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São Paulo, Segunda-feira, 18 de Outubro de 1999

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VIOLÊNCIA
Policiais relatam métodos de tortura e
assassinato de suspeitos
LILIAN CHRISTOFOLETTI
da Reportagem Local
MÁRIO MAGALHÃES
enviado especial a Belém

Depoimentos de um policial militar e de um policial civil à


Folha descrevem o assassinato de suspeitos de cometer
crimes em São Paulo e métodos de tortura empregados numa
delegacia de Belém (PA).
O soldado de um batalhão da PM na capital paulista conta ter
cumprido três vezes determinação de matar bandidos feridos
antes de levá-los ao hospital. O PM afirma que o comando
autorizara usar arma fria (não registrada na corporação) para
assassinar e que o camburão deveria andar devagar para que
a eventual hemorragia do detido tornasse impossível
reanimá-lo.
O investigador de uma delegacia de Belém narrou na
primeira pessoa espancamentos e sessões de tortura com
palmatória. Também disse usar máquinas de choque para
obter confissões e castigar suspeitos.
Os dois policiais só aceitaram falar sobre os crimes -
homicídio e tortura- cometidos por eles com a condição de
não ter a identidade revelada. Ambos depoimentos foram
gravados.
A Folha publica os relatos, apesar do anonimato dos
depoentes, por considerá-los relevantes para o interesse
público, ao registrar práticas ilegais ainda implementadas no
Brasil. O jornal checou com outros policiais e pessoas dados
citados pelos entrevistados e confirmou haver consistência
nos depoimentos.
Devido ao anonimato, as referências que implicavam
terceiros em crimes foram suprimidas, assim como a
localização do batalhão e da delegacia onde os policiais
comprovadamente trabalham.

O policial militar Paulo (nome fictício) deixou morrer três


supostos criminosos dentro de seu carro da PM, porque,
segundo ele, seguiu as orientações de seu comando. Em
entrevista gravada, ele diz que o procedimento é comum
entre os policiais militares.
Para provocar a morte do suposto criminoso socorrido, Paulo
diz que o carro da PM dá voltas por São Paulo até que a
pessoa morra em decorrência da hemorragia. Se assim não se
consegue o resultado esperado, dá-se um tiro de
misericórdia, segundo a versão do policial.
Entre as vítimas socorridas e que, segundo ele, não devem
chegar com vida ao hospital, estão pessoas que trocaram
tiros com policiais e outras encontradas feridas. Nesse caso,
a avaliação de quem é criminoso é "visual".
"O bandido a gente conhece pelas tatuagens e pela roupa que
ele usa. É só bater o olho e eu sei se o cara deve ou não",
afirma.
Leia trechos da entrevista:

Folha - Havia uma orientação de seu comando com


relação a criminosos socorridos em carros da Polícia
Militar?
PM - Ele (oficial superior) dizia que, se por ventura algum
elemento chegasse baleado e vivo no hospital, a guarnição ia
se ver com ele. Isso, depois que o bandido era socorrido -do
local você sai rápido com o carro porque tem gente olhando.
Dependendo do horário, se é noite ou não, depois que sai do
local, você vai devagar, a 20, 10 km por hora. Se percebesse
ainda que o indivíduo estava vivo, aí você dava um tiro de
misericórdia com uma arma fria, para ter certeza de que ele
não chegasse vivo ao PS (pronto-socorro).

Folha - O uso da arma fria é permitido?


PM - Não, de forma alguma. Mas era permitido em alguns
casos. Ele (oficial superior) dizia que a gente podia usar esse
procedimento que ele segurava. Como, a gente não sabe.

Folha - Como era o controle do comando de quem chegava


vivo ou de quem morria?
PM - Por meio do relatório feito pelos oficiais, dos oficiais
que trabalham na rua, que comandam a tropa na rua. É um
relatório diário por turno de serviço.

Folha - Os policiais tinham de matar o criminoso antes que


ele chegasse ao hospital?
PM - Depende da situação. A maioria das pessoas que eu
socorri chegou viva. Poucos chegaram em estado de óbito.

Folha - Em algum desses casos, o óbito foi provocado pela


polícia? Você participou?
PM - Já, isso daí, sim. Já socorri o cara ferido. Ele vai
agonizando, né. Porque, dependendo do lugar onde o tiro
pegou, não mata rapidamente, mas provoca uma hemorragia.
Então, quanto mais você demora (para chegar ao hospital),
maior vai ser essa hemorragia. Praticamente, a pessoa chega
ao hospital sem condições de ser reanimada.
Folha - O ferido já chegou a perceber a demora e pediu
ajuda a vocês?
PM - Ah, já, já, isso sim. A gente não falava nada, só dizia
que o dia dele havia chegado, né.

Folha - De quantos casos como esse você já participou?


PM - Acho que de pelo menos três, mas, assim, o nome, a
pessoa, eu não consigo lembrar. É difícil. A maioria eram
pessoas que a gente pegava na rua durante o patrulhamento.
Você olha, não sabe se a pessoa está viva ou não, então, a
prioridade é socorrer. Você coloca na viatura e a gente já
conhece se é bandido. Se é bandido, a ordem é não chegar
vivo.

Folha - É possível checar no local se a vítima tem


antecedente criminal?
PM - Não, não.

Folha - Como vocês sabem que é um criminoso que está


sendo socorrido?
PM - Ah, normalmente são pessoas próximas à área de
tráfico. São muitas, né. A gente já conhece. São pessoas
tarimbadas, marginais que a gente já conhece, mas a Justiça
não se preocupa em manter essa pessoa presa. O bandido a
gente conhece pelas tatuagens e pelas roupas que usa. O
"avião", por exemplo, normalmente usa bermuda, óculos
escuro, boné e roupa de marca. Tenho experiência de rua. É
só bater o olho e eu sei se o cara deve ou não.

Folha - Quando socorre, você aciona o Copom (Centro de


Operações da Polícia Militar)?
PM - Não na hora. Quando você aciona o Copom, você tem
cinco minutos para chegar ao PS, (a contar) da hora em que
você está socorrendo até o hospital mais próximo. Só que é
feito o seguinte: a gente só avisa quando está em frente ao
hospital.

Folha - Vocês deveriam avisar assim que a pessoa é


socorrida?
PM - É. Assim que a pessoa entra no carro, deveríamos ligar
para o Copom. O normal seria sair do local e ligar o sinal
luminoso e sinal sonoro. É uma questão de prioridade. A
gente teria que chegar em cinco minutos ao PS mais
próximo. Quando a gente vai avisar, o sistema pára para
receber sua informação.

Folha - E se não chegar em cinco minutos?


PM - Daí é apurado por que você demorou. Dá tempo de
chegar. Você está em uma situação de emergência, com um
viatura caracterizada, com sinal luminoso e com sinal
sonoro, tudo ligado. Quer dizer, todo mundo vai sair da
frente para você passar. Então, em princípio, dá para chegar
em cinco minutos.
Folha - No caso de socorrer um criminoso, quanto tempo
demora até chegar ao hospital?
PM - 20 ou 25 minutos. O tempo necessário. A gente ficava
rodando, com o sinal giroflex (luminoso sobre o veículo da
polícia) desligado. Quando a família sabe que o cara que foi
baleado é bandido, ela mesma socorre.
Comigo já aconteceu isso aí. Não deixaram a gente socorrer,
porque sabiam que a polícia ia demorar para que a pessoa
chegasse em estado de óbito.

Folha - No hospital, nunca ninguém desconfiou de nada?


PM - É difícil, porque a nossa área é muito violenta. Existem
muitas favelas em nossa área. São pessoas muito carentes e
sem infra-estrutura. Então, quando chega uma pessoa
baleada, dependendo da situação -sabe, moreno e de
tatuagem, aquela coisa que pode ser um marginal, um
traficante- as pessoas não estão nem aí. Você chega (ao
hospital), os médicos tentam reanimar. Daí vem o médico e
vê que o cara já entrou em óbito. Você pega a papeleta, vai
para a delegacia e faz um BO (Boletim de Ocorrência) de
homicídio.

Folha - Você se arrepende de deixar um criminoso morrer


em seu carro, quando você deveria socorrê-lo?
PM - É assim. Como era bandido, se ficasse vivo, ia trazer
mais transtornos para a gente. Ia roubar, matar, estuprar.
Então, estando morto o cara não dá trabalho. (LILIAN
CHRISTOFOLETTI)

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