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ED.

7
Ano2lN.7lNov.2013

DO PROJETO A EXPANSÃO: DESENHO EM


PERCURSO NAARTE PERFORMATICA

Artigo realizado com a colaboração, para o levantamento de material, de Andrea


D'Amato, Jorge Feitosa, Aline Arcuri Tima, Mariana Sanches.

As marcas do desenho são como a fala: elas tentam e falham, mas nessa
tentativa há uma marca de um traço deixado, que testemunha a intensidade de
um momento no tempo no qual algo aconteceu.
Monika Weiss

O desenho é, antes de tudo, pensamento projetado. Etimologicamente, pode-se


perceber como a relação entre o pensamento e a materializaçáo é estreita: o
termo disegno significa tanto a projeção e a ideia quanto o contorno e a
execução manual do traçado. Essa mesma relação ocorre com a palavra
francesa desseÍn, que possuía ambos os significados até o século XVll.
Atualmente, como aponta a pesquisadora Jacqueline Lichtenstein, há a divisáo
dos conceitos entre as palavras dessein (desígnio) e dessln (desenho), assim
como a língua inglesa distingue os termos design e draw (LICHENSTEIN, 2004:
1 e).
Historicamente, podemos observar no Renascimento as primeiras teorizações a
respeito da relação entre a ação de desenhar ê o pensamento, em consonância
direta com a intelectualizaçào da arte decorrente do período. Federico Zuccaro,
pintor maneirista italiano, defende em 1607, com seu texto ldeia dos pintores,
escu/Íores e arquitetos, quê o desenho é correspondente direto de conceitos
como intenção, exemplar e ideia, sendo sua nomeação enquanto desenho
gerada apenas pela especificidade de seu fim a um propósito artístico
(ZUCCARO,2004:41). No mesmo texto, há a defesa de uma origem interna do
desenho, formada no intelecto humano [1]. Desenho esse que, ao ser
externalizado, é apenas operação para a @mpreensão de corno aquela ideia se
formou dentro do intelecto. Já em Derrida, o desenho surge novamente como
experiência do sujeito, porém compreendido não mais como uma materialização
do que se vê do mundo, mas sim como experiência de enceguecimento, da não-
visão. Para o filósofo "eu não posso desenhar o que vejo, eu nunca desenho o
que vejo" (DERRIDA, 2012: 180). Essa relação essencialmente interna do
desenho também se configura no desenho externalizado, já que para Derrida o
traço, ao remeter sempre a outra coisa e nunca a si mesmo, torna-se elemento
insignificante, dando a ver, mas não sendo visto.
Essas breves colocações a@rca da relação entre o ato de desenhar e o
pensamento que circunda esse ato abrem campo para a discussão que aqui
levantaremos, que visa a aproximar o desenho da performance arÍ, linguagem
artística que, desde seu surgimento, nos anos 60, tem estabelecido relações de
diversas ordens com o desenho, que reverberam até a produção de jovens
artistas brasileiros. Para tanto, desloquemo-nos um pouco da ação específica de
desenhar para pensar brevemente sobre a ação em si. De acordo com diversos
teóricos que discorrem acerca da presença da ação na arte, existe uma diferença
clara entre gesto e movimento, que se caracteriza por uma questão de
consciência. Patrice Pavis, em seu Dicionário do teatro, define o movimento
como a "maneira neutra e comum de designar a atividade" (PAVIS, 2008: 252),
enquanto cita o gesto como um "movimento voluntário e controlado" (PAVIS,
2008: 184). Ou seja, há no gesto uma intencionalidade e um objetivo que o
aproximam da ideia de desenho enquanto um desígnio, ou seja, enquanto algo
que signifique o fazer, dada a intenção impressa na ação.
Porém, ao se pensar nas possíveis relações entre desenho e performance, se
nos limitarmos na relação de que toda ação previamente determinada em
uma pertormance possui um vínculo direto com o desenho, por seu caráter
objetivo e projetado, estaremos não somente superficializando as relaçÕes, mas
também deixando de lado a relação fenomenologica existente em
loda performance, que altera a noção de projeto acima citada ao problematizá-
lo dentro do tempo da ação e as alterações que podem ocorrer nele. Assim, na
tentativa de objetificar as relações que poderiam ser estabelecidas e eliminar
esse possível lugar de liquefação onde tudo se faz possível, três eixos foram
estabelecidos e brevemente discutidos nas seções que se seguem.
O primeiro eixo compreende o desenho enquanto uma projeção mental ou
utilizado enquanto registro e partitura para a transmissão de um movimento ou
ação. Já o segundo pensará no gesto do desenho trabalhado como inscrição e
registro da ação do corpo. Por fim, o terceiro eixo apresenta o desenho em uma
ideia expandida, na qual a marca gerada pelo embate entre matérias e a
expansão da linha se apresentam como possibilidades de se pensar o desenho.
Por meio de artistas e trabalhos pontuais da linguagem performática, busca-se
um levantamento que revisite essa relação entre linguagens tão pouco
aprofundada.

O vetor da ação
Na performance ShooÍ (1971), de Cris Burden, o artista pede ao seu assistente
para que atire em seu braço e logo após o pedido a ação é realizada. A potência
de projeção nesse caso é dupla: a instrução (entendida como uma partitura
vocal: "atire!") e a realizaçâo da ação pelo assistente. Desde a instrução, já existe
um resultado compartilhado e projetado por todos os presentes na ação, pois se
sabe os efeitos de um tiro sobre o corpo de uma pessoa. O desenho ocupa aqui
o limiar entre o que se imagina e o que se realizará, enquanto potência virtual de
uma ação futura. Comecemos então pensando primeiro no desenho como
potência para projetar uma ação performática. Para tanto, vale usar a noção de
desenho como projeto e sua origem latina designare (desígnio dos deuses, algo
que é descrito, prescrito e previsto para realização) para pensar em um lugar no
qual o desenho se situa no limiar entre o que se imagina e o que se realizará,
em um local de transito entre ideia e ação.
Ocupando um local de indeterminação entre projeto e obra finalizada, as
partituras realizadas como proposições artísticas são textos produzidos para
serem lidos e performados, podendo ser a obra interpretada e realizada por
outras pessoas que não necessariamente as que escreveram. Nesse caso, a
ação pode já ter ocorrido ou nem mesmo ocorrer, como exemplificado em uma
série de trabalhos que possuem um caráter propositivo ou utópico, estendendo
a possibilidade de ação para o espectador: os livros de artista Grapefruit (1964),
de Yoko Ono, e Pertormance Diária (2011), de Felipe Bittencourt, os desenhos-
partitura de Joseph Beuys, Body Pressure (1974), de Bruce Nauman, dentre
outros.
Alguns desenhos do artista Joseph Beuys se referem especificamente às suas
ações. Em Partituras de Ação com Transmissor (feftro) Receptor nas
Montanhas (1973), aparecem notaçôes textuais, topos de montanhas, linhas de
código Morse e menções ao feltro. Essas anotações realizadas durante suas
falas e palestras, indecifráveis a um olhar racionalizante que visa apenas à
compreensão, precisam ser olhadas não somente como um projeto para a ação,
mas sim entendendo seu desenho como um tipo específico de pensamento,
sendo capaz de incorporar em si sentidos que ultrapassam a visão, como a
audição e o tato. Sobre esse caráter sinestésico de sua produção, Cristina Freire
o aponta como um local de transcendência, de expressão de coisas que nem o
discurso ou o pensamento abstrato em sua racionalidade conseguem expressar.
O desenho se torna impulso necessário para moldar os "pensamentos e afetos
a serem compartilhados em ações" (FREIRE, 2007:144).
Ainda pensando na relação entre corpo e partitura, trazemos o alemão Oskar
Schlemmer, pintor que começou a dar aulas na Bauhaus, em 1920, como diretor
da oficina de escultura, para o qual desenho e ação dialogam através de uma
relação entre teoria e prática, na qual o desenho é material teórico para o
desenrolar da ação. Roselte Goldberg nos coloca que Schlemeer

(...) considerava a pintura e o desenho como o aspecto mais rigorosamente


intelectual de sua obra, como ele escreveu, constantemente saspeiÍo por essa
razão. Em suas pinturas como eín suas expeiências teatrais, a investigação
essencial dizia respeito ao espaço; as pinturas delineavam o elemento
bidimensional do espaço, enquanto o teatro oferecia um lugar em que se podia
experimentar com o espaça. (GOLDBERG, 2006: 93)

O professor e pesquisador da dança atribuía à percepção do volume que surge


de uma forma planar a origem de sua produção em dança, explicando que a
partir da geometria plana, da busca da linha reta, da diagonal, do círculo e da
curva desenvolve-se uma estereometria do espaço através da linha vertical
móvel do dançarino. Em aula, seus procedimentos eram testados dividindo em
eixos e diagonais bisseccionais a superfície quadrada do assoalho, e "seguindo
essas diretrizes, os bailarinos dançaram dentro da 'teia espacial linear'com seus
movimentos ditados pelo palco já dividido geometricamente". (GOLDBERG,
2006: 94) Com essa demonstração desenhada didaticamente, Schlemmerdivide
a preparação da pertormance em etapas: notações e pintura em um âmbito
bidimensional, a criação de relevos e esculturas no âmbito plástico e a partir daí
passa para arte plástica do corpo, em uma relação direta entre o pensamento do
desenho transposto para o espaço do corpo em movimento. O artista cria assim
um esquema visual para ilustrarseu pensamento de dança. Primeiro, ele prepara
um sistema de notação que descreve graficamente as trajetórias lineàres do
movimento e o deslocamento dos bailarinos, como podemos ver também nos
Labannotations e nos desenhos de Trisha Brown.
O gesto de desenhar: entre inscrição e projeção
Nessa seção, o que será observado são os artistas que se utilizam do gesúo de
desenhar. Importante citar que o desenho de que aqui se fala e aquele que
compreendemos de maneira mais direta e fechada, vinculado à noção de linha
e resultante, no Brasil, da missão francesa do século Xvlll. Aqui se situarão
trabalhos específicos de artistas da dança, performance e artes visuais que se
utilizam de elementos do desenho como lápis, canetas, papéis, etc. e que
problematizam a ação do desenho ao evidenciar diversos aspectos do seu iazer
que geralmente não são acessados por um observador.
Para iniciar a discussão, pontuemos uma artista que pesquisa diretamente essa
relação entre o gesto do desenho e o tempo-espaço da ação: Monika Weiss. Em
seu trabalho Annamnesis (2002\, a artista realiza a ação de se movimentar sobre
uma folha de papel com materiais de desenho, gerando registros gráficos que
evidenciam o percurso daquela dança, assim como as intensidades, pausas e
mudanças da ação. Monika Weiss se aprofundará inclusive na possibilidade de
uma nomeação do Iugar existente entre performance e desenho. Utilizando-se
da terminologia pertormativo l2l para qualificar um estado de seu desenho, a
artista se utilizará do desenho como uma tentativa de realizar o"(tradução nossa)
ato impossível de se delinear o mundo'WEISS, 2003), trazendo o desenho de
forma a evidenciar o interstício existente entre o corpo do produtor e o corpo do
produzido. Nesses dois casos, o procedimento da inscrição é visivelmente
notado. De acordo com Noland, a inscrição pode ser vista como uma variável
da pertormance, na qual uma memória somática do corpo é evidenciada, através
de uma ação cinética de deposito do traço (NOLAND apud MENDONÇ4, 2003:
40).

Tom Marioni, cujo trabalho possui um caráter mais lúdico e quase irônico ao
tratar do desenho, significará seu gesto com um alto grau de repetição e
tentativa, realizando ações como o ato de desenhar um círculo repetidamente na
parede ou tentar gerar registros gráficos em um papel no teto (o que oÍaz pular
constantemente). Jâ Tony Orrico é artista visual, pertormer e coreógrafo,
explorando principalmente o movimento e a repetição em suas performances,
utilizando-se basicamente de grafite, carvão e papel. Em Penwald
Drawings Orrico explora o uso de seu corpo em uma série de desenhos bilaterais
como uma ferramenta de medição para inscrever geometrias através do
movimento em curso. Ele explora a limitação da (ou a espontânea navegação
dentro da) esfera de seus braços estendidos, considerando a repetição, refração
e exaustão como motores do movtfnento, chegando a permanecer em suas
I
performances até horas. Ele utiliza seu corpo e às vezes somente os pulsos
para criar obras densas, que são altamente precisas e ao mesmo tempo
orgânicas.
À primeira vista os trabalhos de Tom Marioni e Tony Orrico possuem certa
semelhança quando tratam da questão do desenho, pois em ambos o gesto
repetitivo gera um registro gráfico semelhante. Mas Orrico, sem o
descompromisso de Marioni, leva seu corpo ao limite da exaustão, dando a
impressão de que o papel não dá mais conta de segurar o depósito do gesto,
criando desenhos de padrôes circulares que remetem a mandalas ou até mesmo
ao Homem Vitruviano, colocando em evidência os limites exatos do corpo
humano.
Outro artista que, assim como Marioni, utiliza-se de certa leveza no tratamento
dado ao trabalho é Robin Rhode, que, apesar de possuir trabalhos que se
enquadram mais na relação do desenho enquanto uma proieção mental,
evidenciando-a através da relação da narrativa estatizada com o corpo, tem um
trabalho no qual o registro gráfico opera como outra camada de realidade. O
caráter transitório do desenho é altamente visado nas proposiçÕes de Rhode,
cuja sutileza do registro gráfico é ampliada ao ser colocada em contraponto com
a tentativa do artista de se relacionar com ela, como no trabalho Bicycle (1998)
em que o artista tenta de diversos modos andar em uma bicicleta desenhada na
parede. Não e somente o artista que age criando o desenho, mas o desenho
passa também a agir e interferir na relação que o corpo do artista tem com o real.

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'il\\llttuu

Lia Chaia, Desenho-corpo,2OO1. Vídeo, 51'(até a caneta acabar) / Frames

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Letícia Parente, Marca registrada, 1975. Vídeo, 9'l Frame. Porta-packTz


polegadas. Câmera: Jom Tob Azulay

Ainda nessa relação direta do gesto do desenho com o corpo do artista, temos
na videoperformance brasileira mais dois exemplos de grande relevância, nos
quais o foco é o gesto do desenho: os trabalhos Desenho-corpo (2001), de Lia
Chaia, e Marca registrada (1975), de Letícia Parente. Em ambos, intensifica-se
a relação de trânsito que há no trabalho de Rhode, acima citado, porém ao invés
de o corpo tentar se relacionar com o desenho no espaço, é o desenho que
incide diretamente sobre a fisicalidade do corpo. No primeiro trabalho citado, a
artista desenha constantemente sobre seu corpo até a tinta vermelha da caneta
acabar; no segundo, vê-se uma mão costurando com linha na sola de um pé a
frase: made in Brazil.lndependentemente das questões políticas ou sociais que
circundam as obras, o que é válido ressaltar da relação entre pefformance e
desenho aqui é a mescla entre um sinal incorporado (em ambos a ação de
desenhar, que geralmente é externa ao corpo) e um sinal desincorporado (o
desenho em si, uma marca que se registra em uma superfície) (NOLAND apud
MENDONÇ4, 2003: 43).
O desenho ainda pode ser ferramenta de reflexão para outras questÕes, como
na videoperformance Pencil Mask (1973), de Rebecca Horn. Aqui, a ação de
desenhar é gerada por uma máscara facial de caráter protetor e fetichista e
torna-se sujeita a uma questão central do trabalho da artista, que é a relação
entre corpo e espaço, sendo que "ao alterar uma relação apenas do contato com
o objeto, a artista muda toda a percepção de seu entorno: arealizaçáo de esforço
é menor, o controle da posse do objeto também." (MARCONDES, 2010:5). O
gesto do desenho assim aparece apenas como uma demonstração daquela
estrutura criada, não sendo problematizado da mesma forma que nos exemplos
anteriores.

Júnior Suci, Adormeci a minha mão, Grafite e Datilografia sobre Papel, 21,0 cm
x 21,0 cm, 201 't

Em outro polo, desenvolvendo um trabalho que tem como eixo de discussão


direta a relação entre a linguagem da performance e o ato de desenhar, temos
o artista Júnior Suci. Reproduzindo em pequenos desenhos pertormances feitas
solitariamente, o artista acaba problematizando alguns lugares-comuns do
gênero e relativizando a ponte entre ação e registro. Com Suci, a relação entre
o gesto do desenho e a projeção que realiza por parte do observador é
potencializada. Como cita Edith Derdyk, ao falar sobre a obra do artista: "sempre
vale lembrar que, também por trás da palavra desenho, existem os sinais do
desejo que se lançam e se projetam no espaço do mundo, mesmo que na
intimidade de um gesto" (DERDYK, 2009). A função inicial do gesto de seu
desenho, que possui caráter meramente inscritivo, passa então a ser também
p§eção e imaginação, em um inteligente uso de um aspecto do
desen ho/anotação para traba Ihar o desen ho/desíg n io.
Em entrevista realizada com o artista, ele cita a importância da qualidade da sua
linha para materializar a relação temporal de suas ações realizadas. De acordo
com o artista

A tensão da linha, a dúvida das direções gue e/as possuem nos contomos, os
fragmentos gue escapam ínas se mantém confinados, e a vibração como
um frame de uma fita pausada são algumas sensaçôes captadas nesses
desenhos que relacionam coerentemente seu conceito e sua estética. (SUCI,
2012)

Por fim, em um trabalho que já abre campo para a discussão da próxima parte
-
do artigo que possui como vertente a relação entre desenho expandido e
espaço -, há a performance ao vivo sem título de Marie Cool e Fábio Balducci,
realizada inicialmente no ano de 1996. Nela, a formação do desenho se dá no
espaço, porém com um foco direto na ação de sua construção. Em diversas
mesas e utilizando-se de diferentes materiais próprios da ideia de desenho
enquanto linha, a artista cria espacialmente espaços efêmeros de projeção,
divididos entre ela e os observadores.
Essa açâo, dentro de nossa análise, será o primeiro passo para pensarmos como
o desenho pode estar presente enquanto discussão poética do trabalho, porém
apresentando elementos menos diretos do que comumente pensado enquanto
vinculado à ideia de desenho.

Desenho, expansão e corpo: a marca como elemento poético


O que nos interessa agora é pensar num terceiro eixo, composto pela relação
entre desenho, espaço e corpo, lançando luz sobre ações que utilizem o corpo
como material que desenha uma forma em algo, imprimindo uma marca onde é
possível se observar o desenho. Segundo o artista Carlos Fajardo, o desenho é
o que se gera a partir da pressão de uma superfície mais dura sobre uma
superfície mais mole (p. ex., grafite sobre o papel). Vito Acconci realiza esse
procedimento valendo-se da dureza de seus dentes em relação à maciez de sua
pele. Em Trademarks (1970), o artista se morde diversas vezes, gerando uma
marca gráfica que desenha a si próprio. Novamente, o corpo é produtor e
receptor da ação, assim como em G/ass on body (1972\, de Ana Mendieta,
trabalho no qual a artista pressiona partes de seu corpo sobre um vidro, usando
sua superfície dura como anteparo para o corpo, imprimindo uma imagem que
sempre será única.
Já ao pensarmos na Iinha em expansão, encontramos obras em que o desenho
surge como registro da ação performática, isto é, como rasÍrodessa ação. O
desenho aqui assume a forma de linhas espaciais que integram a obra como
uma espécie de cordão umbilical que as liga à ação performática. Surgido por
essa ação e construído durante o pro@sso, o desenho finalmente se
(trans)forma de fato após o término da ação. Richard Long, artista da Land Art,
utiliza-se do corpo para gerar essa marca, em caminhadas simples, mas
obsessivas, na qual o registro gráfico evidencia um percurso previamente
projetado, já com o intuito de gerar determinado tipo de desenho espacial, como
podemos ver em Spiral Jetty (1970).
Em 1964, fortemente influenciada pela experiência neoconcreta pelo e
pensamento fenomenológico que a estruturou, a artista plástica Lygia Clark
concebe a proposiçáo Caminhando, na qual o sujeito que realiza a ação corta
continuamente no sentido do comprimento uma fita de Moebius. De acordo com
a artista:

lnicialmente, o Caminhando é apenas uma possibilidade. Vocês e ele formarão


uma rcalidade única, total, existencial. Nenhuma separução entre sujeito-objeto.
É um corpo a corpo, uma fusão. As diversas respostas surgirão da éua escolha.
(...) Existe apenas um tipo de duração: o ato. [3]

Nessa obra, o papel recortado vai se transformando em linhas que vão se


multiplicando sem separação entre elas, até o momento em que se tornam tão
finas a ponto de não ser possível mais recortá-las. A linha em si carrega uma
dualidade de papéis, quando compreendemos que ela é dependente da ação
para existir, porém é ela que a eterniza e a afirma, oomo uma evidência, do ato
performático que aliocorreu, como nesse caso de Clark, no qual a artista propõe
a participação do público narealizafio da obra, afim de integrardiversos corpos,
diversas experiências para a realização da obra que nunca se finda.
Já com John Wood & Paul Harrinson, dupla de artistas que trabalha
constantemente com videoperforman@s, o desenho e possibilitado através dos
enquadramentos e proposiçÕes do vídeo. Na videoperformance ROLLER (2007)
na qualo artista circunda uma sala pintando uma linha na parede pela qualanda,
o desenho é evidente na relação de registro de um trajeto a partir de uma ação,
o que é possibilitado pelo enquadramento da câmera, que se situa no teto da
sala, permitindo a visualização da sala inteira como um plano. Essa relação da
linha com o espaço, gerada a partir de um enquadramento específico, também
pode ser vista no vídeo Touch (2002), de Janine Antoni, no qual a artista anda
sobre uma corda que se situa no mesmo campô de visão da Iinha do horizonte,
dado o enquadramento do vídeo. Nessa corda bamba em que tenta se equilibrar,
a artista transita entre a linha que liga o imaginário ao real, apresentando-nos a
tentativa de possibilitar uma união entre real e fictício e agir sobre ele
materialmente.

Considerações finais
O que é o desenho senão a mente em uma tentativa de diálogo com o outro e
com o mundo? E o que é a pertormance senão o corpo em uma busca pela
mesma possibilidade de diálogo e encontro? Pensando sobre essa relação entre
corpolperformance e mente/desenho, nota-se como a potência dos trabalhos
que articulam ambas as instâncias se dá pela totalidade do pensamento. Nesses
trabalhos, o corpo que se presentifica no espaço da ação não transfere apenas
sua relaçâo corpórea para o outro, mas também a projeçao mental do que se
objetiva ou se busca. Assim, há projeção, desígnio, desejo e risco. Há um corpo
em totalidade de transmissão para o outro, o que para diversos teóricos
da performance se traduz na reversibilidade fenomenológica inerente aos
trabalho na Iinguagem aqui elencados.
Mesmo que parciais, os eixos estabelecidos na pesquisa permitem evidenciar
é
como vasto o campo de análise dentro da relação entre desenho
e pertormance, eo quanto a ação permite a expansão das ideias reificadas de
desenho e de uma melhor compreensão de suas acepções originais. Mesmo
tratando do desenho em sua relação material mais direta (com o uso de papéis,
materiais de registro como carvão, grafite, etc.), o fato de colocá-lo em relação
com o tempo de sua produção altera a visão que se tem sobre o desenho
enquanto produto final. Nas outras instâncias, mais ampliadas, a expansão do
desenho na contemporaneidade também encontra lugar para pesquisa e
aprofundamento, possuindo um terreno fértil, como pode ser comprovado em
exposições como On line, ocorrida no MoMA em 2010, que possuía uma série
de pertormances de artistas aqui citados, que dialogavam diretamente com o
desenho.
Justamente por possuir uma relação tão complexa, o campo de discussão é tão
vasto. Em artistas como Júnior Suci, podemos perceber como existem diferentes
engrenagens do pensamento performático e de seu registro que, quando
levemente alteradas, colocam em jogo paradigmas da própria linguagem,
levando a novos problemas e, portanto, a novas reflexões sobre o próprio
estatuto da linguagem e sua efetiva necessidade em um trabalho performático.

Âloúas
[1] Vale notar que para Zuccaro há uma aproximação fofte da ideia de desenho
em relação ao divino. O desenho intemo, para o autor, divide-se em: desenho
divino, desenho angélico e desenho humano, com clara hierarquia entre eles.
Náo nos cabe aqui problematizar esse caráter divino, porem, vale ressaltar que
a concepção de um desenho divino e perfeito toma o desenho humano um
acidente: "[...] o homem forma em siváios desenhos segundo diferentes cotsas
que ele compreende, porque seu desenho é um acidente". (ZUCCARO, 2004:
46)
[2] Originalmente ciado pelo linguista J. T. Austin, o termo 'pertormativo'
designava a circunstância de o sujeito não usar da linguagem para representar
a realidade, mas sim para agir sobre ela. O verbo coffer pressupõe a ação da
conida, mas profeir o verbo 'confessaf é, por sí só, realizar a ação, o que o
toma performativo. Com a utilização do termo nas aftes, 'pertormativo' passa a
designar uma qualidade no objeto que o vincula à ação que o construiu.
t3l DisPonível
e m : <http ://www. lyg i acla rk. org. b r/arq u ivo-detPT. asp? ida rq u ivo= 1 7>.

Bibliografia
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2012 - 21h24

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