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Ano2lN.7lNov.2013
As marcas do desenho são como a fala: elas tentam e falham, mas nessa
tentativa há uma marca de um traço deixado, que testemunha a intensidade de
um momento no tempo no qual algo aconteceu.
Monika Weiss
O vetor da ação
Na performance ShooÍ (1971), de Cris Burden, o artista pede ao seu assistente
para que atire em seu braço e logo após o pedido a ação é realizada. A potência
de projeção nesse caso é dupla: a instrução (entendida como uma partitura
vocal: "atire!") e a realizaçâo da ação pelo assistente. Desde a instrução, já existe
um resultado compartilhado e projetado por todos os presentes na ação, pois se
sabe os efeitos de um tiro sobre o corpo de uma pessoa. O desenho ocupa aqui
o limiar entre o que se imagina e o que se realizará, enquanto potência virtual de
uma ação futura. Comecemos então pensando primeiro no desenho como
potência para projetar uma ação performática. Para tanto, vale usar a noção de
desenho como projeto e sua origem latina designare (desígnio dos deuses, algo
que é descrito, prescrito e previsto para realização) para pensar em um lugar no
qual o desenho se situa no limiar entre o que se imagina e o que se realizará,
em um local de transito entre ideia e ação.
Ocupando um local de indeterminação entre projeto e obra finalizada, as
partituras realizadas como proposições artísticas são textos produzidos para
serem lidos e performados, podendo ser a obra interpretada e realizada por
outras pessoas que não necessariamente as que escreveram. Nesse caso, a
ação pode já ter ocorrido ou nem mesmo ocorrer, como exemplificado em uma
série de trabalhos que possuem um caráter propositivo ou utópico, estendendo
a possibilidade de ação para o espectador: os livros de artista Grapefruit (1964),
de Yoko Ono, e Pertormance Diária (2011), de Felipe Bittencourt, os desenhos-
partitura de Joseph Beuys, Body Pressure (1974), de Bruce Nauman, dentre
outros.
Alguns desenhos do artista Joseph Beuys se referem especificamente às suas
ações. Em Partituras de Ação com Transmissor (feftro) Receptor nas
Montanhas (1973), aparecem notaçôes textuais, topos de montanhas, linhas de
código Morse e menções ao feltro. Essas anotações realizadas durante suas
falas e palestras, indecifráveis a um olhar racionalizante que visa apenas à
compreensão, precisam ser olhadas não somente como um projeto para a ação,
mas sim entendendo seu desenho como um tipo específico de pensamento,
sendo capaz de incorporar em si sentidos que ultrapassam a visão, como a
audição e o tato. Sobre esse caráter sinestésico de sua produção, Cristina Freire
o aponta como um local de transcendência, de expressão de coisas que nem o
discurso ou o pensamento abstrato em sua racionalidade conseguem expressar.
O desenho se torna impulso necessário para moldar os "pensamentos e afetos
a serem compartilhados em ações" (FREIRE, 2007:144).
Ainda pensando na relação entre corpo e partitura, trazemos o alemão Oskar
Schlemmer, pintor que começou a dar aulas na Bauhaus, em 1920, como diretor
da oficina de escultura, para o qual desenho e ação dialogam através de uma
relação entre teoria e prática, na qual o desenho é material teórico para o
desenrolar da ação. Roselte Goldberg nos coloca que Schlemeer
Tom Marioni, cujo trabalho possui um caráter mais lúdico e quase irônico ao
tratar do desenho, significará seu gesto com um alto grau de repetição e
tentativa, realizando ações como o ato de desenhar um círculo repetidamente na
parede ou tentar gerar registros gráficos em um papel no teto (o que oÍaz pular
constantemente). Jâ Tony Orrico é artista visual, pertormer e coreógrafo,
explorando principalmente o movimento e a repetição em suas performances,
utilizando-se basicamente de grafite, carvão e papel. Em Penwald
Drawings Orrico explora o uso de seu corpo em uma série de desenhos bilaterais
como uma ferramenta de medição para inscrever geometrias através do
movimento em curso. Ele explora a limitação da (ou a espontânea navegação
dentro da) esfera de seus braços estendidos, considerando a repetição, refração
e exaustão como motores do movtfnento, chegando a permanecer em suas
I
performances até horas. Ele utiliza seu corpo e às vezes somente os pulsos
para criar obras densas, que são altamente precisas e ao mesmo tempo
orgânicas.
À primeira vista os trabalhos de Tom Marioni e Tony Orrico possuem certa
semelhança quando tratam da questão do desenho, pois em ambos o gesto
repetitivo gera um registro gráfico semelhante. Mas Orrico, sem o
descompromisso de Marioni, leva seu corpo ao limite da exaustão, dando a
impressão de que o papel não dá mais conta de segurar o depósito do gesto,
criando desenhos de padrôes circulares que remetem a mandalas ou até mesmo
ao Homem Vitruviano, colocando em evidência os limites exatos do corpo
humano.
Outro artista que, assim como Marioni, utiliza-se de certa leveza no tratamento
dado ao trabalho é Robin Rhode, que, apesar de possuir trabalhos que se
enquadram mais na relação do desenho enquanto uma proieção mental,
evidenciando-a através da relação da narrativa estatizada com o corpo, tem um
trabalho no qual o registro gráfico opera como outra camada de realidade. O
caráter transitório do desenho é altamente visado nas proposiçÕes de Rhode,
cuja sutileza do registro gráfico é ampliada ao ser colocada em contraponto com
a tentativa do artista de se relacionar com ela, como no trabalho Bicycle (1998)
em que o artista tenta de diversos modos andar em uma bicicleta desenhada na
parede. Não e somente o artista que age criando o desenho, mas o desenho
passa também a agir e interferir na relação que o corpo do artista tem com o real.
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Ainda nessa relação direta do gesto do desenho com o corpo do artista, temos
na videoperformance brasileira mais dois exemplos de grande relevância, nos
quais o foco é o gesto do desenho: os trabalhos Desenho-corpo (2001), de Lia
Chaia, e Marca registrada (1975), de Letícia Parente. Em ambos, intensifica-se
a relação de trânsito que há no trabalho de Rhode, acima citado, porém ao invés
de o corpo tentar se relacionar com o desenho no espaço, é o desenho que
incide diretamente sobre a fisicalidade do corpo. No primeiro trabalho citado, a
artista desenha constantemente sobre seu corpo até a tinta vermelha da caneta
acabar; no segundo, vê-se uma mão costurando com linha na sola de um pé a
frase: made in Brazil.lndependentemente das questões políticas ou sociais que
circundam as obras, o que é válido ressaltar da relação entre pefformance e
desenho aqui é a mescla entre um sinal incorporado (em ambos a ação de
desenhar, que geralmente é externa ao corpo) e um sinal desincorporado (o
desenho em si, uma marca que se registra em uma superfície) (NOLAND apud
MENDONÇ4, 2003: 43).
O desenho ainda pode ser ferramenta de reflexão para outras questÕes, como
na videoperformance Pencil Mask (1973), de Rebecca Horn. Aqui, a ação de
desenhar é gerada por uma máscara facial de caráter protetor e fetichista e
torna-se sujeita a uma questão central do trabalho da artista, que é a relação
entre corpo e espaço, sendo que "ao alterar uma relação apenas do contato com
o objeto, a artista muda toda a percepção de seu entorno: arealizaçáo de esforço
é menor, o controle da posse do objeto também." (MARCONDES, 2010:5). O
gesto do desenho assim aparece apenas como uma demonstração daquela
estrutura criada, não sendo problematizado da mesma forma que nos exemplos
anteriores.
Júnior Suci, Adormeci a minha mão, Grafite e Datilografia sobre Papel, 21,0 cm
x 21,0 cm, 201 't
A tensão da linha, a dúvida das direções gue e/as possuem nos contomos, os
fragmentos gue escapam ínas se mantém confinados, e a vibração como
um frame de uma fita pausada são algumas sensaçôes captadas nesses
desenhos que relacionam coerentemente seu conceito e sua estética. (SUCI,
2012)
Por fim, em um trabalho que já abre campo para a discussão da próxima parte
-
do artigo que possui como vertente a relação entre desenho expandido e
espaço -, há a performance ao vivo sem título de Marie Cool e Fábio Balducci,
realizada inicialmente no ano de 1996. Nela, a formação do desenho se dá no
espaço, porém com um foco direto na ação de sua construção. Em diversas
mesas e utilizando-se de diferentes materiais próprios da ideia de desenho
enquanto linha, a artista cria espacialmente espaços efêmeros de projeção,
divididos entre ela e os observadores.
Essa açâo, dentro de nossa análise, será o primeiro passo para pensarmos como
o desenho pode estar presente enquanto discussão poética do trabalho, porém
apresentando elementos menos diretos do que comumente pensado enquanto
vinculado à ideia de desenho.
Considerações finais
O que é o desenho senão a mente em uma tentativa de diálogo com o outro e
com o mundo? E o que é a pertormance senão o corpo em uma busca pela
mesma possibilidade de diálogo e encontro? Pensando sobre essa relação entre
corpolperformance e mente/desenho, nota-se como a potência dos trabalhos
que articulam ambas as instâncias se dá pela totalidade do pensamento. Nesses
trabalhos, o corpo que se presentifica no espaço da ação não transfere apenas
sua relaçâo corpórea para o outro, mas também a projeçao mental do que se
objetiva ou se busca. Assim, há projeção, desígnio, desejo e risco. Há um corpo
em totalidade de transmissão para o outro, o que para diversos teóricos
da performance se traduz na reversibilidade fenomenológica inerente aos
trabalho na Iinguagem aqui elencados.
Mesmo que parciais, os eixos estabelecidos na pesquisa permitem evidenciar
é
como vasto o campo de análise dentro da relação entre desenho
e pertormance, eo quanto a ação permite a expansão das ideias reificadas de
desenho e de uma melhor compreensão de suas acepções originais. Mesmo
tratando do desenho em sua relação material mais direta (com o uso de papéis,
materiais de registro como carvão, grafite, etc.), o fato de colocá-lo em relação
com o tempo de sua produção altera a visão que se tem sobre o desenho
enquanto produto final. Nas outras instâncias, mais ampliadas, a expansão do
desenho na contemporaneidade também encontra lugar para pesquisa e
aprofundamento, possuindo um terreno fértil, como pode ser comprovado em
exposições como On line, ocorrida no MoMA em 2010, que possuía uma série
de pertormances de artistas aqui citados, que dialogavam diretamente com o
desenho.
Justamente por possuir uma relação tão complexa, o campo de discussão é tão
vasto. Em artistas como Júnior Suci, podemos perceber como existem diferentes
engrenagens do pensamento performático e de seu registro que, quando
levemente alteradas, colocam em jogo paradigmas da própria linguagem,
levando a novos problemas e, portanto, a novas reflexões sobre o próprio
estatuto da linguagem e sua efetiva necessidade em um trabalho performático.
Âloúas
[1] Vale notar que para Zuccaro há uma aproximação fofte da ideia de desenho
em relação ao divino. O desenho intemo, para o autor, divide-se em: desenho
divino, desenho angélico e desenho humano, com clara hierarquia entre eles.
Náo nos cabe aqui problematizar esse caráter divino, porem, vale ressaltar que
a concepção de um desenho divino e perfeito toma o desenho humano um
acidente: "[...] o homem forma em siváios desenhos segundo diferentes cotsas
que ele compreende, porque seu desenho é um acidente". (ZUCCARO, 2004:
46)
[2] Originalmente ciado pelo linguista J. T. Austin, o termo 'pertormativo'
designava a circunstância de o sujeito não usar da linguagem para representar
a realidade, mas sim para agir sobre ela. O verbo coffer pressupõe a ação da
conida, mas profeir o verbo 'confessaf é, por sí só, realizar a ação, o que o
toma performativo. Com a utilização do termo nas aftes, 'pertormativo' passa a
designar uma qualidade no objeto que o vincula à ação que o construiu.
t3l DisPonível
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2012 - 21h24