o
aparelho digestivo, seria necessária para melhor se avaliar os sintomas do paciente.

29
GODOY, Gabriel Gualano de. Acórdão Perruche e o Direito de Não Nascer. Curitiba:
Universidade Federal do Paraná – UFPR, 2007, p. 4.
30
LOBATO, Monteiro. Urupês. São Paulo: Globo, 2008, p. 177.
14

Os fatos sugerem que Birnbaum falhou ao notar os indícios de que


Matsuyama teria câncer. Neil acreditava que o homem possuía apenas uma gastrite
e, ao realizar testes, na oportunidade onde um resultado positivo para uma bactéria
usualmente associada a câncer apareceu, o médico não pediu nenhum tipo de
biópsia ou exames de endoscopia, conforme aconselhado nos registros de
Matsuyama.

Devido a uma sucessão de imperícias, imprudências e negligências,


Birnbaum só pediu os exames necessários quando, no dia 3 de março de 1999,
Matsuyama passou muito mal. Os resultados dos exames mostravam que paciente
estava com um câncer em estágio avançado. O homem então iniciou tratamento
com especialistas, mas já era demasiadamente tarde.

Como foi dito, cinco meses depois do ocorrido, Matsuyama sucumbiu ao


câncer. Sua esposa passou então a requerer judicialmente, através de uma wrongful
death action, uma reparação moral pela dor sofrida e outra reparação pela perda de
uma chance de cura.31

Neste ponto, pode-se finalmente elucidar a última das complicações


levantadas anteriormente: “como se pode calcular o valor por uma chance de viver?”

No caso em questão, o valor da chance foi calculado levando-se em


consideração a probabilidade matemática de cura. Quantificada essa probabilidade,
multiplicar-se-á esta pelo montante atribuído a totalidade dos danos por wrongful
death. O resultado dessa equação equivalerá à chance perdida.

O corpo de jurados avaliou que os danos totais pela morte injusta de


Matsuyama somavam a importância de $875.000,00 e que, devido ao tardio
diagnóstico de câncer, sua chance de sobrevivência era de 37.5%. Multiplicando-se
o montante de $875.000 por 37,5%, o júri concedeu à família de Kimiyoshi
Matsuyama uma indenização pela perda de uma chance no valor de $328.125,00
(875.000 x 0,375 = 328.125). No final do embate, essa indenização acabou sendo
amenizada para o valor de $281.310,00, e o caso de Matsuyama tornou-se o
primeiro caso bem sucedido pela perda de uma chance no território americano.

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MATSUYAMA v. BIRNBAUM. 890 N.E.2d 819 (Mass. 2008)
15

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A teoria de dano por perda de uma chance mostra-se muito abrangente e


extremamente subjetiva no que diz respeito à responsabilidade civil. E é justamente
por se tratar de algo tão conceitual que surge a necessidade desta ser
regulamentada juridicamente o mais breve quanto possível.

Aprendendo com a experiência estrangeira, o jurista brasileiro deve ater-se


aos possíveis conflitos ideológicos acerca das inevitáveis questões que irão surgir.
Quanto antes à jurisprudência brasileira caminhar rumo à normatização e tipificação
das teorias da chance, maior será, num possível momento de crise jurídico-filosófica,
a chance de não se perder uma oportunidade de se fazer a justiça de fato.

BIBLIOGRAFÍA

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