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Quando os índios

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' _ eram vassalos.
Colonização
e relações de poder
■ no Norte do Brasil
na segunda metade
do século XVIII
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COMISSÃO NACIONAL
PARA AS COMEMORAÇÕES
-
Ângela Domingues

QUANDO OS ÍNDIOS ERAM VASSALOS


CO LO N IZA ÇÃ O E RELAÇÕES DE PODER
N O NORTE D O BRASIL NA SEG U N D A METADE
D O SÉCULO XVIII

Apresentação de Joaquim Romero Magalhães

SBD-FFLCH-USP

C o m iss ã o N a c io n a l p a ra a s C o m e m o r a ç õ e s d o s D e sc o b rim e n to s Portugueses


L I S B O A 2000
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C o l e c ç ã o O u r a s M a r g e n s

Título: Quando os índios eram vassalos.


Colonização e relações de poder no Norte do Brasil na segunda metade do século xvill

Autor: Ângela Domingues

© 2000 Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses


Reservados todos os direitos de acordo com a legislação em vigor

Revisão: Fernanda Abreu


Capa: Fernando Felgueiras
Paginação: Américo Silva
Impressão e acabamento: Gráfica Maiadouro, SA

1.* edição: Janeiro de 2000

ISBN: 972-787-003-1
Depósito legal: 146498/00

DEDALUS - Acervo - FFLCH

CNCDP - Catalogação na Fonte

DOMINGUES, Ângela
Q uando os índios eram vassalos: colonização e relações de
poder no Norte do Brasil na segunda metade do século xvm /

/ Ângela Domingues; apresentação de Joaquim Romero


Magalhães. - Lisboa: Comissão Nacional para as
Comemorações dos Descobrimentos Portugueses, 2000.
- 388 p; 24 cm. - (Outras Margens). ISBN-972-787-003-1
A P R ESEN TA Ç Ã O
9

Quando os índios eram vassalos é a proposta desde logo temporal


de Angela Domingues. O que significa o estudo da colonização e rela­
ções de poder no Norte do Brasil na segunda metade do século xvm,
segundo se especifica ainda. Insistência na determinação cronoló­
gica. Relevante. Porque a política portuguesa variou frequente­
mente, tendo grande dificuldade em fixar uma linha contínua de
actuação quanto ao relacionamento dos colonos com as populações
indígenas do Brasil.
A proibição de escravizar os índios, que se formula e publica
logo no século xvi, nunca teve a concretização que as normas escri­
tas pareciam impor. Os colonos foram sempre procurando cativar
uma mão-de-obra que também sempre tentava escapar-lhes.
Mesmo os jesuítas, que aparentavam uma posição sem mácula de
defesa da liberdade indígena, afinal confinavam os catecúmenos às
aldeias em que obrigatoriamente os faziam trabalhar. Com mão de
ferro regulamentavam toda a sua vida. Sempre ad majorem Dei gloria.
E, afinal, fosse qual fosse o grupo actuante, o resultado prático
ia sendo o mesmo: o confinamento e a submissão de muitos grupos
indígenas ou a sua retirada para paragens onde pudessem manter as
suas vidas livres e as suas formas de organização social e cultural.
Enquanto isso, não poucos ainda eram seduzidos pela proximidade
da civilização europeia transplantada para os trópicos. Processo
longo, marcado por muitos momentos conflituais e por vezes
mesmo de extrema violência. Que a restruturação do Brasil em fun­
ção da realidade mineira da primeira metade do século xviii ainda
tornava mais dramática. E com menos soluções. A forte presença
religiosa no Maranhão, em especial dos jesuítas, desencadeia uma
conflitualidade que põe em causa o próprio Estado. E as autoridades
de Lisboa têm de escolher uma solução. E de nela persistir.
Em meados de Setecentos os espaços administrativamente
designados Estado do Maranhão e Pará — que englobava a imensi-

7
APRESENTAÇÃO

dade amazônica — e bem assim o próprio Estado do Brasil prefe­


riam a aquisição de escravos africanos à escravização de índios. Mas
nem todas as regiões estavam abastecidas com esse produto de
importação. E nem todos os que precisavam de mão-de-obra tinham
meios para a adquirir. Problema em aberto, política que era preciso
redefinir.
É o que vai tentar Sebastião José de Carvalho e Melo, o crescen­
temente poderoso secretário de Estado. Que inicialmente conta com
a inestimável colaboração de Francisco Xavier de Mendonça Fur­
tado, irmão de coração e inspirador de política. Governador do
Grão-Pará e Maranhão, Francisco Xavier observa in loco o que se
passa na Amazônia. E propõe medidas que Lisboa vai acolhendo e
decretando. Com resultados variáveis. Mas com uma claríssima
diferenciação relativamente ao que fora. E com uma firmeza que até
então faltara.
É desse novo ordenamento, dos seus êxitos e fracassos que nos
fala Angela Domingues. Em investigação que soube questionar a
documentação de que dispôs e não poucas vezes corrigir idéias fei­
tas. E que a Comissão Nacional para as Comemorações dos Desco­
brimentos Portugueses põe à disposição dos leitores. Para nos ajudar
a compreender muitos dos fenômenos que ainda hoje têm fortes
incidências na reflexão dos Brasileiros sobre eles mesmos.

Joaquim Romero Magalhães


Comissário-Geral

8
A G R A D ECIM EN TO S

Muitas foram as pessoas e as instituições que, de alguma forma,


contribuíram para a concretização deste trabalho.
Importa, antes de mais, agradecer às instituições que nos finan­
ciaram e acolheram. A Fundação Calouste Gulbenkian, a Junta
Nacional de Investigação Científica e Tecnológica e a Fundação
Luso-Americana para o Desenvolvimento permitiram que a investi­
gação fosse processada no Brasil e nos Estados Unidos da América.
Queremos relevar as facilidades e o auxílio prestados nos vários
arquivos e bibliotecas em que trabalhámos: no Arquivo Histórico
Ultramarino, onde destacamos a colaboração e amizade de Fer­
nando Almeida e Jorge Nascimento; na Biblioteca Nacional; no
Arquivo Público Estadual do Pará, na pessoa da Dr.a Alda Gonçal­
ves; na Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, o Dr. Valdir da
Cunha; no Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro; no Arquivo
da Universidade de Coimbra, a colaboração da Dr.a Maria João
Padez; no Consejo Superior de Investigaciones Científicas, o acolhi­
mento do Professor Francisco de Solano; e na John Carter Brown
Library, o empenho e confiança do Dr. Norman Fiering e a amizade
de Gwen Jones e Adelina Axelrod.
As conversas com amigos e colegas ajudaram na construção de
problemáticas e na identificação de bibliografia relevante. Correndo
o risco de omissão involuntária, impõem-se os nomes de A. J. R.
Russel-Wood, André Ferrand de Almeida, Eduardo Costa Dias,
Ernest Pijning, João Carlos Garcia, João Pedro Marques, Jorge
Couto, Luís Frederico Dias Antunes, Manuel Lucena Giraldo, Mário
Ferreira, Nancy van Deusen e Wim Klooster. Um abraço amigo é
devido aos Drs. Inácio Guerreiro e Antônio Melo. Deve-se um agra­
decimento especial à Professora Maria Beatriz Nizza da Silva pela
sua amizade, incentivo e ajuda.
Estou grata aos Professores Artur Teodoro de Matos e Jill R.
Dias pela inteligência e rigor com que orientaram esta dissertação

9
AGRADECIM ENTOS

e pela disponibilidade, incentivo e dedicação com que sempre me


têm honrado.
Devo ainda agradecer à Comissão Nacional para as Comemo­
rações dos Descobrimentos Portugueses, nas pessoas do seu Comis-
sário-Geral, Prof. Doutor Joaquim Romero Magalhães, e do Dr. João
Paulo Salvado, pela prontidão com que acederam a publicar este
livro.
Um agradecimento final é devido: aos meus pais, ao João e à
Inês.

10
LISTA DE A B R E V IA T U R A S

AHI — Arquivo Histórico do Itamarati


AHU — Arquivo Histórico Ultramarino
ANRJ — Arquivo Nacional (Rio de Janeiro)
AN/TT — Instituto dos Arquivos Nacionais/Torre
do Tombo
APEP — Arquivo Público do Estado do Pará
AUC — Arquivo da Universidade de Coimbra
BA — Biblioteca da Ajuda
BN — Biblioteca Nacional
BNRJ — Biblioteca Nacional (Rio de Janeiro)
BPADE — Biblioteca Pública e Arquivo Distrital de Évora
IHGB — Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro
JCB — John Carter Brown Library
MB — Museu Bocage
AGRADECIM ENTOS

e pela disponibilidade, incentivo e dedicação com que sempre me


têm honrado.
Devo ainda agradecer à Comissão Nacional para as Comemo­
rações dos Descobrimentos Portugueses, nas pessoas do seu Comis-
sário-Geral, Prof. Doutor Joaquim Romero Magalhães, e do Dr. João
Paulo Salvado, pela prontidão com que acederam a publicar este
livro.
Um agradecimento final é devido: aos meus pais, ao João e à
Inês.

10
LISTA DE A B R E V IA T U R A S

AHI — Arquivo Histórico do Itamarati


AHU — Arquivo Histórico Ultramarino
ANRJ — Arquivo Nacional (Rio de Janeiro)
AN/TT — Instituto dos Arquivos Nacionais/Torre
do Tombo
APEP — Arquivo Público do Estado do Pará
AUC — Arquivo da Universidade de Coimbra
BA — Biblioteca da Ajuda
BN — Biblioteca Nacional
BNRJ — Biblioteca Nacional (Rio de Janeiro)
BPADE — Biblioteca Pública e Arquivo Distrital de Évora
IHGB — Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro
JCB — John Carter Brown Library
MB — Museu Bocage
-
Um estudo sobre as sociedades ameríndias habitantes do sertão
amazônico da segunda metade do século xviil constitui um duplo
desafio: para quem o escreve, que se propõe dar uma visão lúcida e
clara do assunto; e para quem o lê, que será confrontado com uma
perspectiva que não é nova, mas polêmica, das relações de poder
estabelecidas entre os habitantes de um vasto espaço que tem
vindo, cada vez mais, a sensibilizar uma multidão de interessados
por questões ecológicas, políticas e sociais.
Os povos da floresta amazônica não surgem, aqui, como os ven­
cidos. Não ignoramos que o processo de extinção das etnias amerín­
dias no Norte brasileiro já se tinha iniciado com a colonização euro­
péia nessa área, acentuando-se com o acesso dos povos europeus a
regiões cada vez mais afastadas dos centros de implantação colonial.
Não omitimos a correspondência entre a descaracterização de muitos
grupos ameríndios e a afirmação de poder das coroas europeias sobre
o espaço geográfico amazônico, ocorrida, fundamentalmente, a par­
tir da segunda metade de Setecentos. Imposições de natureza polí­
tica, estratégica e diplomática, ao mesmo tempo que determinaram
um conhecimento mais abrangente do ecossistema fluvial amazô­
nico e mais detalhado de cada rio que o constituía, permitiram, de
igual modo, contactos e confrontos com novos grupos. Não desco­
nhecemos as consequências devastadoras provocadas pela transcul-
turação, doenças e necessidade compulsiva de mão-de-obra indígena.
Queremos, no entanto, lembrar a seguinte afirmação de Marcos
Terena, deputado da Assembléia da República brasileira: «De 1900 a
1930 é que se registou o maior massacre.»1
Os índios da Amazônia não são descritos, tão-pouco, como ele­
mentos de sociedades pequenas, isoladas e autônomas. Desde tem­
pos imemoriais que as comunidades ameríndias da área geográfica
em questão se tinham ligado por laços de parentesco, de comércio
ou de guerra, os quais punham em contacto grupos afastados e

1 Carlos Cáceres Monteiro, Amazônia proibida. Viagem proibida no território dos


Waimiri-Atroari, Lisboa, Edições O Jornal, 1987, p. 27.

15
INTRO DUÇÃO

áreas distantes. Antes da chegada dos primeiros europeus estavam


já constituídas cadeias de comunicação e troca, vias de circulação de
pessoas e mercadorias. Os poderes coloniais com interesses expan-
sionistas no território sul-americano beneficiaram dessas estruturas
para obter, de forma mais rápida e eficiente, conhecimentos, mão-
-de-obra e mercado para as suas manufacturas. E, ao fazê-lo, alte­
raram o sistema de relações estabelecido, agudizando tensões
preexistentes ou incentivando o confronto de novos inimigos.
Aqui, os índios também não são definidos de maneira plana e
uniformizada, ou seja, como um estereótipo. Antes de mais, porque
se na sua avaliação pelos luso-brasileiros de meados de Setecentos, o
índio era considerado como preguiçoso, indolente, lascivo, bêbedo,
há, também, que referir que em muitas descrições da época se enu­
meravam os diferentes grupos e se enfatizavam as suas diversidades
civilizacionais e culturais. É esta sensibilidade na percepção de várias
civilizações e culturas, construída à medida que os contactos se inten­
sificavam, que determinou o discurso colonial que se foi construindo
sobre os indígenas ao longo de cerca de meio século. A uniformidade
jurídica e política que considerava o índio como um dos elementos
formativos da sociedade colonial deu, pois, lugar a adaptações e alte­
rações suscitadas à medida que as autoridades coloniais iam perce­
bendo a existência de situações particulares e de diferenças locais.
Depois, porque ao serem integrados na sociedade colonial, os
ameríndios assimilaram dos luso-brasileiros noções de comando e
de hierarquia. Os chefes das comunidades, ao adquirirem um maior
prestígio político e social e ao serem favorecidos com privilégios
concedidos pelas autoridades administrativas, projectavam-se do
colectivo constituído pelos seus subordinados. De igual forma, tam­
bém outros índios, ao tirarem partido da especialização profissional,
tiveram possibilidades de ascensão que eram não só permitidas
como favorecidas pela sociedade luso-brasileira.
São estas as linhas condutoras que se vão estruturando ao longo
desta dissertação. Sem as limitarmos a capítulos específicos, preten­
demos utilizá-las para reconstruir a visão que os portugueses e os
luso-brasileiros iam formando dos índios da Amazônia ao longo de
cerca de cinquenta anos. Pretendemos, para além disso, reformular a
nossa própria perspectiva: da forma como os outros (luso-brasileiros
e europeus) viram e do modo como nós (autora e leitores) vemos as
etnias ameríndias da Amazônia.
A metodologia escolhida e algumas das questões levantadas
poderão ser definidas de europocêntricas. Assumimos isso conscien-

16
INTRO DUÇÃO

temente, certos de que a nossa formação e a nossa tradiç^p cultural


e historiográfica assim o determinam e condicionam. A natureza
das fontes consultadas, na sua maioria geradas com o propósito de
informar os diferentes níveis da cadeia hierárquica de administração
e comando, e, em última instância, a coroa portuguesa, é, igual­
mente, um dos limites à nossa investigação. Questões tão importan­
tes como as que se relacionam com sistemas simbólicos e cosmoló-
gicos encontram-se afastadas do nosso propósito porque os homens
do século xviii estavam temporalmente condicionados para descre­
verem a organização social, econômica e política das comunidades
indígenas, os contactos e conflitos entre culturas ou os ritos, danças,
máscaras e hábitos quotidianos ameríndios. Adoptando tanto posi­
ções de desprezo e recusa como de condescendência, o objectivo
dos luso-brasileiros consistia na modificação de povos que conside­
ravam inferiores em função de um paradigma: a cultura portuguesa.
Contudo, não pretendemos apresentar uma visão triunfalista
dos contactos e confrontos culturais ocorridos na Amazônia da
segunda metade de Setecentos. Nem, tão-pouco, queremos apresen­
tar dos índios uma imagem paternalista e condoída. Se conseguir­
mos transmitir ao leitor que as inter-relações e os intercâmbios ocor­
ridos na Amazônia da segunda metade do século xviii foram
produto de uma época determinada e de mentalidades e ideologias
específicas e que, enquanto tal, devem ser entendidos sem que juí­
zos de valor ou apreciações morais interfiram, consideraremos que
parte dos objectivos propostos foram cumpridos. A outra parte é
exclusivamente da nossa responsabilidade e engenho...
Enquanto análise de um discurso colonial aplicado a uma área
geográfica circunscrita e a uma época determinada, o nosso estudo
optou por considerar as etnias da bacia hidrográfica amazônica na
sua globalidade, porque como tal eram consideradas na política
indigenista de Setecentos. Por isso, e ao invés do que foi escolhido
pela maioria dos estudiosos do passado do Norte brasileiro, arris-
cámo-nos a estudar um espaço e não um grupo ou um caso. Na
nossa avaliação tivemos, sobretudo, em consideração que a política
colonial definida para as capitanias do Pará e Rio Negro se circuns­
creveu a esta área geográfica e que a sua execução foi confrontada
com questões que lhe eram específicas.
Nesta avaliação considerámos também que esta uniformidade
política contrastava com uma diversidade de soluções, imposta quer
pela multiplicidade de culturas e etnias quer pela prioridade de inte­
resses coloniais imperantes num determinado momento. E, nesta

17
INTRO DUÇÃO

acepção, as coordenadas tempo e espaço, imprescindíveis em qual­


quer estudo histórico, revestem-se aqui de uma dupla importância.
Muitas das resoluções tomadas em relação aos ameríndios expli­
cam-se em função, por exemplo, de jogos de poder entre potências
europeias e de interesses geo-estratégicos que, em determinado
momento, privilegiavam a paz e a estabilidade internas em detri­
mento da supremacia colonial portuguesa sobre os povos indígenas.
Outras foram seguidas porque a experiência ditava que, com alguns
grupos índios, era preferível a tolerância à força e que a violência
exercida pelos luso-brasileiros suscitaria uma retaliação proporcio­
nal por parte dos ameríndios.
Foi, sobretudo, uma preocupação nossa contextualizar as rela­
ções entre índios e luso-brasileiros na Amazônia da segunda metade
de Setecentos como um produto dos programas ideológicos, polí­
ticos e econômicos portugueses, ibéricos e europeus. E, no que res­
peita a esta questão, confirmamos a tese de Pedro Armillas quando
afirma que «en la determinación de los acontecimientos de expan-
sión europea en el Nuevo Mundo tuvieran más importância la distri-
bución geográfica de recursos naturales y las particularidades cultu-
rales y densidad demográfica de las sociedades aborígenes, que la
diversidad de motivaciones y afiliación nacional de los grupos inva­
sores»2.
No nosso estudo defendemos que existem maiores afinidades
entre a colonização estabelecida por Portugal e Espanha no ecossis­
tema amazônico do que entre a colonização lusa em outras partes
do Império Português: na Ásia, na África ou, até mesmo, no vice-rei-
nado do Brasil3. No entanto, não podemos deixar de referir que as
diferentes colônias portuguesas estavam unificadas por uma política
e uma ideologia política colonial que irradiavam da capital do Impé­
rio. Contudo, os resultados desse discurso político dependeram das
sociedades a que se destinava.
É por isso que recorremos, com frequência, ao estabelecimento
de semelhanças ou antagonismos com o vice-reinado de Nova Gra­
nada e Peru ou com os Llanos colombinos. As remissões para a colo­
nização espanhola ocorrem frequentemente porque, face às mesmas

2 Pedro Armillas, «La ecologia dei Colonialismo en el Nuevo Mundo», in Revista


de índias, vol. 171, 1983, p. 296.
3 Sobre a importância dos estudos de história colonial da América Latina na
compreensão da realidade colonial brasileira veja-se, por exemplo, Ronald Raminelli,
«Simbolismos do espaço urbano colonial» in América em tempo de conquista, coorde­
nado por Ronaldo Vainfas, Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor, 1992, pp. 163-164.
INTRO DUÇÃO

situações, tendo as mesmas referências e pretendendo os mesmos


objectivos, os colonizadores de pátrias distintas actuaram de modo
parecido. Como veremos, o discurso colonial baseava-se nos mes­
mos fundamentos ideológicos, ordem moral e religiosa e nos mes­
mos objectivos estratégicos e políticos.
Na Amazônia de Setecentos, as afinidades firmadas ultrapassa­
ram as rivalidades coloniais e as relações abstractas entre Estados.
De facto, entre os povos que habitavam os limites dos impérios, as
ligações civilizacionais e culturais eram de tal modo relevantes que,
em alguns casos, se sobrepunham à inimizade formal que devia
regular as relações entre Coroas e se impunham no relacionamento
entre indivíduos.
Face a estas considerações é, agora, pertinente enquadrar este
estudo na imensa produção historiográfica produzida recentemente
sobre os ameríndios da Amazônia. Quer o assunto quer a área geo­
gráfica são, sem dúvida, aliciantes. Aliás, a proliferação de livros e
artigos de grande rigor científico é disso comprovativo.
Em nosso entender, uma nova perspectiva nos estudos ame­
ríndios na Amazônia surgiu em finais dos anos 80 com as obras
de Carlos de Araújo Moreira Neto e John Hemming. Partindo do
mesmo período histórico, o das reformas implantadas por Francisco
Xavier de Mendonça Furtado, ambos os autores procuraram traçar o
trajecto da população indígena da Amazônia de acordo com ritmos
marcados por acontecimentos políticos e econômicos relevantes
ocorridos entre meados do século xvni e finais de XIX: o Directório, a
Independência, a Cabanagem, o ciclo da Borracha4.
Nos anos seguintes, esta tentativa de estabelecer de forma glo­
bal grandes sínteses sobre o passado histórico das etnias ameríndias
da bacia hidrográfica amazônica esbateu-se. O interesse por ques­
tões relacionadas com a preservação do patrimônio natural e hu­
mano da floresta equatorial atribuiu uma nova importância ao pas­
sado das etnias ameríndias enquanto vector de compreensão e
forma de perpetuação de grupos extintos ou em vias de desapareci­
mento. Os estudos surgidos valorizaram, particularmente, o «pe­
ríodo de contacto», de encontro das sociedades nativas com coloni­
zadores europeus e procuraram avaliar os efeitos devastadores dessa
4 Carlos de Araújo Moreira Neto, índios da Amazônia. De maioria a minoria (1750-
-1850), Petrópoles, Editorial Vozes, 1988; John Hemming, Amazon frontier. The defeat of
the Brazilian Indians, Londres, Macmillan, 1987. Este livro do antropólogo inglês
encontra-se articulado com um outro, Red Gold. The conquest of the Brazilian Indians,
Londres, Macmillan, 1.* edição, 1978.

19
IN TRO D U ÇÃ O

interacção. Sobretudo, atribuíram à história uma função imprescin­


dível na compreensão de fenômenos de natureza antropológica e
sociológica.
Tendo em conta esta nova orientação, Anna Roosevelt e
Manuela Carneiro da Cunha organizaram duas obras com uma pro­
blemática incidente em temas de história e antropologia, acerca dos
ameríndios (da Amazônia, do Brasil), com a colaboração de especia­
listas em diversas áreas de saber5. Estes estudos são resultantes de
uma nova leitura sobre o passado, decorrente de escavações arqueo­
lógicas, da reinterpretação de documentos e de investigação de
campo e permitiram a reformulação de noções constituídas, desde
há muito tempo, sobre as sociedades da bacia fluvial amazônica:
acerca da sua complexidade e do seu dinamismo ou das suas capaci­
dades de adaptação ao ecossistema e a novas situações.
Assim, e utilizando metodologias diferentes, Anna Roosevelt e
Antônio Porro concluíram que as sociedades amazônicas do período
de pré-contacto eram mais complexas do que aquelas que resulta­
ram da colonização6. Anne Christine Taylor, com E M. Renard-Case-
vitz e Th. Saignes deram um novo significado às relações entre
sociedades indígenas andinas e amazônicas7. Os estudos de Marta
Rosa Amoroso, Nádia Farage ou Miguel Menéndez vieram esclare­
cer os processos de aculturação e resistência de algumas etnias,
como os Mura, ou em algumas áreas, como o vale do rio Branco ou
a bacia do rio Madeira8. Embora fazendo incidir o seu objecto de
trabalho sobre a segunda metade de Setecentos, estes últimos histo­
riadores particularizaram casos ou regiões, não os enquadrando
num projecto político geral aplicado ao Norte do Brasil.

5 Manuela Carneiro da Cunha (organização), História dos índios do Brasil, São


Paulo, Fapesp, Companhia das Letras, Secretaria Municipal de Cultura, 1992; Anna
C. Roosevelt (edição), Amazonian lndians. From Prehistory to the present. Anthropological
perspectives, Tucson e Londres, The University of Arizona Press, 1994.
6 Anna C. Roosevelt, «Aimazonian Anthropology: strategy for a new syntesis»,
in Amazonian lndians. From Prehistory to the present..., pp. 1 e ss; Antônio Porro, «Social
organization and political power in the Amazon floodplain: the Ethnohistorical sour-
ces», in ibidem, pp. 79 e ss.
7 Ainne Christine Taylor, «História pós-columbiana da Alta Amazônia», in Histó­
ria dos Índios do Brasil, pp. 213 e ss.; F. M. Renard-Casevitz, Th. Saignes, A. C. Taylor,
Vinca, 1'espagnol et les sauvages, Paris, Editions Recherches sur les Civilizations, 1986.
3 Marta Rosa Amoroso, «Corsários no caminho fluvial: os Mura do rio Madeira»,
in História dos índios do Brasil, pp. 297 e ss.; Miguel Menéndez, «A área Tapajós-
-Madeira: situação de contacto e relações entre colonizador e indígenas», in ibidem,
pp. 281 e ss.; Nádia Farage, As muralhas dos sertões. Os povos indígenas do rio Branco e a
colonização, Rio de Janeiro, Paz e Terra, Anpocs, 1991.

20
INTRO DUÇÃO

O estudo do Directório enquanto lei colonial reguladora da acção


dos luso-brasileiros ao longo da segunda metade do século xviii é
apresentado pela primeira vez num trabalho de Rita Heloísa de
Almeida recentemente editado9. E, assim sendo, esta autora parte de
um pressuposto idêntico ao que nos serve de base. Salientando
aspectos tão importantes como a educação, a economia, a felicidade
dos povos e o bem comum, a formação de núcleos de povoamento
ou a instalação de aparelhos jurídicos, políticos e administrativos
enquanto elementos de suporte ao processo de colonização, esta
autora justifica o Directório como uma consequência de falhas legisla­
tivas decorrentes do Regimento das missões (1686)10. Procura explicá-
-lo num contexto histórico que é, simultaneamente, o da expansão
portuguesa, das noções estruturantes do pensamento filosófico e
político europeu e do processo civilizador dos índios enquanto
decorrente da colonização da Amazônia11.
Na nossa perspectiva, concebemos o Directório e o corpo legisla­
tivo que o enquadrou como um projecto político que estruturava
uma alternativa ao sistema das missões. A sua concepção e, acima
de tudo, o seu «êxito» relacionaram-se com a conjunção de circuns­
tâncias políticas, econômicas, ideológicas e sociais que atribuíam ao
Brasil e, neste caso particular, ao Estado de Grão-Pará uma impor­
tância fundamental nos jogos de poder que Portugal estabelecia com
as outras coroas europeias.
Definido em meados de Setecentos, o Directório enquanto dis­
curso político colonial de base vigorou durante quase cinquenta
anos. Contudo, contrapondo-se à sua durabilidade enquanto pro­
jecto, aponta-se a multiplicidade de soluções e de resoluções que
permitia. Estas foram tomadas pelas entidades administrativas do
Estado em função das áreas geográficas a que se destinavam, deter­
minadas pelos grupos humanos existentes ou tendo em conta condi-
cionantes de política interna e externa. É a escolha de opções que
particulariza cada situação, bem como a avaliação das prioridades
que se impõem em determinados momentos que transformam o
período cronológico em estudo em um dos mais interessantes da
história da colonização portuguesa no Norte do Brasil.

9 Rita Heloísa de Almeida, O Directório dos índios. Um projecto de «civilização» no


Brasil do século x v iii , Brasília, Editora Universidade de Brasília, 1997.
10 Ibidem, pp. 162 e 194.
11 Ibidem, pp. 14, 22 e 234.

21
C A P ÍT U L O I

A PROMO ÇÃ O DOS AMERÍNDIOS A VASSALOS


AS CO NTR AD IÇÕES DA LIBERDADE
Foi a 6 de Junho de 1755 que D. José I aprovou a lei da liber­
dade dos índios do Norte do Brasil1. No entanto, a certeza prévia de
que a aplicação de tal diploma suscitaria junto dos moradores e dos
missionários do Estado do Grão-Pará uma forte contestação explica
a razão pela qual as autoridades administativas do Estado só o tives­
sem publicitado cerca de dois anos mais tarde, em 1757.
Aparentemente, a existência de tais cautelas podería parecer des­
necessária, como aliás se podería considerar uma redundância a pro­
mulgação de semelhante legislação. De facto, os ameríndios do Brasil
eram considerados homens livres, quer de acordo com as leis do reino
quer em concordância com as leis de Deus. Decretos reais e bulas
papais repetiam-se, já desde o século xvi, em considerações sobre a
humanidade dos índios e a liberdade das pessoas e dos bens dos habi­
tantes naturais dos territórios americanos pertencentes às monarquias
peninsulares2.
Sem aqui querermos estabelecer uma relação cronológica ou
uma análise pormenorizada dessa legislação aplicada em território
luso-brasileiro, importa, apesar de tudo, esclarecer que nela o esta­
tuto indígena oscilou, ainda que por curtos lapsos de tempo, entre a
liberdade absoluta, tal como era expressa pelo alvará de 30 de Julho
de 1609 e pela lei de 1 de Abril de 1680, e o cativeiro legal condicio­
nado3. Apesar do âmbito deste trabalho se restringir à segunda
metade do século XVIII, consideramos que é de suma pertinência ana­
lisar a legislação antecedente e, particularmente, os enunciados sobre
o cativeiro legal, aqui avaliados como uma condição imprescindível
para uma abordagem mais clara e dinâmica da lei da liberdade dos
índios de 6 de Junho de 1755.

1AHU, Conselho Ultramarino, códice 336, fls. 53 v-65; também BN, cód. 8396, doc. n.
2 José Vicente César, «Situação legal do índio durante o período colonial (1500-
-1822)», in America Indígena, ano xlv, vol. XLV (2), Abril-Junho de 1985.
3 Beatriz Perrone-Moisés, «índios livres e índios escravos. Os princípios da legis­
lação indigenista do período colonial (séculos XVI a XVlll)», in História dos índios do Bra­
sil, organização de Manuela Carneiro da Cunha, São Paulo, Fapesp, Companhia das
Letras e Secretaria Municipal de Cultura, 1992, pp. 123-128.

25
A PRO M O ÇÃO DOS AM ERÍNDIOS A VASSALOS

A s le is da e s c r a v id ã o : g u e rra ju sta e r e sg a te s

As opções escolhidas para sistematizar a situação legal do índio


implicam a consideração de três tipos de legislação que, estando
interligadas entre si, se esclarecem e clarificam mutuamente: a legis­
lação de carácter geral que estabelece e legitima os casos de escrava­
tura dos índios por guerra justa e por resgate; a legislação específica
sobre os índios, que regulamenta e normaliza as relações de depen­
dência, de trabalho e as ligações entre os indivíduos e as institui­
ções; e um outro tipo de legislação que, ainda que de âmbito dife­
rente, menciona, marginalmente, a relação dos índios com os
poderes ou os indivíduos.
Vários autores abordaram a questão do estatuto legal dos indí­
genas. No entanto, este assunto foi sistematizado de forma clara
tanto por Beatriz Perrone-Moisés4 como por Nádia Farage5. A pri­
meira autora distingue de entre o aparente caos legislativo promul­
gado pela coroa portuguesa durante três séculos duas vertentes que
dão coerência à legislação sobre a liberdade e a escravidão índia.
Estas consistem na contraposição entre as opções jurídicas tomadas
para os índios aldeados e aliados e para os índios inimigos. Já Nádia
Farage acentua a função econômica desempenhada pelos indígenas,
estabelecendo, a partir deste fenômeno, uma classificação com base
na distinção feita entre índios escravos e índios livres. É a partir daí
que parte para a análise da legislação.
Partindo destas premissas, analise-se com mais detalhe os
aspectos relacionados com a guerra justa e o resgate. Segundo Per­
rone-Moisés, a liberdade foi assegurada aos índios aliados durante
toda a colonização. Reconhecia-se que eram a principal fonte de
mão-de-obra e o principal meio de defesa da colônia; admitia-se-
-lhes também o direito de posse sobre as suas terras, bem como o
direito a uma justa remuneração a troco de serviços prestados. Na
medida em que não ofereciam resistência ao projecto colonizador
luso-brasileiro, eram objecto dos esforços de instituições governati­
vas e religiosas no sentido de proceder à sua aculturação. O pro­
jecto colonial definido na segunda metade do século xviii baseava-
-se na crença de que o programa implantado era um bem para os

4 Beatriz Perrone-Moisés, «índios livres e índios escravos...», pp. 116-131; «A


guerra justa em Portugal no século xvi», in Revista da Sociedade Brasileira de Pesquisa
Histórica, n.° 5, 1989-1990, pp. 5-10.
5 Nádia Farage, As muralhas dos sertões. Os povos indígenas no rio Branco e a coloni­
zação, Rio de Janeiro, Paz e Terra, Anpocs, 1991, pp. 26-34.

26
A PRO M O ÇÃO DOS AM ERÍNDIOS A VASSALOS

índios6. E se, até essa altura, esses valores assentavam na ideia da


salvação da alma e da «europeização» dos ameríndios, a partir daí
passaram claramente a residir nos princípios de felicidade e de bem
comum, entendidos como direitos inerentes a qualquer súbdito do
monarca. Resta acrescentar que os objectivos pretendidos eram,
sensivelmente, os mesmos: a salvação das almas e o «melhora­
mento» civilizacional dos ameríndios.
A liberdade oficial, reconhecida aos aliados, opunha-se à escra­
vidão, destinada aos inimigos. A. legitimação da escravatura
baseava-se em duas justificações: a guerra justa e o resgate. No
entanto, estes conceitos foram objecto de controvérsia, quer quando
aplicados ao Brasil quer quando pensados no contexto mais abran­
gente da Hispanoamérica. As causas que legalizariam a sujeição de
um povo ou de um grupo a outros, apesar de frequentemente deba­
tidas e inúmeras vezes reformuladas, nunca foram assunto claro, ou
sequer pacífico. Não obstante, há que ter em conta que os debates e
as elaborações jurídicas produzidas em Espanha tiveram uma
expressão mais contida e menos original em Portugal7.
As causas pelas quais uma guerra era considerada justa foram,
ao longo do tempo, diversas e, sobretudo, adaptadas à evolução da
«ideologia de expansão» que se foi formando a partir dos primeiros
contactos tidos entre povos ibéricos e africanos ou ameríndios8. Se,
até ao início dos descobrimentos, a escravização por guerra justa era
justificada pela prática tradicional da dominação de infiéis que,
conscientemente, rejeitavam a fé católica, com o encontro de povos
pagãos que não recusavam cabalmente a difusão da religião cristã, a
escravidão passou a fundamentar-se na diferença entre indivíduos
mansos e civilizáveis e indivíduos bravos e aguerridos: era precisa­
mente no rompimento desta situação de amizade e paz que residia
a necessidade prática e a justificativa moral para a escravidão9.
O principal fundamento da guerra justa continuava a consistir
no serviço de Deus e na propagação da fé, quer junto de infiéis quer
junto de pagãos. A recusa à conversão, o impedimento da expansão

6 Beatriz Perrone-Moisés, «índios livres e índios escravos...», p. 122.


7 Beatriz Perrone-Moisés, «A guerra justa em Portugal no século xvi», p. 5; A. J. R.
Russell-Wood, «Iberian expansion in the issue of black slavery: changing Portuguese
atittudes, 1440-1770», in The American Historical Review, vol. 83 (1), February, 1978,
pp. 23 e 33.
8 A. J. R. Russell-Wood, «Iberian expansion in the issue of black slavery...», p. 29.
9 John Manuel Monteiro, Negros da terra. índios e bandeirantes nas origens de
S. Paulo, São Paulo, Companhia das Letras, 1994, pp. 134-135.

27
A PRO M O ÇÃO DOS AM ERÍNDIOS A VASSALOS

do catolicismo, a prática de hostilidades contra vassalos e aliados


dos luso-brasileiros e a quebra de pactos celebrados eram motivos a
considerar na declaração da justeza de uma guerra. Os fundamentos
para legitimar uma acção guerreira consistiam, consequentemente,
na defesa da paz, segurança e religião, mas os aspectos econômicos
e civilizacionais também concorriam para essa decisão. A antropofa­
gia parece, se exceptuarmos unicamente os dois anos em que a lei
de 17 de Novembro de 1653 esteve vigente, não ter constituído
causa suficiente para declarar guerra justa. Era, apenas, motivo agra­
vante, ao contrário do que sucedeu, por exemplo, na Hispanoamé-
rica, onde foram promulgadas várias leis legitimando a escravatura
de índios canibais10.
Se considerarmos que a guerra justa era uma das formas de
legalizar a escravização de mão-de-obra, percebe-se o poder que a
autoridade para a declarar enquanto legítima forma de apreensão de
escravos conferia a uma determinada entidade. Houve guerras ofen­
sivas movidas pelos colonos com o único objectivo de obter escra­
vos, as quais ao serem posteriormente declaradas injustas, acaba­
riam por conferir a liberdade aos prisioneiros capturados. Este
julgamento implicava um processo, por vezes moroso, que consistia
na inquirição de testemunhos, no pedido de pareceres e informa­
ções e na elaboração de relatórios. Era com base nestes processos
que se justificava uma guerra justa. A capacidade para deliberar
sobre este assunto variou ao longo do tempo, sendo um atributo do
rei, mas podendo, em determinadas alturas, estar delegada nas pes­
soas dos governadores, de capitães-mores ou de juntas.
A escravidão não era lícita apenas aos inimigos da coroa. Podia
ainda compreender os índios que fossem comprados ou resgatados
a seus inimigos, conquanto a sua aquisição fosse uma forma de
salvá-los a ritos antropofágicos ou, então, se o seu aprisionamento
fosse considerado como resultado de uma guerra intertribal «justa».
Ao adquiri-los, os moradores passariam a ter o dever de os conver­
ter e civilizar e o direito de usufruírem do seu trabalho por um
determinado período de tempo: uma vez pago o preço do resgate, o
indivíduo seria, pelo menos de direito, livre.
As questões jurídicas que regulamentavam as relações dos luso-
-brasileiros com os ameríndios foram, desta forma, enunciadas nos

10 Michael Palencia-Roth, «The cannibal law of 1503», in Early images of the Amé­
ricas: transfer and invention, editado por Jerry M. Williams e Robert E. Lewis, Arizona,
The University of Arizona Press, pp. 21-63.

28
A PRO M O ÇÃO DOS AM ERÍNDIOS A VASSALOS

seus princípios gerais e, portanto, de forma incipiente e sem tomar


em conta as alterações ocorridas ao longo de três séculos. Aliás, na
capitania do Pará, a aplicação dos princípios jurídicos mencionados
suscitava «problemas técnicos», reflectidos, por exemplo, num
Memorial que aprezentam os religiosos capuchos que ora estão no Pará os
quais pedem ao rei lhes mande dar resolução de como se hão de haver no
serviço de Deus e de Sua Magestade sobre algumas dúvidas que se lhes
oferecemn. Dizia o memorando que as leis gerais não eram esclarece­
doras em relação a casos pontuais, ficavam irresolvidas questões
como a especificação do tempo que os índios resgatados deviam
servir; se se deviam considerar os hábitos indígenas acerca do esta­
tuto dos descendentes de escravos; sobre o regime que deviam usu­
fruir os índios que auxiliavam os luso-brasileiros nas guerras; e,
finalmente, com a legalidade de se preservar na escravidão indiví­
duos aprisionados por etnias inimigas dos luso-brasileiros, contra as
quais se tivesse movido uma guerra justa.
Este Memorial é, apenas, um reflexo da complexidade deparada
quando se tenta aplicar a legislação geral a um caso específico. Ou,
tal como sublinha Beatriz Perrone-Moisés, a política indigenista não
era uma mera aplicação de um projecto a uma massa indiferenciada
de habitantes da terra1112. E, por isso, afigura-se de importância funda­
mental confrontar a aplicação destas leis com uma situação especí­
fica: a política colonial ameríndia no Norte do Brasil na segunda
metade do século xviii.

O s m e c a n is m o s de cap tu ra

A aplicação das determinações legais às particularidades de um


caso concreto foi feita por Nádia Farage no seu estudo sobre os
índios do rio Branco. A autora particulariza a questão ao considerar
a existência de tropas de resgate, instituídas legalmente pelo padre
Antônio Vieira, e quando refere a existência de um tráfico clandes­
tino, por ela considerado como de muito maior porte que a escravi-
zação efectuada pelas tropas de resgate oficiais e tropas de guerra

11 AN/TT, Manuscritos do Brasil, n.° 1116, doc. 52, pp. 593 e ss., Memorial que
apresentam os Religiosos capuchos que ora estão no Pará, os quais pedem ao rei lhes
mande dar resolução de como se hão de haver no serviço de Deus e de S. Mage.
sobre algumas dúvidas que se lhes ofereçem, s/d [talvez da primeira metade do
século xvn],
12 Beatriz Perrone-Moisés, «índios livres e índios escravos...», p. 129.

29
A PRO M O ÇÃO DOS AM ERÍNDIOS A VASSALOS

somadas13. Ou seja, dá claramente a entender que existiam diver­


gências de interesse entre as entidades que promulgavam as leis e os
indivíduos que as deviam cumprir. Dessa situação resultavam dis-
sensões e conflitos que perturbavam a estabilidade das capitanias do
Norte14.
Tal como Farage, optámos igualmente por recuar até à primeira
metade do século xvin para compreender de forma mais abrangente
as permanências e as transformações que ocorreram durante a
segunda metade. É óbvio que, num período de tempo tão vasto
como a primeira metade de Setecentos, houve várias políticas e
opções que não podem ser aqui levadas em consideração. No en­
tanto, entendemos que os objectivos propostos ficam plenamente
cumpridos com a consideração de questões específicas, tais como: a
competência das instituições, as formas de apresamento legal de
ameríndios e as infracções às normas.
Desde inícios do século xvn e até meados da centúria seguinte, a
Junta das Missões, composta por prelados Jesuítas, Carmelitas, Mer-
cedários, Capuchos e da Piedade, pelo governador, pelo ouvidor-
-geral e pelo bispo15, era a instituição que maior importância tinha
para determinar assuntos que respeitassem aos índios e ao seu
governo16. Este organismo era juridicamente responsável pelos ame­
ríndios, que deviam ser tratados «com suavidade, prudência & arte,
guardando lhe infalivelmente as prerrogativas de seus postos & a
estimação que couber nas suas pessoas & procedendo no castigo
das suas culpas com a suavidade & caridade que elas permitirem
para que o temor & o rigor os não obrigue a desemparar as ditas
aldeias & seja ocasião de não quererem vir outros para elas»17.
De igual modo, a câmara de Belém, por intermédio do vereador
mais velho e pelo seu procurador, tinha autoridade para interferir
em questões de política indígena na medida em que lhe eram atri-

13 Nádia Farage, As muralhas do sertão..., p. 30.


14 Um estudo pormenorizado dos conflitos ocorridos na capitania do Pará rela­
cionados com o estatuto e a utilização de índios continua a ser a obra de João Lúcio
de Azevedo, Os jesuítas no Grão-Pará. Suas missões e a colonização, Coimbra, Imprensa
da Universidade, 1930.
15 A aprovação régia sobre a participação desta autoridade na Junta das Missões
da capitania do Pará parece datar de 1725 (BN, cód. 11 750, pp. 760 e ss., Carta régia
ao bispo do Pará aprovando o plano de actuação episcopal, de 31 de Março de 1725).
16 AHU, Pará, caixa 3 (729), Representação da câmara de Belém às instituições
centrais, de 28 de Fevereiro de 1705.
17 BN, Res. 2434 A, Carta régia aos Ministros da Junta das Missões do Estado do
Maranhão, de 3 de Fevereiro de 1701, p. 71.

30
A PRO M O ÇÃO DOS AM ERÍNDIOS A VASSALOS

buídas competências para deliberar sobre a ida de indivíduos ao ser­


tão, o envio de tropas de comércio e de resgate e a repartição dos
índios13.
As duas instituições deviam sempre nortear-se pelas leis e regi­
mentos vigentes, uns vigorando para todo o vice-reinado do Brasil,
outros restringindo-se unicamente às capitanias do Maranhão e do
Pará1819. De entre estes, uns diziam respeito especificamente aos
índios, enquanto outros mencionavam os indígenas como um de
entre muitos assuntos. ,
Para além de um corpo legislativo que servia de suporte teórico
à sua actuação, a Junta das Missões e a câmara usufruíam de uma
série de informações que lhes advinham dos relatórios e representa­
ções dos missionários espalhados pelo sertão, e dos informes de
moradores, soldados e funcionários que, por vezes, pertenciam às
tropas de resgate ou às tropas de guerra. Era, em parte, com base
nas considerações suscitadas por este conjunto de informações, que
a Junta decidia sobre a declaração de guerra justa a uma etnia. Essas
decisões davam origem a um processo, depositado no Cartório da
Ouvidoria-Geral20. A declaração de guerra justa não exigia unanimi­
dade por parte de todos os membros constituintes da Junta das Mis­
sões, como o justifica a oposição movida pelos Carmelitas à guerra
contra as etnias Cahivionas e Purinas do rio Solimões, nos anos
30 do século xviii21. O mesmo aconteceu, nesta época, com os
Manaus, do rio Negro. As instituições governativas e as ordens reli­
giosas eram regularmente informadas pelos prelados e por escoltas e
tropas sobre as mortes, danos e invasões feitos sob a chefia de Aju-
ricaba. Com base nas queixas que de todo o rio Negro surgiam, a
Junta das Missões verificou estarem reunidas as condições para se
declarar guerra justa aos principais das nações Manaus e Maiapena
e se prender e castigar o principal mentor das insurreições, Ajuri-

18 AHU, Pará, caixa 3 (729), Parecer do Conselho Ultramarino sobre a represen­


tação da câmara de Belém acerca da constituição da Junta das Missões, de 23 de
Setembro de 1705; BN, R 2434 A, de 6 de Dezembro de 1705, pp. 55 e 56.
19 Sobre a terminologia administrativa utilizada, veja-se os seguintes artigos:
«Estado do Brasil», cols. 312-313, «Estado do Grão-Pará e Maranhão», cols. 314-319,
«Estado do Maranhão», cols. 319-321, «Maranhão, capitania do», cols. 516-521, «Rio
Negro, capitania do», cols. 718-722, «Pará, capitania do», cols. 611-612, «Vice-rei-
nado», cols. 830-835, in Dicionário de História da Colonização Portuguesa no Brasil (coor­
denado por Maria Beatriz Nizza da Silva), Lisboa, Editorial Verbo, 1994.
20 BN, cód. 11 570, Representação do governador do Estado do Maranhão, Ale­
xandre de Sousa Freire, s/d [de aprox. 1730], p. 330.
21 lbidem, p. 330.

31
A PRO M O ÇÃ O D O S AM ERÍNDIOS A VASSALOS

caba22. A decisão contou, no entanto, com a oposição do padre rei­


tor do Colégio da Companhia de Jesus.
Este episódio, talvez um dos mais célebres ocorridos no rio
Negro na primeira metade de Setecentos, bem como outros menos
notórios, permitem, também, elucidar como a captação das etnias
não-aculturadas era feita no terreno. Na abordagem deste assunto,
utilizaremos as categorias explicitadas por Beatriz Perrone-Moisés e
consideraremos as etnias ameríndias como amigas e aliadas e como
inimigas, enquanto nos permitimos também lembrar que os amerín­
dios eram objecto da protecção real e, na maioria dos casos, consi­
derados livres. No entanto, dizem as fontes, ainda que «isto se lhes
cumpra e guarde tão inteiramente quanto se lhes promete [as leis
régias e a protecção pessoal] ainda é grande a eficácia da graça
divina que homens gentios e bárbaros criados sem nenhuma lei,
nem ainda a da natureza, queiram ser arrancados de suas pátrias e
vir para terras estranhas receber a fé de um Deus e a sujeição de um
Rei que não conhecem e obrigar-se em tudo a tão diferentes estilos
e preceitos de vida»23.
Até meados do século xviii, o descimento dos ameríndios ami­
gos e aliados de seus territórios devia ser feito, sempre que possível,
de forma suave e branda, numa missão confiada a missionários, a
índios ou a colonos24. Aos padres cumpriría aldear os indígenas num
núcleo urbano, catequizá-los e prepará-los para as tarefas econômi­
cas que se esperavam que prestassem às ordens religiosas, aos
moradores ou à coroa, muitas vezes em locais afastados dos núcleos
onde inicialmente se tinham sediado. Em contraposição, aos índios
inimigos era reservada a actuação das tropas de guerra, as quais
deviam ser, pelo menos teoricamente, expedidas pelo governador
ou pela Junta das Missões. O objectivo destas tropas era suprir a
falta de mão-de-obra sentida na capitania do Pará e aumentar o erá­
rio régio pela integração do produto dos quintos e das jóias na
Fazenda Real. Paralelamente, os resgates seriam objecto das tropas
de paz ou bandeiras que, entre outros objectivos, teriam igualmente
a finalidade de resgatar índios. Estas tropas, instituídas legalmente

22 AHU, Pará, caixa 59 (774), Ofício de João da Maia da Gama ao Conselho


Ultramarino, de 26 de Setembro de 1727.
23 BN, Reservados, códice 11 570, Resposta dos títulos que o Procurador do
Maranhão Jorge de Sampaio deu contra a Companhia de Jesus, s/d [aprox. finais do
século xvii], p. 673.
24 Sobre o conceito de descimento, confronte-se o capítulo III «Em cumprimento
do real serviço: o reordenamento do território e a integração dos vassalos».

32
A PRO M O ÇÃ O DOS AM ERÍNDIOS A VASSALOS

em meados do século XVII, deviam ser acompanhadas por missioná­


rios que, para além de providenciarem o fornecimento de alimentos,
medicamentos, intérpretes e remeiros, eram responsáveis pela
inquirição do modo como a captura tinha sido feita, por forma a dar
legitimidade à escravidão25.
O que a leitura da documentação deixa inferir é que inúmeras
irregularidades confundem as funções desempenhadas por quem
efectuava os descimentos, os resgates ou a escravização. As tropas
de resgate realizavam, frequentemente, apreensões indevidas de
escravos, não respeitando as especificidades estabelecidas pela
guerra justa ou pelos resgates, como era o caso do morador José da
Costa, que tinha provocado capturas de índios e índias nos rios
Negro e Japurá26.
Por vezes, os descimentos não eram mais do que a captura e
transporte compulsivo de mão-de-obra para junto dos núcleos urba­
nos luso-brasileiros e para as fazendas dos moradores. Os índios
eram levados contra sua vontade, vendidos e obrigados a servir os
colonos sem receberem qualquer remuneração. A título de exemplo
mencione-se unicamente a situação caótica provocada por vários
indivíduos que ficaram no rio Negro e no rio Uaupés desde o tempo
das tropas de resgate e dos quais se destacam Francisco Portilho de
Melo e Pedro de Braga. Nas décadas de 40 e 50 do século xviii, pro­
vocaram muitas das revoltas índias ocorridas no rio Negro devido às
violências e mortes cometidas junto das etnias ameríndias da região
e efectuaram o descimento de centenas ou, talvez, de milhares de
índios dos sertões para as áreas em redor da cidade de Santa Maria
de Belém27.
Também as tropas de guerra, por seu turno, apreendiam etnias
inimigas, mas também índios aliados. Eram responsáveis pela extin­
ção de inúmeros grupos e pela desertificação de algumas áreas geo­
gráficas, para além de provocarem a revolta e a desconfiança junto
dos ameríndios. Tal foi o caso do contingente que actuou nos rios
Negro, Cavaboris, Mariá e Meguá na década de 30, acusado de

25 AHU, Pará, caixa 59 (774), Representação de frei Matias de S. Boaventura, car­


melita e missionário no rio Cauaboris, à Junta das Missões, de 10 de Agosto de 1734.
26 BN, Colecção Pombalina, códice 622, fls. 10-llv, Carta de José Pereira de Abreu
a Francisco Xavier de Mendonça Furtado, de 29 de Janeiro de 1753.
27 BN, Colecção Pombalina, códice 621, fl. 214, Ofício de Lourenço de Belfort a
Francisco Xavier de Mendonça Furtado, de 8 de Fevereiro de 1753, ibidem, códice 622,
fl. 10, Carta de José Pereira de Abreu a Francisco Xavier de Mendonça Furtado, de 29
de Janeiro de 1753.

33
A PRO M O ÇÃO DOS AM ERÍNDIOS A VASSALOS

debelar principais e nações que não eram criminosos, mas antes


amigos e aliados dos luso-brasileiros e que com eles mantinham
comércio. Estes grupos haviam auxiliado, em tempos, as tropas que
faziam resgate na região com mantimentos ou com contingentes
armados na luta contra inimigos28.
Em suma, os missionários queixavam-se contra as exacções dos
colonos, que desviavam os descimentos dirigidos às suas missões
para as fazendas dos moradores, tornando cativos aqueles índios
que, de direito, eram livres29. Os moradores representavam ao rei
que os missionários não lhes davam a mão-de-obra determinada
pelos repartimentos, utilizando-a em benefício dos colégios, mis­
sões e fazendas eclesiásticas30. As autoridades davam conta que os
particulares traficavam nos sertões, comprando índios contra as leis
do rei e do governador e não permitindo que os descimentos fossem
contabilizados por forma a se cobrarem os impostos devidos à
coroa31. Os funcionários das fortalezas, encarregados de vigiar o trá­
fico clandestino, não podiam ou não queriam controlá-lo. Os mis­
sionários assinavam registos em branco ou, ameaçados pelas tropas,
declaravam escravos os índios que, legalmente, eram livres. Os go­
vernadores beneficiavam os seus amigos e lucravam com o apresa-
mento clandestino.
Esta actividade reflectia-se no incremento das guerras intertri-
bais e da captura de prisioneiros de guerra, no desequilíbrio do sis­
tema de alianças já estabelecidas quer com outras etnias quer com
outros europeus. Incidia, ainda, na migração dos grupos étnicos para
zonas afastadas da sua residência habitual e na redefinição do esta­
tuto do prisioneiro de guerra transformado em escravo32.
Consequentemente, da leitura da documentação infere-se que,
durante toda a primeira metade do século xviii, houve conflitos de
interesse entre os diferentes grupos constituintes da sociedade colo-

28 AHU, Pará, caixa 59 (774), Representação de frei Matias de S. Boaventura, car­


melita e missionário no rio Cauaboris, de 10 de Agosto de 1734.
29 BNRJ, 12-2-6, Queixas apresentadas ao soberano contra Alexandre de Sousa
Freire, de 15 de Fevereiro de 1730.
30 AHU, Conselho Ultramarino, códice 271, fls. 6v-7, Carta régia de D. João V
sobre o fornecimento de índios, de 24 de Maio de 1743, e BN, Colecção Pomhalina,
códice 622, fl. 33, Ofício de José Antônio de Freitas Guimarães a Francisco Xavier de
Mendonça Furtado, de 13 de Fevereiro de 1753.
31 BN, Colecção Pomhalina, códice 622, fl. 25, Ofício de Ricardo Antônio da Silva
Leitão, de 9 de Fevereiro de 1753; ibidem, fl. 31, Ofício de Manuel [...] da Silva a Fran­
cisco Xavier de Mendonça Furtado, de 13 de Fevereiro de 1753.
32 John Manuel Monteiro, Negros da terra..., p. 33.

34
A PRO M O ÇÃO DOS AM ERÍNDIOS A VASSALOS

nial paraense e que todos os estratos sociais estiveram, por seu


turno, implicados e comprometidos no tráfico ilegal de escravos33.
Do lado ameríndio, se muitos indígenas foram mantidos libertos
devido ao esforço de missionários ou das autoridades administrati­
vas, muitos outros continuaram a ser escravizados ou obrigados a
trabalhar em condições equiparadas às dos escravos. O vasto corpo
legislativo destinado a proteger os índios era constantemente infrin­
gido.
As ilegalidades cometidas no sertão amazônico comprovam que
as condições de guerra justa e de resgate previamente enunciadas
não eram de todo cumpridas. Se, por um lado, a legislação admitia
abertamente que a situação caótica existente na capitania do Pará
encontrava as suas causas nos cativeiros ilegítimos e violentos prati­
cados pelos colonos, por outro, a mesma legislação reconhecia que a
opulência da colônia dependia da exploração e subordinação dos
ameríndios34.
Tendo em vista a observância das leis da liberdade e da escrava­
tura dos índios decretadas a partir do reinado de D. Sebastião, o
governo central derrogava velhos decretos e promulgava outros com
uma rapidez vertiginosa. Estas leis deviam abranger todos os índios
brasileiros ou aplicar-se somente ao Estado do Maranhão. Suce-
diam-se, favorecendo ora missionários ora colonos com o poder
para administrar os ameríndios. A legislação emitida pelo reino e,
logo, as opções da política colonial tomadas pelo poder central, não
eram, em alguns casos, decisões «puras» pensadas pelo governo de
Lisboa sobre o destino da colônia ou, neste caso específico, dos
ameríndios; expressavam também o peso ou a predominância que
um determinado grupo tinha num momento específico em Portugal;
reflectiam as alianças e os contactos que esse grupo detinha junto
do monarca ou de um indivíduo, uma família ou uma instituição;
eram determinadas por jogos de poder e de influência.
Aparentemente, o que um estudo imediato faz depreender é
que as mudanças subjacentes à legislação ameríndia destinavam-se a
uma efectiva protecção aos índios. Um exemplo óbvio do que afir­
mamos reside nas razões apresentadas por D. Pedro II em alvará
régio de 28 de Abril de 1688, no qual derrogava a lei de 1 de Abril
de 1680, que concedia a liberdade irrestringível dos índios, e reacti-
vava o diploma de 3 de Abril de 1655, reinstaurando o sistema dos

33 Nádia Farage, As muralhas do sertão..., p. 30.


34 Jonh M. Monteiro, Negros da terra..., p. 36.

35
A PRO M O ÇÃ O D O S AM ERÍNDIOS A VASSALOS

resgates. Dizia o monarca que, devido a interpretação errônea da


legislação, os índios derrotados em guerras eram vendidos a estran­
geiros, mortos pelos luso-brasileiros ou, ainda, comidos pelos seus
inimigos35. No sentido de evitar esta perda, contrária às leis divina e
humana, o monarca legalizava, de novo, a lei dos resgates, que se
deviam fazer por conta da Fazenda Real e com a colaboração dos
Padres da Companhia.
E óbvio que a acção «filantrópica» do soberano atentava contra
os interesses ameríndios e contra a sua liberdade, mas beneficiava a
sociedade colonial que via, assim, reactivada uma das suas fontes de
fornecimento de mão-de-obra: os índios resgatados. Esta atitude
política não resultava de ponderações éticas, mas da influência e
da representatividade que alguns estratos da sociedade colonial
paraense tinham junto do poder político central.
A mão-de-obra indígena era tão imprescindível para o desenvol­
vimento econômico local como para o próprio sistema colonial.
Pensamos que, no Estado do Grão-Pará, a verdadeira riqueza residia
não na terra, na exploração agrícola, na recolha das drogas-do-ser-
tão, na produção artesanal ou na criação de gado, mas sim na força
de trabalho que impulsionava essas actividades. Ou, como se afir­
mava numa fonte contemporânea, «No Estado do Maranhão,
senhor, não há outro ouro nem outra prata mais que o sangue e o
suor dos índios: o sangue se vende nos que cativam e o suor se con­
verte no tabaco, açúcar e nas mais drogas com que os índios se
lavram e fabricam»36. Na área geográfica em questão, essa mão-de-
-obra era obtida de forma mais fácil e rápida e com custos reduzidos
junto das comunidades ameríndias da bacia hidrográfica amazônica.
Assim se tentou explicar os inúmeros antagonismos, confrontos
e revoltas que opuseram os diferentes estratos da sociedade colonial
paraense durante a primeira metade do século xvm quando os seus
interesses não coincidiam em relação a um assunto tão delicado
como era o apresamento e a repartição dos ameríndios37.

35 Alvará de 28 de Abril de 1688, in Regimento e leis sobre as missões do Estado do


Maranhão e Pará sobre a liberdade dos Índios, Lisboa, Officina de Antônio Manescal,
1724, pp. 20 e 21.
36 BN, Reservados, cód. 11 570, Resposta aos capítulos que Jorge de Sampaio, Pro­
curador do Maranhão, deu contra a Companhia, s/d [aprox. fim do século xvn], p. 669.
37 Para este assunto, confronte-se, mais uma vez, João Lúcio de Azevedo,
Os jesuítas no Grão-Pará. Suas missões e colonização. Veja-se capítulo m «Em cumpri­
mento do real serviço: o reordenamento do espaço e a integração dos ameríndios».

36
A PRO M O ÇÃO DOS AM ERÍNDIOS A VASSALOS

A s le is da lib e r d a d e :
a p r o m o ç ã o d o s ín d io s a v a s s a lo s

Em meados de Setecentos, o estatuto jurídico dos índios era


assunto delicado que continuava a estar no centro das atenções de
governantes, de legisladores e de colonos luso-brasileiros. Os inú­
meros contingentes de índios descidos do interior do Estado do
Grão-Pará eram rapidamente absorvidos pela sociedade civil e ecle­
siástica luso-brasileira em serviços domésticos, agrícolas, pecuários
e artesanais, na busca de drogas-do-sertão, na condução de canoas;
eram, ainda, rapidamente dizimados pelas epidemias de sarampo e
varíola que assolavam o Pará nos anos imediatamente anteriores e
subsequentes ao governo de Mendonça Furtado38; muitos índios
procuravam, também, refúgio na floresta, individualmente ou em
pequenos grupos, podendo ainda organizar-se em quilombos39.
Paralelamente, a taxa de natalidade era diminuta, não repondo os
nascimentos a mão-de-obra indígena que era consumida pelos tra­
balhos, pelas doenças e pela idade.
Por muitos ameríndios, escravos ou não, que descessem da pla­
nície hidrográfica amazônica, parecia nunca serem suficientes para
os moradores e missionários luso-brasileiros, que reclamavam cada
vez mais mão-de-obra. Parecia também não serem bastantes para os
serviços oficiais e particulares das entidades administrativas e da
própria coroa. E deve-se desde logo sublinhar que estas queixas irão
ser uma constante ao longo de todo o período em análise.
No entanto, logo em 1751, D. José I estipulava nas Instruções
dadas ao novo governador e capitão-general do Estado do Grão-Pará
e Maranhão, Francisco Xavier de Mendonça Furtado, que o «[...] in­
teresse público, e as conveniências do Estado que hides governar,
estão indispensavelmente unidas aos negócios pertencentes à con­
quista e liberdade dos índios, e juntamente às missões de tal sorte
que a decadência e ruína do mesmo Estado, e a infelicidade que nele

38 AHU, Pará, caixa 59 (774), Carta régia ao governador e capitão-general do


Estado do Grão-Pará, de 8 de Julho de 1750; Dauril Alden e Joseph Miller, «Out of
África: the slave trade and the transmission of smallpox to Brazil, 1560-1831», in Jour­
nal of Interdisciplinary History, XVIII (2), Autumn 1987, p. 221.
39 A notícia de quilombos em tomo da cidade de Santa Maria de Belém ou em
outros locais recônditos, próximos ou não de povoados luso-brasileiros, é uma cons­
tante na documentação analisada. Como exemplo, veja-se BN, Colecção Pombalina,
códice 621, fl. 44, Carta régia ao governador do Estado do Grão-Pará, de 18 de Maio
de 1751.

37
A PR O M O ÇÃ O DOS AM ERÍNDIOS A VASSALOS

se tem sentido, são efeitos de se não acertarem, ou de se não exe­


cutarem (por má inteligência) as minhas reais ordens»40. Ou seja, o
monarca, para além de procurar claramente impor e fazer respeitar
as leis que os seus antecessores tinham publicado sobre a liberdade
dos índios, atribuía ao não cumprimento das mesmas o declínio do
Norte brasileiro.
Parece haver, à partida, uma clara contradição entre o discurso
legislativo que procurava impor a liberdade das pessoas e bens dos
ameríndios, facultando a tomada de opções e promovendo a livre
circulação, com a necessidade crônica de uma mão-de-obra que, se
fosse mantida escrava, poderia ser mais facilmente explorada. O que
terá levado a coroa, que durante tanto tempo tinha promulgado
uma sucessão de decretos e alvarás sobre a liberdade dos índios, a
empenhar-se de forma tão decidida e directa em semelhante ques­
tão, colocando-a como uma das prioridades da administração de
Mendonça Furtado?
Uma das hipóteses que se podem considerar para explicar este
interesse da coroa'pelos índios reside na vontade expressa dos pode­
res centrais em tomar os indígenas em cidadãos de pleno direito, em
tudo semelhantes aos luso-brasileiros. Nesta perspectiva, a lei da
liberdade dos índios, promulgada em 1755, é um aspecto impor­
tante, especialmente se a avaliarmos no corpo legislativo em que
está integrada.
Esta premissa afigura-se complexa, porque há a considerar que,
no discurso colonial, a transformação dos ameríndios em vassalos
do monarca formaliza-se em duas vertentes: por um lado, nas medi­
das legislativas que promoviam o índio a pessoa livre, tendendo a
equipará-lo a qualquer vassalo luso-brasileiro; e, por outro, nas
medidas civilizacionais e educativas, que visavam transformá-lo em
verdadeiro vassalo luso-brasileiro. Enquanto o primeiro aspecto é
fundamental para a compreensão da questão que nos propusemos,
o segundo relaciona-se com questões de aculturação e de europeiza­
ção que mais à frente serão retomadas.
A lei da liberdade dos ameríndios encontra-se enquadrada por
outras medidas legislativas, que acabariam, em última instância, por
concorrer para um único objectivo: o índio, para além de ser um
homem livre, devia ser, fundamentalmente, um vassalo do soberano
português. E, nesse sentido, a coroa promulgou três leis fundamen-

40 BN, Cotecção Pombalina, códice 626, fl. 7, Instruções régias dadas a Francisco
Xavier de Mendonça Furtado, de 30 de Maio de 1751.

38
A PRO M O ÇÃO DOS AM ERÍNDIOS A VASSALOS

tais, que visavam equiparar ou promover o ameríndio a vassalo luso-


-brasileiro. Foram eles o Alvará estipulando que os vassalos casados com
índios não sofrerão de infâmia mas se farão dignos da atenção real e serão
preferidos nas terras em que se estabelecerem para ocupações e postos; e os
seus filhos e descendentes serão hábeis para quaisquer postos41; a já men­
cionada carta régia estabelecendo a liberdade das pessoas e bens dos
ameríndios, «primários e naturais senhores» da terra que, vivendo
em grande miséria e barbárie, importava civilizar por meio da reli­
gião, da instrução e do incentivo ao'desenvolvimento agrícola e
comercial42; e, finalmente, o Alvará estabelecendo a inviolável observân­
cia da lei de 12 de Setembro de 1653, estabelecendo que os índios do Pará
e Maranhão sejam governados no temporal por governadores e principais e
justiças seculares com inibição das administrações dos regulares43.
Pensamos que é imprescindível enquadrar esta legislação num
outro contexto mais abrangente que contempla o Império Português
do Oriente. As semelhanças entre as medidas reformistas desenca­
deadas por Mendonça Furtado no Norte brasileiro e o discurso legis­
lativo que, paralelamente, se aplicou no Oriente são notórias. Não
deixa de ser pertinente confrontar a liberdade concedida aos amerín­
dios do Norte do Brasil, imposta ao vice-reinado só três anos mais
tarde, com a proibição da escravatura chinesa, datada de 28 de
Março de 175844.
De igual forma, é interessante relacionar a equidade de direitos
que, na mesma época, é dada aos vassalos índios e aos súbditos
indianos e macaenses do Rei Fidelíssimo. Dos dois lados do Império
tomavam-se medidas semelhantes, numa intenção que, tal como
notou Maria de Jesus dos Mártires Lopes para a sociedade goesa,
tinha de, por um lado, agradar e assegurar a fidelidade da população
nativa à Coroa Portuguesa; por outro, diminuir o poder das grandes
ordens religiosas45.

41 BN, Res. 3610 V, alvará de 4 de Abril de 1755.


42 AHU, Conselho Ultramarino, códice 336, fls. 53v-65; BN, Reservados, códice
8396, doc. li.
43 Alvará de 7 de Junho de 1755, in Collecção das leis, decretos e alvarás que compre-
hende o feliz reinado dei rei ftdelissimo D. José I nosso senhor desde o anno de 17JO até ao de
1760 e a pragmática do Sr. Rei D. João V do anno de 1 7 4 9 , Tomo I, Lisboa, Oficina de
Antônio Rodrigues Galhardo, 1797.
44 BNRJ, II 33-21-51, Carta régia dirigida ao Conde de Arcos ampliando as leis
de 6 e 7 de Junho de 1755, de 8 de Maio de 1758; também em JCB, 71-341-1.
45 Maria de Jesus dos Mártires Lopes, Coa Setecentista: tradição e modernidade
(1750-1800), Lisboa, Centro de Estudos dos Povos e Culturas de Expressão Portu­
guesa, Universidade Católica Portuguesa, 1996, p. 42.

39
A PRO M O ÇÃ O DOS AM ERÍNDIOS A VASSALOS

Entre o Norte brasileiro e a índia ou Macau o processo legisla­


tivo era semelhante, apenas separado por uma diferença mínima de
tempo. Assim, o alvará de 4 de Abril de 1755 encontrava correspon­
dência em diplomas régios de 2 de Abril de 1761, pelos quais se
determinava que os vassalos naturais do Estado da índia, conquanto
cristãos, passassem a usufruir das mesmas honras, privilégios e
prerrogativas e a deter os mesmos direitos, ou até preferência, na
habilitação ao exercício de cargos administrativos. De igual modo,
proibia-se que fossem injuriados de negros46. A igualdade jurídica
imposta entre reinóis e autóctones possibilitava o acesso quer de
índios quer de indianos aos quadros eclesiásticos e aos postos mili­
tares. De igual modo, os filhos das aristocracias dos dois lados do
Império tinham acesso a seminários e colégios47. A intenção era
semelhante: formar um grupo de indivíduos que fizessem a ligação
entre as duas sociedades, a colonial e a indígena, tanto pelo nasci­
mento quanto pela formação.
No entanto, diferenças fundamentais separavam as sociedades
que se pretendiam implantar em locais tão distantes. Enquanto nas
sociedades ameríndias não havia diferenciações sociais relevantes,
exceptuado o principal ou chefe militar e o pagé ou xamã, a estru­
tura social indiana encontrava-se fortemente estratificada, composta
por «realidades sociais diferentes e até mesmo paradoxais», resultan­
tes da fusão de uma sociedade ancestral com elementos novos trazi­
dos pela expansão portuguesa48. Por outro lado, as sociedades colo­
niais implantadas nos diferentes pontos do Império eram, também,
diferentes na sua constituição, na sua organização e nos seus inte­
resses49. Terá, possivelmente, sido por isso que o decreto de 1761,

46 Ibidem, p. 39. Antônio Alberto de Andrade, «A política portuguesa em África


no século xviii», in separata da Revista do Gabinete de Estudos Ultramarinos, 9-10, 1953,
p. 17.
47 Fundou-se um seminário em Goa e intentou-se o mesmo para Moçambique.
Veja-se Antônio Alberto de Andrade, «A política portuguesa em África...», p. 18;
O tradicional anti-racismo e a acção civilizadora dos portugueses, Lisboa, 1952, pp. 36-37.
48 Maria de Jesus Mártires Lopes, ibidem, p. 75.
49 Talvez assim se explique que a mesma lei de 2 de Abril de 1761, que devia
contemplar goeses e macaenses, não tenha sido executada de imediato em Macau
«provavelmente pela resistência criada pelas elites» (Maria de Jesus dos Mártires
Lopes, «Mendicidade e “maus costumes” em Macau e Goa na segunda metade do
século xvill», in As relações entre a índia Portuguesa, a Ásia do Sueste e o Extremo Oriente.
Actas do Seminário Internacional de História Indo-Portuguesa, edição de Artur Teodoro de
Matos e Luís Filipe F. Reis Thomaz, Macau e Lisboa, Comissão Nacional para as
Comemorações dos Descobrimentos Portugueses, Fundação Oriente, 1993, p. 67).

40
A PRO M O ÇÃ O DOS AM ERÍNDIOS A VASSALOS

enviado ao governador e capitão-general de Moçambique, Calixto


Rangel Pereira de Sá, só teve cumprimento na administração de João
Pereira da Silva Barba50.
A compreensão da questão passa, obviamente, pela percepção
da ideologia política colonial definida em Lisboa51. Não é por acaso
que, quando se difundiu ao resto do Império este corpo jurídico,
fosse secretário de Estado do Ultramar o antigo governador do Pará,
Francisco Xavier de Mendonça Furtado (1760-1769)52. Foi o irmão
de Pombal o responsável pela aplicação das mesmas medidas tanto
no Brasil quanto no Oriente.

A lib e r d a d e in d íg e n a e as su a s c o n tr a d iç õ e s

Através dos diplomas aplicados ao Norte brasileiro, os amerín­


dios eram, pela lei, equiparados aos habitantes reinóis ou luso-brasi-
leiros. O discurso oficial procurava, portanto, estabelecer a igual­
dade entre índios e luso-brasileiros: igualdade de direitos, de opções,
de possibilidades. Mas será que a liberdade dos índios era igual à
liberdade dos luso-brasileiros? Quantas acepções da palavra «liber­
dade» podem ser inferidas da leitura do discurso oficial luso-brasi-
leiro?
Ao tentar tomar os índios em cidadãos de pleno direito, em
tudo semelhantes aos súbditos luso-brasileiros, este conjunto do­
cumental em análise vai tentar aproximar os dois grupos. Este pro­
grama baseou-se, por exemplo, no incentivo à miscigenação pelo
casamento de vassalos portugueses com ameríndias; na preferência
dadas aos índios e a seus descendentes para o exercício de certos

50 Antônio Alberto de Andrade, O tradicional anti-racismo e a acção civilizadora dos


portugueses, p. 40.
51 É Nuno Gonçalo Monteiro que afirma que falar do governo de Lisboa antes
do século xviii faz pouco sentido. No entanto, na época em análise, tinha já ocorrido
um crescimento significativo do aparelho «burocrático» central («O central, o local, e
o inexistente regional», in História dos municípios e do poder local (dos finais da Idade
Média à União Européia), direcção de César de Oliveira, Lisboa, Círculo de Leitores,
1996, pp. 80-81).
52 Marcelo Caetano, «As reformas pombalinas e post-pombalinas respeitantes
ao Ultramar. O novo espírito em que são concebidas», in História da Expansão Portu­
guesa no Mundo, vol. m, Lisboa, Editorial Ática, 1940, pp. 251-252. Afigura-se-nos que,
apesar da sua pertinência, as questões de «ideologia política colonial» não cabem no
âmbito desta dissertação, mas em estudos que se centrem na organização e nas atitu­
des políticas do governo de Lisboa e nas suas relações com o Império.

41
A PRO M O ÇÃO DOS AM ERÍNDIOS A VASSALOS

cargos públicos; na prioridade que se dava aos luso-brasileiros casa­


dos com mulheres indígenas para desempenhar funções administra­
tivas nas povoações; na legitimação das pretensões índias para se
candidatarem como irmãos leigos às ordens religiosas53.
Na medida em que os ameríndios eram súbditos tão aptos
como quaisquer outros, reconhecia-se-lhes, por seu turno, a capaci­
dade de se governarem. E, nesse sentido, o discurso legislativo esti­
pulava que os missionários, que até à data tinham o controlo das
missões, fossem substituídos pelos ameríndios naturais das vilas e
aldeias do Estado54. Os indígenas estavam, assim, integrados nos
mesmos circuitos administrativos e jurídico-institucionais que os
luso-brasileiros, uma vez que deixavam de ter uma autoridade tute­
lar que os regesse na administração das suas povoações. Esta ideia
de integração foi, ainda, reforçada quando se lhes reconheceu a
capacidade de recorrerem aos governadores, ministros e tribunais
reais em caso de agravo55.
Ora, se esta é a face oficial do discurso jurídico, o que se verifica
é que, de facto, há inúmeras contradições ou, então, e mais precisa­
mente, imensos ajustamentos. Estes processaram-se, antes de mais,
a nível legislativo. O Directório que, nas palavras de Carlos de Araújo
Moreira Neto, é um «instrumento de intervenção e de submissão
das comunidades indígenas aos interesses do sistema colonial»56, é,
nesta óptica, também um meio de educação e de aculturação. Ou
seja, é uma forma de tomar o índio, a quem já se tinha formalmente
concedido o estatuto de vassalo, num verdadeiro súbdito, num luso-
-brasileiro ao serviço dos interesses da coroa e útil à política colonial.
Este objectivo é conseguido, primeiramente, pelo afastamento
dos missionários da administração das aldeias e pela sua substitui­
ção por directores, porque os índios, como de antemão se previa,
não poderíam corresponder, naquele momento, às exigências admi­
nistrativas luso-brasileiras.
Os directores, com base num programa de colonização, o Direc­
tório que se deve observar nas povoações dos índios do Pará e do Maranhão

53 BN, Res. 3610 V, alvará de 4 de Abril de 1755.


54 BN, Res. 2434 A, alvará de 7 de Junho de 1755.
55 Uma análise desta legislação encontra-se em Angela Domingues, «As socieda­
des e as culturas indígenas face à expansão territorial luso-brasileira na segunda
metade do século xviii», in Nas vésperas do mundo moderno. Brasil, Lisboa, Comissão
Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses, 1992, pp. 186-188.
56 Carlos de Araújo Moreira Neto, índios da Amazônia. De maioria a minoria (1750-
-1850), Petrópolis, Editorial Vozes, 1988, pp. 20 e 27.

42
A PRO M O ÇÃO DOS AM ERÍNDIOS A VASSALOS

enquanto Sua Magestade não mandar o contrário, tinham por objectivo


principal a transformação dos ameríndios57, cuja liberdade e sujeição
eram consideradas como assuntos de interesse público, para além de
coincidirem com as conveniências do Estado. Este programa de
colonização e os seus mecanismos serão, em devido tempo, objecto
de análise detalhada.
Estatutariamente, os indígenas passavam a ser considerados não
como integralmente responsáveis pelos seus actos, mas como indiví­
duos em estado de menoridade: menoridade civilizacional, porque se
considerava que a «civilização índia» ocupava um estádio inferior na
evolução da humanidade; menoridade individual, porque se concebiam
os indígenas como súbditos não totalmente responsáveis pelos seus
actos, mas como «pessoas miseráveis», simples e rústicas, incapazes de
avaliar, de forma total, as consequências do seu comportamento58.
O que era, portanto, a liberdade de um índio que vivesse no
Estado de Grão-Pará e Maranhão na segunda metade do século xviii?
Importa, antes de mais, destrinçar uma diferença fundamental entre
liberdade pessoal e liberdade profissional. No que diz respeito ao
primeiro aspecto, os índios deviam usufruir de um tratamento idên­
tico àquele concedido aos luso-brasileiros, porque o seu estatuto era
o de súbdito do monarca português. Dessa forma, integravam-se os
indígenas nas cadeias jurídicas normais, podendo, como qualquer
outro indivíduo, endereçar ao rei, ao governador ou aos tribunais
petições, pretensões e queixas se considerassem que os seus direitos
tinham sido infringidos ou desrespeitados59; o seu trabalho era, tal
como o dos luso-brasileiros, sujeito a impostos; estavam, tal como
os luso-brasileiros, integrados em companhias de ordenanças e tro­

57Directório que se deve observar nas povoações dos índios do Pará e Maranhão enquanto
Sua Magestade não mandar o contrário, Lisboa, Oficina de Miguel Rodrigues, 1758.
58 Este conceito aplicado aos índios é uma constante na legislação peninsular,
claramente expresso em obras de tratadistas espanhóis como Don Alonso de La Pena
Montenegro e Juan de Solorzano Pereira, em quem os legisladores pombalinos se
terão inspirado. Será retomado no capítulo VI «A construção de imagens: definições
de ameríndios nos discursos coloniais». A título de curiosidade, mencione-se que um
dos exemplares por nós utilizado da obra de Juan de Solorzano Pereira pertencia à
biblioteca de Paulo de Carvalho e Mendonça, irmão do Marquês de Pombal e de
Francisco Xavier de Mendonça Furtado (BN, SC 6530 A).
59 Como exemplo, queremos mencionar uma petição da índia Petronilha
pedindo para se conservar em Belém e ficar independente do director de Beja (AHU,
Pará, caixa 104 (819), s/d [ant. a 1779]); petição da índia Josefa Martinha, tomada de
soldada contra sua vontade (AHU, Pará, caixa 95 (810), s/d [ant. a 1779]); representa­
ção dos principais e moradores de Borba-a-Nova acusando o seu director de abusos e
exacções (AHU, Pará, caixa 29 (745), s/d [ant. a 1769]).

43

I
A PRO M O ÇÃO D OS AM ERÍNDIOS A VASSALOS

pas regulares; era-lhes reconhecido o direito de intervirem na vida


comunitária, exercendo, por exemplo, cargos relacionados com as
formas de governo coloniais (oficios camarários60) ou com as formas
indígenas de organização (principalato, concelhos de anciãos61); não
podiam ser objecto de abusos e de maus tratos; e a alguns indiví­
duos, tal como acontecia com os luso-brasileiros, era-lhes reconhe­
cido o usufruto de benefícios, isenções e privilégios62.
A nível profissional, a liberdade do índio incidia, prioritaria­
mente, no direito à remuneração, ou seja, o índio, tal como o luso-
-brasileiro, enquanto prestador de serviços domésticos, agrícolas ou
artesanais, devia ser remunerado de acordo com as tabelas de salários
estabelecidas pelos órgãos governativos da capitania63; paralela­
mente, era-lhe concedido o direito de optar pela profissão que queria
seguir, bem como o de escolher a pessoa com quem queria traba­
lhar64. Consequentemente, o discurso colonial sobre a liberdade índi-
gena considerava como direitos inalienáveis dos índios a igualdade
de tratamento, o direito de queixa, o acesso a uma «justa remunera­
ção»; a salvaguarda da vontade indígena em relação ao tipo e local de
trabalho; mas opunha-se terminantemente ao ócio e à vadiagem.
Sendo uma das bases da riqueza do Estado do Grão-Pará a sua
mão-de-obra, era inadmissível para os órgãos governamentais e ina­
ceitável para as entidades particulares a inactividade e a vadiagem
dos ameríndios. Reconhecendo a existência de gmpos de amerín­
dios ociosos e prevendo o aumento da ociosidade como uma das
reacções índias à promulgação da lei da liberdade, Francisco Xavier
de Mendonça Furtado tentou, logo em 1754, eliminar uma situação
e evitar a outra. Nesse sentido, promulgou um bando a 12 de Feve­
reiro, cedo confirmado por carta real de 14 de Março de 1755, esti­
pulando que todos os índios que não tivessem ocupação fossem

60 APEP, códice 101, doc. 62, Representação da câmara de Santarém ao governa­


dor da capitania de Pará, de 6 de Abril de 1774.
61 AHU, Rio Negro, caixa 9, doc. 1, Ofício de João Bemardes Borralho a João
Pereira Caldas, de 10 de Julho de 1784.
62 Confronte-se o capítulo III «Em cumprimento do real serviço: o reordena-
mento do território e a integração dos vassalos».
63 AHU, Pará, caixa 22 (742), Bando promulgado por João Pereira Caldas re­
gulando o salário dos índios, de 30 de Maio de 1773: também em ibidem, caixa 34
(749).
64 AHU, Pará, caixa 104 (819), Petição da índia Petronilha pedindo para se con­
servar na cidade de Belém, s/d [ant. a 1779]; ibidem, caixa 95 (810), Petição da índia
Josefa Martinha, de Belém, dada de soldada a Hilário de Morais Bettencourt, s/d [ant.
a 1779],

44
A PRO M O ÇÃO DOS AM ERÍNDIOS A VASSALOS

dados de soldada aos moradores de acordo com despachos governa­


tivos65. Assim se evitava as frequentes disputas e inimizades que
havia entre os moradores que, com o objectivo de congregarem
mais mão-de-obra, aliciavam os índios dos moradores vizinhos a
trabalhar nas suas terras66.
As entidades administrativas planificaram o processo condu-
cente à liberdade índia com grande cautela. Talvez seja este planea-
mento que já está subjacente à isenção de direitos de entradas sobre
escravos negros, concedida aos moradores do Pará em carta régia de
18 de Abril de 175367. Mas está claramente comprovada na anteci­
pação de Mendonça Furtado expressa no bando de 1754 com vista a
evitar a ociosidade. Encontra-se ainda explícita no interregno havido
entre a data de promulgação dos alvarás régios de 1755 e a sua
divulgação em 1757. Importa salientar que, aliás, a publicação das
leis da liberdade dos índios e da privação do governo temporal aos
Regulares ficaria ao discernimento de Mendonça Furtado, que as
deveria publicar quando achasse mais oportuno, ou seja, quando as
forças militares estivessem reunidas em Belém68.
As autoridades temiam reacções violentas por parte da popula­
ção do Estado do Grão-Pará e Maranhão quando se visse privada da
sua principal fonte de trabalho e rendimentos69. Este perigo era tão
mais premente quanto se adivinhava que pouca colaboração para
dominar uma possível revolta poderia advir dos militares, também
eles detentores de escravos índios70.

65 AHU, Pará, caixa 110 (825), Carta régia aprovando a promulgação de um


bando de Francisco Xavier de Mendonça Furtado, de 14 de Março de 1755; também
em Conselho Ultramarino, códice 272, fl. 16v.
66 AHU, Conselho Ultramarino, códice 209, fl. 325-325v, Parecer do Conselho
Ultramarino sobre as decisões de Francisco Xavier de Mendonça Furtado sobre índios
livres e alforriados, de 5 de Março de 1755.
67 AHU, Conselho Ultramarino, cód. 271, fl. 235, Carta régia aos oficiais da câmara
de Belém sobre os dízimos; também em ibidem, cód. 1275, fl. 147. O principal objec­
tivo desta isenção era colmatar a falta de mão-de-obra sentida pelos moradores do
Pará devido a uma epidemia que tinha dizimado um grande número de índios
(AHU, Pará, caixa 59 (774), Carta régia ao governador e capitão-general do Mara­
nhão, de 8 de Julho de 1750).
68 AHU, Pará, caixa 18 (739 F), Ofício de Sebastião José de Carvalho e Melo a
Francisco Xavier de Mendonça Furtado, de 28 de Junho de 1756.
69 Nádia Farage, As muralhas dos sertões. Os povos indígenas no rio Branco e a coloni­
zação, Rio de Janeiro, Paz e Terra, Ampocs, 1991, p. 36.
70 Marcos Carneiro de Mendonça, A Amazônia na era pombalina. Correspondência
inédita do governador e capitão-general do estado do Grão-Pará e Maranhão, Francisco
Xavier de Mendonça Furtado, 175‘I-'I7Ô9, 1 ° tomo, Rio de Janeiro, Instituto Histórico e
Geográfico Brasileiro, 1963, p. 84.

45
A PRO M O ÇÃO DOS AM ERÍNDIOS A VASSALOS

Como se sabe, a sociedade colonial protestou violentamente. Para


além das manifestações formais endereçadas à coroa e ao governador,
comprovou-se a existência de uma aliança entre alguns moradores e a
coroa francesa, na qual os colonos prometiam a cedência do Estado do
Norte brasileiro ao rei de França, conquanto este se comprometesse a
manter o estatuto da escravidão indígena71. Os envolvidos eram desig­
nados como sendo homens rústicos e tirados do mato. Simultanea­
mente, insinuava-se o envolvimento da Companhia de Jesus, pela par­
ticipação do padre Roque Hundertpfundt na traição.
E no que diz respeito aos vassalos ameríndios de Sua Majestade
Fidelíssima? Se é certo que o monarca não fazia distinção entre
«brancos» e índios, diziam as leis, e se os índios tinham deixado de
ser escravos porque todo o homem era naturalmente livre, dizia o
direito natural, como justificar os inúmeros protestos feitos por
ameríndios, cristãos e vassalos do rei, que se queixavam de exacções
e de infracções ao direito natural e divino?
Pensa-se que é interessante salientar que esta questão se põe ao
longo de todo o período em análise, não se restringindo unicamente
aos anos subsequentes à promulgação da lei da liberdade. Os direi­
tos índios mais básicos eram postos em causa através da actuação
de governadores, dos moradores, de clérigos, de directores, que
eram acusados de desrespeitar as leis reais.
As petições e as representações que dão conta destes abusos são
da autoria de funcionários administrativos e eclesiásticos, de mora­
dores, mas também de alguns índios, os quais seriam, sem sombra
de dúvida, os mais lesados nas disputas de domínio e poder que
caracterizavam a sociedade colonial paraense e rionegrina de mea­
dos de Setecentos.
Importa, antes de mais, deixar claro que a avaliação do incum-
primento ou inobservância da lei só se pode verificar através da aná­
lise de casos pontuais, isto é, de exemplos que, na sua maioria, inci­
dem sobre as contravenções. Seguidamente, há que sublinhar que as
queixas são em número reduzido, quer pelo tipo de documentação
existente nos núcleos arquivísticos consultados quer também por­
que a maior parte dos índios desconhecia os mecanismos que lhe
eram legalmente atribuídos para defesa dos seus direitos.
Desta situação dá claramente conta uma sentença de liberdade
dada a favor de Celestino Barbosa, filho da índia Mariana, que devia

71 AHU, Pará, caixa 18 (739 F), Ofício de João da Cruz Dinis Pinheiro, de 4 de
Setembro de 1755.

46
A PRO M O ÇÃO DOS AM ERÍNDIOS A VASSALOS

ser livre porque sua mãe também o era, não obstante ter estado
como escrava em casa de André Fernandes Gavinho e lhes ter ven­
dido o filho «porque nem uma nem outra coisa prova a escravidão
de tal índia tanto por esta ser como todas as mais ignorantes faltas
de inteligência de se livrarem das opressões padecidas por este
meio, como também por serem os factos alegados cumum e geral­
mente justificados por meros e injustos detentores dos índios que
por serem tidos por livres não justificam a posse sem haver junta­
mente o título porque tenham passado a escravos e entrado no
comércio dos homens estando, aliás, fora dele»72.
É nesta falta de registos ou de processos individuais que com­
provassem a escravidão dos índios descidos que radicaram muitas
pretensões de liberdade73. Como foi analisado, a escravidão legal
estava condicionada aos casos de guerra justa e de resgate e a legiti­
midade desses cativeiros dependia dos exames feitos pelos missio­
nários que acompanhavam as tropas e que interrogavam os índios
sobre a situação em que tinham sido aprisionados74. Há, ainda, a
considerar que estes registos podiam ser manipulados por falsos tes­
temunhos da tropa, pelas ameaças ou incompreensão dos índios
interrogados e pelos interesses dos missionários. Durante a adminis­
tração de Francisco Xavier de Mendonça Furtado alguns índios ape­
laram à Junta das Missões, recorrendo do registo de cativeiro ou,
então, do estatuto de escravidão. Foram libertados porque, diziam
as autoridades, «sendo todo o homem naturalmente livre, de nada
valia a posse, alegada pelos réus, enquanto não apresentavam os
títulos da escravidão, por ser uma posse contra o direito natural, a
qual não podia constituir ao possuidor em boa fé»75.
A utilização reduzida dos mecanismos que defendiam os direi­
tos dos índios relacionava-se, também, com o facto de os princípios
que determinavam a escravidão serem diferentes na sociedade colo­
nial luso-brasileira e nas sociedades ameríndias. Para além de os

72 AHU, Pará, caixa 18 (739 F), Sentença dada a favor do mameluco Celestino
Barbosa contra o réu André Fernandes Gavinho, de 21 de Setembro de 1755.
73 Alguns destes «registos de escravidão» de «negros da terra» referentes a gru­
pos Manau, Ubitiena, Maribuena, Marabitena, Cunapitena encontram-se no Instituto
de Estudos Brasileiros da Universidade de São Paulo (Arlinda Rocha Nogueira,
Heloísa Liberalli Bellotto, Lucy Maffei Hutter, Inventário analítico da Colecção Lamego,
São Paulo, IEB, vol. i, 1983, pp. 239-242.
74 Nádia Farage, As muralhas do sertão. Os povos indígenas do rio Branco e a coloniza­
ção, pp. 28-29.
75 AHU, Pará, caixa 18 (739 F), Ofício do Bispo do Pará, frei Miguel de Bulhões,
a Sebastião José de Carvalho e Melo, de 9 de Setembro de 1756.

47
A PRO M O ÇÃO DOS AM ERÍNDIOS A VASSALOS

recém-promovidos súbditos ameríndios do monarca português não


terem consciência das consequências legais determinadas pela
mudança de estatuto jurídico, é preciso considerar que as regras que
justificavam a escravatura nas sociedades ameríndias eram diferen­
tes das que se estabeleciam no direito colonial. Por exemplo, o facto
de um índio ser apanhado durante uma guerra pela facção oposta
era justificação suficiente para se considerar escravo, apesar de tal
situação não ser reconhecida pela legislação76. As referências que os
índios tomavam eram obviamente as do seu povo, pelas quais sem­
pre se tinham regido, e não aquelas que as leis coloniais tinham pas­
sado a ditar. Ora, ao tomar por parâmetro os costumes ancestrais, as
referências dos ameríndios da Amazônia de meados de Setecentos
não se diferenciavam em muito das atitudes de um europeu menos
esclarecido na mesma época.
Ao abordar tal questão há que ter em conta que a problemática
que lhe está subjacente consiste em perceber o que é que liberdade
significava para os ameríndios. Ora esta é uma questão insolúvel: a
documentação analisada revela que tal preocupação não existia nos
testemunhos europeus da segunda metade do século xvni. O que se
pode inferir através da documentação de tipo jurídico é que, nalguns
casos, os índios utilizaram os mecanismos a que legalmente tinham
acesso para se queixarem dos abusos de autoridades e colonos.
Não obstante a massa legislativa publicada, o empenho de algu­
mas autoridades e o tempo passado, não se deve pensar que a escra­
vidão indígena foi uma questão resolvida com a viragem da segunda
metade do século xvill. A menção à escravatura aparece de forma
concreta, por exemplo, em Janeiro de 1764, isto é, dez anos volvidos
sobre a promulgação da liberdade. Nesta altura, o desembargador
Francisco Raimundo de Morais, um oficial real, foi acusado de
enviar tropas ao rio Canary para fazerem escravos77. Ainda mais
tarde, em 1779, a índia Josefa Martinha afirmava que era perseguida
pelas «tropas de escravos» de Hilário de Morais Bettencourt, a quem
tinha sido dada de soldada contra sua vontade78.

76 AHU, Pará, caixa 18 (739 F), Sentença dada a favor do mameluco Celestino
Barbosa contra o réu André Fernandes Gavinho, de 21 de Setembro de 1755.
77 AHU, Pará, caixa 60 (775), Ofício de [?] para Manuel Machado, procurador da
Fazenda Real e dos índios do Pará, de Janeiro de 1764.
78 AHU, Pará, caixa 95 (810), Petição da índia Josefa Martinha dada de soldada
contra sua vontade a Hilário Morais Bettencourt, s/d [ant. a 1779], Hilário de Morais
Bettencourt era senhor-de-engenho com propriedades em tomo de Belém, como o
Engenho do Carmelo em Carapajá. Produzia açúcar, cacau, arroz e legumes; tinha

48
A PRO M O ÇÃO DOS AM ERÍNDIOS A VASSALOS

Há também referências a uma escravatura velada. Destas, uma


das mais interessantes consiste no testemunho de Antônio José
Landi que, ao referir-se à aquisição de um engenho de açúcar em
Mortecú, mencionava a existência de 70 índios, como se, com a
aquisição do terreno, viesse adstrita uma quantidade determinada
de servos79. Ou então quando, em 1787, Martinho de Sousa e Albu­
querque aludia aos índios subordinados à Igreja da Misericódia de
Belém como tendo sido a renda mais importante da instituição80. De
igual forma, em data aproximada a 1796, Simão Fernandes, morador
no Cametá, afirmava ter em sua posse 53 índios, uns comprados aos
resgates das tropas, outros nascidos em sua casa. Pretendia o luso-
-brasileiro obter do monarca uma provisão que estipulasse que os
índios, embora livres, eram obrigados a prestar ao suplicante os seus
serviços enquanto fosse vivo81. Não se fazia menção a salários ou
mantimentos.
O estatuto dos vassalos ameríndios do monarca português era
contrastante com a situação que, de facto, ocupavam, sendo um
procedimento corrente a infracção dos direitos básicos estipulados
na lei da liberdade. Os salários não eram pagos. O tempo de conces­
são da mão-de-obra índia estipulado nas portarias governamentais
não era respeitado, como o comprova a promulgação dos bandos de
3 de Maio de 1764 e 9 de Junho de 1780, em tudo semelhantes ao
bando de 12 de Fevereiro de 175482. Os indivíduos não podiam cir­
cular livremente, sendo-lhes restringida a mobilidade; nem, tão-

olaria, curtumes e pequenas roças arrendadas (Anaiza Virgolino-Henry e Arthur


Napoleão Azevedo, A presença africana na Amazônia colonial: uma notícia histórica,
Belém, Arquivo Público do Pará, 1990, p. 54).
79 AHU, Pará, caixa 40 (754), Requerimento de Antônio José Landi ao governa­
dor da capitania, de 19 de Novembro de 1780. Landi era um desenhador, naturalista e
arquitecto bolonhês integrado nas partidas de demarcação de limites de 1750 e resi­
dente no estado do Grão-Pará até à sua morte (Augusto Meira Filho, Landi, esse desco­
nhecido (o naturalista), s/1, Conselho Federal de Cultura e Departamento de Assuntos
Culturais, 1976); sobre a sua actuação como arquitecto de monumentos religiosos no
Pará, veja-se Maria de Lourdes Sobral, As missões religiosas e o Barroco no Pará, Belém,
Universidade Federal do Pará, 1986.
80 AHU, Pará, caixa 44 (758), Ofício de Martinho de Sousa e Albuquerque às ins­
tituições centrais, de 22 de Janeiro de 1787.
81 AHU, Pará, caixa 17 (733), Petição de Simão Fernandes [ant. a 20 de Maio de
1796],
82 AHU, Pará, caixa 40 (752), Bando de José Nápoles Telo de Meneses sobre a
repartição dos índios, de 9 de Junho de 1780; ANRJ, códice 101, vol. 1, fls. 115v-116,
Bando de José Nápoles Telo de Meneses sobre o mesmo assunto, de 30 de Junho de
1780. Nestes diplomas apenas variavam as punições, que eram, gradualmente, maiores.

49
A PRO M O ÇÃ O DOS AM ERÍNDIOS A VASSALOS

-pouco, estavam aptos a decidir a sua morada de residência, sendo


transferidos para outros locais contra sua vontade83. Não tinham,
também, a capacidade de decidir sobre o seu ofício. Em suma, os
ameríndios eram vítimas de abusos e de maus tratos físicos.
Representações de moradores ou protestos individuais dão conta
que alguns directores espancavam os índigenas sob sua administra­
ção. Era o caso do alferes Luís da Cunha de Eça e Castro, director de
Borba-a-Nova, que tinha esbofeteado o principal Miguel do Rego,
tinha dado pancadas e cutiladas ao índio Pissô, espancado os amerín­
dios Pamás recém-descidos, atirado das escadas e agredido a índia
Tomásia Francisca e oprimido ainda todas as mulheres índias «que lhe
faziam resistência», batendo-lhes, desterrando-as ou mandando-as
executar funções desapropriadas ao seu sexo ou estatuto social84. Para
além dos maus tratos físicos, de que este caso é unicamente um exem­
plo, os directores eram também acusados de explorar a mão-de-obra
indígena em proveito próprio ou em benefício dos seus amigos e apa­
niguados, não lhes pagando os salários devidos e fazendo-os trabalhar
nos serviços de moradores mais tempo do que aquele prescrito por lei.
A acusações deste tipo não ficavam incólumes os funcionários
reais que ocupavam os cargos mais elevados. Como se apontou,
cabia ao governador e capitão-general da capitania repartir os índios
de soldada pela concessão de provisões, nas quais se estipulava o
número, a remuneração e o tempo de serviço dos ameríndios nos
serviços de particulares. No entanto, em meados dos anos de 60,
diziam os moradores das novas povoações da capitania do Rio
Negro que o governador e capitão-general Joaquim Tinoco Valente
se recusava a repartir os índios, concedendo-os, no entanto, aos seus
amigos bagateleiros, taberneiros, directores e cabos de canoa, a
troco de somas de dinheiro85.
Também José Nápoles Telo de Meneses era acusado de não
fazer distinção entre homens livres e escravos. O juiz-de-fora José

83 AHU, Pará, caixa 79 (794), Petição de Antônio José, filho da índia Andreza, de
Mondim, pedindo lhe fosse concedida uma provisão que lhe permitisse empregar-se
numa fazenda de gado na ilha Grande de Joanes, s/d [cerca 1786]; ibidem, Represen­
tação de Jorge Francisco de Brito, filho da índia Cristina Furtado, solicitando a con­
cessão de uma provisão que lhe possibilitasse a liberdade de deslocação, s/d [cerca
1786].
84 AHU, Pará, caixa 29 (745), Representação dos principais e moradores de
Borba-a-Nova sobre as exacções do director, alferes Luís da Cunha de Eça e Castro,
s/d [aprox. 1769],
85 AHU, Rio Negro, caixa 1, doc. 47 A, Representação dos moradores das novas
povoações do Rio Negro a Francisco Xavier de Mendonça Furtado, de 8 de Julho de 1766.

50
A PRO M O ÇÃO DOS AM ERÍNDIOS A VASSALOS

de Oliveira Peixoto referia, em carta de 1781, que, com a lei das


liberdades, alguns índios de Belém tinham conseguido obter uma
certa prosperidade, detendo bens, fundos e casas próprias, exer­
cendo ofícios mecânicos, cultivando terras suas ou arrendadas,
assoldados nas lavouras e em manufacturas. Ao governador incul-
cava-se responsabilidades na pilhagem das casas, lojas e roças dos
moradores, no abuso e violação das mulheres e filhas e no realoja-
mento forçado dos índios em outras povoações ou no Arsenal Real.
Diziam que não respeitava as pessoas»e os bens dos vassalos8687. No
ano seguinte, semelhante queixa foi feita por João Gonçalves de
Figueiredo que acusava a mesma entidade de mandar açoitar nus e
atar às grades da cadeia pública todos os súbditos reais37.

U m a m ã o -d e -o b r a a lte r n a tiv a :
o s e s c r a v o s a fr ic a n o s

A concessão da liberdade aos ameríndios criou às instituições


administrativas um problema real que consistia em lidar com a falta
de mão-de-obra que semelhante medida provocaria. A solução
encontrada passou pelo aumento da importação de escravos africa­
nos, viabilizada pela criação da Companhia Geral de Comércio do
Grão-Pará e Maranhão em 6 de Junho de 1755 e, após a sua extin­
ção, pelo estabelecimento do «contracto de Cacheu e Cabo Verde»
com contratadores-armadores88. Tal como referiu Kenneth Maxwell,

86 AHU, Pará, caixa 75 (790), Carta do Juiz de Fora José de Oliveira Peixoto
sobre as exacções de José Nápoles Telo de Meneses, de 26 de Agosto de 1781; tam­
bém em ibidem, caixa 44 (758); ibidem, caixa 111 (826), Carta incompleta, faltando o
nome do autor e data, sobre as violências cometidas por José Nápoles Telo de Mene­
ses, s/d.
87AHU, Pará, caixa 75 (790), Carta de João Gonçalves Figueiredo à rainha sobre as
exacções de José Nápoles Telo de Meneses, s/d [aprox. de 12 de Agosto de 1782].
88 Sobre a actuação das companhias monopolistas, veja-se Bailey W. Diffie,
A History of Colonial Brazil, 1500-179Z, Malabar, Florida, Robert E. Krieger Publishing
Company, 1987, pp. 403-411; José Álvaro Ferreira da Silva e M. Manuela Marques
Rocha, «A Companhia do Grão-Pará e Maranhão», in História e Sociedade, n.° 10,
Dezembro, 1982, pp. 43 e ss.; sobre o «assento de escravos», confronte-se BNRJ, 7-3-
-39, n.° 1, Ofício de D. Francisco de Sousa Coutinho a D. Rodrigo de Sousa Cou-
tinho, de 21 de Agosto de 1797. Joaquim José Coimbra é apontado como um dos
contratadores (vejam-se breves referências em Anaiza Virgolino-Henry e Arthur
Napoleão Azevedo, A presença africana na Amazônia colonial: uma notícia histórica,
Belém, Arquivo Público do Pará, 1990, p. 41).

51
A PRO M O ÇÃ O D O S AM ERÍNDIOS A VASSALOS

um aumento significativo de africanos não só diminuiría a depen­


dência da sociedade colonial em relação à escravaria indígena como
daria origem a uma fonte de trabalho indispensável ao desenvolvi­
mento agrícola e comercial do Estado89.
Desde já importa referir que não é propósito imediato proceder
ao estudo dos africanos e da sua actuação no Norte brasileiro. Tal
assunto, ainda que de interesse e novidade, debater-se-ia com
alguns problemas: as informações sobre este grupo rácico, cujo lugar
na sociedade paraense parece ser cada vez mais relevante, são relati­
vamente escassas. Os estudiosos que sobre o assunto se debruça­
ram, como Antônio Carreira90, Manuel Nunes Dias91, Artur Cezar
Ferreira Reis92 ou Ciro Flamarion Cardoso93, para além de, nalguns
casos, apresentarem dados contraditórios, em outras situações
fazem interpretações divergentes das mesmas informações. Os seus
estudos reflectem, sobretudo, as inúmeras dificuldades com que
deparam. Estas englobam desde a quantificação dos contingentes
importados e identificação das regiões de origem geográfica e étnica
às áreas de fixação em continente americano, ocupação profissional
e formas de agregação e de organização94.
Atentemos, por exemplo, nos desacordos de opinião que sur­
gem entre Manuel Nunes Dias e Ciro Flamarion Cardoso. Ba­
seando-se nos mesmos dados de natureza quantitativa, o primeiro
considera que o impacte da Companhia Geral de Comércio do
Grão-Pará e Maranhão foi considerável no que diz respeito à intro­
dução de escravos negros95. Contudo, o segundo afirma que se

89 Kenneth Maxwell, «Pombal and the nacionalization of the Luso-Brazilian eco-


nomy», in Hispanic American Historical Review, 48 (4), November, 1968, p. 622.
90 Antônio Carreira, As Companhias pombalinas de Grão-Pará e Maranhão e Per­
nambuco e Paraíba, Lisboa, Editorial Presença, 2,a edição, 1983, pp. 86 e ss.
91 Manuel Nunes Dias, A Companhia Geral do Grão-Pará e Maranhão (1755-1778),
l.° vol., s/l, Universidade Federal do Pará, 1970, pp. 459-500.
92 Arthur Cezar Ferreira Reis, «O negro na empresa colonial dos portugueses na
Amazônia», in Actas do Congresso Internacional de História dos Descobrimentos, vol. v,
parte n, Lisboa, 1961, pp. 347 a 357.
93 Ciro Flamarion S. Cardoso, Economia e Sociedade em áreas coloniais periféricas,
Guiana Francesa e Pará (1750-1817), Rio de Janeiro, Edições Graal, L.dt, 1984, pp, 123-124.
94 Anaiza Virgolino-Henry e Arthur Napoleão Azevedo conseguiram identificar
algumas das etnias africanas enviadas para o Pará. São Angolas, Congo, Benguelas,
Cabinda, Moçambique, Moxicongo, Macua, Caçange, Mina, Fanti-Ashanti, Mali,
Mandinga, Fula, Fulupe, Bijagó, Calabar, Peul (A presença africana na Amazônia colonial:
uma notícia histórica, p. 65)
95 Em 1780, João Pereira Caldas afirmava que os escravos com que se tinham
socorrido os moradores das duas capitanias eram insignificantes (AHU, Pará, caixa 40

52
A PRO M O ÇÃO DOS AM ERÍNDIOS A VASSALOS

«Quanto aos escravos negros, não dispomos de dados completos ou


seguidos acerca da sua importação, [...] [apesar de ser] indiscutível
que seu número aumentou progressivamente no Pará durante o
período que nos ocupa. [...] Sabemos, porém, que na sua maioria
passaram a Mato Grosso, devido à pobreza local»96.
A maioria destes indivíduos saiu dos portos da costa ocidental afri­
cana de Cacheu e Bissau, enquanto outra parte embarcou de portos
angolanos, como São Paulo de Assunção, Luanda e Benguela97. De
acordo com opiniões expressadas recentemente por um especialista da
história da escravatura africana como Joseph Miller, o que parece ter
sucedido no litoral angolano é que as Companhias monopolistas con­
correram, até finais dos anos de 60, com os contratadores do tráfico
negreiro que controlavam a maior parte dos capitais e redes comerciais
organizados em tomo do comércio de escravos. Para além disso, as
áreas onde lhes era permitido adquirir e comercializar a mão-de-obra
africana eram secundárias no sistema atlântico português98.
A problemática que, a este ponto, é pertinente colocar reside na
constatação de um paradoxo: ao mesmo tempo que estabelecia uma
legislação proteccionista determinando a liberdade de ameríndios
(lei de 1755) e de chineses (lei de 1758), a política colonial da coroa
portuguesa dinamizava, paralelamente, a escravatura de negros para
o Adântico e para o Índico99. Em meados do século xvm, Portugal
era uma das grandes nações esclavagistas europeias, drenando escra­
vos do continente africano de portos como Luanda, Benguela,
Cacheu, Bissau e Moçambique e, ainda, da Costa da Mina.

(752), Ofício de João Pereira Caldas a Martinho de Melo e Castro, de 26 de Janeiro de


1780). Dezassete anos mais tarde D. Francisco Maurício de Sousa Coutinho atestava
essa insuficiência (BNRJ, 7-3-39, n.° 1, Ofício de D. Francisco de Sousa Coutinho a
D. Rodrigo de Sousa Coutinho, de 21 de Agosto de 1797).
96 Ciro Flamarion Cardoso, Economia e sociedade em áreas periféricas..., p. 123.
É Manuel Nunes Dias que menciona este tráfico de escravos para Mato Grosso, justi­
ficando-o com os grandes lucros que daí advinham: um escravo adquirido pelo
máximo preço no Pará por 80$000 ou 120J000 réis chegava a ser vendido por
300$000 nas regiões auríferas (A Companhia Geral do Grão-Pará e Maranhão, p. 498).
97 AHU, Pará, caixa 59 (774), Carta régia ao governador e capitão-general do
Estado do Maranhão, de 8 de Julho de 1750.
98 Joseph Miller, «A marginal institution on the margin of the Atlantic system:
the Portuguese Southern Adantic slave trade in the eighteenth century», in Slavery
and the rise of the Atlantic System, editado por Barbara L. Solow, Cambridge, Cambridge
University Press, 1993, p. 131.
99Joseph C. Miller, «A marginal institution on the margin of the Adantic System:
the Portuguese Southern Adantic slave trade in the eighteenth century», pp. 123-124
e 141.

53
A PRO M O ÇÃ O DOS AM ERÍNDIOS A VASSALOS

Como em qualquer parte do Império Português, mas também


dos Impérios Espanhol ou Inglês, o fortalecimento e a prosperidade
da colonização dependiam de mão-de-obra. Tal como o vice-rei-
nado do Peru e Nova Granada na mesma época, o Estado de Grão-
-Pará viu-se confrontado com dois problemas relacionados com o
trabalho indígena: de um lado, a legislação proteccionista promul­
gada pela coroa e, de outro, o declínio populacional causado por
doenças100. Ora se, tal como vimos, as intenções reais podiam ser
logradas pelas instituições e infringidas por particulares, as catástro­
fes demográficas provocadas pelos surtos epidêmicos não podiam
ser contornadas.
Face a esta panorâmica, a alternativa consistia na escravatura
negra, afigurada como bastante mais vantajosa que a mão-de-obra
ameríndia. A maior parte dos Africanos estava habituada a uma dis­
ciplina e regularidade de trabalho que eram implícitas às práticas de
agricultura em larga escala. Muitos dos negros, ao contrário dos
índios, dominavam a técnica de fabrico do ferro e a sua utilização.
Não estavam, igualmente, abrangidos pela legislação proteccionista
que englobava, unicamente, os vassalos americanos. E, para além do
mais, os negros provinham de regiões que conheciam o mesmo tipo
de doenças que as europeias. Eram, consequentemente, menos sus­
ceptíveis às moléstias trazidas pelos colonos que os nativos da Amé­
rica. Possuíam, igualmente, mais resistência que os europeus a cer­
tas doenças tropicais101.
De igual modo, os negros eram frequentemente identificados
com os muçulmanos ou infiéis. Mesmo quando não eram islamiza-
dos, assumia-se que tinham tido conhecimento ou contacto com o
esforço missionário cristão e com a palavra de Deus. Sendo assim, a
recusa em converterem-se só podia ser «punida» com a sua redução
à condição de escravos102.

100 Veja-se capítulo III «Em cumprimento do real serviço: o reordenamento do


território e a integração dos vassalos».
101 A resistência negra a determinadas doenças era uma justificativa utilizada
pelo governador do Maranhão para pedir o aumento de importação de escravos, em
1750. Grande parte dos índios tinha sido dizimada por um surto de varíola (AHU,
Conselho Ultramarino, cód. 209, fls. 215-216, Ofício do governador do Maranhão
dando conta do estado em que se encontrava o Pará, de 16 de Maio de 1750). Veja-se
também William D. Phillips, «The Old World background of slavery in the Améri­
cas», in Slavery and the rise of the Atlantic system, pp. 46-47.
102 D. B. Davis, The problem of slavery in Western Culture, New York, Comell Uni-
versity Press, 1966, p. 170.

54
A PRO M O ÇÃO DOS AM ERÍNDIOS A VASSALOS

Importa, ainda, relacionar estas questões com aspectos rácicos.


Este assunto é claramente formulado por John Elliot quando afirma
que a cor da pele era concebida, no que às etnias ameríndias dizia
respeito, em termos neutros. A diferença estabelecida entre euro­
peus e ameríndios era, frequentemente, justificada e desculpada
como sendo resultado de uma vida ao ar livre, à directa exposição
ao sol. A mesma justificação não podería ser aplicada ao caso afri­
cano, à negritude africana, cuja cor tinha uma outra conotação his­
tórica e emocional103. «
Nas correntes ideológicas e na vivência quotidiana do século
xviii, a escravatura ameríndia e a negra eram duas coisas distintas. Se
a redução dos ameríndios à condição de escravos tinha sido questio­
nada desde os primeiros contactos, a escravização dos negros não
era posta em causa. Mesmo aqueles que se pronunciavam contra a
primeira eram defensores da segunda104.
Até ao século xviii, a escravatura não encontrou em Portugal, ao
contrário do que acontecia no resto da Península Ibérica, teóricos
defensores ou opositores da instituição105. A coroa atendia à pro­
mulgação das bulas papais e decretava que unicamente os habitan­
tes da América Portuguesa deviam ser livres ou escravizados apenas
em situações concretas, como em casos de guerra justa e resgate. Os
súbditos discutiam o assunto entre si, utilizando, por exemplo, cor­
respondência epistolar e dissertações, publicadas em tiragens redu­

103 Sobre este assunto, veja-se, por exemplo, Alexandre Rodrigues Ferreira,
«Observações gerais e particulares sobre a classe dos mamíferos observados nos terri­
tórios dos três rios das Amazonas, Negro e da Madeira: com descrições circunstancia­
das que quase todos eles deram os antigos e modernos naturalistas, e principalmente,
com a dos tapuios», in Viagem filosófica pelas capitanias do Grão Pará, Rio Negro, Mato
Grosso e Cuiabá, Memórias de Zoologia e Botânica, s/1, Conselho Federal de Cultura,
1972, pp. 75-76. Veja-se ainda J. H. Elliott, The discovery of America and the discovery of
man, Londres, Oxford University Press, Ely House, 1972, p. 10; D. B. Davis, The pro-
blem of slavery in Western Culture, p. 49; e Maria do Rosário Pimentel, Viagem ao fundo
das consciências. A escravatura na Época Moderna, Lisboa, Edições Colibri, 1995,
pp. 177-181 e 188.
104 Maria José Gomes Párias Dias, Manoel Ribeiro Rocha. Escravidão e recta consciên­
cia (1758), dissertação de Mestrado em História Ibero-Americana apresentada à Uni­
versidade Portucalense Infante D. Henrique, Porto, 1996, p. 64. Esta corrente de opi­
nião ocorreu também na América Espanhola (D. B. Davies, The probtem of slavery in
Western Cultures..., p. 171).
105 Como um excelente estudo sobre as atitudes portuguesas em relação à
escravatura africana, consulte-se o já citado artigo de A. J. R. Russell-Wood, «Iberian
expansion and the issue of black slavery: changing Portuguese attitudes, 1440-1770»,
pp. 16-42.

55
A PRO M O ÇÃO DOS AM ERÍNDIOS A VASSALOS

zidas e acessíveis a poucos, que punham em causa os abusos e maus


tratos a que os negros eram submetidos106.
Inspirado nos sermões de Antônio Vieira sobre os índios, o
jesuíta Jorge Benci elaborou, em 1700, um tratado sobre a «regra,
norma e modelo por onde se devem governar os senhores cristãos
para satisfazer às suas obrigações de verdadeiros senhores»107. Par­
tindo do princípio que todas as criaturas eram seres racionais, filiava
a escravidão no pecado original e nas guerras que dele decorreram e
considerava-a como o «estado mais infeliz a que pode chegar uma
criatura racional»108. Por isso mesmo, concebia que as relações cons­
tituídas entre servos e senhores pressupunham uma reciprocidade
de obrigações, fundamentadas tanto no direito civil como no canô­
nico. Se os escravos deviam trabalhar e ser fiéis aos seus amos, os
senhores tinham, de igual forma, obrigações: de conservar a vida
dos seus servos, sustentando-os, vestindo-os e assistindo-os; de os
amparar espiritualmente, através da sua catequização e pelo bom
exemplo; de os castigar com moderação, por forma a impedir a
delinquência e os vícios; e, finalmente, de lhes dar trabalho, para
evitar a ociosidade e a insolência. Para este jesuíta, a escravatura era
uma condição natural e, portanto, não questionava a sua duração,
ao contrário do que Manuel Ribeiro da Rocha fez cerca de sessenta
anos mais tarde.
Num escrito de 1758, este autor partia de um pressuposto
semelhante: a escravidão era a maior infelicidade do mundo porque
«com ela lhe vêm adjuntas todas aquelas misérias e todos aqueles
incômodos que são contrários e repugnantes à natureza e condição

106 Veja-se, por exemplo, Nova e curiosa Relação de hum abuzo emendado ou evidên­
cias da Razão; expostas a favor dos homens pretos em hum diálogo entre hum letrado e hum
mineiro, Lisboa, Officina de Francisco Borges de Sousa, 1764, publ. in Maria José
Gomes Párias Dias, Manoel Ribeiro Rocha. Escravidão e recta consciência, Apendix doc.;
A. J. R. Russell-Wood, «Iberian expansion and the issue of black slavery...», pp. 37-
-38. Os debates sobre a abolição da escravatura só ganharam dimensão pública com
os inícios do século XIX e com a sua discussão na imprensa (João Pedro Marques,
«A abolição do tráfico de escravos na imprensa portuguesa (1810-1842)», in Revista
Internacional de Estudos Africanos, n.“ 16-17, 1992-1994, pp. 8 e ss.); para um ponto de
situação sobre a discussão gerada em tomo da escravatura africana tanto em Portugal
como na Europa, veja-se Maria do Rosário Pimentel, Viagem ao fundo das consciências,
parte u «Do escravismo ao antiescravismo», pp. 133 e ss.
107 Jorge Benci, Economia cristã dos senhores no governo dos escravos (livro de 1700),
preparado, prefaciado e anotado por Serafim Leite, Porto, Livraria Apostulado da
Imprensa, 1954.
108 Ibidem, p. 193.

56
-

A PRO M O ÇÃO DOS AM ERÍNDIOS A VASSALOS

do homem»109. Contudo, o que o autor censurava na instituição era


a condição de cativeiro perpétuo e os maus tratamentos. Conside­
rava que era lícito adquirir escravos por motivos de guerra justa,
devido a delitos graves ou através de compra a familiares por ques­
tões materiais de sobrevivência. Mas defendia que os proprietários
deviam conservar temporariamente os escravos, apenas o tempo
necessário para que fossem indemnizados dos gastos na sua com­
pra, alimentação e manutenção (jure pignoris). No decurso desse
período, os senhores tinham a obrigíção de sustentar, corrigir, ins­
truir e educar na fé e nos bons costumes os seus servos.
Já em finais de Setecentos e princípios da centúria seguinte, José
Joaquim da Cunha de Azeredo Coutinho, bispo de Eivas, conti­
nuava a defender a legitimidade da escravatura africana, baseando-se
em razões semelhantes às de Ribeiro Rocha110. Contudo, enquanto
defendia a escravatura africana pronunciava-se pela liberdade ame­
ríndia. O seu argumento partia do seguinte pressuposto: a escravi­
dão era uma instituição social nas sociedades africanas. O facto de
os portugueses resgatarem negros que tinham sido condenados e
que seriam punidos pelas leis africanas constituía razão suficiente
para justificar o tráfico negreiro. Ao chegarem a África não criaram a
instituição, limitando-se a utilizar e a dinamizar as estruturas de
comércio humano já existentes. Ao invés, no Brasil, não encontra­
ram os habitantes organizados em nações ou sujeitos a qualquer
tipo de subordinação ou governo. A escravatura não existia, tendo
sido, consequentemente, os portugueses os seus introdutores.
Enquanto os negros eram mão-de-obra resistente, aptos a serem uti­
lizados na agricultura e no comércio e responsáveis pela transforma­
ção das sociedades europeias no expoente civilizacional de então,
porque tinham libertado os europeus do trabalho braçal, os índios
revelavam-se escravos indomáveis, fugitivos ou débeis, podendo
mais facilmente ser subjugados e utilizados pela «força» da tolerân­
cia e da religião que pela da coacção.

109 Manuel Ribeiro da Rocha, Ethiope resgatado, empenhado e sustentado, corregido,


instruído e libertado. Discurso theologico-jurídico em que se propõe o modo de comerciar, haver
e possuir validamente quanto a hum e outro foro os Pretos cativos Africanos e as principais
obrigações, que correm a quem delles se servir, Lisboa, Officina Patriarcal de Francisco
Luiz Ameno, 1758, Argumento.
110 D. José Joaquim da Cunha de Azeredo Coutinho, Concordância das leis de Por­
tugal e das bulas pontifícias das quaes humas permittem a escravidão dos pretos d'África e
outras prohibem a escravidão dos índios do Brasil, Lisboa, Oficina de João Rodrigues,
1808, pp. 3-21.

57
A PR O M O ÇÃ O DOS AM ERÍNDIOS A VASSALOS

Uma das justificações que escorava a defesa da liberdade indí­


gena consistia, portanto, em razões de ordem social e civilizacional.
Uma outra justificação residia na razão de Estado. Na segunda metade
do século xvill, a coroa portuguesa só podia colonizar o vasto territó­
rio do Norte brasileiro, disputado por outras potências europeias,
com súbditos fiéis. É preciso ter em conta que a ocupação estável do
território era um dos princípios evocados nos tratados de limites cele­
brados entre as coroas peninsulares. Ora, uma colonização nestes
moldes, nos confins do território do Norte brasileiro, nunca podería
depender de luso-brasileiros que, face à imensidão territorial da Ama­
zônia, às inúmeras alternativas do Império e ao reduzido contingente
demográfico disponível no reino e em outros locais da colônia,
seriam sempre poucos. A alternativa possível, escolhida pelos órgãos
administrativos centrais, assentou em dois pontos fundamentais: tor­
nar o índio num vassalo de jure e transformar os ameríndios em súb­
ditos fiéis e confiáveis através de um plano civilizacional111.
Este era mais um aspecto que justificava a divergência de opi­
niões sobre a escravatura dos índios e a dos negros. É Davis que,
referindo-se genericamente à questão nos domínios coloniais ameri­
canos, confirma esta premissa ao afirmar que «A double standard in
judging Negrões and Indians enabled colonists of various nacionali-
ties to channel moral concern toward the aborígene, whose free-
dom was often essential for commercial and military security»112.
A introdução de um maior contingente de africanos em territó­
rio rionegrino e, sobretudo, paraense, pela Companhia Geral de
Comércio de Grão-Pará e Maranhão, visava colmatar as eventuais
faltas resultantes da libertação dos índios e das epidemias de mea­
dos do século. O Estado precisava de mão-de-obra para a dinamiza-
ção da economia do território, como bem o reconhecia D. Frei
Miguel de Bulhões113: «A estes dois pólos que, a meu parecer, serão
sempre invariáveis, isto é, a Pretos e índios, se reduz solidamente a

111 Confronte-se capítulo II «A transformação dos índios em vassalos: um plano


de colonização».
112 D. B. Davis, The problem of slavery in Western Culture, p. 10.
113 O dominicano D. Frei Miguel de Bulhões e Sousa era bispo de Malaca
quando, a 8 de Dezembro de 1748, foi transferido para o Pará. Foi um aliado incondi­
cional de Francisco Xavier de Mendonça Furtado na luta contra os Jesuítas. Exerceu o
governo interino da capitania e do Estado durante a deslocação do irmão do então
conde de Oeiras ao Rio Negro. Criou, em 13 de Abril de 1755, a Vigairaria-Geral
dessa capitania, para a qual nomeou o padre José Monteiro de Noronha. Regressou
ao reino em 1759 (Fortunato de Almeida, História da Igreja em Portugal, vol. II, Porto e
Lisboa, Livraria Civilização Ed., 2.a edição, 1968, p. 714; Arthur Cezar Ferreira Reis,

58
A PRO M O ÇÃO DOS AM ERÍNDIOS A VASSALOS

felicidade deste Estado sem os quais julgo seria impensável que os


moradores desta Capitania cheguem a ver-se livres da suma miséria
a que se acham reduzidos por falta de operários.»114 Os negros, mais
resistentes, mais rubustos, mais habituados à agricultura, escassos e
caros, vinham complementar a actividade dos índios, mais aptos na
exploração da floresta tropical e na condução dos meios de trans­
porte, abundantes e baratos115.
As autoridades estimulavam os luso-brasileiros a adquirir mão-
-de-obra oriunda de África, quer pondo em relevo a produtividade do
trabalho africano116, quer concedendo isenções fiscais e crédito117,
quer, ainda, desencorajando a sua importação para o reino, canali­
zando-a para outros locais118. No programa político definido por teó­
ricos e altos funcionários administrativos a existência de mão-de-
-obra africana estava indissociavelmente ligada ao desenvolvimento
do Estado do Grão-Pará e Maranhão. Mas, não obstante os estímulos
concedidos aos moradores, estes queixavam-se que a sua pobreza os
impedia de comprar negros e que os preços praticados pela Compa­
nhia eram proibitivos119. Por seu tumo, esta instituição afirmava que
o débito relativo ao pagamento dos escravos era grande e que os
moradores não podiam pagar as suas dívidas, apesar de os juros

História do Amazonas, Belo Horizonte e Manaus, Editorial Itatiaia, Superintendência


Cultural do Amazonas, 2.‘ edição, 1989, pp. 112-114).
1,4 AHU, Pará, caixa 59 (774), Ofício de frei Miguel de Bulhões à Secretaria de
Estado da Marinha e Negócios Ultramarinos, de 16 de Agosto de 1755.
115 AHU, Pará, caixa 19 (739 H), de 8 de Agosto de 1755.
116 AHU, Pará, caixa 21 (729 H), Ofício de Manuel Bernardo de Melo e Castro a
Francisco Xavier de Mendonça Furtado, de 22 de Junho de 1761.
117 AHU, Pará, caixa 26 (741), Ofício de Fernando da Costa de Ataíde Teive a
Francisco Xavier de Mendonça Furtado, de 19 Fevereiro de 1764. No entanto, a Com­
panhia era acusada de vender os escravos a preços exorbitantes (AHU, Pará, caixa 33
(748), Memória das acções do Ex.mo Senhor General do Pará, Fernando da Costa
de Ataíde Teive, as quais se vêm declaradas nos seguintes capítulos repartidos e se­
guindo os três Estados Político, Militar e Eclesiástico por João Baptista Mardel, de 6 de
Novembro de 1772 e ibidem, caixa 111 (826), Proposta para melhorar os fracassos tidos
pela Companhia Geral de Comércio na introdução de escravos negros no Pará, s/d
[post. a 1774]). Esta política de protecção fiscal continuou ao longo de toda a segunda
metade do século xviii. Assim, veja-se J. C. B., b CB, P 8539, 1799, 2, Carta régia isen­
tando o pagamento de direitos de entrada sobre os escravos introduzidos no Pará de
Cacheu, Bissau ou Moçambique, já em vigor em relação aos de Angola por decreto de
19 de Outubro de 1798, de 16 de Janeiro de 1799.
118 Sistema ou collecção de regimentos, vol. n, pp. 117-118.
119 AHU, Pará, caixa 111 (826), Proposta para melhorar os fracassos tidos pela
Companhia Geral do Grão Pará e Maranhão na introdução de escravos negros no
Pará, s/d [post. a 1774],

59
A PRO M O ÇÃO DOS AM ERÍNDIOS A VASSALOS

terem sido indultados120. Para se satisfazerem essas obrigações finan­


ceiras, penhoravam-se os engenhos e os escravos dos senhores.
Era, fundamentalmente, em torno da cidade de Santa Maria de
Belém, dos núcleos urbanos com maior presença luso-brasileira e
das fazendas localizadas junto da orla marítima que se concentrava
a mão-de-obra escrava, ou seja, onde economicamente era mais
necessária e onde os colonos tinham maior representatividade e
poder. Apesar de um número considerável ter sido introduzido pela
Companhia Geral de Comércio — 11654 escravos segundo uma
representação de cerca de 1775, 16077 escravos, segundo Antônio
Carreira, 25365 segundo Manuel Nunes Dias —, as queixas dos
moradores sobre a falta de mão-de-obra foram uma constante ao
longo do período em análise121.
Destinados aos serviços domésticos e agrícolas, ao corte e trans­
porte de madeiras, à moagem de arroz, à remagem de canoas e à
construção de fortificações, os negros encontravam-se distribuídos
desigualmente pelo Norte brasileiro122. Apesar de autoridades e
moradores afirmarem constantemente que o seu número era insufi­
ciente, a mão-de-obra escrava devia ser maior na capitania do Pará
do que na do Rio Negro. Desta forma, o «Mapa geral da população
dos índios aldeados em todas as povoações nas capitanias do Grão-
-Pará e S. José do Rio Negro no primeiro de Janeiro de 1792» refere a
existência de 288 escravos na capitania do Pará, excluída a capital e
as vilas de «brancos» nesta contagem123. O Rio Negro não apresenta

120 AHU, Pará, caixa 17 (733), Petição da Junta da Companhia Geral de Comércio
do Grão-Pará e Maranhão à coroa pedindo fosse devassada a sua administração antes
da tomada de posse de uma nova junta, s/d; ibidem, caixa 97 (812), Parecer do Conse­
lho Ultramarino a uma petição dos senhores de engenho e fábricas de açúcar no Pará
pedindo para as penhoras não serem executadas, de 4 de Março de 1779.
121 BNRJ, 13-4-18, Representação de um anônimo dirigida à rainha sobre a pror­
rogação por mais 10 anos da Companhia Geral do Grão-Pará e Maranhão, s/d [post a
1775]; Manuel Nunes Dias, A Companhia Geral de Grão-Pará e Maranhão, pp. 465 e
496.
122 AHU, Pará, caixa 21 (739 I), Ofício de Manuel Bernardo de Melo e Castro a
Francisco Xavier de Mendonça Furtado sobre a introdução de 150 a 200 escravos para
os cortes de madeiras, de 22 de Junho de 1761; ibidem, caixa 32 (746), Ofício de João
Pereira Caldas a Martinho de Melo e Castro, de 15 de Dezembro de 1772.
123J. A. Pinto Ferreira, «Mapa geral da população dos índios aldeados em todas as
povoações das capitanias do Estado do Grão-Pará e S. José do Rio Negro no primeiro
de Janeiro de 1792», in Actas do V Colóquio Internacional de Estudos Luso-Brasileiros, vol. iv,
Coimbra, 1965, pp. 281 e ss. Entendemos por vilas de «brancos» aquelas que, como
Gurupá, Mazagão e Macapá, eram constituídas por uma maioria de luso-brasileiros.
Estas deviam ter na sua constituição um número considerável de escravos africanos.

60
A PRO M O ÇÃO DOS AM ERÍNDIOS A VASSALOS

qualquer contagem de africanos. Mas, cinco anos mais tarde, o


governador Francisco de Sousa Coutinho afirmava que nesta capita­
nia existiam 592, número aproximado a um outro referido no censo
realizado três anos antes124. Um estudo monográfico baseado na
consulta dos arquivos de algumas pequenas localidades da capitania
do Pará conclui que, mesmo aqui, a mão-de-obra escrava era dimi­
nuta e que se encontrava sobretudo concentrada em Belém,
Macapá, Vila Vistosa, Mazagão, Cametá e Bragança125.
No entanto, e para além da já mencionada presença africana em
tomo da capital do Estado e próximo das fazendas e povoações de
luso-brasileiros, mencione-se, também, que alguns negros se encon­
travam disseminados pelo sertão, organizados, por exemplo, em
mocambos126. Constituídos por africanos mas também por amerín­
dios, os quilombos ou mocambos não parecem ter constituído uma
forma de resistência organizada, tal como ocorreu em outros locais
do Brasil127. Consideramo-los como factores de instabilidade na
medida em que, para a alimentação, os quilombolas recorriam tam­
bém a saques de roças e fazendas de moradores. Para além disso, os
mocambos eram, para escravos e índios, uma alternativa à fuga
para o sertão e, para os moradores, significavam um repositório
cobiçado de mão-de-obra128. Não obstante, há mais que uma refe-

124 BNRJ, 7-3-39, n.° 1, Ofício de D. Francisco de Sousa Coutinho a D. Rodrigo


de Sousa Coutinho, de 21 de Agosto de 1797. O mapa dos habitantes e fogos exis­
tentes em cada uma das freguesias do Rio Negro, datado de 1795, refere a existência
de 576 escravos (BNRJ, 1-17-12-1).
125 Se, no ano de 1782, existiam 124 africanos no Gurupá, 38 em Porto de Mós,
7 em Vilarinho e Sousel e 1 em Pombal, Carrazedo e Veiros não tinham nenhum. As
contagens do censo de 1789 revelam que Gurupá contava com 147 africanos (27.43%
da população), Vilarinho com 26 (10.02%), Porto de Mós 43 (8.79%), anexo de
Gurupá 4 (7.41%), Sousel 6 (0.76%). Para o censo de 1797 a presença africana nas
povoações mencionadas é a seguinte: Gurupá 131, Vilarinho 28, Porto de Mós 74,
anexo de Gurupá, Sousel e Pombal 1, Veiros e Carrazedo 0. Veja-se Arlene M. Kelly,
Family, church and crown: a social and demographic history of the lower Xingu valley and the
municipality of Gurupá, 1623-1889, dissertação de doutoramento, Florida, Universi­
dade de Florida, 1984 (dactilografada), pp. 143, 152-157 e 179-189.
126 Consulte-se o artigo de Stuart Schwartz, «Quilombos ou mocambos», in Dicio­
nário da Colonização Portuguesa no Brasil, cols. 673-676. Este assunto será retomado no
capítulo II «A transformação dos índios em vassalos: um plano de colonização».
127 AHU, Pará, caixa 67 (782), Ordem de Manuel Joaquim de Abreu, coman­
dante de Chaves, a Diogo de Mendonça Corte Real, de 13 de Abril de 1778.
128 AHU, Conselho Ultramarino, códice 209, fls. 220-221v, Parecer do Conselho
Ultramarino sobre a representação feita pelos oficiais da câmara de Belém, de 21 de
Maio de 1750.

61

_
A PRO M O ÇÃO DOS AM ERÍNDIOS A VASSALOS

rência às relações pacíficas que se estabeleciam entre quilombolas e


colonos129.
É importante também salientar a função de alguns negros, mui­
tos deles escravos fugidos, como intermediários entre luso-
-brasileiros e ameríndios130: serviam de intérpretes, estabeleciam os
primeiros contactos, tinham ascendência sobre as comunidades
indígenas131.

129 Anaiza Virgolino-Henry e Arthur Napoleão Figueiredo, A presença africana na


Amazônia colonial..., p. 61.
130 Esta função que o negro tinha como intermediário entre espanhóis e popula­
ção nativa americana ocorre igualmente em território norte-americano (William
D. Phillips, «The Old World background of slavery...», p. 47).
131 AHU, Rio Negro, caixa 17, doc. 1, Ofício de Teodósio Constantino de Cher-
mont a João Pereira Caldas, de 29 de Março de 1783; idem, Rio Negro, caixa 9, doc. 1,
Ofício de Henrique João Wilkens a João Pereira Caldas, de 5 de Março de 1784;
ibidem, doc. 1, Ofício de Custódio de Matos Pimpim, director de Olivença, a João
Baptista Mardel, de 7 de Maio de 1784. Dois destes escravos negros, fugidos para ter­
ritório espanhol, foram particularmente úteis a D. Francisco de Requena e Errea nas
demarcações decorrentes do Tratado Preliminar de Santo Ildefonso, facultando infor­
mações sobre o território rionegrino e entrando em contacto com muitas etnias, cuja
língua era unicamente falada por eles (AHU, Rio Negro, caixa 7, doc. 1, Ofício de Teo­
dósio Constantino de Chermont a João Pereira Caldas, de 29 de Março de 1783).
Confronte-se Ângela Domingues, «O papel do índio como língua/intérprete entre as
sociedades ameríndias e luso-brasileira no Norte do Brasil, em finais do século xviii»,
in Revista da Sociedade Brasileira de Pesquisa Histórica (10); 1995, pp. 15-16.

62
C A P Í T U L O II

A T RA N S FO RM A ÇÃ O DOS ÍNDIOS EM VASSALOS


UM PLANO DE C O LO N I Z A Ç Ã O
O Directório foi a estrutura legislativa que suportou o programa
civilizacional do Estado português em terras do Norte brasileiro, o
qual visava a transformação dos ameríndios em vassalos portugueses
e em católicos fiéis. Historiadores e antropólogos referem-se ao
Directório como sendo o instrumento da política colonial portuguesa
que espelhou todas as transformações que o governo colonial queria
implementar em território amazônico ao longo da segunda metade
do século xviii.
Em nosso parecer, todavia, a análise das transformações ocorri­
das naquele espaço geográfico durante o período em questão é bem
mais complexa. O programa civilizacional consubstanciou-se, de
facto, no Directório que se deve observar nas povoações dos índios do Pará
e Maranhão. A sua concretização dependeu, no entanto, de várias
medidas, umas claramente expressas na documentação oficial das
instituições, outras mais subterrâneas, mas, contudo, imprescindíveis
aos objectivos que a coroa pretendia atingir em território amazô­
nico. Ora, o que o aparelho estatal pretendia traduziu-se, em última
instância, na «produção de um espaço ocidentalizado», ou seja, na
organização do território entendida como prática cultural, transfor­
mando regiões marginais e quase desconhecidas em áreas com uma
sólida rede de povoações e com uma economia em expansão, con­
troladas eficazmente pelo aparelho institucional central, reinol e
estadual1. Contudo, e por razões de ordem política e estratégica,
este espaço ocidentalizado devia ter por modelo e identificar-se com
o território português reinol2. Assim se interpretam algumas das

1Manuel Lucena Giraldo, «De la ambiguedad de la Geometria. Las expedicíones de


limites y la ocupacion dei espacio americano», in Limites do mar e da terra. Actas da VIII
Reunião de História da Náutica e da Hidrografia, Cascais, Patrimónia, 1998, pp. 277 e ss.
Sobre a noção de cultura como referência básica para o entendimento do social e do polí­
tico de uma sociedade e como produto social que se cria e transmite ao longo do tempo,
veja-se Cassiano Reimão, «A cultura enquanto suporte de identidade, de tradição e de
memória», in Revista da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, n.° 9, 1996, pp. 309 e ss.
2 Stuart B. Schwartz, «The formation of a Colonial Identity in Brazil», in Colonial
Identity in the Atlantic World, 1500-1800, editado por Nicolas Canny e Anthony Pagden,

65
A T R A N SF O R M A Ç Ã O D O S ÍN DIO S EM V ASSALO S

medidas tomadas pela política colonial de Setecentos abordadas


neste capítulo. Revelam-se, por exemplo, na insistência da coroa
portuguesa em implantar o português como a única língua e não,
simplesmente, a língua oficial falada em território amazônico, em
renomear antigos aldeamentos ou atribuir a novas povoações os
nomes de núcleos populacionais do reino. As transformações im­
plantadas incidiram, também, sobre a técnica de construção de
casas, que tomavam por modelo as habitações lusas e, até, sobre a
aclimatação de novas sementes e novas plantas destinadas a serem
integradas nos circuitos econômicos portugueses ou a satisfazer o
paladar dos colonos recém-emigrados. Para além de tudo, tomavam
familiar e controlada uma paisagem completamente estranha aos
olhos dos europeus de Setecentos. Esta procura de identidade da
colônia com o reino não é unicamente válida para a América Portu­
guesa, como se reflecte, também, nos propósitos coloniais para a
Hispanoamérica ou a Nova Inglaterra3.
A ocidentalização do espaço amazônico foi definida no pensa­
mento político colonial do período em análise em função de três
grandes linhas, consideradas fundamentais na estruturação da pre­
sença colonizadora luso-brasileira: os casamentos mistos entre luso-
-brasileiros e índias, a educação e o ensino da língua portuguesa a
todas as camadas da população e o desenvolvimento econômico4.
À simplicidade destes princípios enunciados, contrapõe-se a com­
plexidade dos problemas que lhes estavam implícitos e subjacentes,
tais como o da imposição de uma autoridade política sobre novas
etnias e um novo espaço; o do reconhecimento dessa autoridade por
parte das etnias, expressado pela lealdade política e pelo sentimento
de identificação com um espaço colonial «artificial» que lhes era im­
posto pela potência dominante; o da legitimidade da posse sobre
um território disputado por outras potências coloniais europeias; o
da perturbação da ordem social e étnica existente; o da integração
de uma economia periférica no sistema econômico nacional e euro­
peu; o de alterações no equilíbrio do ecossistema...

Princeton, Princeton University Press, 1987, p. 19. Esta ideia está também subjacente
em Eugênio dos Santos, «A civilização dos índios do Brasil na transição das Luzes para o
Liberalismo: uma proposta concreta», in Maré Liberum (10), Dezembro de 1995, p. 206.
3 Veja-se Colonial Identity in the Atlantic World, 1500-1800, especialmente os capí­
tulos 1, 2, 3 e 5.
4 AHU, Pará, caixa 18 (739 F), Ofício de Joaquim de Melo Póvoas a Tomé Joa­
quim da Costa Corte-Real, de 21 de Dezembro de 1758; também em idem, Rio Negro,
caixa 1, doc. 18, de 21 de Dezembro de 1758.

66
A T R A N SF O R M A Ç Ã O D O S ÍN DIO S EM VASSALO S

U m c ó d ig o le g is la tiv o c o m o e x p r e s s ã o
da p o lític a c o lo n ia l: o D ir e c tó r io

A identificação do território amazônico com um espaço ocidenta­


lizado e português é um dos princípios de base do sistema jurídico que
esteve vigente nas capitanias do Pará, Rio Negro e Maranhão durante
grande parte da segunda metade do século xviii. De facto, o Directório
esteve em vigor desde 1757, data em que foi implantado por Francisco
Xavier de Mendonça Furtado, até 1798rf altura em que foi abolido por
D. Francisco Maurício de Sousa Coutinho. A sua autoria é atribuída ao
primeiro governador do Estado de Grão-Pará, que o elaborou tendo
presente as características do Estado onde primeiro foi aplicado5.
Inúmeros estudiosos têm analisado este corpo legislativo e feito
ressaltar as consequências que teve na área geográfica em questão
durante o período em análise6. No entanto, o que muitos deles não
referem é que o Directório, enquanto conjunto de regras que tenta­
vam a transformação rápida e radical da Amazônia, teve implícito
uma série de idéias e de medidas claramente expressas nos anos que
antecederam, de imediato, o seu aparecimento. O que queremos, a
este ponto, relevar é que a filosofia de colonização subjacente ao
corpo legislativo estava já expressa no princípio dos anos 50, quer na
correspondência de Mendonça Furtado quer nas cartas e relatórios
de outras entidades laicas ou eclesiásticas. Uma e os outros teriam
servido, provavelmente, tanto para sistematizar idéias quanto para
preparar o caminho da sua elaboração e aplicação.
Esta filosofia de colonização, que se começou, então, a delinear
nos primeiros anos da década de 50, manter-se-á sem grandes alte-

5 O Directório foi, por decreto real de 1758, extensível a todo o Brasil, apesar dos
protestos de D. Marcos de Noronha, 6 ° conde de Arcos, 7.° vice-rei (BNRJ, 11-30-32-
-30, Carta régia aos governadores e capitães-generais do Brasil censurando a posição
crítica do conde de Arcos em relação ao Directório, de 20 de Abril de 1761); veja-se,
também, John Manuel Monteiro, «Directório dos índios», artigo do Dicionário da His­
tória da Colonização Portuguesa no Brasil, coordenado por Maria Beatriz Nizza da Silva,
Lisboa, Editorial Verbo, 1994, cols. 261 e 262.
6 Carlos de Araújo Moreira Neto, índios da Amazônia. De maioria a minoria (1750-
-1850), Petrópolis, Editorial Vozes, 1988, pp. 20 e 27-30, Colin MacLachland, «The
Indian Directorate: forced acculturation in Portuguese America», in The Américas.
A cfuaterly Review of Inter American Cultural History, vol. xxvill, (4), April 1972, pp. 357-
-387; Angela Domingues, «As sociedades e as culturas indígenas face à expansão ter­
ritorial luso-brasileira da segunda metade do século XVIII», in Nas vésperas do mundo
moderno. Brasil, Lisboa, Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimen­
tos Portugueses, 1992, pp. 186-188.

67
A T R A N S F O R M A Ç Ã O D O S ÍN D IO S EM V A SSA LO S

rações durante a década seguinte. O seu objectivo imediato tradu-


ziu-se na colonização efectiva do espaço amazônico, através de um
processo que pretenderemos clarificar ao longo deste capítulo. Em
nossa opinião, o Directório, mais do que o responsável pelas modifi­
cações ocorridas no espaço amazônico durante o período em ques­
tão, foi a expressão jurídica de uma série de medidas que trans­
formaram a face da Amazônia, encontrando-se, portanto, nelas
inserido.
O Directório foi, também, a forma pela qual os portugueses fize­
ram a passagem ou a adaptação de uma ideologia de colonização
globalmente delineada a uma situação concreta, ou seja, o meca­
nismo jurídico e político através do qual se conseguiria atingir no
Estado do Grão-Pará os desígnios pretendidos de maneira abstracta
no reino7. Assim, foi concebido em função da avaliação que Men­
donça Furtado fez da situação social, econômica e política da Ama­
zônia, tendo como alvo específico os índios do Norte do Brasil8.
Pretendia-se tomar os ameríndios em súbditos leais e católicos
fiéis9; procurava-se «destribalizar» e aculturar os indígenas, por for­
ma a, por um lado, criar um estrato camponês ameríndio integrado
na economia de mercado como assalariado e, por outro, transfor­
mar os índios em veículos da colonização portuguesa no Norte do
Brasil10. São estes dois objectivos que, grosso modo, estruturam os
95 parágrafos que constituem o Directório.
Como já foi referido, os diplomas régios concedendo aos índios
do Norte do Brasil a liberdade das suas pessoas e bens e estipulando
a administração laica das aldeias indígenas, embora datados de
1755, só foram publicados dois anos depois. É de salientar que, para

7 Confronte-se com o capítulo I «Ameríndios do Norte do Brasil na segunda


metade do século XVIII: as contradições da liberdade».
8 Esta ideia, expressa de outro modo e utilizada em contexto diferente, encon-
tra-se em Colin MacLachlan quando define o Directório como «a curious mixture of
pragmatic instructions interlaced with philosophical justifications for ending the tem­
poral authority of the missionaries», in «The Indian Directorate: forced acculturation
in Portuguese America (1757-1799)», p. 361.
9 Sobre a importância das noções de «português» e «católico», veja-se Ana Cris­
tina Nogueira da Silva e Antônio Manuel Hespanha, «A identidade portuguesa», in
História de Portugal, dirigida por José Mattoso, vol. IV, Lisboa, Círculo de Leitores,
1993, p. 21.
10 Stuart B. Schwartz, «Indian labor and New World plantations: European
demands and Indian responses in Northeastern Brazil», in The American Historical
Review, vol. 83 (1), February, 1978, p. 50; Eugênio dos Santos, «A civilização dos
índios do Brasil na transição das Luzes para o Liberalismo...», p. 206.

68
A TR A N SFO R M A Ç Ã O DOS ÍNDIOS EM VASSALOS

o vice-reinado esta legislação só viria a ser implantada por alvará de


8 de Maio de 175811.
A promulgação deste conjunto legislativo criava junto dos pode­
res governativos algumas apreensões, decorrentes dos aspectos prá­
ticos da sua aplicação e, sobretudo, das reacções que provocaria
junto da sociedade colonial. Designadamente, temia-se que, ao ser
divulgada a lei da liberdade, os ameríndios repartidos pelo serviço
dos colonos, dos missionários ou da coroa abandonassem o seu tra­
balho e regressassem às suas aldeias ou voltassem para a floresta,
deixando os campos sem cultivo, os senhores sem criados e gerando
uma crise de mão-de-obra que os escassos escravos africanos não
poderiam suprir.
Um outro problema residia no facto de a legislação reconhecer a
equidade de oportunidades, de privilégios, de direitos entre índios e
luso-brasileiros. Ora, essa igualdade não era admitida pelos luso-bra-
sileiros, que se consideravam cultural e civilizacionalmente superio­
res, nem, paradoxalmente, pela própria coroa, que concedia aos seus
súbditos ameríndios um estatuto especial, o de pessoas miseráveis,
por considerar que os índios não eram totalmente responsáveis por si
nem pelos seus actos12. Esta questão está relacionada com a da substi­
tuição do poder temporal dos missionários pela autoridade de outro
organismo que governasse eficientemente os aldeamentos indígenas,
uma vez que, tal como era depreendido pela potência colonial, os
ameríndios não tinham capacidade para se autogovemarem.
A resolução destes problemas surgiu com o Directório, que,
enquanto código legal, conferia poder e legitimidade às regras de
conduta impostas pelo Estado josefino, separava o legítimo do ilegí­
timo, estabelecia as fronteiras entre o permissível e o inadmissível e
definia o novo plano civilizacional a que se pretendia dar início no
Norte brasileiro13. A sua aplicação regulamentava uma fase transitó-

11 «Alvará por que S. M. é servida ordenar que a liberdade que havia concedido
aos índios do Maranhão para as suas pessoas, bens e comércio por alvarás de 6 e 7 de
Junho de 1755 se estenda a todos os índios que habitam o continente brasileiro, sem
restrição, interpretação ou modificação», J. C. B., 71-341-1, de 8 de Maio de 1758.
12 Veja-se capítulo vi «A construção de imagens: definição de ameríndios nos dis­
cursos coloniais».
13 Para o conceito de lei enquanto veículo de legitimação dos poderes coloniais,
veja-se Patrícia Seed, Ceremonies of posscssion in Europe's conquest of the New World,
1492-1640, Cambridge MA, Cambridge University Press, 1995, pp. 6-7: «If language
and gestures of everyday life were the cultural media through which European States
created their autority and communicated it overseas, Iaw was the means by wich
States created their legitimacy.»

69
A T R A N S F O R M A Ç Ã O D O S ÍN D IO S EM V A SSA LO S

ria, ao longo da qual os índios seriam objecto de tutela e de educa­


ção, cristianização e civilização, por forma a tornarem-se vassalos
úteis e súbditos leais de Sua Majestade Fidelíssima e, portanto, inte­
grados harmoniosamente na sociedade colonial luso-brasileira14.
A concretização deste processo fundamentou-se, antes de mais,
na criação de um sistema administrativo alternativo ao das ordens
religiosas: o Directório estabeleceu a cisão entre os poderes temporal
e espiritual, cabendo ao director e à câmara gerir vilas e aldeias e ao
missionário orientar espiritualmente a população (§1, §2, §4). Mas,
ao mesmo tempo que definia a divisão de poderes e de funções,
estipulava que entre directores, câmaras e missionários deveria
haver uma estreita colaboração e pressupunha que a acção das auto­
ridades laicas e eclesiásticas devia confluir para um único fim: a civi­
lização dos ameríndios, a opulência da terra, a glória de Deus e o
poder do soberano (§4).
Antes de mais, há que referir que cumpria ao governador e capi-
tão-general da capitania nomear os directores (§1). Estes são defini­
dos como sendo os tutores dos índios, devendo administrá-los «em
quanto se conservão na bárbara, e incivil rusticidade, em que até
agora foram educados»15. Intervinham em quase todos os aspectos
da vida quotidiana: deviam proibir a utilização da «língua geral» e
fazê-la substituir pela portuguesa (§6), respeitar e fazer respeitar os
privilégios dos índios e impedir que fossem insultados (§9, §10,
§89); incentivar a construção de casas unifamiliares, o uso de ves­
tuário e controlar o consumo de bebidas alcoólicas, bem como o
comportamento dos indígenas (§12, §13, §14, §15); deviam prestar
auxílio aos novos colonos e incentivar os casamentos mistos (§80,
§88); eram considerados responsáveis pela construção da igreja, das
casas da câmara e da cadeia, bem como pelo ordenamento urbano
da povoação (§12, §74); deviam fazer aumentar a população das
suas aldeias, pelo incremento de descimentos e pela anexação de
pequenos povoados às aldeias que administravam (§76, §78, §79);
eram responsáveis localmente pela repartição dos ameríndios (§60,
§62); deviam integrá-los na economia colonial, incentivando-os a
dedicar-se à agricultura, a produzir excedentes e a comerciá-los (§16,
§17, §36, §39); eram responsáveis pela armação das canoas que se

14 Directório que se deve observar nas povoações dos índios do Pará e Maranhão
enquanto Sua Magestade não mandar o contrário, Lisboa, Officina de Miguel Rodrigues,
1758, pp. 1-3.
15 Directório, § 92, p. 37.

70
A T R A N S F O R M A Ç Ã O D O S ÍN D IO S EM V A SS A L O S

destinavam à recolha de drogas do sertão (§48, §50); deviam super­


visionar as transacções comerciais, bem como superintender na
cobrança do dízimo (§27).
Era-lhes recomendado amiudadamente que no seu contacto
quotidiano com os ameríndios se regulassem pela brandura, prudên­
cia e suavidade, sem recorrer ao uso de violência e se norteassem
pela defesa do bem público, prioritário aos interesses dos particula­
res (§14, §93, §95).
De tudo o que ocorresse na sua ptfvoação, os directores deviam
dar conta às competentes instituições da capitania. Ora, na medida
em que estipulava que o director devia informar o governador e capi-
tão-general, a provedoria da Fazenda Real ou a ouvidoria da produ­
ção agrícola, do movimento comercial ou dos contigentes demográ­
ficos do núcleo urbano sob sua dependência, o Directório estava, ao
mesmo tempo, a centralizar informações para fins fiscais, militares
ou jurídicos, a estabelecer mecanismos de vigilância sobre a actuação
dos directores e a delinear uma relação hierárquica de dependência e
de poder. O que, em última instância, se pretendia através das dispo­
sições legislativas era o incremento dos dispositivos de vigilância do
território por parte das instituições centrais, incluído o poder gover­
nativo da capitania, através do controlo da informação.
Pelo Directório ficavam os directores obrigados a registar as
informações relacionadas com a comunidade que geriam em listas,
mapas e guias. Estas eram remetidas, na sua globalidade, ao gover­
nador e, parcelarmente, ao provedor da Fazenda, ao tesoureiro-
-geral e ao ouvidor. Registavam-se em vários livros rubricados: dos
Dízimos, do Comércio, da Matrícula, que permaneciam nas povoa-
ções. Pela legislação, estabelecia-se que esses documentos deviam
conter informações sobre a produção agrícola e sobre a percentagem
sujeita à taxação do dízimo, sobre os gêneros vendidos e permuta-
dos, sobre a esquipação das canoas para colecta de drogas do sertão
e o movimento comercial gerado por esta actividade, sobre o
número de indivíduos activos sujeitos à repartição, bem como sobre
as movimentações populacionais causadas pelas deserções, desci-
mentos e anexações16.

16 Consideramos que o registo da informação e a sua veiculação aos órgãos de


poder, tal como estão expressos no Directório, são uma forma de vigilância à actuação
dos directores. No entanto, criaram-se outros mecanismos de controlo de que dare­
mos conta quando confrontarmos as funções estabelecidas legalmente com a actua­
ção dos directores na administração das povoações (veja-se capítulo m «Em cumpri­
mento do real serviço: o reordenamento do território e a integração dos vassalos»).

71

j-
A T R A N S F O R M A Ç Ã O D O S ÍN D IO S EM V A SSA LO S

O Directório criou, portanto, um sistema alternativo à adminis­


tração dos missionários e deste novo sistema pretendia-se que saísse
fortalecido o poder central através de uma «reforma administrativa»
que visava tornar uma entidade laica, o director, num representante
do poder colonial junto da população.
Uma outra mudança fundamental preconizada neste corpo
legislativo consistia em tomar os ameríndios em representantes lídi­
mos da colonização luso-brasileira. Esta medida revelou-se, pri­
meiro que tudo, pelo fim da separação entre índios e luso-brasilei-
ros. Entre estes deviam estabelecer-se «reciprocas as utilidades e
communicaveis os interesses», uma vez que ambos eram súbditos
de um mesmo soberano17.
Já por alvará de 4 de Abril de 1755 se tinha decretado que os
luso-brasileiros casados com índias não deviam ser discriminados,
mas antes dignos do favor real, que lhes concedia, a si e a seus des­
cendentes, a preferência para o exercício de cargos públicos18. O Di­
rectório retomou o conteúdo deste alvará, e reforçou-o ao determinar
que os ameríndios não deviam ser considerados inferiores, nem cha­
mados de negros (§10)19. O Directório definia os índios como incapa­
zes de se autogovemarem e, por conseguinte, de estarem aptos para
o exercício de cargos administrativos. Considerava-os também
como incapazes de medirem as consequências totais dos seus actos
e, consequentemente, concedia-lhes o estatuto de menores, sujeitos
a leis especiais e à tutela de um «director» (§92). Referia-se-lhes
como bárbaros, ignorantes, desinteressados, rudes e gentios (§2, §39,
§58 e §92).
É no sentido de destruir estas características que os diferenciam
dos luso-brasileiros que o Directório se assumiu também como um
«programa civilizacional». Se as medidas mais imediatas consistiam
em decretar que os ameríndios tomassem como nomes e sobreno­
mes os das famílias de Portugal (§11) ou se incentivassem os luso-
-brasileiros a morar nas mesmas povoações (§80) e se miscigenassem
com os índios (§88), as transformações mais profundas implicavam

17 Directório..., § 16, p. 8.
18 BN, R3610 V, Alvará de 4 de Abril de 1755.
19 Na terminologia colonial, os ameríndios eram definidos como «negros da
terra» por paralelismo à designação dos africanos como «negros da Guiné». Para os
portugueses, «negro» era sinônimo de escravo e estava conotado com servidão (Stuart
B. Schwartz, «Indian labor and new demands...», p. 61; atente-se também no livro de
John Manuel Monteiro, Negros da terra. índios e bandeirantes nas origens de S. Paulo, São
Paulo, Companhia das Letras, 1994).

72
-

A T R A N SF O R M A Ç Ã O D O S ÍN D IO S EM V ASSALO S

a mudança da língua (§6), a reforma dos costumes (§14) e a integra­


ção dos índios no sistema econômico colonial (§17).
Os ameríndios deviam ser motivados a reformar o seu compor­
tamento e as suas crenças bárbaros (§14), a habitar em casas e aldea-
mentos construídos de acordo com as normas urbanísticas euro­
péias (§12), a controlar o consumo de bebidas alcoólicas (§13), a
utilizar vestuário decente e compatível com a posição social do uti­
lizador (§15), deviam trabalhar (§20) e, nomeadamente, deviam
dedicar-se ao cultivo das suas terras e das dos moradores, por forma
a satisfazerem o consumo interno, a subsistência das suas casas e
famílias (§17) e a produção de excedentes, destinados ao abasteci­
mento da recém-criada capitania de S. José do Rio Negro e à ex­
portação (§17, §22). E, assim, incentivava-se a cultura dos produtos
tradicionalmente criados pelos ameríndios, tanto quanto se incre­
mentava o cultivo de milho, feijão, arroz, algodão, tabaco e do café,
cacau, anil e linho cânhamo (§23, §24, §25). Do desenvolvimento
agrícola deveria decorrer o desenvolvimento comercial baseado na
venda e permuta de drogas do sertão, produtos agrícolas, manufac-
turas e outros gêneros que fossem necessários e úteis à vida dos
ameríndios (§35).
Com as reformas preconizadas, o Directório pretendia incutir
junto das comunidades indígenas não só o padrão de comporta­
mento moral europeu como introduzia ainda hábitos de trabalho
ocidentais. Contudo, no código, a atenção do legislador centrou-se
com particular incidência em questões de ordem econômica e de
administração do território, na especificação de funções e na defini­
ção de mecanismos de controlo, relegando os problemas de natu­
reza ética ou moral a reduzidos parágrafos. Como já foi afirmado, o
Directório partia do pressuposto de que as povoações deviam ser
administradas através de uma actuação conjunta e consonante de
directores e missionários. A partir do momento em que as reformas
da segunda metade do século xvill se processaram, assistiu-se a uma
transferência do poder temporal para o director, cuja actuação se
regulamenta em pormenor no corpo legislativo. Apesar de estar cla­
ramente expresso que os directores eram responsáveis pela civili­
dade dos ameríndios, será que se confiavam os aspectos relaciona­
dos não só com a assistência religiosa mas também com a conduta
moral e social aos missionários20? Será que, porque o que se preten­
dia instaurar nas novas aldeias e povoações não constituía novidade

20 Directório, § 5, p. 3.

73

_
A T R A N S F O R M A Ç Ã O D O S ÍN D IO S EM V A SSA LO S

em relação ao que os padres tinham querido instaurar nas missões,


o legislador não considerou «a reforma dos costumes» com a mesma
minúcia que as reformas do foro administrativo? Ou será que se
pressupunha que os directores deviam ser pessoas de comporta­
mento íntegro e, portanto, se considerava supérfluo a reflexão sobre
as normas de conduta e comportamentais21?
Contrariamente ao que acontece com as questões morais e éti­
cas, os aspectos relacionados com a economia e o trabalho foram tra­
tados com detalhe. Entendia-se que a colaboração dos ameríndios,
enquanto fonte de trabalho, era imprescindível para o desenvolvi­
mento econômico local, bem como para a integração econômica de
uma área geográfica marginal como era a Amazônia da segunda
metade do século xvni no sistema colonial. Esta dependência da mão-
-de-obra indígena revelou-se também como uma das preocupações do
Directório. E, por isso, o corpo legislativo regulamentava a forma pela
qual as entidades administrativas deviam proceder à sua gestão.
A unidade de interesses que se estipulava como imprescindível
entre ameríndios, colonos e a coroa passava, obviamente, pelo desen­
volvimento agrícola e econômico do Estado do Grão-Pará. Pretendia-
-se que os ameríndios participassem activamente deste processo, quer
como mão-de-obra ao serviço dos colonos quer como proprietários
dos seus próprios bens22. Desta forma se justifica a tarefa confiada ao
director no sentido de fomentar, junto dos índios, o aumento da pro­
dução agrícola, a comercialização de excedentes e o desenvolvi­
mento da actividade comercial (§19, §43, §45, §49); neste sentido,
procura-se que os indígenas colaborem no comércio das drogas do
sertão como parte interessada (§50, §57); e tenta-se introduzir junto
dos ameríndios os conceitos de riqueza e opulência (§17).
Perante isto, percebe-se a razão pela qual a gestão dos índios,
enquanto fonte de trabalho, ocupa um lugar de tanta importância no
Directório. Também em relação a este aspecto se introduziram altera­
ções: o sistema que, anteriormente, distribuía a mão-de-obra indí­
gena por três fracções, contemplando os colonos, a coroa e os mis­
sionários, deu lugar a uma repartição bipartida entre, por um lado,
as povoações e o serviço da coroa e, por outro, os moradores, as

21 O papel educador do director através do exemplo está mencionado no Directó­


rio, § 4, p. 3.
22 Ao relacionarmos o Directório com a legislação anteriormente publicada, pen­
samos que se deve lembrar que o alvará régio de 6 de Abril concedia aos índios a
liberdade não só das suas pessoas como dos seus bens (AHU, Conselho Ultramarino,
códice 336, fl. 53v a 65; BN, Reservados, códice 8396, doc. II).

74
A T R A N SF O R M A Ç Ã O D O S ÍN DIO S EM VASSALO S

equipações de canoas, a extracção das drogas-do-sertão e o cultivo


de tabaco, açúcar e algodão (§63). No entanto, determinava-se que
todos deviam receber pelos serviços que prestavam uma justa remu­
neração (§68).
Com a introdução de factores como o desenvolvimento agrícola
e comercial, os excedentes, os salários, a riqueza e o lucro, pensamos
que, a longo prazo, o Directório procuraria transformar o trabalho
indígena de compulsório em voluntário. Este objectivo seria concre­
tizado quer pela necessidade criada junto das sociedades ameríndias
de realizar fundos que lhes permitissem o consumo de novos produ­
tos alheios à produção local e lançados no mercado pelo comércio
colonial; quer pela introdução de noções de lucro, de riqueza, de
bem-estar e de conforto pessoal ligados ao prestígio social; quer,
numa fase ideal, pela identificação e integração dos índios no sis­
tema colonial luso-brasileiro enquanto vassalos e, consequente­
mente, em total sintonia com os «interesses e utilidades» do reino.
A chave para transformar povos rústicos, bárbaros, ignorantes e
incíveis em indivíduos civilizados e úteis à comunidade e ao reino
consistia na educação. E, por isso, o Directório insistia na criação de
escolas em todas as povoações, onde mestres, «pessoas dotadas de
bons costumes, prudência e capacidade», instruiriam os meninos e
meninas índios na doutrina cristã, na leitura e na escrita e, os pri­
meiros, na aritmética, enquanto as segundas, em algumas «prendas
domésticas» (§7, §8)23. Mas, com prioridade sobre tudo, ensinariam
a língua portuguesa, considerada pelos homens de Estado de Sete­
centos como uma forma legitimadora da autoridade colonial portu­
guesa, como um dos «meios mais efficazes para desterrar dos Povos
rústicos a barbaridade dos seus antigos costumes; e ter mostrado a
experiencia, que ao mesmo passo que se introduz nelles o uso da
Lingua do Príncipe, que os conquistou, se lhes radica também o
affecto, a veneração e a obediência ao mesmo Príncipe»24.
Assim, de acordo com a legislação colonial da segunda metade
do século xv iii, pelo ensino da língua civilizavam-se os povos e
transmitia-se-lhes noções de identidade e de lealdade. Em suma, a
imposição do português como língua única e «nacional» incutiría
junto dos ameríndios noções de sujeição a um soberano, dono e
senhor de um vasto território que, à época, era disputado por outras
potências europeias rivais. A legitimidade da pertença encontrava as

23 Directório, § 8, p. 4.
24 Directório, § 6, p. 3.

75
A T R A N SF O R M A Ç Ã O D O S ÍN DIO S EM VASSALO S

suas bases jurídicas na colonização efectiva do território. Ora, que


melhor argumento havería para o provar do que a utilização da lín­
gua portuguesa pelos seus habitantes?
As mudanças que, através do Directório, o poder real pretendeu
aplicar em território amazônico e a autoridade em que se funda­
mentava para as executar encontravam legitimidade numa missão
civilizadora e cristianizadora que, em meados do século xviii, era
não só apanágio como obrigação dos soberanos absolutistas euro­
peus com possessões coloniais. Era dever moral dos monarcas civili­
zar os povos que se consideravam rústicos, ignorantes, bárbaros e
pagãos em nome da felicidade e do progresso dos povos e do inte­
resse da «república» e do bem comum. Civilizar e cristianizar eram
actos de caridade, de humanidade e de justiça. Foi nestes princípios,
que, à época, eram entendidos como uma obrigação dos povos civi­
lizados face a outros desfavorecidos, que a legislação produzida em
meados de Setecentos e, particularmente, o Directório, fundamentou
o programa político colonial em relação à população indígena25.

A ld e ia s , v ila s e fo r tific a ç õ e s

A ocupação do território foi uma prioridade da política colonial


portuguesa na segunda metade de Setecentos. Por ela, os luso-brasi-
leiros manifestavam a sua vontade de dominar o «sertão» consti­
tuído pela bacia hidrográfica amazônica. Ao contrário da política de
colonização formulada por outros países europeus para o Novo
Mundo, designadamente pela Inglaterra isabelina que punha a
tônica unicamente na posse da terra, a coroa portuguesa, visava tor­
nar doméstico, útil e civil não só o solo como os homens26.

25 Entendemos que o tratamento exaustivo dado aqui ao Directório se justifica


porque, não obstante ser um dos documentos mais utilizados por quem se dedica ao
estudo do Norte brasileiro da segunda metade do século XVIII, é pouco explorado em
determinados aspectos. Contém dados que normalmente são ignorados ou secunda-
rizados, apesar de serem importantes para o entendimento da política pombalina na
área em estudo. Uma outra perspectiva deste documento é encontrada em Rita
Heloísa de Almeida, O Directório dos índios. Um projecto de •civilização» no Brasil do século
XVlll, Brasília, Editora Universidade de Brasília, 1997, segunda parte «As transposi­
ções», pp. 149 e ss.
26 Patrícia Seed, «Taking possession and reading texts c tablishing the authority
of Overseas Empires», in Early images of the Américas: transfer and invention, editado por
Jerry M. Williams e Robert E. Lewis, Arizona, The University of Arizona Press, 1993,
pp. 113-114.

76
A T R A N S F O R M A Ç Ã O D O S ÍN D IO S EM V A SSA LO S
A T R A N SF O R M A Ç Ã O D O S ÍN DIO S EM VASSALO S

O território amazônico, habitado desde tempos imemoriais


pelas etnias indígenas, era considerado à luz do direito colonial euro­
peu da época como terra livre, porque sobre ela não se exercia a auto­
ridade de outro soberano cristão, nem nela viviam povos cristãos27.
Assim, juridicamente, a autoridade da coroa portuguesa sobre solo
amazônico só encontraria contestação legítima quando a colonização
luso-brasileira colidisse com a colonização de outro país europeu.
Para tomar sólida e fundamentada a sua autoridade, o príncipe cris­
tão devia proceder à ocupação física do espaço e manifestar o desejo
de integrá-lo, de forma permanente, na sua área de soberania. Ora, na
Amazônia da segunda metade do século xvili, esta vontade revela-se
no estabelecimento de aldeias, vilas e fortificações, mas também na
renomeação dos antigos povoados, que tomam nomes portugueses;
ou seja, a autoridade da coroa sobre o território exerce-se através de
uma presença efectiva e por referências simbólicas28.
Quando se alude à colonização luso-brasileira estabelecida no
Norte do Brasil durante a primeira metade do século XVIII há que tomar
em consideração a existência de núcleos administrados por autorida­
des laicas e de aldeamentos confiados à administração religiosa.
Os representantes administrativos laicos exerciam a sua autori­
dade fundamentalmente na cidade de Santa Maria de Belém, nos
núcleos urbanos em seu redor e nas fortificações localizadas no lito­
ral e ao longo do curso do rio Amazonas. Esta ocupação do espaço

27 Patrícia Seed, «Taking possession and reading texts...», p. 117. Sobre a história
da Amazônia antes dos contactos com os europeus, veja-se, por exemplo, Anna Cor-
tenius Roosevelt, «Sociedades pré-históricas do Amazonas brasileiro», in Nas vésperas
do mundo moderno. Brasil, pp. 17 e ss.; «Resource management in Amazônia before
conquest: beyond Ethnografic projection», in Advances in Economic Bothany, 7, 1989,
pp. 30 e ss.; «Lost civilizations of the Lower Amazon. Archeologists discover the com-
plex societies that ruled South America’s tropics», in Natural History, 2, 1989, pp. 76 e
ss.; «Arqueologia amazônica», in História dos índios do Brasil, organização de Manuela
Carneiro da Cunha, São Paulo, FAPESP, Companhia das Letras, Secretaria Municipal
de Cultura, 1992, pp. 53 e ss.
28 Ângela Domingues, «Urbanismo e colonização na Amazônia em meados do
século xvill: a aplicação das reformas pombalinas na capitania de S. José do Rio
Negro», in Revista de Ciências Históricas, n.° x, 1995, p. 265. Ao invés do que foi afir­
mado por outros autores, estamos crentes que a renomeação das povoaçôes pouco
teve a ver com o local de origem dos povoadores. Se excluirmos o caso de Vila Nova
de Mazagão, verificamos que os topónimos utilizados durante o período estudado
estão relacionados com as povoaçôes da Coroa, da Casa da Rainha e Infantado e,
eventualmente, com as terras de origem ou patrimoniais dos governadores que as
fundavam ou intitulavam (confronte-se Rita Heloísa de Almeida, O Directório dos
índios, p. 67).

78

in .
A T R A N S F O R M A Ç Ã O D O S ÍN D IO S EM V ASSALO S

pode relacionar-se com as prioridades que norteavam a fixação luso-


-brasileira no Pará. Face às tentativas desencadeadas por holandeses,
franceses, irlandeses e ingleses, desde o século anterior, para ocupar
aquela área geográfica, as iniciativas oficiais portuguesas só se
podiam centrar em áreas que fossem, com mais probabilidade, o
alvo de cobiça por parte de potências estrangeiras: o litoral e os cur­
sos fluviais que davam acesso ao interior29. Construíram-se, conse­
cutivamente, fortificações em Belém, Páuxis, Tapajós, Parú e na
Barra do rio Negro, que tinham a finalidade de controlar a navega­
ção dos rios, tanto com fins militares como fiscais, e de reprimir ata­
ques das etnias ameríndias da região. A presença de colonos encon­
trava-se concentrada na cidade e em seu redor e disseminada por
pequenos povoados, engenhos e fazendas, até porque estava vedada
a fixação de luso-brasileiros em aldeias de índios30.
No interior, fazia-se sentir fortemente a presença das ordens
religiosas, regulamentada pelo Regimento das Missões do Estado do
Maranhão e Grão-Pará, promulgado em 1686, e por legislação subse­
quente31. Os missionários, detentores da jurisdição temporal e espi­
ritual sobre os ameríndios aldeados, foram responsáveis pela funda­
ção de inúmeras aldeias ao longo do rio Amazonas e dos seus
afluentes32. Esta vasta área geográfica encontrava-se repartida pelas

29 English and Irish Settlement on the river Amazon (1550-1646), edição de Joyce
Lorimer, Londres, Hakluyt Society, 1968; AAW, História Naval Brasileira, vol. I,
tomo II, Rio de Janeiro, Ministério da Marinha, Serviço de Documentação-Geral da
Marinha, 1975, capítulo 11; Ângela Domingues, «Estado de Grão-Pará e Maranhão»,
in Dicionário da História da Colonização Portuguesa no Brasil, Lisboa, Editorial Estampa,
1994, cols. 314-316.
30 Directório, § 80, p. 34.
31 Regimento e Leis sobre as missões do Estado do Maranhão e Pará e sobre a liberdade
dos índios, Lisboa, Oficina de Antônio Menescal, 1724; Mathias C. Kiemen, «The
Indian policy of Portugal in America, with special reference of the old State of Mara­
nhão, 1500-1755», in The Américas. A Quaterly Review of Inter-American Cultural History,
vol. v, (4), Abril de 1949, pp. 439-447.
32 A primeira ordem religiosa a estabelecer-se na Amazônia foi a dos Franciscanos
da Província de Santo Antônio fixados no território em 1617; seguiram-se outros ramos
da mesma ordem: os da Piedade, chegados em 1693 devido a solicitação de Manuel
Guedes Aranha; e os Capuchos da Conceição da Beira e Minho, em 1706. Os Carmeli­
tas iniciaram a sua missão no Pará em 1627 e os Jesuítas surgiram em 1636, quando o
padre Luís Figueira se estabeleceu em Belém e percorreu os rios Tocantins, Pacajás e
Xingú. Os Mercedários foram trazidos por Pedro Teixeira na sua viagem de regresso de
Quito, em 1639, começando no ano seguinte a construção da igreja e convento das
Mercês (veja-se Carlos de Araújo Moreira Neto, «Os principais grupos missionários que
actuaram na Amazônia brasileira entre 1607 e 1759», in História da Igreja na Amazônia,
coordenada por Eduardo Hoomaert, Petrópolis, Editorial Vozes, 1992, pp. 63-105.

79
w

A T R A N S F O R M A Ç Ã O D O S ÍN D IO S EM V A SSA LO S

diferentes ordens religiosas, que exerciam a sua influência sobre


zonas específicas. Assim, à Companhia de Jesus pertencia o distrito
sul do Amazonas; as terras da margem norte até ao rio Urubu repar-
tiam-se pelos religiosos franciscanos de evocação de Santo Antônio
e da Piedade; o rio Urubu constituía outra área de influência jesuí-
tica e o rio Negro era partilhado por esta ordem e pelos carmelitas; a
estes e a mercedários tinha sido entregue o rio Madeira33.
Segundo Mathias Kiemen, nos anos 50 de Setecentos o gover­
nador e capitão-general Francisco Xavier de Mendonça Furtado deu
conta da existência de 63 aldeias no Estado do Maranhão, das quais
19 pertenciam aos jesuítas, 15 aos carmelitas, 26 aos franciscanos e
3 aos mercedários34.
Foi esta a situação encontrada por Francisco Xavier de Mendonça
Furtado quando se decidiu aplicar, cerca de dois anos após a data da
promulgação, o já referido alvará de 7 de Junho de 1755. Como sis­
tema administrativo alternativo às missões elevavam-se os antigos
aldeamentos missionários à categoria de vilas ou de aldeias, que se
passavam a gerir de acordo com as normas regulamentadas pelo
Directório. De igual forma, delegava-se a gestão administrativa tem­
poral às câmaras ou aos directores. A acompanhar esta transferência
de poder, assistiu-se também, entre 1753 e 1760, à renomeação das
povoações que perdiam o seu nome indígena em detrimento dos
nomes das povoações pertencentes à coroa, às Casas da Rainha, de
Bragança, do Infantado e à Ordem de Cristo35. Esta alteração mera-

33 João Lúcio de Azevedo, Os jesuítas no Grão-Pará. Suas missões e colonização,


Coimbra, Imprensa da Universidade, 1930, p. 242; Manuel Maria Wermers, «O esta­
belecimento das missões carmelitas no Rio Negro e Solimões (1695-1711)», in Actas
do V Colóquio de Estudos Luso-Brasileiros, vol. II, Coimbra, 1965, pp. 527-572; Angela
Domingues, «A importância das visitações para o conhecimento das etnias amerín­
dias da Amazônia e do Pará em meados de Setecentos», in Actas do Congresso Inter­
nacional de História. Missionação Portuguesa e Encontro de Culturas, vol. II, Braga, Uni­
versidade Católica Portuguesa, Comissão Nacional para as Comemorações dos
Descobrimentos Portugueses, Fundação Evangelização e Culturas, 1993, p. 454.
34 Mathias C. Kiemen, «The Indian policy of Portugal in America, with special
reference to the old State of Maranhão...», p. 448; estes números diferem ligeira­
mente dos apresentados por João Antônio da Cruz Diniz Pinheiro na sua «Notícia do
que contém o Estado do Maranhão em commum e em particular succintamente den­
tro do seu distrito», cit. em Carlos de Araújo Moreira Neto, índios da Amazônia. De
maioria a minoria, pp. 145-151.
35 Assim, S. José de Arapijó transformou-se em Carrazedo, Pauxis em Óbidos,
Santo Antônio de Sorubiú em Alenquer, S. Francisco de Gurupatuba em Montalegre, Ita-
ticoara em Serpa, Bararoá em Borba (Antônio Ladislau Monteiro de Baiena, Compêndio
das eras da Província do Pará, Belém, Universidade do Pará, 1969, pp. 160, 165, 168-169).

80
A TR A N SFO R M A Ç Ã O D O S ÍN DIO S EM VASSALOS

mente formal foi, sem dúvida, significativa, apesar de simbólica, por­


que expressava a autoridade do poder central. Ao querer impor a lín­
gua portuguesa como única, a coroa abolia igualmente os nomes
indígenas das povoações por outros legitimamente portugueses,
como forma de comprovar a eficácia da colonização luso-brasileira
sobre o Estado do Grão-Pará; ao mesmo tempo, questionava o poder
dos missionários, acusados de fomentarem a utilização da língua
geral e de punirem os índios que se expressassem em português36.
As reformas pombalinas privilegiavam os núcleos urbanos na
medida em que estes eram um meio altamente eficaz de aculturação
e de europeização da população indígena. Pelo estabelecimento de
aldeamentos pretendia-se, primeiro que tudo, proceder à sedentari-
zação das etnias que ainda eram nômadas; depois, queria-se concen­
trar alguma da população que já vivia em aldeamentos indígenas,
mas que ainda se encontrava dispersa pelo sertão; e visava-se proce­
dem ruralização dos ameríndios, pelo incentivo à sua participação
activa na agricultura e na criação de gado. A existência de aldeias
como núcleos de concentração de indígenas permitia uma assistên­
cia religiosa mais fácil e um maior controlo sobre o comportamento
moral e ético da população; ou seja, na política colonial portuguesa
do século xviii, tal como na que a coroa espanhola determinava para
as suas colônias durante o mesmo período, era nos núcleos urbanos
que a passagem dos ameríndios para uma «forma superior de civili­
zação», ocidental e católica, era processada37.
De igual modo, era nas aldeias e vilas luso-brasileiras que se pre­
tendia proceder à anulação da identidade das comunidades amerín­
dias. No discurso colonial da época entendia-se que a incorporação
de várias etnias, com línguas, hábitos e comportamentos diversos
num mesmo povoado concorria para o desaparecimento gradual,
mas eficaz, das suas especificidades culturais enquanto grupo. Assim,
haveria mais facilidade em implantar a civilização luso-brasileira.
A legislação portuguesa apenas especificava que não se devia incor-

36 Veja-se, por exemplo, BN, Colecção Pombalina, cód. 622, fl. 33, Oficio de José
Antônio de Freitas Guimarães a [Francisco Xavier de Mendonça Furtado?], de 13 de
Fevereiro de 1753.
37 O papel que os núcleos urbanos tiveram em território luso-brasileiro é seme­
lhante ao que exerceram em território hispano-americano. Veja-se Francisco de
Solano, «Urbanizacion y municipalízacion de la poblacion indígena», in Estúdios sobre
la ciudad iberoamericana, coordenação de Francisco de Solano, Madrid, Consejo Supe­
rior de Investigaciones Científicas, Instituto Gonzalo Femandez de Oviedo, 1983,
pp. 241-245.

81
A T R A N S F O R M A Ç Ã O D O S ÍN D IO S EM V ASSALO S

porar no mesmo local etnias inimigas, pela instabilidade que os con­


frontos daí resultantes causaria à colonização do território.
A criação de núcleos urbanos individuais motivou a formação
de uma rede de aldeias que tinha o objectivo de servir de suporte ao
abastecimento da cidade e dos aldeamentos recém-formados, de
permitir o apoio à navegação militar e comercial, de fornecer o mer­
cado de mão-de-obra com ameríndios cooperantes e preparados
para um trabalho regular e sistemático e, ainda, de defender locais
tácticos e consolidar a posse e o controlo do poder colonial sobre
zonas de interesse estratégico.
Na Amazônia de Setecentos assiste-se, na designação expressada
por David Davidson, à formação de «a kind of water-bome society in
formation where most communication, travei and settlement was gui-
ded along rivers», que são simultaneamente artérias de comunicação e
de comércio, linhas estratégicas de defesa e canais de conflito38. Os
rios eram a via da expansão e da consolidação da presença luso-brasi-
leira na Amazônia39. Para além deste condicionalismo imposto pelas
características ecológicas, outros factores determinavam a escolha dos
locais para a fundação dos núcleos representativos da presença luso-
-brasileira: a benignidade das condições climatéricas; a proximidade
de terras férteis e de recursos naturais; a improbabilidade de situações
de risco, causadas por ataques de etnias hostis ou de mosquitos e ver­
mes; a pertinência da defesa de um local face a pretensões estrangeiras
ou a necessidade de controlo e de apoio à circulação fluvial.
A partir da segunda metade do século xvni, projectou-se transfor­
mar as aldeias e vilas da Amazônia em locais de residência de índios e
colonos. Esta intenção moldou a fisionomia urbana dos povoados
luso-brasileiros na Amazônia, que passaram a ser constituídos por
bairros de «brancos» e de indígenas. Ao promover a coabitação entre
estes dois grupos, as intenções dos legisladores eram variadas. Através
do exemplo, os luso-brasileiros deviam incentivar os ameríndios a cul­
tivar as suas terras e a utilizar novas técnicas e culturas agrícolas, bem
como incutir-lhes apetências pelo lucro e pela prosperidade. Um outro
objectivo resultante desta convivência devia resultar na miscigenação

38 David M. Davidson, «How the Brazilian West was won: Freelance & State on
the Mato Grosso frontier, 1737-1752», in Colonial roots of Modem Brazil. Papers of the
Newherry Library Conference, editado por Dauril Alden, Berkeley, Los Angeles, Lon­
dres, University of Califórnia Press, 1973, p. 66.
39 A referência aos rios como vias de penetração e de colonização encontra-se
também em Carmen Aranovich, «Notas sobre urbanizacion colonial en la America
Portuguesa», in Estúdios sobre la ciudad iberoamericana, p. 396.

82
A T R A N S F O R M A Ç Ã O D O S ÍN D IO S EM V A SSA LO S

dos luso-brasileiros com as mulheres índias e assimilação, por estas e


seus descendentes, dos hábitos e costumes portugueses.
Os núcleos urbanos surgiam, portanto, como o meio privile­
giado para promover estes contactos e, consequentemente, como
uma forma eficiente para «destribalizar» e aculturar os índios, tão
eficaz como a miscigenação na adopção dos hábitos luso-brasileiros.
Era nas povoações que se ensinava de forma mais eficiente e mais
rápida os novos comportamentos e a nova língua. Era aí que o poli­
ciamento e o controlo dos ameríndios se exercia de forma mais
válida. Era, também, nos centros habitacionais que se fomentava o
contacto entre diversas etnias para que, do confronto das várias lín­
guas e\culturas ameríndias, beneficiasse a língua e a cultura luso-bra-
sileira4?. Deparada com um espaço tão vasto e incontrolável como
era a Amazônia de Setecentos, a coroa concentrava as faces visíveis
do seu poder nos centros urbanos.
Pretendia-se que as missões recém-transformadas e os novos
núcleos populacionais fossem um «reflexo ideal» das povoações do
reino, adaptado à realidade amazônica. Essa intenção está, antes de
mais, expressa nos nomes que as povoações tomavam. Depois, revela-
-se nos princípios urbanísticos que eram enunciados no Directório (§12,
§74), nos documentos de fundação das vilas e nas posturas camarárias.
Assim, a legislação estipulava que as povoações deviam ser construí­
das sobre uma malha urbana quadriculada e as fachadas dos edifícios
deviam ser semelhantes no estilo e estar alinhadas perpendicular­
mente às ruas. Estas deviam ser largas e direitas. O espaço urbano
ordenar-se-ia em tomo de uma praça, no centro da qual se erguería o
pelourinho. Os edifícios aos quais se devia dar particular importância
eram a igreja e a casa do pároco, as casas de vereação e audições e a
cadeia ou a residência do director e outras instalações públicas4041. Para­
lelamente, deveria dar-se início à reserva de uma habitação para
escola, onde se ensinariam às crianças a língua portuguesa, a doutrina
cristã, a escrita, e às índias também algumas prendas domésticas.
Eram estes os princípios aos quais os governadores e capitães-
-generais procuravam dar cumprimento durante as suas visitas ao

40 O reagrupamento da várias etnias em estádios civilizacionais diferentes nas


mesmas povoações foi, também, uma opção política colonial na Hispanoamérica (Fran­
cisco de Solano, «Urbanizacion y municipalizacion de la poblacion indígena», p. 251).
41 Salientem-se, por exemplo, os armazéns. Veja-se BNRJ, 1-31-28-41, n.° 4,
fl. 115v, Carta régia de fundação da capitania de S. José do Rio Negro e da vila de
S. Pedro do Javari (Barcelos), bem como da definição dos privilégios e regalias dos
seus moradores, de 12 de Novembro de 1755.

83
A T R A N S F O R M A Ç Ã O D O S ÍN D IO S EM V A SSA LO S

sertão. Foi durante a administração de Francisco Xavier de Men­


donça Furtado, o primeiro governador e capitão-general do Estado
do Grão-Pará, e de Manuel Bernardo de Melo e Castro, o primeiro
governador e capitão-general da capitania do Rio Negro, que se ini­
ciou este processo na bacia fluvial amazônica. As viagens dos gover­
nadores tinham, entre outros fins, o de renomear as povoações,
supervisionar a eleição dos órgãos administrativos, observar a cons­
trução e conservação dos edifícios públicos, religiosos e particulares,
incrementar o desenvolvimento econômico das povoações e incenti­
var a escolarização das crianças índias42.
Uma outra preocupação presente durante estas visitas oficiais
consistia no reconhecimento das capacidades defensivas das capita­
nias do Pará e Rio Negro. Ora, quando na segunda metade do século
xviii, a documentação se refere a este aspecto, devemos sublinhar
que contempla não só o estado de conservação das fortificações já
existentes como também considera a construção de mais edifícios
de arquitectura militar em regiões onde, até aquela data, a coloniza­
ção luso-brasileira do Norte do Brasil não se tinha implantado de
forma significativa.
Pensamos poder sustentar com segurança que, entre a primeira
e a segunda metade do século, surgiu uma multiplicidade de opções
no eixo colonizador da região estudada. Como em outra parte já
afirmámos, até à primeira metade de Setecentos a presença luso-
-brasileira fez-se particularmente sentir na cidade de Belém e em seu
redor. Era nessa área que se concentravam as fazendas e residências
de ordens religiosas, moradores e funcionários. Para a capital e as
«missões de baixo», localizadas entre o litoral e o rio Tocantins, diri­
gia-se grande parte dos contingentes indígenas que era aprezada no
sertão ou que pertencia às aldeias dos missionários43.

42 Como exemplo desta actuação, veja-se AHU, Pará, caixa 18 (739F), Ofício de
Joaquim de Melo Póvoas a Tomé Joaquim da Costa Corte-Real, de 21 de Dezembro de
1758 (também em Rio Negro, caixa 1, doc. 18); AN/TT, Manuscritos do Brasil, n.° 51,
fl. 30, Carta de Francisco Xavier de Mendonça Furtado a Manuel Bernardo de Melo e
Castro, de 15 de Junho de 1760; AHU, Pará, caixa 21 (739 I), Ofício de Manuel Ber­
nardo de Melo e Castro a Francisco Xavier de Mendonça Furtado, de 23 de Abril de
1761; ibidem, caixa 21 (7391), Ofício de Manuel Bernardo de Melo e Castro a Francisco
Xavier de Mendonça Furtado, de 28 de Abril de 1761; ibidem, caixa 22 (742), Ofício de
Feliciano Ramos Nobre Mourão a Francisco Xavier de Mendonça Furtado, de 28 de
Junho de 1761; ibidem, caixa 25 (739 J), Ofício de Manuel Bernardo de Melo e Castro ao
Dezembargador Intendente-Geral, de 16 de Agosto de 1763.
43 Ângela Domingues, «As sociedades e as culturas indígenas face à expansão
territorial luso-brasileira na segunda metade do século xviii», p. 189.

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As fortificações reflectiam esta linha de colonização, ao concen­


trarem-se em torno da cidade e ao longo da via fluvial constituída
pelos rios Amazonas-Solimões. Na estratégia seguida até à primeira
metade do século xvm, as fortalezas construídas pretendiam defender
a capitania do Pará de ataques que vinham do mar, servir de escala a
comerciantes e de reduto a moradores, ao mesmo tempo que deviam
fiscalizar a navegação e o tráfico que se fazia de/e para a cidade.
Contudo, durante a época em estudo, as prioridades coloniza-
doras diversificaram-se, reflectindo uma alteração global na estraté­
gia de colonização. Na tentativa de justificar o domínio e defender o
território, a Coroa passou a considerar importante a consolidação da
presença portuguesa nas zonas de fronteira, fossem estas constitui­
r á s pela orla costeira ou pelo sertão. De acordo com a política colo­
nial, importava defender o Estado do Grão-Pará não só dos perigos
externos que vinham do mar como também dos que ameaçavam os
territórios portugueses confinantes com a Caiena, com a Guiana
Holandesa e com o vice-reinado de Nova Granada. O Norte do Bra­
sil era, durante a segunda metade do século x v iii , uma área de ten­
são, porque as fronteiras políticas que determinavam a soberania
territorial dos países europeus sobre as colônias da América do Sul
não estavam definidas.
Paralelamente, também se modificou a fronteira interna44. As
etnias que importava controlar e pacificar já não eram as que se
localizavam ao longo do rio Amazonas, mas as que se encontravam
nos limites do Império Português no Norte do Brasil. A expansão
colonial pela bacia hidrográfica amazônica trouxe como consequên­
cia a intensificação de contactos entre luso-brasileiros e ameríndios
dos rios de ambas as margens do Amazonas, mas com especial inci­
dência nos tributários da margem direita e nos cursos fluviais que,
a oeste, permitiam o acesso ao interior do Brasil ou estabeleciam a
linha fronteiriça com território espanhol.

44 Para uma definição de fronteira, tomamos como referência Weber e Rausch:


«We would prefer to regard frontiers more broadly and neutrally, defining them as
geographic zones of interaction between two or more distinctive cultures [...], places
where culture contend with one another and with their physical environment to pro-
duce a dynamic that is unique to time and place», in Where cultures meet. Frontiers in
Latin American History, editado por David J. Weber e Jane M. Rausch, Wilmington,
Scholarly Resources Inc., 1994, p. XIV. No nosso texto, e só para clareza de exposição,
diferenciamos agora «fronteira interna» como correspondente aos limites geográficos
internos controlados pela sociedade colonial (núcleos urbanos, trajectos fluviais) por
oposição ao sertão; e «fronteira externa» como aquela que se pretendia definir com os
outros países europeus com interesses em território sul-americano.

85
1

A T R A N S F O R M A Ç Ã O D O S ÍN D IO S EM V A SSA LO S

Ao longo da segunda metade de Setecentos, a construção ou


reparação de fortificações militares incidiu, uma vez mais, sobre o
delta do rio Amazonas — fortalezas de S. José de Macapá, Santo
Antônio de Gurupá, de Santarém, do Parú, forte da ilha dos Periqui­
tos, reduto de S. José, batería de Vale de Cans — e difundiu-se pelas
fronteiras norte e oeste — fortes de S. Gabriel, de S. Joaquim do rio
Negro, de S. José de Marabitanas, de Tabatinga, de S. Joaquim do
rio Branco, do Príncipe da Beira45.
Estas obras de engenharia militar, apesar de, na sua globalidade,
se destinarem a defender a integridade do território luso-brasileiro
no Norte do Brasil, foram construídas de acordo com uma concep­
ção estratégica que tinha os seguintes objectivos: a defesa da orla
costeira e dos rios que davam acesso ao interior do Pará pelo litoral;
o controlo dos rios que nasciam ou percorriam colônias de outras
potências europeias e que, consequentemente, facilitavam o acesso
ao interior das capitanias do Pará e Rio Negro; e, finalmente, o mo­
nopólio da navegação no sistema fluvial Madeira-Guaporé, para
defender da presença de espanhóis os rios que ligavam as capitanias
de S. José do Rio Negro e Mato Grosso e que constituíam uma das
passagens ao interior do Brasil e às minas de ouro e diamantes.
De acordo com a geo-estratégia colonial para o Norte do Brasil,
a existência destas fortificações era importante, mas era necessário
fortalecer a sua posição com uma colonização efectiva. E, mais uma
vez, as opções tomadas pelo poder colonial confirmam estes três
vectores.
No litoral do Pará, para além da construção das fortalezas de
Macapá e Gurupá e dos fortins que defendiam a foz do rio Amazo­
nas, a posição defensiva portuguesa consolidou-se no policiamento
da costa por canoas da flotilha da Guarda da Costa e canoas de
observação, no estabelecimento ou reabilitação de povoados, tais
como Vila Nova de Mazagão e S. José do Macapá, e no incentivo à
fixação de luso-brasileiros na região: soldados, degredados e colo­
nos, muitos deles vindos do reino, dos arquipélagos da Madeira e

45 Fortificações construídas pelos portugueses no Brasil, coordenação de Antônio Hen­


rique Osório de Noronha, Fundação Cultural Brasil-Portugal, 1982, quadros referen­
tes à Região Norte: Amapá, Pará, Amazonas; Angela Domingues, «Fortalezas portu­
guesas na Amazônia em finais do século xvm», in Actas do V Congresso sobre
monumentos militares portugueses, Abril de 1990 (no prelo); «O forte do Príncipe da
Beira na estratégia de Luís de Albuquerque de Melo Pereira Cáceres», in Portugaliae
Histórica, nova série, vol. II (no prelo); Miguel Faria, «Príncipe da Beira: a fortaleza para
além dos limites», in Oceanos, n.° 28, Outubro-Dezembro de 1996, pp. 55-68.

86

l
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Açores e do Norte de África46. Com a fundação de novos aldeamen-


tos e através do incentivo à fixação de colonos procurava-se estabe­
lecer uma presença luso-brasileira efectiva num território que se
reconhecia estar, em determinadas áreas, mal povoado, ser fértil,
rico em metais, e estar confinante com potências estrangeiras47.
Contrariamente ao que acontecia em redor da cidade de Belém,
a presença de colonos luso-brasileiros era diminuta nos domínios da
capitania de S. José do Rio Negro, sobretudo nas áreas geografica­
mente periféricas confinantes com território espanhol. Limitava-se
quase exclusivamente à guarnição das fortalezas e a raros morado­
res. Por isso, a reclamação do direito de uti possidetis sobre vastas
régiões repousava, embora com fortes sobressaltos, nos recém-pro-
piovidos súbditos ameríndios. Assim, em torno das fortificações
construídas nos rios Negro e Branco edificaram-se, a partir da dé­
cada de 50, núdeos-satélites com etnias oriundas das regiões circun­
dantes. Esta era uma das formas que a coroa portuguesa tinha para
garantir alguma segurança aos poucos moradores, controlar o terri­
tório e as etnias ameríndias e para justificar, face ao direito que
regulava as relações entre as potências europeias, as suas preten­
sões: pela pacificação, sedentarização e aculturação dos índios e
pela sua incorporação na colonização luso-brasileira da fronteira.
A título de exemplo, em 1769 o governador Joaquim Tinoco
Valente noticiava ao governo reinol a construção de sete povoações
no rio Içana, distantes da fortaleza de S. Gabriel cinco dias, uma no
rio Içá e ainda outra no rio Japurá, «[...] tudo bastantemente deza-
gradável aos ditos espanhóis porque lhes vou impedindo os passos
do seu destino»48. Também em 1776, os principais Camarabi e Jami-
rim tinham fundado cada um a sua povoação, localizadas, a do pri­
meiro, acima da fortaleza de S. Joaquim do rio Branco e a do se­
gundo abaixo da mesma fortificação49.

46 Sobre Vila Nova de Mazagão, veja-se o trabalho inédito de Zelinda Cohen,


«Retrato dos mazaganistas através de um documento», cedido por gentileza da
autora; sobre Macapá, consulte-se Renata Malcher de Araújo, «As cidades da Amazô­
nia no século xvill: Belém, Macapá e Mazagão», dissertação de Mestrado em História
de Arte apresentada na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, Universidade Nova
de Lisboa, 1992, vol. I, pp. 243 e ss.
47 AHU, Pará, caixa 18 (739 F), Ofício de João da Cruz Diniz Pinheiro, Ouvi-
dor-geral do Pará, intendente do ouro e procurador dos índios a [?], de 12 de Feve­
reiro de 1755.
48 AHU, Rio. Negro, caixa 2, doc. 8, Ofício de Joaquim Tinoco Valente a Francisco
Xavier de Mendonça Furtado, de 6 de Agosto de 1769.
49 AHU, Pará, caixa 37, doc. de 29 de Setembro de 1776.

87
A T R A N S F O R M A Ç Ã O D O S ÍN D IO S EM V A SSA LO S

No entanto, e apesar da utilidade táctica do projecto, a fixação


de núcleos populacionais recém-constituídos com índios da região
tornou a colonização luso-brasileira altamente instável. Os índios,
sediados próximo dos locais donde eram oriundos, rebelavam-se
facilmente contra a imposição de normas éticas e religiosas ou con­
tra um trabalho que se requeria quotidiano e regular, e abandona­
vam as aldeias, regressando ao mato. Esta atitude que, frequente­
mente, era tomada por um indivíduo ou por um pequeno grupo,
podia, nas povoações dos rios Negro e Branco, ser levada a cabo
pela comunidade ou por um conjunto de aldeias. Foi o que ocorreu
em 1757, no rio Negro, com a celebração de uma aliança entre prin­
cipais índios de povoações luso-brasileiras que se rebelaram e ataca­
ram Lamalonga, Moreira e Tomar, refugiando-se, em seguida, na
ilha Timoni50; ou o que ocorreu em 1780, no rio Branco, na aldeia de
S. Filipe, composta, segundo dados da época, por 266 pessoas, as
quais se retiraram para a floresta51.
O terceiro vector enunciado consistiu, como já apontámos, na
exclusividade da navegação do complexo fluvial Madeira-Guaporé e
na sua defesa em relação a pretensões espanholas. A defesa desta
linha de comunicação, por onde, a partir de 1752, se passaram ofi­
cialmente a processar as ligações entre o Norte e o Oeste brasileiro,
dependeu da acção concertada dos governadores de S. José do Rio
Negro e de Mato Grosso e do apoio financeiro da Companhia Geral
de Comércio de Grão-Pará e Maranhão52. As fortificações que ser­
viam de reduto a esta importante via foram, primeiramente, a forta­
leza de Nossa Senhora da Conceição que, iniciada em 1765, se
encontrava destruída cinco anos mais tarde; e, depois, o Forte do
Príncipe da Beira, iniciado em 1776 sob os auspícios de Luís de

50 Francisco Xavier Ribeiro de Sampaio, Diário da viagem que em visita e correição


das povoações da capitania dt S. José do Rio Negro fez o ouvidor-geral e intendente da mesma
no anno de 1774-1775, Lisboa, Academia de Ciências de Lisboa, 1825, p. 106; Alexan­
dre Rodrigues Ferreira, Viagem filosófica ao Rio Negro, s/1, CNPq, Museu Paraense Hmi-
lio Goeldi, s/d, pp. 55-57.
51 AHU, Rio Negro, caixa 4, doc. 3, Mapa de todos os habitantes que existiam nas
povoações do rio Branco, de 1 de Janeiro de 1781.
52 Entre 1749 e 1750, o Conselho Ultramarino divergiu em relação à exclusivi­
dade das ligações entre o Pará e o Mato Grosso pelo rio Madeira, mas, durante algum
tempo, o monopólio desta ligação efectuou-se exclusivamente por este rio (AHU,
Pará, caixa 3, s/d [cerca de 1749-1750]); sobre o apoio prestado pela Companhia
Geral de Comércio do Grão-Pará e Maranhão na colonização do eixo Madeira-Gua­
poré, veja-se Angela Domingues, «O forte do Príncipe da Beira na estratégia de Luís
de Albuquerque de Melo Pereira Cáceres».

88
A T R A N S F O R M A Ç Ã O D O S ÍN D IO S EM V A SS A L O S

Albuquerque de Melo Pereira Cáceres53. A colonização luso-brasi-


leira fazia-se sentir nesta vasta área geográfica através de um núcleo
de povoamento, a antiga missão de Trocano, renomeada Borba-a-
-Nova em 1756, por feirarias, como Viseu (1777) e Crato (1795), e
por «poisos» espalhados ao longo do curso54.
A importância estratégica e econômica que o eixo fluvial Ma-
deira-Guaporé passou a ttr k partir de 1752, altura em que foi ofi­
cialmente permitida a comunicação entre o Norte e o Oeste bra­
sileiro por esta via, de/e estar na'origem da fundação de um
aldeamento por iniciativa particular, levada a cabo em 1756 porTeo-
tónio da Silva Gusmão, juiz de fora de Mato Grosso. Cerca de um
ano mais tardep^oacharel requeria ao soberano uma recompensa
pelos serviços prestados porque, dizia, com a aprovação de D. An­
tônio Rolim de Moura, tinha dado início a uma povoação na ca­
choeira do Salto Grande, conduzindo às suas custas mais de ses­
senta brancos, pretos, índios e mulatos, forros, solteiros e casados,
gastando 2000 cruzados nos transportes, aquisição de ferramentas,
roupa, botica, alimentos e materiais para construção de casas55.

A c o r o a e as o r d e n s r e lig io s a s

O controlo do Norte brasileiro pela coroa portuguesa na se­


gunda metade do século xvni implicou também vigiar a actuação das
ordens religiosas e limitar os poderes que a Igreja detinha junto dos
índios e no território. Ora, quando se considera a actividade e a
importância que as ordens religiosas conservaram na bacia hidrográ­
fica amazônica na época em estudo é imprescindível ter como refe­
rência a acção por elas desempenhada em todo o Brasil e o prestígio
e força que tal actuação tinha dado às instituições religiosas.

53 Cavaleiro-fidalgo da Casa Real, 10.° morgado de Casal Vasco, 9.° morgado


dos Melo da Lousã, 5.° senhor da ínsua e Espichei, comendador da Ordem de Cristo,
coronel de infantaria e mestre de campo de auxiliares. Foi nomeado, por carta
patente de 3 de Julho de 1771, 4.° governador da capitania de Mato Grosso, cargo
que exerceu entre 1772 e 1789 (Gilberto Freyre, Contribuição para uma sociologia da bio­
grafia. O exemplo de Luís de Albuquerque, governador do Mato Grosso no fim do século xvm,
Lisboa, Academia Internacional de Cultura, vol. i, 1960, p. 140.)
54J. R. Amaral Lapa, Economia Colonial, São Paulo, Editora Perspectiva, 1973, pp. 51
e 70-71.
55 AHU, Pará, caixa 18 (739 F), Requerimento do Bacharel Teotónio da Silva
Gusmão pedindo ao rei recompensa pelos serviços prestados, s/d [aprox. 20 de Maio
de 1757],

89
A T R A N SF O R M A Ç Ã O D O S ÍN DIO S EM VASSALOS

Antes de mais, a presença missionária no Norte do Brasil era,


nesta época, herdeira de uma tradição resultante da experiência mis­
sionária desenvolvida em todo o vice-reinado desde os primórdios
da colonização. Quando, com a promulgação da Bula Intercaetera em
1493, os países peninsulares consideraram a conversão dos índios
não unicamente um dever moral, mas uma obrigação jurídica, os
monarcas de Portugal e Espanha concederam aos missionários uma
actuação relevante: como agentes privilegiados de aculturação dos
índios, intermediários excepcionais entre colonos e indígenas e
motores imprescindíveis para a conversão dos infiéis. Esta asserção
é, obviamente, tão válida para a colonização portuguesa do Brasil
como para a actuação hispânica na América56.
Desde o início da colonização europeia que os missionários se
esforçaram por assegurar que o contacto entre culturas fosse feito de
forma pacífica, servindo, no caso do Brasil, de barreira amortece-
dora em relação aos contactos entre luso-brasileiros e ameríndios.
Foram eles que mais frequentemente se fizeram ouvir na defesa da
liberdade e dos direitos indígenas. Lembre-se só, a título de exem­
plo, os tratados e os debates de frei Bartolomé de Las Casas na
Espanha do século xvi ou, em época mais recente e em local mais
próximo, as relações e representações do padre Antônio Vieira em
defesa dos índios do Maranhão57.
Para avaliar da actividade dos missionários em território brasi­
leiro considere-se que, fora dos núcleos urbanos de maior importân­
cia, actuavam individualmente ou em pequenos grupos e eram ele­
mentos portadores de uma cultura e religião estranhas junto de
comunidades com civilizações e religiões diversas, por vezes desco­
nhecidas e hostis. Entravam em contacto com estes grupos nos seus
territórios e procuravam iniciá-los a uma outra civilização, a ociden­
tal, e convertê-los a uma nova religião, a católica, sem se deixar
influenciar ou «corromper» pelos homens e pelo ambiente. Utiliza­
vam guias, raras vezes intérpretes. Viviam em aldeias, entre os indí­
genas, comiam a sua comida, falavam a sua língua. E, no entanto,
esperava-se que não coabitassem com eles ou adoptassem certos
hábitos, devendo manter-se fiéis a um mundo com o qual conserva-

56 Veja-se, por exemplo, Christian Duverger, La conversion des Indiens de Nouvelle


Espagne, Paris, Éditions du Seuil, 1987.
57 Bartolomé de Las Casas, Brevíssima relação da destruição das índias, Lisboa,
Antígona, 1990; Obra indigenista, edição de José Alcina Franch, Madrid, Alianza Edi­
torial; 1985; Antônio Vieira, Escritos instrumentais sobre os índios, ensaio introdutório de
J. C. Sebe Bom Meihy, São Paulo, EDUC, Loyola, Giordano, 1992.

90
A T R A N S F O R M A Ç Ã O D O S ÍN D IO S EM V A SSA LO S

vam raros contactos. Urs Bitterii dá conta desta complexidade


quando constata que «Nevertheless, the relationship cultivated by
the missionaries was a highly pfoblematic undertaking: for while
missionaries differed from the.trader and the colonist in endeavou-
ring to approuch the natives/éympathetically, they still remained at
bottom exponents of European culture...»58.
A presença missionária no Norte do Brasil da segunda metade
de Setecentos beneficiava de uma estrutura já montada e eficaz. Por
exemplo, os missionários haviam adquirido, ao longo de três séculos
de contacto com os ameríndios, conhecimentos linguísticos suficien­
tes para utilizarem a «língua geral» ou nehengatu, usada em todo o
Brasil desde os primórdios da colonização e implantada com êxito
na Amazônia devido à existência de inúmeros grupos que falavam a
língua tupi. A «língua geral» constituiu, portanto, «um instrumento
de comunicação e dominação», aprendida por muitos luso-brasilei-
ros desde a nascença ou, então, estudada graças aos trabalhos lin­
guísticos realizados predominantemente por eclesiásticos e, sobre­
tudo, jesuítas59.
Fica, portanto, claro que não eram os padres os únicos a conhe­
cer a «língua geral» ou as técnicas do discurso indígena, mas mani­
pulavam esse conhecimento como um instrumento que lhes conce­
dia um estatuto privilegiado e único e que isolava a comunidade das
influências trazidas por aventureiros, funcionários, colonos e solda­
dos em viagem. Usufruíam, também, de uma longa experiência
transmitida por outros religiosos e utilizavam um profundo conheci­
mento compilado em dicionários, gramáticas e catecismos. Era utili­
zando esse saber linguístico, aperfeiçoado ao longo de gerações, que
procuravam transmitir aos índios os dogmas e noções da religião
católica e familiarizá-los na doutrina cristã, desobedeçendo às
ordens reais que, desde finais do século xvn, recomendavam o
ensino da língua portuguesa na Amazônia.
A par da cristianização dos índios, um outro papel que se espe­
rava do desempenho dos missionários consistia na transformação
dos ameríndios. As instituições e a sociedade coloniais pretendiam
que os indígenas alterassem os seus hábitos comportamentais, reli­
giosos, éticos e se adaptassem às normas europeias. Arno Kern
explica esta ideia quando afirma que, de acordo com o que era

58 Urs Bitterii, Cultures in conflict. Encounters between European and non-European


cultures, -1492-1800, Cambridge, Polity Press, 1993, p. 46.
59 Carlos de Araújo Moreira Neto, índios da Amazônia. De maioria a minoria, pp. 43-44.

91
A T R A N SF O R M A Ç Ã O D O S ÍN DIO S EM V ASSALO S

entendido na época, os índios para abandonar a sua situação de


«infiéis» e serem convertidos ao cristianismo, deviam ser, primeiro
que tudo, «homens», isto é, abandonar os seus hábitos e padrões
culturais indígenas considerados selvagens e adaptar os costumes
considerados civilizados pelos europeus60. Os missionários apare­
ciam, pois, numa posição privilegiada para incutir nestas sociedades
hábitos de sedentarização, de trabalho regular, de sobriedade, de
castidade e, ainda, de tornar os índios em mão-de-obra eficiente.
O veículo para atingir estes objectivos, tanto no Brasil quanto
na América Hispânica, era a missão ou a redução, da mesma forma
que, com a segunda metade do século xv iii , seriam as aldeias e as
vilas61. Segundo Kem, era nesse espaço urbano que poderíam ser
abandonadas as atitudes e os padrões culturais julgados impróprios
e substituídos pelas normas comportamentais julgadas como ideais
na organização política, econômica ou cultural62. Aqui se devia
abandonar as bebedeiras rituais, o canibalismo, o enterramento em
umas cerâmicas e juntar à caça, à pesca e à recolecção de drogas-do-
-sertão a prática da agricultura e a produção de artesanato, construir
casas unifamiliares e incentivar a utilização de vestuário, proibir a
poligamia e alterar o sistema de prestígio e autoridade, as relações
entre idades e sexos e as regras de parentescos e casamentos63. Im­
plicitamente, esperava-se também que as missões fornecessem com
regularidade às entidades administrativas e aos moradores abasteci­
mentos de mão-de-obra apta e preparada para ser utilizada em ser­
viços domésticos, na agricultura, na remagem de canoas ou em tra­
balhos públicos.
O sucesso dos missionários junto das comunidades ameríndias
dependia não só da sua capacidade de comunicação e persuasão ou
da relação pacífica e pacificadora que estabeleciam com os índios.
Advinha-lhes, fundamentalmente, do facto de actuarem junto de

60 Amo Alvarez Kem, «Acções evangelizadoras e culturais de missionários por­


tugueses e espanhóis no Rio da Prata nos séculos XVI, xvn e XVIII, em território do sul
do Brasil», in Actas do Congresso Internacional. Missionação Portuguesa e Encontro de Cul­
turas, vol. II, Braga, Universidade Católica Portuguesa, Comissão Nacional para as
Comemorações dos Descobrimentos Portugueses, Fundação Evangelização e Cultu­
ras, 1993, p. 481.
61 Era a partir de um núcleo populacional já existente ou novamente fundado
que os evangelizadores procuravam captar a fixação dos indígenas e chamar ao
povoado vários grupos.
62 Amo Kem, «Acções evangelizadoras e culturais...», p. 485.
63 Maxime Haubert, Índios e jesuítas no tempo das missões, séculos xvn-xvm, São
Paulo, Companhia das Letras, Círculo do Livro, 1990, p. 183.

92
A T R A N SF O R M A Ç Ã O D O S ÍN DIO S EM V ASSALO S

sociedades em desestruturação, desmoralizadas pelos ataques de


tropas, colonos e caçadores de escravos e afectadas por confrontos
com outros grupos ameríndios, pela^jfopâgàçãCKíJe epidemias cau­
sadas por doenças estranhas ou pela necessidade dernipãréhTpara
regiões desconhecidas. Da mesma forma, resulta va do facto de os
evangelizadores terem conhecimentos médicos, transmitirem técni­
cas e fornecerem produtos de que as sociedades indígenas estavam
cada vez mais dependentes, tais como instrumentos de ferro, armas
de fogo ou quinquilharia. ,
Na sua actividade civilizadora, os missionários portugueses
eram apoiados pela coroa que os considerava como instrumentos de
colonização do sertão brasileiro. E, nessa medida, eram submissos
ao poder do soberano e das instituições, a quem deviam informar
regularmente da sua actividade e de quem dependiam, em parte,
para financiamento e fornecimento de bens e produtos junto das
missões64. No entanto, os missionários queixavam-se frequente­
mente que a ajuda da Fazenda Real para fundação e manutenção
das missões era insuficiente e demorada, tendo que socorrer-se de
recursos pessoais, crédito e esmolas65.
Com a segunda metade do século xv iii , o plano civilizador que
se começou a definir em relação aos índios do Pará considerava
como imprescindível a colaboração das ordens religiosas, sobretudo
da Companhia de Jesus, cujos missionários eram considerados
como «os que tratão os índios com maes caridade, e os que milhor
sabem conçervar as Aldeyas, e cuidareis [Francisco Xavier de Men­
donça Furtado] no principio destes estabelecimentos, evitar quanto
vos for possível o poder temporal dos missionários sobre os mes­
mos índios, restringindo-o quanto parecer conveniente»66.
Assim, o programa de aculturação indígena definido pelo gabi­
nete josefino pressupunha, pelo menos numa fase inicial, uma cola­
boração estreita de todas as ordens religiosas com o poder gover­
nativo e, ao mesmo tempo, um cerceamento da jurisdição dos
missionários e uma maior interferência da autoridade real. Desde o
princípio da colonização que os padres insistiam que as aldeias

64 BAPDE, CXV/2-14, fl. 266, Carta do Padre Antônio Machado ao Padre Bento
da Fonseca, de 24 de Agosto de 1753.
65 BN, Coltcção Pombalina, códice 625, fl. 179v, Carta do Padre Antônio Machado
a [Francisco Xavier de Mendonça Furtado?], de 29 de Maio de 1754.
66 BN, Colecção Pombalina, códice 686, fl. lOv, Instruções dadas por D. José I a Fran­
cisco Xavier de Mendonça Furtado, de 30 de Maio de 1751. Também citado em João
Lúcio de Azevedo, Os Jesuítas no Grão-Pará. Suas missões e a colonização, pp. 283-284.

93
A T R A N SF O R M A Ç Ã O D O S ÍN DIO S EM VASSALOS

eram dos indígenas e não das Ordens67. No entanto, detinham sobre


as missões tanto a autoridade espiritual quanto a temporal, facto
que dava azo a protestos por parte do colonos desde os anos 60 do
século xvi. Era este poder que a coroa procurava limitar na Amazô­
nia da segunda metade de Setecentos.
Uma das formas utilizadas para fortalecimento da autoridade
real consistia na promulgação de novas leis proibindo a interferência
dos ministros eclesiásticos no governo secular e estabelecendo que o
exercício de cargos públicos fosse confiado a ministros laicos, tanto
luso-brasileiros quanto ameríndios68. Outra via consistia em fazer
com que os missionários reconhecessem o direito da interferência
real junto das suas missões, se considerassem como representantes
do soberano junto dos indígenas e obedecessem às determinações
reais relacionadas com a fundação dos núcleos populacionais e com
o aldeamento dos índios. E assim, enquanto súbditos do rei portu­
guês, os padres deviam empregar «toda a sua deligencia, em fazer
comprehender a estes Barbaros, que a Real intenção de Sua Mages-
tade he só de governa lios pelas suas Reaes Leys como a quaisquer
outros Vassalos»69.
A promulgação das reformas pela coroa portuguesa no sentido
de deter um maior controlo sobre o território do Norte brasileiro
e sobre os ameríndios provocou uma violenta reacção junto das
ordens religiosas e, particularmente, por parte da Companhia de
Jesus. Os Jesuítas exerciam a administração de grande parte das
aldeias do interior da Amazônia e detinham um prestígio imenso,
quer na sociedade reinol quer na sociedade colonial.
O seu poder passava pelo predomínio que alguns membros da
Ordem tinham junto da corte e pelas ligações pessoais que estabele­
ciam junto de figuras proeminentes do reino. No caso dos Jesuítas,
esta influência provinha, por exemplo, da ascendência que tinham
tido junto de D. João V, como tutores e conselheiros reais, e que
continuavam a exercer sobre a rainha D. Maria Ana de Áustria,

67 Dauril Alden, The maleing ofatt entrefrise. The Society ofJesus in Portugal, its Empire
and beyond, /I540-'I750, Stanford, Califórnia, Stanford University Press, 1996, p. 476.
68 BN, Reservados, 2434 A, de 7 de Junho de 1755; também em AHU, Conselho
Ultramarino, códice 336, fl. 65.
69 «Carta de Francisco Xavier de Mendonça Furtado ao Padre Manuel dos Santos
para fundar uma aldeia na boca oriental do rio Javari», de 11 de Fevereiro de 1752 in
Collecção dos crimes e decretos pelos cjuaes vinte e hum jesuítas foram mandados sahir do
Estado do Cram Pará e Maranhão, editado por Manuel Lopes de Almeida com notas de
Serafim Leite, Coimbra, Imprensa da Universidade, 1947, p. 53.

94
A T R A N S F O R M A Ç Ã O D O S ÍN D IO S EM V A SS A L O S

enquanto confessores da mãe de D. José I. É o jesuíta Eckart que o


afirma peremptoriamente: «Esta piedosíssima rainha, em toda a sua
vida estimou sempre a Companhia, amou-a, protegeu-a, defendeu-
-a.»70 Foram também confessores de D. José I até 1757, altura em
que foram expulsos dessa função71.
Depois, o facto de terem um estatuto jurídico distinto do da
sociedade civil permitia-lhes oporem-se, também, às inspecções e
visitações que altos funcionários eclesiásticos e leigos intentavam
fazer às aldeias que estavam sob a administração dos missionários.
Quando, em 1748, surgiu a ordem para que as aldeias se sujeitassem
à visita do padre ordinário, as comunidades dos jesuítas recusaram72.
Finalmente, eram detentores de um poder econômico imenso
que, no Norte brasileiro nesta época, resultava do controlo apertado
sobre parte da mão-de-obra indígena, de não pagarem impostos e
taxas alfandegárias sobre os produtos que enviavam do e para o
reino, de dominarem o comércio lucrativo das drogas-do-sertão, de
controlarem os mercados abastecedores de Belém e de possuírem
inúmeras cabeças de gado vacum e cavalar73. Assim, afirmava-se
que Jesuítas, Carmelitas e Mercedários tinham extraído do sertão,
em 1744, mais de 25000 arrobas de cacau, cravo e salsa, e que entre
esse ano e o de 1746 as três ordens tinham exportado 16280 arrobas
das especiarias mencionadas, isentas de direitos e do ver-o-peso74.

70 Anselmo Eckart, Memórias de umJesuíta prisioneiro de Pombal, Braga, São Paulo,


Livraria A.I., Edições Loyola, 1987, p. 17.
71 A influência dos confessores junto dos monarcas e da família real encontra-se
também apontada em Jorge Couto, «O poder temporal nas aldeias dos índios do
Estado do Grão-Pará e Maranhão no período pombalino: foco de conflitos entre os
Jesuítas e a coroa (1751-1759)», in Cultura Portuguesa na Terra de Santa Cruz, coordena­
ção de Maria Beatriz Nizza da Silva, Lisboa, Editorial Estampa, 1995, pp. 65-66.
72João Lúcio de Azevedo, Os Jesuítas no Grão-Pará. Suas missões e colonização, p. 311.
73 BN, Reservados, códice 11415, fls. 9-15, Inventariação dos bens e gado dos cur­
rais jesuíticos no Pará, de 30 de Julho de 1759; Dauril Alden, «Economic aspects of
the expulsion of the Jesuits from Brazil: a preliminary report», in Conflict <Sé continuity
in Brazilian society, editado por Henry El. Keith e S. F. Edwards, Columbia e South
Carolina, University of South Carolina Press, 1969, p. 43; The making of an entreprise...,
pp. 546 e ss. Estas acusações eram refutadas pelos Jesuítas. Confronte-se José Caeiro,
História da expulsão da Companhia de Jesus da Província de Portugal (século xvm), vol. I,
Lisboa, Editorial Verbo, 1991, pp. 263 e ss.
74 AHU, Pará, caixa 13 (736), Carta régia sobre uma representação da Câmara do
Pará acerca da actividade das ordens religiosas na extracção de especiarias dos rios da
capitania, de 11 de Março de 1747. Veja-se, também, Kenneth R. Maxwell, «Pombal
and the nationalization of the Luso-Brazilian economy», in Hispanic American Histori-
cal Review, 48 (4), November 1968, p. 616.

95
A T R A N S F O R M A Ç Ã O D O S ÍN D IO S EM V A SSA LO S

Os missionários de todas as ordens eram acusados pelas autori­


dades governativas do Estado do Grão-Pará de terem transformado
as suas aldeias em repúblicas independentes da autoridade real,
onde o nome do soberano e a língua portuguesa eram desconheci­
dos e de boicotarem as decisões reais, sonegando ameríndios às
repartições e instigando à deserção os índios destinados às obras
reais, às demarcações de limites e ao serviço de moradores75: «Todas
as providências conducentes ao bem comum tem aqui por obstáculo
invencível as inconveniências dos Missionários. Elles cada vez
vivem mais régulos e absolutos, porque não obstante a insinuação
que lhes fez o Senhor General em nome de S. Magestade para fazer
conter os índios no serviço do mesmo Senhor, elles a observão tanto
pello contrário, que poucos são os dias em que os índios não este­
jam fugindo do trabalho.»76
No entanto, os Jesuítas eram considerados como capazes de se
oporem com mais determinação aos desígnios governamentais e de
serem mais «absolutos». Alguns defrontaram o governador quando
este se recusou a conceder-lhes o poder temporal sobre as aldeias
fundadas nos rios Javari e Japurá: recusavam-se a repartir a adminis­
tração das aldeias com autoridades laicas e não aceitavam a tutela
do bispo sobre o exercício do seu ministério77. Retiravam-se das
aldeias em sinal de protesto, levando consigo, e contra as leis reais,
alfaias religiosas e instrumentos de culto, canoas e bens móveis das
residências dos padres78.
Como já foi afirmado, há, com o decorrer da govemação de Fran­
cisco Xavier de Mendonça Furtado no Norte do Brasil, um nítido
agravamento de tensões entre o irmão do conde de Oeiras, futuro
Marquês de Pombal, e os Jesuítas79. As divergências tinham-se já ini-

75 É José Caeiro quem afirma que não foram só os índios sob administração de
Jesuítas que fugiram como também os que estavam sujeitos à autoridade dos missio­
nários das outras ordens. E atribui essas «deserções» à fome e ao trabalho (José
Caeiro, História da expulsão da Companhia de Jesus, pp. 270-271).
76 AHU, Conselho Ultramarino, códice 1214, fl. 213, Ofício do Bispo do Pará a
Sebastião José de Carvalho e Melo, de 8 de Março de 1754.
77 BNRJ, 1-28-32-24, Ofício de frei Miguel de Bulhões a Tomé Joaquim da Costa
Corte Real, de 1 de Março de 1759.
78 João Lúcio de Azevedo, Os Jesuítas no Grão-Pará..., p. 322; Jorge Couto, «O po­
der temporal das aldeias dos índios do Estado do Grão-Pará e Maranhão no período
pombalino...», pp. 53 e ss.
79 Para além dos autores já mencionados pensamos ser importante referir ainda
José Caeiro, História da expulsão da Companhia de Jesus da Província de Portugal (século
xvill), vol. I, Lisboa, São Paulo, Editorial Verbo, 1991.

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A T R A N S F O R M A Ç Ã O D O S ÍN D IO S EM V A SSA LO S

ciado antes da chegada do governador e foram-se avolumando com


as acusações de que o tráfico ilegal de índios era, em parte, feito pelos
missionários ou, então, com o seu conhecimento e conivência; com a
avaliação mandada fazer por Mendonça Furtado aos bens e fazendas
jesuíticos; pela recusa dos padres em ensinarem português; pela acusa­
ção de controlo excessivo sobre a mão-de-obra índia e sobre as activi-
dades extractivas de drogas-do-sertão80. Sobretudo, Mendonça Fur­
tado tinha credibilidade para convencer a coroa de que a actividade
comercial dos Jesuítas limitava o desenvolvimento econômico do
Norte brasileiro e privava a coroa de obter avultados lucros81. Em
suma, os missionários e, com particular incidência, os Jesuítas, eram
acusados de contribuir de todas as formas para o incumprimento dos
desígnios reais e de prejudicarem os interesses do Estado82.
Face a esta conjuntura, importa, fundamentalmente, considerar
que os confrontos entre as entidades administrativas e os Jesuítas
resultam de um processo complexo que ocorreu paralelamente no
reino e na colônia83. Os Jesuítas não foram expulsos do Pará e Rio
Negro, em Julho de 1757, porque eram especificamente acusados de
serem os autores de uma conspiração contra o Estado Português,
como também não foram banidos do reinado do Brasil devido à
aliança que tinham com os Guarani e à oposição que moveram às
partidas de demarcação de limites durante a sua actuação no Sul do
Brasil. Não foi apenas o facto de terem um grande poder econômico
ou de exercerem em relação aos índios uma política divergente da

80 BN, Colecção Pombalina, códice 621, fl. 142, Ofício de Manuel Sarmento,
Dezembargador e Ouvidor-Geral do Maranhão, a Francisco Xavier de Mendonça Fur­
tado, de 2 de Janeiro de 1753; ibidem, códice 622, fl. 33, Ofício de José Antônio de
Freitas Guimarães a [Francisco Xavier de Mendonça Furtado?], de 13 de Fevereiro de
1753; AHU, Conselho Ultramarino, códice 1214, fl. 213, Carta do Bispo do Pará a
Sebastião José de Carvalho e Melo, de 8 de Março de 1754; Pará, caixa 20 (739 G),
Ofício de Feliciano Ramos Nobre Mourão a Manuel Bernardo de Melo e Castro, de
10 de Setembro de 1760.
81 Dauril Alden, «Economic aspects of the expulsion of the Jesuits from Brazil»,
p. 51.
82 AHU, Conselho Ultramarino, códice 1214, fl. 177, Carta de Francisco Xavier de
Mendonça Furtado ao Marquês de Pombal, de 14 de Junho de 1754.
83 Semelhante afirmação encontra-se também documentada em Dauril Alden,
«Economic aspects...», pp. 54-55. Na sua opinião, a expulsão dos Jesuítas do Brasil
dependeu, em grande medida, de factores econômicos; consulte-se, ainda, Kenneth
R. Maxwell, «Eighteenth century Portugal: faith and reason, tradition and innovation
during a Golden Age», in The Age of the Baroque in Portugal, editado por Jay A. Leven-
son, Washington, New Haven, Londres, The National Gallery of Art e Yale Univer-
sity Press, 1993, pp. 120-121.

97
A T R A N S F O R M A Ç Ã O D O S ÍN D IO S EM V A SSA LO S

da coroa que levou ao seu afastamento. Também não constitui jus­


tificação suficiente as acusações que foram feitas aos Jesuítas de
envolvimento na tentativa de assassinato de D. José I. E certo que
todas estas razões se encontram evocadas na Lei pela qual S.M. é ser­
vido exterminar, proscrever e mandar expulsar dos seus reinos e domínios os
regulares da Companhia denominada de Jesus84. Mas é importante dizer
também que o processo de expulsão da Companhia ocorreu com
um desfasamento cronológico mínimo, quer na França (1764) quer
na Espanha (1767), e que, também nestes locais, foi a confluência de
vários acontecimentos, muitos deles pouco claros, que concorreram
para a expulsão dos Jesuítas8485.
Importa acima de tudo relevar que, num determinado momento,
agora em análise, houve uma conjuntura que congregou vários casos,
ocorridos tanto na colônia quanto no reino e na Europa, os quais con-
fluíram na limitação do campo de actividade das ordens. De entre
estes, o episódio que mais se destaca pela sua importância é o da
expulsão da Companhia de Jesus. As variantes que constituíram essa
conjuntura não podem ser dissociadas entre si, tanto mais porque con­
tribuem para a compreensão do absolutismo político do Estado Portu­
guês e da supremacia do poder do Estado sobre o da Igreja. Ora, a con­
sideração destes aspectos é imprescindível para a compreensão da
política colonial aplicada ao Estado do Grão-Pará durante a segunda
metade de Setecentos e, consequentemente, para a avaliação das
repercussões da sua execução junto das comunidades ameríndias.

C o l o n o s , s o ld a d o s e d e g r e d a d o s

Impõe-se, desde já, uma observação, que é, simultaneamente, a


constatação de uma dificuldade. Consistindo o fulcro desta investiga­
ção nos contactos que se estabeleceram no Norte do Brasil, ao longo da
segunda metade de Setecentos, entre luso-brasileiros e ameríndios e no

84 Sebastião José de Carvalho e Melo, Memórias secretíssimas do Marquês de Pom­


bal e outros escritos, Mem Martins, Publicações Europa-América, s/d, p. 124.
85 Para a Espanha e a América espanhola, veja-se Magnus Momer, «The expulsion
of the Jesuits from Spain and Spanish America in 1767 in light of eighteenth century
regalism», in The Américas, vol. XXIU, Julho de 1966-Abril de 1967, pp. 156 e ss.; D. A.
Brading, «Bourbon Spain and its American empire», in Colonial Spanish America, editado
porLeslie Bethell, Cambridge, Cambridge University Press, 4.a edição, 1993, pp. 124-125;
James Lockhart e Stuart B. Schwartz, Early Latin America. A history of colonial Spanish Ame­
rica and Brazil, Cambridge, Cambridge University Press, 8.“ edição, 1993, pp. 350-351.

98
A T R A N S F O R M A Ç Ã O D O S ÍN D IO S EM V A SSA LO S

lugar que os índios desta área geográfica ocupavam na ideologia e nas


práticas coloniais portuguesas da época, houve determinados aspectos
que se nos afiguraram imprescindíveis à sua compreensão, mas parale­
los ao desenrolar do tema. A emigração luso-brasileira foi um deles. No
entanto, ao longo da investigação em curso, deparámos com esta difi­
culdade: se, para o Sul do Brasil, as migrações populacionais do reino
para a colônia são relativamente bem conhecidas, o mesmo já não se
poderá afirmar em relação às correntes migratórias dirigidas para a
bacia hidrográfica amazônica86. A emigração de soldados, colonos e
degredados, apesar de ser um dos aspectos imprescindíveis para a com­
preensão da Amazônia de ontem e de hoje, não tem sido, até à data,
objecto de estudos ordenados por parte da historiografia colonial.
Os fundamentos que incentivam a emigração voluntária portu­
guesa para o Norte do Brasil na segunda metade do século xvm con­
sistem, basicamente, em dois pressupostos. Por um lado, há que
considerar a existência de motivações externas relacionadas com a
geopolítica nacional da época, que considerava o Norte do Brasil
como uma área que importava ocupar e dinamizar. Por outro lado, é
necessário contar com razões internas ao grupo que se deslocava e
que se podem relacionar com a existência de excedentes demográ­
ficos e com crises alimentares ou, então, com áreas inseguras, sujei­
tas a ataques de piratas ou de inimigos, ou, ainda, tacticamente
desinteressantes. Sobretudo a pobreza constituía um incentivo de
peso à emigração insular e reinol para o Estado do Grão-Pará87.

86Virgínia Rau et alii, «Dados para a emigração madeirense para o Brasil no século
Xviii», in Actas do V Colóquio Internacional de Estudos Luso-Brasileiros, Coimbra, 1963. vol. i,
pp. 495 e ss.; Walter F. Piazza, A epopeia açorico-madeirense, 1748-1796, Florianópolis,
Editora da UFCSC, Editora Lunardelli, 1992; Adelaide Barbosa Couto, Edina Nogueira
da Gama e Maurício de Barcellos Sant’Anna, «O povoamento da ilha de Santa Catarina
e a vinda dos casais de ilhéus», in Actas do II Colóquio Internacional de História da Madeira,
pp. 247 e ss.; Avelino de Freitas de Meneses, «O giro das gentes: migrações açorianas
nos espaços insular e metropolitano em meados do século xviii», in Ler História, (31),
1996, pp. 69 e ss.; «Gentes dos Açores. O número e a mobilidade em meados do século
xvm», Provas de Agregação apresentadas à Universidade dos Açores, Ponta Delgada,
1997. Uma nova via de abordagem surge em Maria Beatriz Nizza da Silva, «Família e
emigração: açorianos no Brasil no fim do período colonial», in Colóquio O Faia! e a perife­
ria açoriana nos séculos xva xix, Horta, Núcleo Cultural da Horta, 1995, pp. 391 e ss.
87 Confronte-se com Avelino de Freitas de Meneses, «Gentes dos Açores. O nú­
mero e a mobilidade em meados do século xvm». O autor é de opinião que «Neste caso,
prevalecem inequivocamente as necessidades do Brasil sobre as conveniências dos
Açores», p. 79. O mesmo autor refere, igualmente, a ocorrência de uma crise cerealífera
nas ilhas do arquipélago central açoriano nos anos de 40 (p. 81) e considera ainda as
calamidades sismo-vulcânicas como irrelevantes no êxodo das populações (p. 85).

99
A T R A N S F O R M A Ç Ã O D O S ÍN D IO S EM V A SSA LO S

O grande incentivo apresentado às populações baseava-se no


facto de os «novos territórios» serem constituídos, na sua maioria,
por terras devolutas e férteis. A emigração para o Norte do Brasil
facultava a indivíduos subempregados ou assalariados a possibili­
dade de terem a sua própria terra e de viverem desafogadamente.
Por isso, ao contrário do que se passava, por exemplo, nas ilhas
atlânticas, onde o espaço agrícola era limitado e a propriedade
estava concentrada nas mãos de alguns, o Pará e o Rio Negro apre­
sentavam um sem-número de opções a quem se quisesse dedicar à
agricultura, à pecuária ou ao comércio.
Mas esta vasta área geográfica permitia também que grupos
desenraizados de locais que deixavam de ter importância na estraté­
gia nacional, como por exemplo Mazagão, se fixassem em outras
regiões com utilidade na geopolítica colonial, como o Norte do Bra­
sil, considerados também mais seguros e com potencialidades eco­
nômicas a desenvolver. Assim se procedeu à transferência dos maza-
ganistas do Norte de África para Macapá, Vila Nova de Mazagão e
outras povoações da capitania do Pará, onde podiam manter a sua
SB D / FFLCH / USP

identidade e a sua coesão e hierarquia enquanto grupo88.


Como em qualquer império colonial, os portugueses candidatos
a colonos eram aliciados com promessas de abundância, riqueza e
facilidades89. Estes são os principais atractivos mencionados nos
folhetos e na «propaganda de prosperidade» que, na segunda me­
tade do século xviii, começaram a circular no reino e, possivelmente,
nas ilhas com o objectivo de incentivar a emigração para o Norte do
Brasil. Assim se difundiu junto das populações, ainda que de uma
forma idílica, as potencialidades das regiões a colonizar90.
A imagem que esta vasta área geográfica devia ter aos olhos dos
colonos da época seria a de uma região «forsaken by God and un-
known to civilised man [...] as the embodiment of a disruptive,
potentially dangerous force»91. A política colonial portuguesa tentou
inverter este conceito com a publicação de «folhetos de propaganda»
à emigração. Destinados a «noticiar a plebe o que são as terras do

88 Veja-se Zelinda Cohen, «Retrato dos mazaganistas através de um documento».


89 J. M. Powell, Mirrors of the New World: images and image-makers in the settlement
process, Connecticut, Dawson-Archon Books, 1977, p. 40.
90Esta propaganda de prosperidade é também referida em Avelino de Freitas de Me­
neses, «Gentes dos Açores. O número e a mobilidade em meados do século xvm», p. 80.
91 A. J. R. Russell-Wood, «The frontier concept: its past, present and future
influence», in Papers of the third seminar on the acquisition of Latin American Lihrary Mate­
rials, Novo México, Albuquerque, 1990, p. 37.

100
A T R A N S F O R M A Ç Ã O D O S ÍN D IO S EM V A SSA LO S

Pará, e ainda que os doutos o saibão, e melhor, para estes não


escrevo, sim para os que o não sabem», desfazem a noção do Pará
enquanto «uma nova cafraria», como até então tinha sido conside­
rado92. O Norte do Brasil na segunda metade de Setecentos era des­
crito como o havia sido, cerca de dois centénios antes, o vice-rei-
nado93: um «paraizo na terra», notável pela benignidade do clima,
pela ausência de doenças, pela abundância de mantimentos e pela
exuberância da vegetação, «caindo lhe dentro das mesmas canoas os
frutos que as mesmas árvores sem mais cultura que a da natureza
lhe estão espontaneamente oferecendo»94. Os folhetos ressaltavam a
premência da ocupação do território: «Por agora he toda esta terra
summamente agréste, mas espera-se em Deos, que conduzida que
seja do Reyno mais gente, se fação povoaçoens, e com ellas, e com o
trato, e communicação, brevemente chegarão a outro estado.»95
Assiste-se à intervenção directa do Estado português na transfe­
rência, para as capitanias do Pará e Maranhão, não só dos habitantes
do reino e dos arquipélagos da Madeira e dos Açores como também
de Mazagão e de outros países europeus, conquanto não fossem
«vassalos de soberanos que tenham domínios na América a que pos-
são passarsse»96. Simultaneamente, as instituições dificultavam a
saída de indivíduos do Estado do Grão-Pará, estipulando que as des-
locações dos colonos só se fizessem com autorização superior e
proibindo os capitães de navios de embarcarem passageiros, deser­
tores ou mulheres, sem licença do governador97.

92 Relação curioza do sitio do Grão Pará terras de Mato-Grosso bondade do clima e fer­
tilidade daquellas terras escrita por um curiozo experiente daqueHe Paiz, Lisboa, cerca 1750
0- C. B., 66-151, p. 8).
93 Serafim Leite S.I., Cartas dos primeiros jesuítas do Brasil, vol. III, São Paulo,
Comissão do IV Centenário da Cidade de S. Paulo, 1954, pp. 296-297.
94 Relação curioza..., pp. 4 e 6.
95 Caetano Paes Silva, Relaçam e noticia Da gente, que nesta segunda monçaõ chegou
ao sitio do Grão-Pará, e às terras de Matto Grosso, caminhos que ftzerão por aquellas terras,
com outras muitas curiosas, e agradaveis de Rios, Fontes, fructos, que naquelle Paiz acharão.
Copia tudo de uma Carta, que a esta Cidade mandou Isidoro de Couto, Lisboa, Oficina de
Bernardo Antônio de Oliveira, 1754.
96 AHU, Conselho Ultramarino, códice 271, fl. 162-162v, Carta régia ao governa­
dor do Maranhão sobre a resolução que o rei teve de mandar contratar o transporte
de 1000 pessoas dos Açores para o Pará, de 13 de Maio de 1751; também em Timoty
Joel Coates, Exiles and orphans: forced and State sponsored colonizers in the Portuguese
Empire, 1550-1720, Michigan, Ann Harbour Dissertation Services, 1993, vol. 2, p. 442.
97 AHU, Pará, caixa 21 (739 I), Ordem régia aos capitães dos navios para não
levarem passageiros, desertores ou mulheres sem autorização do governador sob
pena de pagarem 200 000 réis, de 27 de Novembro de 1761.

101
A T R A N SF O R M A Ç Ã O D O S ÍN DIO S EM VASSALO S

À semelhança do que acontecia com a emigração insular para o


Sul do Brasil, a coroa estabeleceu assentos com armadores para efec-
tuar o transporte dos casais de colonos da Madeira e dos Açores
para o porto de Belém. José Alves Torres foi um dos responsáveis
pelo transporte de cerca de mil açorianos para o Estado do Grão-
-Pará, desconhecendo-se, no entanto, se teria usufruído de alguns
privilégios comerciais, tal como acontecia com certos mercadores
envolvidos no transporte de insulanos para Santa Catarina e Rio
Grande do Sul93. Tal como este indivíduo, houve outros armadores
que receberam dinheiro da coroa para transportarem cerca de 900
soldados e suas famílias para o Norte do Brasil9
899.
O empenho do reino em reforçar a presença portuguesa no Pará
e Rio Negro manifestou-se logo a partir dos primeiros anos da
década de 1750 e revelou-se, portanto, não só no envio de colonos
como também de soldados do reino e das ilhas e, ainda, de vadios,
órfãos e degredados100. A coordenação do empreendimento foi,
obviamente, responsabilidade do Conselho Ultramarino, que surgiu
também como o grande financiador: no pagamento de transportes e
no suporte das despesas indispensáveis à fixação e à manutenção
das novas populações.
Os «dotes» concedidos pela coroa a quem se dispusesse a ir
colonizar o Norte do Brasil eram considerados pelos órgãos admi­
nistrativos como um incentivo à emigração. O mesmo acontecia
com as instituições espanholas que, para colonizarem áreas que, na
Hispanoamérica, pudessem ser ocupadas por outras potências rivais,
concediam aos emigrantes regalias de fixação, traduzidas na conces­
são de terras, casas, sementes, ferramentas e alimentos101. É de

98 AHU, Conselho Ultramarino, códice 271, fl. 162, Carta régia ao governador do
Maranhão sobre a resolução que o rei teve em mandar contratar o transporte de 1000
pessoas dos Açores para o Pará, de 13 de Maio de 1751; Avelino de Meneses, «Os
Açores e o Brasil: as analogias humanas e econômicas no século xvill», in Revista da
Sociedade Brasileira de Pesquisa Histórica, n.° 10, 1995, p. 32.
99 AHU, Conselho Ultramarino, códice 1214, fl. 270, Ordem de pagamento dada
ao Conde de Penalva para pagar 2 692 304 réis a dois donos de navios, de 10 de
Junho de 1753.
100 AHU, ibidem, códice 271, fl. 188, Carta régia dirigida ao governador do Mara­
nhão sobre o envio de degredados julgados na corte e das levas da índia, de 24 de
Maio de 1751.
101 Nicolás Sánchez-Albomoz, «The first transadantic transfer: Spanish migra-
tion to the New World, 1493-1810», in Europeans on the move. Studies on European
migration. -1500-1800, editado por Nicholas Canny, Oxford, Clarendon Press, 1994,
pp. 33-34.

1 02
A T R A N S F O R M A Ç Ã O D O S ÍN D IO S EM V A SSA LO S

salientar que os financiamentos suportados pelas instituições portu­


guesas no Norte do Brasil não foram sempre iguais102.
É interessante relevar que, neste esforço colonizador levado a
cabo pelo poder central a partir da segunda metade do século xviii,
tanto degredados como vadios eram, primeiro que tudo, considera­
dos como possíveis colonos. Constituíam aquilo que Timothy Coa-
tes considera como força de trabalho móvel ao serviço da coroa,
destinada a ocupar e a desenvolver economicamente e a defender
militarmente os territórios coloniais103. Alguns eram utilizados como
canteiros, pedreiros e cabouqueiros nas obras públicas e nas das for­
tificações do Estado, outros eram integrados no exército real104.
Era-lhes permitida a mobilidade social. Desta forma, as ordens
reais previam que os vagabundos que se transferissem para a colô­
nia tivessem o direito de receber metade das dádivas que eram con­
cedidas aos moradores açorianos; deixavam, ainda, em aberto possi­
bilidades de reabilitação social para os prisioneiros degredados que

102 As leis reais estipulavam, em 1751, que cada casal de ilhéus ou de estrangeiros
que se dispusesse a ir povoar os domínios portugueses do Norte da América recebería
uma espingarda, duas enxadas, um machado, um enxó, um martelo, um facão, duas
facas, duas verrumas, uma serra com lima e travadoira, dois alqueires de sementes,
duas vacas, uma égua e, de tudo o mais importante, uma sesmaria de um quarto de
légua em quadra, sem direitos ou salários. Durante o primeiro ano teriam direito a uma
ração de três quartas de alqueire de farinha por cada indivíduo adulto maior de 14 anos
e os mais pequenos, até aos 7 anos, uma quarta e meia de alqueire. As mulheres rece­
beríam 1000 réis por cada criança e os artífices teriam direito a ajudas de custo na pro­
porção directa às suas capacidades (AHU, Conselho Ultramarino, códice 271, fl. 162,
Carta régia ao governador do Maranhão, de 13 de Maio de 1751); os mazaganistas
receberam, na década de 1770, o mesmo alimento, uma «propriedade de casas» e um
número mais reduzido de ferramentas (ihidem, códice 1257, «Relação dos mazaganistas
estabelecidos na Vila Nova de Mazagão e suas vizinhanças; com uma particular e indi­
vidual informação relativa a cada família», s/d; Zelinda Cohen, «Retrato dos mazaga­
nistas...»); em 1760, os povoadores que chegassem do reino e do estrangeiro deviam
usufruir de uma quantidade não especificada de ferramentas, 6000 réis por mês
durante um ano, terras para a lavoura, doze vacas, um touro e um cavalo. Embora con­
templando todos os que chegassem ao Estado, a documentação referia-se concreta­
mente a Manuel Barbosa, português, e a José Azeite, armênio, que se iam fixar em
Macapá (AHU, Pará, caixa 20 (739 G), Ofício de Manuel Bernardo de Melo e Castro a
Francisco Xavier de Mendonça Furtado, de 23 de Outubro de 1760).
103 Timothy Joel Coates, Exiles and orphans: forced and state-sponsored colonizers in
the Portuguese Empire, pp. 72 e 106.
104 ANRJ, códice 99, vol. 1, fl. 100, Ofício de Fernando da Costa de Ataíde Teive
a Francisco Xavier de Mendonça Furtado, de 17 de Outubro de 1766; AHU, Pará,
caixa 40 (754), Ofício de José Nápoles Telo de Meneses noticiando a chegada do
navio N.“ Sr.“ da Praça e S. João transportando degredados para assentar praça, de 14
de Agosto de 1780.

103
A T R A N S F O R M A Ç Ã O D O S ÍN D IO S EM V A SSA LO S

se quisessem casar nas capitanias do Norte e que, assim, auferiríam


dos mesmos benefícios dados aos casais de colonos105. Para além
disso, as penas de degredo podiam ser comutadas pelos serviços que
os degredados prestavam nas povoações em benefício do bem
comum e da coroa. Semelhantes medidas eram aplicadas para o
Norte e Sul do Brasil, mas não para o vice-reinado, porque em causa
estavam os limites do império, colônias distantes, simultaneamente
estratégicas e indesejáveis, para as quais a coroa não conseguia
atrair voluntários em número suficiente.
Os soldados foram, durante a segunda metade do século xviii,
outra fonte de fornecimento de colonos. Ora, há que salientar que
existiram na área geográfica em questão corpos militares destinados
a demarcar no terreno os acordos diplomáticos estabelecidos pelos
tratados de limites de 1750 e 1777; mas é preciso lembrar que para
aqui eram também transferidos jovens solteiros, arrolados voluntária
ou compulsivamente, para servirem como soldados e cuja principal
finalidade se prendia mais com a ocupação colonial do que com o
exercício de uma função armada. Muitos destes indivíduos viam nos
casamentos com colonas ou com índias uma forma eficaz para se
desligarem do serviço militar e de se dedicarem ao cultivo da terra ou
a uma actividade artesanal. Assim, o provedor da Fazenda Real,
Matias de Sousa da Costa, noticiava que, nos inícios dos anos 50, os
trinta algarvios que se tinham alistado como soldados não se tinham
matriculado em companhias, nem recebido fardamento, optando por
se dedicar à pesca106. Também em 1761, o governador e capitão-
-general Manuel Bernardo de Melo e Castro informava que os casa­
mentos estabelecidos entre soldados e índias eram uma das causas
por que havia grande falta de homens nos regimentos. A outra con­
sistia no facto de muitos serem velhos, incapazes e doentes107.
No entanto, as autoridades coloniais apontavam claramente que
uma das formas de se introduzir a «civilização» junto dos amerín­
dios consistia na realização destes casamentos. De acordo com o
pensamento colonial setecentista, os soldados casados com índias
deviam ser os promotores da transformação de «seres bárbaros» em

105 AHU, Conselho Ultramarino, códice 271, fl. 188, Carta régia dirigida ao gover­
nador do Maranhão, de 24 de Maio de 1751.
106 AHU, Conselho Ultramarino, códice 209, fl. 279v, Parecer do Conselho Ultra­
marino sobre o pagamento das rações de farinha a algarvios que no Pará se ocupa­
vam da pescaria, de 27 de Maio de 1754.
107 AHU, Pará, caixa 21 (739 I), Ofício de Manuel Bernardo de Melo e Castro a
Francisco Xavier de Mendonça Furtado, de 23 de Julho de 1761.

104
A T R A N S F O R M A Ç Ã O D O S ÍN D IO S EM V A SSA L O S

«civilizados», os mediadores entre as culturas ameríndias e a civili­


zação europeia108.
A emigração voluntária ou compulsiva foi uma das vias privile­
giadas pela coroa para firmar a presença portuguesa sobre uma área
interna e externamente não controlada como era o Norte do Brasil.
Contudo, era óbvio que por muito que a presença luso-brasileira
fosse aumentada, seria sempre insuficiente para ser eficaz face à
vastidão do espaço a ocupar. Além disso, e não obstante o incentivo
que a coroa dava à transferência de casâis, órfãs e viúvas, esta emi­
gração era predominantemente masculina, tal como acontecia para
outras parte dos Impérios Português e Espanhol109.
Desta forma deve-se entender a legislação já estudada no capí­
tulo anterior, promulgada desde o início dos anos de 1750 no sen­
tido de estabelecer legalmente a igualdade entre vassalos europeus
e ameríndios, de estipular que os casamentos entre luso-brasileiros e
ameríndias teriam a aprovação real e de conferir aos cônjuges luso-
-brasileiros casados com índias e a seus descendentes a preferência
no exercício de cargos públicos110.
Os casamentos mistos eram um dos sustentáculos da política
colonial portuguesa para o Norte do Brasil no período em análise,
sendo incentivados pela coroa111. Este patrocínio manifestava-se,
por exemplo, na concessão de dotes, constituídos por espingardas e
ferramentas, com que a Fazenda Real premiava os novos casais112.
Revelava-se, também, na possibilidade que os soldados tinham de,
ao casarem-se com índias, ficarem livres das obrigações, serviços e
destacamentos, usufruindo, assim, da liberdade de colonos113.

108 AHU, Pará, caixa 18 (739 F), Ofício de Joaquim de Melo Póvoas a Tomé Joa­
quim da Costa Corte Real, de 21 de Dezembro de 1758; também em Rio Negro, caixa 1,
doc. 18.
im Para a emigração, que era fundamentalmente masculina, ocorrida nas fases
iniciais da expansão espanhola, veja-se Francisco de Solano, «El conquistador His­
pano: sehas de identidad», in Proceso historico al conquistador, coordenado por Francisco
de Solano, Madrid, Editorial Alianza, 1988, pp. 15 e ss.
110 BN, Reservados 3610 V, Alvará de 4 de Abril de 1755.
111 AHU, Pará, caixa 20 (739 G), Ofício de Manuel Bernardo de Melo e Castro a
Francisco Xavier de Mendonça Furtado, de 18 de Outubro de 1760; ihidem, caixa 19
(739 H), Ofício de Feliciano Ramos Nobre Mourão, ouvidor-geral do Pará, a Francisco
Xavier de Mendonça Furtado, de 10 de Novembro de 1760.
112 A N /1 1, Manuscritos do Brasil, n.° 51, fl. 33, Ofício de Francisco Xavier de
Mendonça Furtado a Manuel Bernardo de Melo e Castro, de 21 de Junho de 1760.
113 AHU, Pará, caixa 19 (739 Fl), Ofício de Feliciano Ramos Nobre Mourão a
Francisco Xavier de Mendonça Furtado, de 10 de Novembro de 1760.

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O fim de r é g u lo s e de q u ilo m b o s

A defesa da liberdade dos ameríndios e o controlo do território


do Norte brasileiro pela coroa em meados de Setecentos não signifi­
cou apenas uma tomada de opções políticas e jurídicas relevantes ou
uma edificação planeada de monumentos representativos do poder
militar português na bacia hidrográfica amazônica. Prendeu-se, tam­
bém, com a existência de um pequeno número de indivíduos res­
ponsável pelo tráfico ilegal de ameríndios e com capacidade de, até
ao início do período em análise, estabelecer pontes de ligação entre
ameríndios e luso-brasileiros.
Estes homens podiam ser brancos, mestiços ou mulatos, mas
encontravam-se no meio caminho entre culturas. Não se identifica­
vam totalmente com a sua cultura de origem, nem tão-pouco adopta-
vam integralmente os hábitos comportamentais dos grupos com que
contactavam de novo. Antes, utilizavam padrões de comportamento
de ambos. De igual forma, tinham poder e prestígio junto dos chefes e
das comunidades ameríndias e usufruíam da protecção e da cumplici­
dade de alguns estratos da sociedade colonial. Exerciam um papel
semelhante ao que os lançados tinham nas sociedades africanas ou em
etnias do vice-reinado do Brasil114. Eram, no entanto, considerados
pelo Estado português como um desafio e uma ameaça à sua autori­
dade no Norte do Brasil e, por isso, a sua neutralização tornou-se num
dos alvos da política colonial portuguesa da década de 50.
A existência destes indivíduos leva a repensar a avaliação das dis­
tinções raciais no estudo do Brasil colonial. Não negamos a importân­
cia do conceito de raça enquanto factor incontomável no estudo das
relações sociais e na distribuição de poder e riqueza nas sociedades
coloniais, a par de classe ou sexo115. Contudo, consideramos que é
imprescindível reavaliar a função dos intermediários nessas socieda­
des, sejam eles traficantes, intérpretes ou cônjuges, porque o papel
que brancos, índios ou negros desempenham não é, frequentemente,
concordante com o que seria previsível ou predeterminado.
Antes de mais, é necessário salientar que a origem rácica e étnica

114 Para uma noção comparativa do papel dos lançados no Império Português,
veja-se o artigo e a bibliografia indicada em Jorge Couto, «Lançados», in Dicionário de
História dos Descobrimentos, dirigido por Luís de Albuquerque, vol. n, Lisboa, Círculo
de Leitores, 1994.
115 Gary B. Nash e David G. Sweet, «General Introduction», in Struggle and survi-
val in Colonial America, editado por David G. Sweet e Gary B. Nash, Berkeley, Los
Angeles, Londres, University of Califórnia Press, 1991, pp. 3-4.

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dos indivíduos que, em meados de Setecentos, desafiaram a autori­


dade portuguesa sobre o território norte-brasileiro é heterogênea.
Entre eles encontram-se brancos, mulatos, mamelucos, soldados, sar­
gentos, capitães-do-mato, filhos de nobres. Alguns pertencem às tro­
pas de resgate oficialmente organizadas para capturar escravos de
acordo com os parâmetros legalmente estabelecidos, acabando por
ficar no sertão após a desmobilização das mesmas116. Outros são des­
critos como malfeitores perseguidos pelas autoridades judiciais, que
procuraram refúgio nos sertões da bacia Jiidrográfica amazônica117.
No entanto, todos eles eram acusados de, a par do tráfico legal,
fazerem escravos contra as leis reais. Ou seja, deles se dizia que vio­
lavam os princípios da guerra justa e dos resgates e que levavam
ameríndios para as «missões de baixo» contra sua vontade. Ao
terem a sua culpabilidade apurada através de devassas baseadas nos
casos previstos pelo Regimento das Missões, tomavam-se procurados
nos imensos sertões do Rio Negro e do Pará118. Pretendia-se que a
sua prisão e castigo servissem de exemplo a quem se dedicasse à
captura ilícita de ameríndios.
Não obstante, as prisões destes homens era tarefa difícil, quer
pela imensidade do território a que estendiam a sua actividade, quer
pelas alianças que faziam com os chefes das etnias ameríndias, quer
pela protecção que lhes era dada por moradores e ordens religiosas,
quer, ainda, pelos subornos que davam a soldados e oficiais119. A es­
tas dificuldades juntava-se ainda outra: alguns destes indivíduos
tinham verdadeiros exércitos particulares, compostos por índios
numerosos, bem armados e treinados em combate de guerrilha.

116 BN, Colecção Pombalina, códice 205, fl. 123, Carta de Francisco Xavier de
Andrade a [Francisco Xavier de Mendonça Furtado], de 12 de Agosto de 1752.
117 AF1U, Conselho Ultramarino, códice 209, fls. 257v-259v, Parecer do Conselho
Ultramarino sobre o procedimento a ter com Francisco Portilho de Melo, de 13 de
Abril de 1753. Sobre esta noção de sertão como local de refúgio e, igualmente, de opor­
tunidade dos que eram rejeitados pela sociedade colonial, dos que dela se tinham colo­
cado à margem ou dos que fugiam da igreja, da justiça ou da opressão, veja-se A. J. R.
Russell-Wood, «The frontier concept. Its past, present and future influence», p. 37.
118 De entre os mais relevantes régulos do sertão, saliente-se Francisco Portilho
de Melo, Pedro de Braga, José da Costa Bacelar, João Gonçalves Chaves, Euquério
Ribeiro e João Baptista, Francisco Alberto do Amaral, Antônio Braga, João Duarte
Ourives, o mameluco Jacob, o mulato Isidoro, Antônio Carlos e Antônio Ribeiro da
Silva (AHU, Conselho Ultramarino, códice 271, fl. 175, Carta régia ao ouvidor da capi­
tania do Pará, de 20 de Abril de 1751; ibidem, fl. 184, Carta régia ao Governador do
Estado do Maranhão, de 12 de Maio de 1751).
1,9 AHU, Pará, caixa 59 (774), Ofício de Francisco Xavier de Mendonça Furtado
a [? ], de 3 de Novembro de 1753.

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Por isso, é interessante notar que estes homens não procuravam


passar desapercebidos às autoridades coloniais. Se é certo que iam à
cidade de Santa Maria de Belém de noite e a altas horas por forma a
evitarem a sua captura pelas autoridades, no sertão, onde a força do
poder central era diminuta e defrontável, eles desafiavam as tropas
regulares e derrotavam-nas. Seja apontado como exemplo a ameaça
feita pelos índios de Pedro de Braga às tropas de Lourenço Belfort
quando este tentou prender Braga ou, mais tarde, o ataque que este
fez às tropas de Belfort: «E cuidando eu que nesta forma ficava o ryo
pacifico, despedi bandeiras, como he estillo para várias partes a res­
gatar escravos e tendo disposto tudo me despedi para o meu arraial
[...] mas poucos dias depois da minha partida em lugar do dito Pedro
Braga resgatar alguns escravos como lhe tinha ordenado, tratou de
fazer uma emboscada junto com o gentio seu apaniguado e pas­
sando huma bandeira as cachoeiras, de repente sahirão e matarão
dois homens brancos, sete indios, ferindo mais de vinte e escapar
algum se pode atribuir a milagre pelo número de gentio armado
com armas de fogo cujas se conheceram ser do dito Pedro de
Braga»120. De resto, o poder destes homens era tal que os coman­
dantes das fortalezas ou das tropas de resgate não se atreviam a
combatê-los.
Na maioria das vezes ludibriavam ou opunham-se abertamente
à inspecção e contagem dos ameríndios que transportavam consigo
quando os soldados das fortalezas se propunham fazê-lo. Tal ocorreu
com Francisco Antônio Banholi que evitou a passagem pela fortaleza
de Tapajós para impedir a contagem dos índios que trazia do Rio
Negro em uma canoa, «comprados contra as leys de El Rey e de V.a
Ex.V 21. Também Francisco Portilho de Melo não deixava contar nem
os ameríndios que descia, nem os brancos que o acompanhavam nos
descimentos e dava uma resposta ilusiva, dizendo que eram mais
que duzentos ou menos de trezentos e que apenas daria contas ao
governador da capitania sobre a gente que transportava. Os descidos
pareciam rondar, frequentemente, o número de novecentos122.

120 BN, Colecção Pombalina, códice 621, fl. 214, Ofício de Lourenço Belfort a Fran­
cisco Xavier de Mendonça Furtado, de 8 de Fevereiro de 1753.
121 Ibidem, códice 622, fl. 25, Ofício de Ricardo Antônio da Silva Leitão a [Fran­
cisco Xavier de Mendonça Furtado?], de 9 de Fevereiro de 1753.
122 Ibidem, códice 622, fl. 33, Ofício de José Antônio de Freitas Guimarães a
[Francisco Xavier de Mendonça Furtado], de 13 de Fevereiro de 1753; ibidem, fl. 31,
Ofício de Manuel da Silva a [Francisco Xavier de Mendonça Furtado], de 13 de Feve­
reiro de 1753.

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A ilação que seguramente podemos fazer e que explica as ambi­


guidades da sociedade colonial face a estas figuras é a de que existia,
até meados de Setecentos, um tráfico de escravos que se sabia ser ile­
gal mas que se fazia claramente, ou seja, com a condenação das auto­
ridades, mas com a aprovação tácita da sociedade colonial que dele
beneficiava. Quando a política colonial portuguesa tentou reprimir
esta actividade — e é de relevar que tal se fez ainda antes da nomea­
ção de Francisco Xavier de Mendonça Furtado para o governo do
Estado do Grão-Pará —, esbarrou com a,oposição velada dos mora­
dores e das ordens religiosas que oficialmente reprovavam este trá­
fico ilegal mas que, oficiosamente, protegiam os indivíduos capazes
de lhes fornecerem a mão-de-obra de que necessitavam.
De outra forma, como explicar que, não obstante se tivesse dado
ordem de prisão a Pedro Braga, os padres da província da Conceição
lhe pedissem para empreender um descimento para as suas
aldeias123? Ou como compreender o desaparecimento da devassa em
que se achava culpado Clemente Luís Neto, cunhado do secretário
José Gonçalves da Fonseca124? Como também justificar que, não obs­
tante a condenação oficial das autoridades administrativas e religio­
sas, se notificasse a cada instante a participação de missionários e lei­
gos no tráfico ilegal e nos «descimentos» forçados de ameríndios125?
Toma-se igualmente relevante apontar que não há clareza ou
constância nas ligações ou nas alianças que se estabeleciam entre os
diferentes estratos da sociedade colonial em relação ao tráfico ilegal
de ameríndios. Assim, se nalguns casos os «régulos do sertão» con­
tavam com a protecção e eram aliados de missionários, em outros
não se coibiam de atacar as missões para fazer tomadas de escravos.
As aldeias carmelitas foram atacadas por Francisco Portilho de
Melo, enquanto Pedro Braga recebia pedidos dos padres da provín­
cia da Conceição para obter mão-de-obra indígena126.
Contudo, estes indivíduos não contavam apenas com a protec­
ção da sociedade colonial. Ao estabelecerem contactos com as

123 AHU, Pará, caixa 59 (774), Ofício de Francisco Xavier de Mendonça Furtado
a [?], de 3 de Novembro de 1753.
124 BN, Colecção Pombalina, códice 621, fl. 214, Ofício de Lourenço Belfort a Fran­
cisco Xavier de Mendonça Furtado sobre a devassa feita a Pedro Braga, de 8 de Feve­
reiro de 1753.
125 Ibidem, códice 625, fl. 123, Carta de Francisco Xavier de Andrade a [Francisco
Xavier de Mendonça Furtado], de 12 de Agosto de 1752; ibidem, códice 622, fl. 11,
Ofício de José Pereira de Abreu a [Francisco Xavier de Mendonça Furtado], de 29 de
Janeiro de 1753.

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sociedades ameríndias, fomentavam alianças com os seus chefes e


estabeleciam ligações familiares dentro do grupo.
Mas, e ao contrário do que aconteceu em muitos episódios da
história colonial europeia apreciados por Bitterli, que dão conta de
inúmeros exemplos de comerciantes, colonos, soldados e, até, mis­
sionários de tal forma integrados nas culturas não europeias que os
seus compatriotas notificavam que estavam completamente adapta­
dos a outros modos de vida e que a comunicação com eles se pro­
cessava com sérias dificuldades, estes homens não se desligavam
completamente da civilização ocidental126127. Se estavam integrados
nas comunidades ameríndias e eram por elas «absorvidos», conti­
nuavam a manter ligações com a sociedade colonial, colaborando
com ela e recebendo dela protecção.
Uma das formas seguidas para se integrarem nas comunidades
índias consistia nos «casamentos» realizados, na sua maioria, à mar­
gem dos rituais católicos com as filhas ou as parentes dos amerín­
dios com mais importância na comunidade. De igual modo, a poli­
gamia e o concubinato conferiam prestígio e poder a estes
indivíduos e reforçavam as alianças estabelecidas com os chefes das
etnias ameríndias. Assim, Pedro de Braga era casado com uma sobri­
nha do principal Aquipi128. Também muitos dos luso-brasileiros que
andavam pelo sertão chegavam a ter mais de 10 ou 12 mulheres
com vista a aumentar a sua influência junto das comunidades índias
e o seu poder face às autoridades coloniais129.
Outro meio de incorporação utilizado consistia no seguimento
de outros hábitos reprováveis ao olhar europeu. Por exemplo, dizia
José Pereira de Abreu que a tanto tinha chegado a desenvoltura de
Francisco Portilho «que com o mesmo jentio se embebedava, e che­
gou a tanto o seu exceço que se asoutou junto com elles; a isto che­
gam os homens que asistem nestes sertois»130.

126Ibidem, códice 622, £1. 22, Ofício de João Rodrigues da Cruz a [Francisco Xavier
de Mendonça Furtado], de 5 de Fevereiro de 1753; AHU, Pará, caixa 59 (774), Ofício de
Francisco Xavier de Mendonça Furtado a [?], de 3 de Novembro de 1753.
127 Urs Bitterli, Cultures in conflict. Encounters between European and non-European
cultures, 1492-1800, p. 50.
128 BN, Colecção Pombalina, códice 621, fl. 214, Ofício de Lourenço Belfort a Fran­
cisco Xavier de Mendonça Furtado sobre a devassa feita a Pedro Braga, de 8 de Feve­
reiro de 1753.
129 Esta prática foi proibida por Carta régia de 4 de Dezembro de 1752 (AHU,
Pará, caixa 110 (825)).
130 BN, Colecção Pombalina, códice 622, fl. 10, Ofício de José Pereira de Abreu a
[Francisco Xavier de Mendonça Furtado], de 29 de Janeiro de 1753.
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Estes homens «de vida estragada» eram temidos pelas autorida­


des coloniais porque sob a sua autoridade directa ou sob comando
dos seus aliados contava-se um número indeterminado de índios
guerreiros. Chefiavam exércitos particulares suficientemente pode­
rosos para serem temidos pelas tropas e pelas autoridades governa­
mentais. Ora, tal permitia-lhes que, a par dos descimentos e resgates,
aprisionassem e forçassem muitos índios, alimentando um tráfico
que se fazia contra as ordens reais. Apesar de estes aprisionamentos
serem do conhecimento público, quer os governadores quer o exér­
cito eram inoperantes, porque se por um lado precisavam da mão-
-de-obra que só aqueles indivíduos tinham aptidão para extrair da
floresta, por outro, também não tinham capacidade militar para
defrontar estes régulos. E, por isso, solicitavam frequentemente os
seus serviços, apesar de terem um conhecimento claro das ilegalida­
des operadas. Desta forma, quando Lourenço de Belfort soltou Pedro
de Braga por se sentir ameaçado pelos índios sob comando deste
indivíduo, encarregou-o, ainda assim, de resgatar ameríndios que
tinham sido escravizados. Dizia que esperava uma altura mais opor­
tuna para o prender131.
Face a esta situação, os poderes governamentais tentavam supe­
rar a falta de poder com a habilidade política. De entre os nomes já
mencionados, Pedro de Braga e Francisco Portilho de Melo eram dos
indivíduos com mais prestígio junto dos índios e mais receados pela
coroa portuguesa. Ambos tinham aldeias, roças e homens armados
sob a sua chefia, bem como a protecção e a cumplicidade de muitos
luso-brasileiros. Deles se dizia também que eram responsáveis por
muitas mortes e assassínios. Por exemplo, dizia-se que Portilho de
Melo tinha sob seu comando seis aldeias de grandes dimensões e
mais de setecentas pessoas e que Pedro de Braga tinha no rio Negro
três roças enormes para alimentar a gente sob sua protecção132.

131 Ibidem, códice 621, fl. 214v, Ofício de Lourenço Belfort a Francisco Xavier de
Mendonça Furtado sobre a devassa feita a Pedro Braga, de 8 de Fevereiro de 1753.
132 AHU, Conselho Ultramarino, códice 209, fl. 257v, Parecer do Conselho Ultra­
marino sobre o procedimento a ter com Francisco Portilho, de 13 de Abril de 1753;
ibidem, códice 271, fl. 184, Carta régia ao governador do Maranhão sobre as devassas
feitas a crimes de apreensão de escravos, de 12 de Maio de 1751; BN, Colecção Pomba­
lina, códice 625, fl. 123, Carta de Francisco Xavier de Andrade a [Francisco Xavier de
Mendonça Furtado], de 12 de Agosto de 1752. Sobre a actuação de Francisco Portilho,
veja-se também João Lúcio de Azevedo, Os Jesuítas no Grão-Pará. Suas missões e a colo­
nização, pp. 287-288 e Ciro Flamarion S. Cardoso, Economia e sociedade em áreas colo­
niais periféricas. Guiana Francesa e Pará fl 750-'/<§'/7J, Rio de Janeiro, Edições Graal,
1984, pp. 111-112.

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Se Braga foi denunciado, preso e remetido para o reino, a Porti-


lho foram oferecidos, por João de Abreu Castelo Branco, o cargo de
capitão na fortaleza de Macapá e, por Francisco Xavier de Men­
donça Furtado, a patente de governador de várias aldeias de índios
em tomo da fortaleza, porque «a necessidade não tinha ley e as
razões que ponderava o governador eram muito atendiveis»133. Estas
razões consistiam em terminar com a ameaça que constituía o exér­
cito particular que comandava, em contar com um enorme desci-
mento já prometido a vários governadores e em obter o seu auxílio
na destruição de mocambos compostos por negros e índios fugidos.
As acções de Portilho, Braga e outros indivíduos envolvidos nos
descimentos, resgates e aprisionamento de índios trouxeram como
consequência uma alteração ao equilíbrio de poderes junto das
etnias ameríndias do Norte do Brasil de meados do século XVIII.
A presença de luso-brasileiros junto destas comunidades significava
um acesso facilitado a armas de fogo, munições e outros instrumen­
tos que se tomavam cada vez mais imprescindíveis ao funciona­
mento das sociedades indígenas e aos novos padrões de guerra. Por
outro lado, a celebração de alianças entre chefes ameríndios e luso-
-brasileiros significava para os primeiros uma mais fácil derrota dos
seus adversários tradicionais e para os segundos a obtenção de um
maior número de escravos134.
As áreas dos rios Negro, Branco, Tapajós e Uaupés foram parti­
cularmente afectadas pela interferência destes régulos. Inúmeras
etnias que tinham uma relação pacífica com os luso-brasileiros
revoltavam-se após os ataques levados a cabo por Portilho, Braga,
José da Costa Bacelar e tantos outros. Tal foi, por exemplo, o caso
de uma etnia ameríndia do rio Negro que se revoltou contra os luso-
-brasileiros depois dos ataques de Frederico Aranha, Inácio Magro,
Inácio Sanches, Antônio de Braga e o soldado Manuel Mendes
Balieiro135. Paralelamente, relata se um declínio demográfico acen­
tuado nas áreas geográficas me: ionadas: «porque como o gentio
pacifico e domado que neste Rio [Negro] havia, todo tem hido Des­
cido, para as Aldeyas de baixo não se achão hoje mais do que os
que estão Missionados, que ainda que, informem a V.a Ex.a que são

133 AHU, Conselho Ultramarino, códice 209, fl. 258v, de 13 de Abril de 1753.
134 A vantagem destas alianças era uma constante no relacionamento de índios e
luso-brasileiros. Veja-se John Manuel Monteiro, «Brasil indígena no século xvi: dinâmica
histórica tupi e as origens da sociedade colonial», in Ler História, 19,1990, pp. 91-95.
135 BN, Colecção PombaUna, códice 625, fl. 123, Ofício de Francisco Xavier de
Andrade a [Francisco Xavier de Mendonça Furtado], de 12 de Agosto de 1752.

1 12
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populozas as Aldeyas vão-se pondo na ultima consternação»136. A so­


lução apontada para resolver esta situação consistia na fundação de
aldeias luso-brasileiras e na fixação de colonos.
O controlo absoluto que a Coroa Portuguesa queria ter sobre o
território amazônico dependia também, neste meio centénio em
análise, da destruição dos mocambos. Tal como tinha ocorrido no
vice-reinado do Brasil e em África, os quilombos surgiam por todo o
Estado do Grão-Pará, congregando «uma multidão de gente ociosa e
inútil que nelles vivia em continua vadiasção e sem utilidade alguma
do Publico; antes muito a cargo delle pelos contínuos roubos e insul­
tos que dos mesmos se commettiam»137.
As medidas legislativas tomadas pela coroa desde o início dos
anos 50 do século xvm para destruir os mocambos revelaram-se
infrutíferas, quase tanto como as escoltas armadas chefiadas por
capitães-do-mato e enviadas pelos poderes locais e por moradores
com a missão de destruir estas comunidades de fugitivos138.
Constituídos por uma maioria de indígenas e por escravos
negros, desertores e criminosos fugidos à justiça, os mocambos pro­
liferavam pelos rios das capitanias do Pará e do Rio Negro. Para
além de devastarem as roças dos moradores e atacarem as povoa-
ções e fazendas luso-brasileiras, os quilombos surgiam como
núcleos mais ou menos organizados de resistência ameríndia ao

136 Ibidem, códice 625, fl. 123, de 12 de Agosto de 1752. Para a insubordinação
indígena aliada à resistência armada e ao declínio demográfico em relação ao vice-rei-
nado, veja-se John Manuel Monteiro, Negros da terra. índios e bandeirantes nas origens
de S. Paulo, São Paulo, Companhia das Letras, 1994, p. 35.
137 AHU, Pará, caixa 40 (754), Ofício de José de Nápoles Telo de Meneses a Mar-
tinho de Melo e Castro, de 21 de Agosto de 1780; para o vice-reinado do Brasil, veja-
se Benjamin Péret, O quilombo de Palmares. Crônica da •República de Escravos». Brasil,
1640-1695, Lisboa, Fenda Edições, L.da, s/d; Mário José Maestri Filho, Quilombos e qui-
lombolas em terras gaúchas, Porto Alegre, Escola Superior de Teologia, Universidade de
Caxias, 1979. Sobre o conceito de quilombo como espaço físico, mas também social
e mítico, e percebido como uma estrutura de identidade e solidariedade alternativa à
sociedade esclavagista (neste caso africana), veja-se Aida Freudenthal, «Os quilombos
de Angola no século XIX: a recusa da escravidão», in Revista de Estudos Afro-Asiáticos,
32, 1997.
138 AHU, Conselho Ultramarino, códice 209, fls. 220 e ss., Parecer do Conselho
Ultramarino sobre a representação feita aos oficiais da câmara do Pará sobre o envio
de escoltas armadas para captura de escravos e índios fugidos, de 21 de Maio de
1750; Pará, caixa 94 (809), Atestação de Pedro Gorjão de Mendonça sobre o compor­
tamento do principal Gonçalo de Sousa, de 4 de Maio de 1754, BN, Colecção Pomba-
lina, códice 621, fl. 239, Ofício de Manuel de Sarmento a Francisco Xavier de Men­
donça Furtado, de 20 de Março de 1753.

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A T R A N S F O R M A Ç Ã O D O S ÍN D IO S EM V A SS A L O S

poder colonial e como uma possibilidade de os índios manterem a


sua identidade étnica e cultural139. As fugas dos descontentes era
uma constante, chegando-se ao ponto de, em 1787, o director de
Alvelos ficar em riscos de ver a sua povoação reduzida a uma tapera
ou a um deserto porque a população sob sua administração tinha
fugido para um mocambo existente no rio Coary140.
Não podemos afirmar seguramente se os mocambos existentes
no Estado do Pará teriam constituído uma força de resistência tão
forte como os quilombos de Minas Gerais ou Palmares. Houve,
como é óbvio, lutas e confrontos entre mocambitas e luso-brasilei-
ros resultantes das tentativas do poder colonial para destruir estas
comunidades141.
Houve, no entanto, situações de contacto pacífico com as insti­
tuições e, sobretudo, com os índios aldeados. Dessa forma, celebra-
ram-se, frequentemente, casamentos entre índias das povoações
luso-brasileiras e quilombolas, o que pressupõe uma certa condes­
cendência por parte dos missionários que oficiavam a cerimônia142.
Também em 1770, Manuel Carlos da Silva dava conta de uma
aliança entre Caetano de Lira, irmão do tabelião da cidade, mestre
de meninos em Borba e soldado em Baião, e os quilombos de Mata-
cora e Manaperi: «está [a comunidade amocambada] juntamente
com o seu letrado Lira furtando e roubando os cacoais dos morado­
res tudo para beberronias alia gente para mocambos faz retirar o
grandioso mocambo de matacora que estava a coaze sahindo para
Bayão agora não se acha»143. Do testemunho do director de Cametá
infere-se que, apesar de se saber claramente a localização do mo­
cambo, nada se tinha feito para o destruir e que, após a actuação de
Lira, o grande problema tinha passado a ser a indeterminação do
sítio onde os mocambitas se tinham estabelecido.

139 AHU, Conselho Ultramarino, códice 273, fls. 18-18v, Carta régia ao governador
da capitania sobre os índios vádios que se organizavam em mocambos, de 22 de
Agosto de 1781.
140 AHU, Rio Negro, caixa 14, doc. 19, Ofício de Henrique João Wilkens a João
Pereira Caldas, de 14 de Agosto de 1787.
141 AHU, Rio Negro, caixa 15, doc. 8, Ofício de Marcelino José Cordeiro a João
Pereira Caldas, de 15 de Agosto de 1787.
142 AHU, Pará, caixa 24 (739 D), Carta de D. Frei João de S. José Queirós ao
padre Custódio da Cunha Ferreira, de 11 de Setembro de 1762.
143 APEP, códice 103, doc. 55, Ofício de Manuel Carlos da Silva a Fernando da
Costa de Ataíde Teive, de 14 de Maio de 1770.

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A d ifu s ã o da lín g u a p o r tu g u e s a e o e n s in o
d o s m e n in o s ín d io s

No plano colonizador que se tentou implantar no Estado de


Grão-Pará e Maranhão ao longo da segunda metade do século xviii,
a língua portuguesa e o ensino dos meninos índios foram utilizados
como instrumento de colonização e concebidos como um dos
meios para tomar os índios em portugueses. Quer a utilização do
português quer a educação das crianças ameríndias foram concebi­
das como um instrumento fundamental na política colonial, na
medida em que serviam como elementos de unificação e de identi­
dade144.
Ao definir o novo programa político para a Amazônia, a coroa
portuguesa percebeu claramente que era difícil, quando não impos­
sível, suportar uma colonização efectiva do vasto território amazô­
nico com os escassos recursos humanos de que dispunha. Contudo,
motivos de natureza política e estratégica determinavam a impres-
cindibilidade desse procedimento, tanto mais porque a bacia hidro­
gráfica amazônica era, à época, tenazmente disputada por outras
potências europeias rivais. Como consequência, houve que se
encontrar um elemento de unificação de todo o território sob domí­
nio português, ainda que esse factor fosse artificial para as etnias
ameríndias e para o próprio espaço: a língua portuguesa, tal como
era concebida pela política colonial de Setecentos, servia para redefi­
nir a identidade dos povos e a integridade da terra. Era um «instru­
mento político»145. Importava ensiná-la à população e fazer com
que, por seu intermédio, os índios se sentissem súbditos da coroa
portuguesa e tivessem com o soberano português uma relação de
fidelidade e de unidade.
Neste âmbito, as instituições executoras reconheciam que a apli­
cação deste princípio nunca poderia ter consequências imediatas. Os
índios adultos recusavam-se abertamente, resistiam de forma velada
ou revelavam-se incapazes de uma rápida aculturação. O projecto só
podia resultar a médio prazo e dependia, de forma imprescindível,
do incentivo à miscigenação e da educação das crianças índias e mes­
tiças em escolas, seminários e casas de luso-brasileiros.

144 Sobre este assunto, veja-se o artigo de Ângela Domingues, «A educação dos
meninos índios no Norte do Brasil na segunda metade do século xviii», in Cultura por­
tuguesa na Terra de Santa Cruz, coordenação de Maria Beatriz Nizza da Silva, Lisboa,
Editorial Estampa, 1995, pp. 67 e ss.
145 Carlos de Araújo Moreira Neto, índios da Amazônia. De maioria a minoria, p. 26.

115
A T R A N SF O R M A Ç Ã O D O S ÍN D IO S EM VASSALOS

À luz da política colonial portuguesa, a língua surgia, para além


do mais, como um elemento civilizador, capaz de acabar com a bar­
baridade em que os povos viviam e com a rusticidade dos costumes,
ao mesmo tempo que incutia nos povos o sentimento de afecto,
veneração e obediência ao príncipe146. Estes princípios encontram-se
enunciados no Directório que, tal como em muitos outros domínios
da vida dos povos da Amazônia, estabeleceu os parâmetros legislati­
vos subjacentes às alterações educativas e pedagógicas. No entanto,
a importância do ensino do português encontra-se explícita nos dife­
rentes planos de colonização produzidos tanto em período anterior
quanto em época posterior ao corpo legislativo mencionado147.
A legislação instituía a obrigatoriedade de fundar escolas em
todas as povoações do Estado com o propósito de ensinar aos meni­
nos a doutrina cristã, a leitura, a escrita e a aritmética, e às meninas,
o catecismo, as letras e algumas «prendas domésticas»148. A respon­
sabilidade do ensino cabia a mestres e mestras de bons costumes, de
prudência e capacidade reconhecidas e que actuariam sob estreita
vigilância dos directores e que seriam pagos por uma renda cobrada
aos pais e tutores das crianças149. Ora, o que importa relevar é que a
escola e os professores surgiam não só como veículo de «instrução»
— ensinar a ler e escrever — mas como uma forma eficaz de acultu­
ração. E, enquanto tal, não se dirigiam à formação exclusiva de uma
elite letrada, mas deviam abranger «toda» a população infantil.
Da leitura dos parágrafos anteriores infere-se que, na política
educativa luso-brasileira relativa aos estudos menores, há que consi­
derar quatro aspectos150: antes de mais, a utilização do português
como língua única de comunicação e de aprendizagem; depois, a
preocupação em ministrar no ensino básico uma formação religiosa;
seguidamente, a secularização dos agentes de ensino; e, por fim, há

146 Directório, § 6.
147 AHU, Pará, caixa 18 (739 F), Ofício de Joaquim de Melo Póvoas a Tomé Joa­
quim da Costa Corte-Real, de 21 de Dezembro de 1758; também em Rio Negro, caixa 1,
doc. 18.
148 O ensino da escrita e da aritmética não era recomendado às meninas.
149 Directório, § 7 e 8. Estas ordens foram repetidas na década de 60 a Manuel
Bernardo de Melo e Castro. Os ordenados dos professores deviam ser pagos pelos
bens sequestrados à Companhia de Jesus (AN/TT, Manuscritos do Brasil, número 51,
fls. 63-63v, de 9 de Junho de 1761).
150 Sobre a definição das diferentes categorias de ensino ministrado nas escolas e
universidades portuguesas, veja-se Antônio Alberto Banha de Andrade, A reforma
pombalina dos Estudos Secundários no Brasil, São Paulo, Edições Saraiva, Editora Univer­
sidade de São Paulo, 1978, pp. 1 e ss.

1 16
A T R A N S F O R M A Ç Ã O D O S ÍN D IO S EM V A SSA LO S

que sublinhar que o alvo deste programa educativo eram as crian­


ças, porque, no projecto de educação definido para o Norte brasi­
leiro, pretendia-se que a obrigatoriedade imposta a todas as crianças
de frequentarem escolas conduzisse ao abandono dos hábitos dos
antepassados e à desistência dos ritos ancestrais151.
Em relação ao aspecto linguístico, há que salientar que as etnias
habitantes da bacia hidrográfica amazônica falavam dialectos distin­
tos, existindo um sentimento de identificação entre língua e etnia152.
Havia, no entanto, famílias linguísticas»principais, como as Arawak,
Tucano, Macu e Tupi. A «língua geral», mescla de tupi com portu­
guês, foi rapidamente adoptada por muitas comunidades tupi que
habitavam a foz do rio Amazonas e os rios Guamá, Tocantins,
Pacajá e, apesar de não ser conhecida por muitas das nações que
habitavam os rios Negro, Branco ou Madeira, era facilmente apren­
dida pelos índios e correntemente utilizada na comunicação de indí­
genas e luso-brasileiros153.
Um dos propósitos da política linguística implementada no
Norte brasileiro da segunda metade do século xvin consistiu na irra­
diação da «língua geral». Pretendia-se que as intenções expressas
pela coroa em épocas anteriores fossem, finalmente, obedecidas.
E, nesse sentido, o governador e capitão-general do Estado do Grão-
-Pará deu instruções para que a legislação se cumprisse, obrigando
todas as crianças a frequentar a escola e a aprender a língua portu­
guesa que, como já foi mencionado, devia ser o único idioma a ser
falado num território unido sob a égide do monarca português. No
entanto, estas ordens depararam com a resistência da maioria dos
missionários154.

151 AHU, Conselho Ultramarino, códice 1275, fl. 336, Carta régia ao governador
e capitão-general do Estado do Maranhão recomendando a protecção das missões e
das liberdades dos índios, de 29 de Maio de 1750.
152 Omar E. González Nánez, «Lenguas indígenas e identidad en la cuenca dei
Guaiania-Rio Negro. Território Federal Amazonas Venezuela», in Indianismo e indigenismo
en América, compilação de José Alcina Franch, Madrid, Alianza Editorial, 1990, p. 291.
153 Carlos de Araújo Moreira Neto, índios da Amazônia. De maioria a minoria, p. 44.
154 Era Freitas de Guimarães que, ao dar conta da ocorrência, afirmava: «Çertifi-
cam-me que os Missionários destas Aldeyas do rio Tapajoz não observão o perceito,
que V* Ex.a lhes impoz para que admittissem nas Escollas aos índios e índias, com
todo o cuidado, e julgo por certa esta notícia porque o Missionário da Aldeya de
Cumamú cuida muito pouco em os aplicar a ler e a escrever, nem tão pouco consente
que os índios da sua Missão fallem portuguez, e tem castigado a alguns por este res­
peito» (BN, Colecção Pomhalina, códice 622, fl. 33, Carta de José Antônio de Freitas
Guimarães a [Francisco Xavier de Mendonça Furtado], de 13 de Fevereiro de 1753).

117
A T R A N S F O R M A Ç Ã O D O S fN D IO S EM V A SSA LO S

Estes opuseram-se, tanto quanto lhes era possível, ao abandono


da «língua geral», recusando-se a pôr de parte a base em que a sua
obra espiritual e temporal junto dos ameríndios tinha sido cons­
truída. Contudo, tanto as instituições laicas quanto as ordens reli­
giosas concordavam que a implantação da fé e a civilização dos
povos brasílicos só se poderiam implantar com êxito pela educação
das crianças155.
Através dos ensinamentos ministrados por mestres e mestras
laicas, mas também por professores de ordens religiosas, pretendeu-
-se incutir junto dos estratos mais novos, ainda em formação, o que
se reconhecia como difícil, se não impossível, de inculcar nos adul­
tos: a obediência e o respeito ao príncipe e ao deus cristão, a ética e
o comportamento que se exigia a quem era português e católico156.
Não obstante contemplar de forma teórica todas as crianças
índias, a política educacional direccionou-se para os filhos dos prin­
cipais, dos capitães-mores e sargentos-mores e de outros indivíduos
índios que tivessem lugar de destaque na comunidade. A alfabetiza­
ção e a cristianização eram dirigidas àqueles que, prioritariamente,
viriam a ser os futuros chefes das comunidades indígenas e que, em
época futura, poderiam servir de exemplo junto da comunidade e
sobre ela exercer a sua influência157.
A formação de uma elite de meninos índios deve ainda relacio­
nar-se com uma outra questão. Entre as medidas legislativas promul­
gadas pelo monarca para promover a identidade índia, decretou-se,
por alvará de 4 de Abril de 1755, a paridade entre vassalos do reino e
da América Portuguesa, estipulando ainda a preferência de amerín­
dios e de seus descendentes para o exercício de cargos públicos158.
Pergunta-se, portanto, até que ponto é que, ao promover pela educa­
ção uma elite de nascimento, a administração colonial não estaria a
tentar formar um grupo de «filhos-da-terra» apto e fiel, tão capaz de
administrar localmente as comunidades como de exercer algumas
funções no âmbito dos mecanismos de poder governamentais e da

155 lbidem, códice 625, EL 179v, Carta do padre Antônio Machado a [Francisco
Xavier de Mendonça Furtado], de 29 de Maio de 1754.
156 Ângela Domingues, «As sociedades e as culturas indígenas face à expansão
territorial luso-brasileira na segunda metade do século xviil», pp. 187-188.
157 O mesmo ocorreu em relação à América Espanhola. Veja-se Documentos sobre
política linguística en Hispanoamérica (1492-1800), compilação, estudo preliminar e edi­
ção de Francisco de Solano, Madrid, CSIC/Centro de Estudos de História, 1991,
pp. LVI-LXII.
158 BN, Res. 3609 V.

1 18
A T R A N S F O R M A Ç Ã O D O S ÍN D IO S EM V A SSA LO S

estrutura religiosa159? A insistência em formar «vassalos úteis ao


Estado» era, aliás, uma das grandes preocupações do monarca que, já
em Setembro de 1770, continuava a insistir na aprendizagem cor­
recta da língua portuguesa como um dos aspectos fundamentais
para a civilização dos povos, para o entendimento das leis e para a
compreensão da religião. Importa salientar que esta medida não se
dirigia especificamente ao Norte brasileiro, mas a todo o Império160.
A reforma do ensino no Estado do Grão-Pará, apesar de tomar
por parâmetro os estatutos que regiaih as alterações em campo
idêntico no reino, apresentou, contudo, particularidades e adapta­
ções à realidade colonial161. Neste aspecto, como em tantos outros,
havia uma clara discordância entre o que se tentava impor e o que
era possível cumprir. A intenção de criar escolas em todas as povoa-
ções esteve, antes de mais, dependente do empenho e da vontade
das autoridades administrativas locais, nomeadamente de directores
e de câmaras, bem como dos recursos econômicos que instituições e
particulares podiam e queriam disponibilizar.
Resultava, também, da existência de professores, ou seja, de indi­
víduos que soubessem ler e escrever e estivessem na disposição de
ensinar. Os mestres e mestras competentes, dados como aptos através
de um exame rigoroso e adeptos de um ensino laico e com juramento
prestado aos Santos Evangelhos em como cumpriríam eficientemente
as suas funções, davam, no Norte brasileiro, lugar a um punhado de
pessoas que, muitas vezes, mal sabiam ler e escrever162. Soldados,

159 Este programa teve êxito, por exemplo, na índia, onde muitos «filhos da
terra» desempenharam funções religiosas e tiveram um papel primordial na concilia­
ção de duas heranças culturais distintas (Maria de Jesus dos Mártires Lopes, Goa Sete-
centista: tradição e modernidade, p. 339).
160 AHU, Conselho Ultramarino, códice 1275, fls. 400-402, Carta régia decretando
a obrigatoriedade do ensino da gramática portuguesa nas aulas de língua latina, de 30
de Setembro de 1770.
161 «Alvará pelo que se concede à Real Mesa Censória toda a administração e
direcção dos estudos das escolas menores do reino e dos domínios, com remissão à
legislação de 28 de Junho de 1759», in Sistema e collecção de regimentos, vol. iii, p. 541,
de 4 de Junho de 1777; AN/TT, Ministério dos Negócios Estrangeiros, livro 127, carta 1,
fl. 1, Carta de Francisco Xavier de Mendonça Furtado a Martinho de Melo e Castro,
de 22 de Julho de 1759; ANRJ, códice 99, vol. 4, fl. 47, Ofício de José Nápoles Telo de
Meneses a Martinho de Melo e Castro, de 30 de Maio de 1783.
162 AHU, Pará, caixa 104 (819), Provimento do padre Fernando Félix da Concei­
ção por D. Francisco de Sousa Coutinho no cargo de professor de estudos menores
da cidade do Pará, de 23 de Setembro de 1799; veja-se, ainda, Antônio de Camões
Gouveia, «Estratégias de interiorização da disciplina», in História de Portugal, dirigida
por José Mattoso, vol. iv, pp. 433-434.

119
A T R A N S F O R M A Ç Ã O D O S ÍN D IO S EM V A SSA LO S

colonos, escrivães de câmaras, religiosos e directores, mais ou menos


zelosos, mais ou menos desaforados, de melhores ou piores costu­
mes, tinham a missão de ensinar as primeiras letras, a língua portu­
guesa e o catecismo; deviam, ainda, influir na correcção de vários
hábitos indígenas e incentivar as crianças a vestir-se e a calçar-se.
A falta de professores seculares estava na origem de, em muitas
povoações, o ensino estar confiado a padres163. Estes autorizavam os
jovens a expressarem-se na «língua geral» e eram acusados de indu­
zir as crianças em erros (?)164. Outras vezes, cumpriam eficazmente
a sua função, dando uma «boa educação» aos filhos dos índios165.
A existência de escolas locais apresentava graves inconvenientes
para o programa colonizador. Antes de mais, permitia que os jovens
índios permanecessem em contacto com os pais e com a etnia,
dando azo a que, por intermédio do discurso oral, continuasse a
haver transmissão de conhecimentos. Ora, a preservação de contac­
tos orais é, na opinião de Walter Mignolo, contraditória aos esforços
feitos para ensinar a ler e a escrever, permitindo que a cultura pre­
sente na vida quotidiana continue a ser transmitida166. Há ainda a
considerar que a permanência de crianças nas aldeias e vilas dava
ainda azo a que directores, vigários e particulares os usassem no cul­
tivo de roças, no pastoreio de gado, na recolha de drogas do sertão,
nos serviços domésticos ou no reparo de casas167.
A criação de seminários seculares ou colégios em regime de
internato foi uma das alternativas seguidas para obviar o problema.
A outra consistiu no alojamento das crianças índias nas casas da
elite socioeconómica e cultural luso-brasileira, ou seja, em casa dos
governadores, dos bispos, de ouvidores e de altos funcionários civis
e militares. Ora, se as escolas podiam e deviam ser frequentadas por
todas as crianças sem excepção, os seminários e as casas particulares
eram acessíveis apenas a um reduzido número de indivíduos: aque­
les que na comunidade se distinguiam pelo nascimento, pelo prestí­
gio de seus pais ou, na definição do governador Manuel Bernardo de

163 AHU, Pará, caixa 24 (739 D), Ofício de Luís Gomes de Faria e Sousa a Fran­
cisco Xavier de Mendonça Furtado, de 15 de Setembro de 1762.
164 lbidem.
165 lbidem, caixa 21 (739 I), Ofício de Manuel Bernardo de Melo e Castro a Fran­
cisco Xavier de Mendonça Furtado, de 23 de Abril de 1761.
166 Walter Mignolo, «On the colonization of Amerindian languages and memo-
ries: renaissance theories of writing and the discontinuity of the classical tradition»,
in Society for Comparative Study of Society and History, 1992, p. 326.
167 APEP, códice 108, doc. 69, Ofício de Francisco Pimentel ao govemdor e capi-
tão-general da capitania, de 6 de Agosto de 1770.

120
A T R A N SF O R M A Ç Ã O D O S ÍN DIO S EM VASSALO S

Melo e Castro, «os filhos de Principaes, Officiaes e dos da Câmara


porque na nobreza de seus Pays deve fazer com que se destinem
seus filhos a outros empregos honrosos para o que se lhe ha de pro­
porcionar e dispor o espírito na primeira criação»168.
Considerados por Francisco Xavier de Mendonça Furtado como
«o meyo mais próprio para civilizar os índios», os seminários apare­
ceram em funcionamento em 1761, depois de se terem consultado
várias autoridades sobre as suas funções169. O seu programa baseou-
-se no aperfeiçoamento do ensino ministrado nas escolas locais, na
aprendizagem de latim, gramática, filosofia, teologia, retórica e na
prática de algumas artes e ofícios. Mas o principal propósito que
presidiu à fundação destes estabelecimentos foi o evitar que as
crianças «bem-nascidas» continuassem a ter contacto com os ritos e
abusos gentílicos praticados por seus pais, com a barbaridade e rus-
ticidade dos índios aldeados, com a língua geral que estes continua­
vam a falar e a impedir que continuassem a ser utilizados em traba­
lhos públicos170. Um outro objectivo consistia em fomentar o
contacto entre os filhos da aristocracia luso-brasileira e os descen­
dentes da «nobreza» ameríndia, por forma a estes poderem receber
uma influência directa do comportamento dos seus companheiros.
Pela frequência dos seminários, impedia-se, pois, que os indiví­
duos que estavam destinados a governar as comunidades índias
tivessem um contacto simultâneo com duas culturas antagônicas,
tantas vezes num confronto em que o elemento vencedor era o indí­
gena. Paralelamente, tentava-se incutir junto das crianças ameríndias
uma educação europeia, ministrada por mestres laicos e religiosos,
reinóis ou que tivessem frequentado escolas no reino, por forma a
constituir uma elite que proporcionaria uma integração sólida das
sociedades ameríndias na sociedade colonial luso-brasileira.
O curto espaço de tempo que medeia entre as ordens de funda­
ção e o funcionamento dos colégios só pode ser compreendido se

168 AHU, Pará, caixa 21 (739 I), Ofício de Manuel Bernardo de Melo e Castro a
Francisco Xavier de Mendonça Furtado, de 23 de Abril de 1761.
169 A N /1 1, Manuscritos do Brasil, n.° 51, fl. 43v, Ofício de Francisco Xavier de
Mendonça Furtado a Manuel Bernardo de Melo e Castro, de 30 de Junho de 1760.
170 AHU, Pará, caixa 20 (729 G), Parecer de José Monteiro de Noronha sobre a
fundação de seminários para meninos índios, de 7 de Outubro de 1760; ibidem, Pare­
cer de D. Frei João de S. José Queirós, bispo do Pará, sobre a instituição de seminá­
rios para meninos índios, s/d [ant. a 11 de Novembro de 1760]; ibidem, Parecer do
desembargador intendente Luís Gomes de Faria e Sousa e do ouvidor-geral Feliciano
Nobre Ramos Mourão sobre a fundação de seminários para meninos índios, de 11 de
Novembro de 1760.

121
A T R A N S F O R M A Ç Ã O D O S ÍN D IO S EM V A SSA LO S

considerarmos que os seminários aproveitaram uma estrutura já


existente. O sequestro dos bens da Companhia permitia não só a
existência de numerário para pagar aos professores como também
possibilitava a reutilização das instalações do seminário dos jesuítas
de Belém, destinadas ao Colégio dos Nobres, e da livraria do Con­
vento da vila da Vigia, doada pelo monarca à mesma instituição171.
Concomitantemente, a remoção dos padres da Conceição e da Pie­
dade permitiu a vacatura de conventos e de hospícios no Gurupá,
Vigia e Cametá, também eles disponibilizados para o funciona­
mento de colégios e de escolas.
Mas não foram unicamente as instalações e os livros que passa­
ram a ser integrados nos colégios. Dada a escassez de professores,
alguns missionários foram reconduzidos na leccionação, tal como
aconteceu ao jesuíta Roberto Pereira, que por decisão da Junta da
Fazenda do Estado, foi designado, em 1760, para ensinar Filosofia
com um ordenado de 100$000 por ano, logo rectificado para 200$000
no ano seguinte172. Também o presbítero secular Fernando Felix da
Conceição foi utilizado como professor de ler, escrever, contar e cate-
quista na cidade de Santa Maria de Belém, em finais do século173.
De resto, só o prestígio e a tradição que o ensino eclesiástico
tinha é que justificam que o professor régio de Gramática Latina e
de Retórica, Eusébio Luís Pereira Ludon, residente no Pará a partir
de 1760, não tivesse, volvidos dez anos, um número de alunos sufi­
ciente que justificasse a manutenção daquelas aulas. Todos os estu­
dantes frequentavam as lições dadas no seminário174. Também a fre­
quência das aulas régias de Primeiras Letras era tão reduzida que, na
década de 80, ali passaram a funcionar175.

171 AHU, Pará, caixa 21 (739 I), Ofício de Manuel Bernardo de Melo e Castro
comunicando a intenção de doar a livraria dos Jesuítas da vila de Vigia ao Colégio dos
Nobres e a integração da do Colégio de Santo Alexandre na do Bispo do Pará, de 18
de Outubro de 1761. O colégio jesuíta do Pará fora encerrado a 12 de Setembro de
1759 (Antônio Alberto Banha de Andrade, A reforma pombalina dos estudos secundários
no Brasil, São Paulo, Edição Saraiva, Editora Universidade de São Paulo, 1978, p. 5).
172 AHU, Pará, caixa 21 (739 I), Ofício de Manuel Bernardo de Melo e Castro a
Francisco Xavier de Mendonça Furtado, de 18 de Junho de 1761; e ibidem, caixa 22
(742), Extracto de ofício de Manuel Bernardo de Melo e Castro, de 6 de Novembro de
1760.
173 Ibidem, caixa 104 (819), Petição de Fernando Felix da Conceição para se con­
firmar o seu provimento como professor por aprovação régia, s/d.
174 Ibidem, caixa 32 (746), Ofício de Francisco Xavier Ribeiro de Sampaio a Mar-
tinho de Melo e Castro, de 21 de Fevereiro de 1771.
175 Ibidem, caixa 77 (792), de 1799.

122
A T R A N S F O R M A Ç Ã O D O S ÍN D IO S EM V A SSA LO S

Para viabilizar o êxito da educação das crianças índias sugeriu-


-se a instalação de uma rede de colégios, espalhada pelo Norte brasi­
leiro: em Belém, Monsarás, Gurupá, Santarém, Barcelos e Ega176 No
entanto, os seminários ficaram restringidos à cidade — aberto a
crianças vindas do território compreendido entre a fortaleza do Parú
e Portei — e ao Gurupá — frequentado pelos jovens que viessem da
zona compreendida entre Almeirim e a capitania de S. José do Rio
Negro177. A não utilização deste estabelecimento conduziu ao seu
encerramento poucos anos volvidos.'No entanto, em finais do
século, voltava-se a insistir na pertinência do seu funcionamento
para a educação dos meninos índios.
Tal como foi dito, os colégios eram apenas uma das alternativas
para educar as crianças da elite indígena. A outra consistiu na sua inte­
gração nas casas de governadores, bispos, ouvidores e altos funcioná­
rios. Introduzidos, desta forma, nas «famílias» dos indivíduos que
constituíam a elite luso-brasileira, eram alimentados, vestidos e calça­
dos e obrigados a frequentar a escola e aprender alguns ofícios178.
Se alguns deles eram trazidos pelos governadores e altos funcio­
nários em viagem, outros havia que eram mandados por seus pais
para a cidade, como é exemplo o filho do principal Xavier de Men­
donça, enviado por seu pai para se civilizar sob o patrocínio do
governador179; outros iam por iniciativa própria, como é o caso do
índio Francisco, filho do principal Curetú e afilhado de João Baptista
Mardel, que pediu ao pai autorização para ir para Barcelos porque
não se conseguia habituar à vida agreste do mato180.
O culminar de todo este processo de apreensão e aprendizagem
do que era a «civilização» e o «progresso» imperante nos domínios
de Sua Majestade Fidelíssima está patente no envio de inúmeros
índios, filhos de gente notável, à corte, para virem beijar as mãos do
monarca, verem a civilidade com que viviam os vassalos do rei e

176 Ibidem, caixa 20 (729 G), Parecer de José Monteiro de Noronha, de 7 de Outu­
bro de 1760.
177 AN/TT, Manuscritos do Brasil, n.° 51, fl. 68v, Carta régia a Bernardo de Melo e
Castro sobre a educação dos filhos da elite índia, de 11 de Junho de 1761.
178 AHU, Pará, caixa 22 (742), Ofício de Feliciano Ramos Nobre Mourão a Fran­
cisco Xavier de Mendonça Furtado, de 28 de Junho de 1761; ibidem, caixa 21 (739 I),
Ofício de Manuel Bernardo de Melo e Castro a Francisco Xavier de Mendonça Fur­
tado, de 23 de Abril de 1761.
179 APEP, cód. 108, doc. 7, Ofício de Lucas José Espinosa de Brito Coelho Folq-
man, director da vila de Pombal, de 7 de Agosto de 1770.
180 AHU, Rio Negro, caixa 16, doc. 9, Ofício de Henrique João Wilkens a João
Pereira Caldas, de 6 de Junho de 1788.

123
A T R A N S F O R M A Ç Ã O D O S ÍN D IO S EM V A SSA LO S

«para que suprivivendo os supplicantes a seus Pays, possam instruir


os índios das suas nações conforme as Reaes Leys de Vossa Mages-
tade»181. Era desta forma que os descendentes dos principais com­
pletavam de forma ideal a sua educação, uma educação que já
pouco teria a ver com os hábitos quotidianos da etnia de que eram
originários e que, sem dúvida, conduziría a inadaptações, patentes,
por exemplo, nas dificuldades que o citado índio Francisco tinha em
viver a vida agreste da floresta; ou, então, se bem que de forma
menos notória, nos pedidos feitos ao monarca de patentes remune­
radas para os índios que tinham vindo à corte e que reconheciam
que nas suas terras «lhes faltão os meyos de poderem viver com a
descência correspondente às suas pessoas»182.
Importa, seguidamente, ver de que forma é que as intenções
propostas na reforma educativa e pedagógica analisada foram ou
não concretizadas. Para além dos problemas com que a estrutura
escolar se debateu, e que são notórios na falta de instalações, na
dificuldade em encontrar professores e na carência de livros, papel e
outros materiais, o que se verifica é que há uma resistência indígena
à frequência das escolas. Primeiro que tudo, porque nas sociedades
ameríndias as crianças eram estreitas colaboradoras na economia
familiar, auxiliando nos trabalhos do campo, especialmente em épo­
cas de colheita e sementeira, na caça e na pesca. Depois, é ainda de
notar que, numa altura em que faltavam adultos, a mão-de-obra
infantil era requerida para serviços comunitários e particulares183.
Para além destes motivos de natureza econômica, outros exis­
tiam, definidos pelas autoridades administrativas da época, como o
descuido, omissão e rebeldia dos pais e incumprimento da lei184.
A inércia indígena justificava-se nas contradições entre as formas de
ensino tradicional, com base no valor da tradição, da acção e do
exemplo, onde qualquer indivíduo podia ser agente educador, e uma
educação dissociada da vida quotidiana, que pretendia derrotar e

181 AHU, Pará, caixa 60 (775), Petição de índios, filhos de principais, vindos a
Lisboa, de patentes e soidos para viverem condignamente na sua terra, de 7 de Julho
de 1764.
182 Ibidem.
183 Angela Domingues, «Comunicação entre sociedades de fronteira: o papel do
intérprete como intermediário nos contactos entre ibero-americanos e ameríndios na
Amazônia de finais do século xvm», in Limites domar e da terra. Actas da VIII Reunião Inter­
nacional de História da Náutica e da Hidrografia, Cascais, Patrimónia, 1998, pp. 255 e ss.
184 AHU, Pará, caixa 21 (739 I), Ordem de Manuel Bernardo de Melo e Castro
aos oficiais da câmara da vila de Santa Cruz do Cametá e de Vila Viçosa, de 17 e 18
de Janeiro de 1761.

124
A T R A N SF O R M A Ç Ã O D O S ÍN DIO S EM VASSALO S

substituir as tradições e a memória colectiva, e onde os mestres eram


raros e iniciados e repressores dos usos e costumes indígenas185.
Não obstante, havia índios «cultos» e «educados». O que já foi
dito comprova-o. No entanto, a documentação analisada quase não
fornece indicações sobre o seu papel na sociedade colonial. Even­
tualmente, detinham atribuições significativas na vida comunitária,
como principais, como sargentos-mores e capitães-mores, nos cor­
pos de milícias ou como membros das câmaras. Porém, na estrutura
administrativa do Estado do Grão-Pará,«não se encontraram, até à
data, ameríndios no exercício de cargos públicos, ficando por cum­
prir um dos objectivos do já citado alvará de 4 de Abril de 1755.
Aponte-se para uma única, mas irônica, excepção. O principal
objectivo da educação promovida pela sociedade colonial consistia
na formação de indivíduos que fossem concordantes com a socie­
dade colonial e que estivessem ao seu serviço. Ora, no rio Apapóris,
em 1788, dava-se conta da acção sediciosa de três estudantes letra­
dos, Pedro, Leandro e Cuiga, acusados por João Henrique Wilkens
como sendo apóstatas e motores de desordens ocorridas entre os
Muras. Eram também acusados de «darem maus conselhos aos gen­
tios do mato», dificultando os descimentos186.
Uma outra finalidade da reforma educativa consistiu, como men­
cionámos, na implantação do português como língua única falada na
bacia hidrográfica amazônica. Volvidos cerca de cinquenta anos, há
que admitir que, também neste aspecto, o projecto inicial falhou. De
outra forma, como explicar a preponderância que os intérpretes conti­
nuaram a ter na comunicação entre luso-brasileiros e índios?187 Ou,
então, como justificar o ressurgimento dos Dicionários de Portu-
guês/Brasiliano em finais do século xvm, alvores do século xix, para
uso de missionários e da população, mas também de estudiosos de
Geografia e de História Natural?188 De resto, não deixa de ser irônico

185 Florestan Fernandes, «Notas sobre a educação na sociedade tupinambá», in


A investigação etnológica no Brasil e outros ensaios, Petrópolis, Editorial Vozes, 1975,
pp. 43, 50 e 55-57.
186 AHU, Rio Negro, caixa 17, doc. 6, Escrito do soldado Julião Alves da Costa a
Henrique João Wilkens, de 16 de Outubro de 1788.
187 Ângela Domingues, «Comunicação entre sociedades de fronteira...» e «O pa­
pel do índio como língua/intérprete entre sociedades ameríndias e luso-brasileiras no
Norte do Brasil em finais do século xviii», in Anais da Sociedade Brasileira de Pesquisa
Histórica, 10, 1995, pp. 11 e ss.
188 Diccionário Português e Brasiliano, obra necessária aos ministros do altar que empre-
hendem a conversão de tantos milhares de almas que ainda se achão dispersas pelos vastos cer-
tões do Brasil, sem o lume dafée baptismo. Aos que parocheao missões antigas, pelo embaraço

125
n
A T R A N S F O R M A Ç Ã O D O S Í N D IO S EM V A S S A L O S

que muitos destes compêndios fossem recuperações dos trabalhos lin­


guísticos que os missionários e, particularmente, os Jesuítas fizeram
até à primeira metade do século. É este o caso de Betendorf e Figueira.
O que sobre a política linguística ocorre dizer, é que o esforço bila­
teral feito para que sociedades que falavam línguas diferentes comuni­
cassem confluiu na utilização de uma língua que era estranha mas, no
entanto, acessível a luso-brasileiros e ameríndios, uma língua intermé­
dia, através da qual os naturais do país «sabiam exprimir muito melhor
as suas affecçõens do que ainda mesmo pelo Português»189. A priori­
dade dada à aculturação eficiente dos índios justificou, já em finais do
século XVIII, o retomo à língua geral. A retoma da língua franca de comu­
nicação pelos missionários junto dos seus paroquianos tomava-se, uma
vez mais, lícita porque era considerada eficaz190. E, desta forma, reco-
nhecia-se o fracasso da implantação do português como língua «nacio­
nal». No entanto, a língua do luso-brasileiro, a língua do colonizador,
teoricamente ensinada nas escolas luso-brasileiras a todos os habitantes
do Norte do Brasil como a língua da sujeição, era a forma pela qual os
indígenas se expressavam quando recorriam às instituições deliberati­
vas e ao monarca para reivindicarem os seus direitos.

O s e x e c u to r e s d o p la n o de c o lo n iz a ç ã o

A política colonial definida em relação ao Império colonial por­


tuguês da segunda metade de Setecentos deu ao Norte do Brasil
uma posição de destaque. As linhas pelas quais esta orientação polí-

com que riellas se falia a língua portugueza para melhor poder conhecer o estado interior das
suas consciências. A todos os que se empregarem no estudo da História Natural e Geografia
daquelle Paiz; pois conserva constantemente os seus nomes originários e primitivos, Lisboa,
Officina Patriarcal, 1795; Padre Luís Figueira, Arte da Grammatica da lingua do Brazil,
composta pelo..., Lisboa, Officina Patriarcal, 1795; Padre João Filipe Betendorf, Compên­
dio da doutrina christãa na lingua portugueza e brasilica composto por... e reimpresso de ordem
de S. Alteza Real o Príncipe Regente Nosso Senhor por Frei Mariano da Conceição Vellozo, Lis­
boa, Officina de Simão Tadeu Ferreira, 1800.
189 AHU, Pará, caixa 50 (760), Carta de Domingos Correia Dinis, médico, a
D. Francisco de Sousa Coutinho, de 30 de Abril de 1799.
190 BNRJ, 7-1-19, «Questões apologéticas enunciadas e dirigidas a mostrar que
em nada peca o Pároco que na língua vulgar dos índios os instrui espiritualmente, não
sabendo eles entender a Portuguesa que por ordem real se lhes deve introduzir, nem
também o que persuade os índios à compustura do calçado e manto ou mantilha e a
reforma juntamente de suas camisas degoladas, nem o que disser que periga o que o
Espírito Santo lhe dita, nem o que na Igreja repreender alguém em particular por
causa pública», s/d [de finais do século XVIII].

126
A T R A N S F O R M A Ç Ã O D O S ÍN D IO S EM V A SS A L O S

tica se estabelece são múltiplas, complexas e intervenientes em


vários domínios. Aquelas que, em nosso entender, tiveram uma
maior interferência junto das comunidades ameríndias foram enun­
ciadas já neste capítulo. Foi através dessas medidas que o aparelho
institucional central planeou recuperar e consolidar um poder e um
controlo que não tinha até à primeira metade do século.
A atenção que se dá ao Norte do Brasil só pode explicar-se pela
reavaliação da importância do território. Com a segunda metade do
século xvni, valoriza-se a importância que o Brasil tem para o Impé­
rio. E, dentro deste imenso Império, concede-se uma posição de
destaque à bacia hidrográfica amazônica, não apenas porque «do
que correrão os Portugueses o melhor he o Brazil & o Maranhão he
Brazil melhor & mais perto de Portugal»191. É a definição de novas
conjunturas internas e internacionais que assim o determinam, pro­
vocadas por alterações do pensamento político, pela redefinição das
correntes econômicas, pelo repensar da política estratégica e de
equilíbrio de poder entre as potências192.
Este redimensionamento do Norte do Brasil dentro do Império,
durante a segunda metade do século xvm, revela-se no cuidado
extremo havido com a nomeação das pessoas que ocuparam o cargo
de governadores e capitães-generais, tanto do Estado quanto das
capitanias. Ou, tal como diria D. Rodrigo de Sousa Coutinho, já em
finais do século: «a escolha dos Governadores deve ser o primeiro
objecto da attenção dos Soberanos, e que enquanto a distancia de
taes Governos necessita a confiança de hum Grande Poder e Jurisdi­
ção, devem ficar sujeitos, a huma grande responsabilidade»193.
Era da escolha acertada dos indivíduos que iam governar o
Estado do Grão-Pará que dependia a felicidade dos povos e a pros-

191 Simão Estácio da Silveira, Relação Sumária das Covsas do Maranhão dirigida aos
pobres deste Reyno de Portugal, s/1, edição de Eugênio do Canto, s/d, p. 35.
192 Veja-se, por exemplo, Andrée Mansuy-Diniz Silva, «Imperial re-organiza-
tion», in Colonial Brazil, edição de Leslie Bethell, Cambridge, Cambridge University
Press, 1987, pp. 244 e ss., Fernando A. Novais, Portugal e Brasil na crise do Antigo Sis­
tema Colonial (‘1777-1808), São Paulo, Editora HUCITEC, 1986, pp. 198 e ss.; José Luís
Cardoso, O pensamento econômico em Portugal nos finais do século xvm, Lisboa, Editorial
Estampa, 1989, pp. 193 e ss.; Valentim Alexandre, Os sentidos do Império. Questão
nacional e questão colonial na crise do Antigo Regime português, Porto, Edições Afronta-
mento, 1993, pp. 93 e ss.
193 D. Rodrigo de Sousa Coutinho, Memória escrita pelo Senhor..., de que se remete
copia ao Senhor D. João de Almeida ao Rio de Janeiro, em Julho de 1810 (minuta) Sobre o
melhoramento dos domínios de Sua Magestade na América, Lisboa, Arquivo Histórico
Ultramarino, p. 1; também publicada in Brasília, vol. rv, 1949, p. 405.

127
A T R A N S F O R M A Ç A O D O S ÍN D IO S EM V A SSA LO S

peridade e bem-estar dos súbditos, o cumprimento acertado das


ordens reais e a conciliação do serviço do Rei e de Deus. E, por isso,
a concretização das medidas que se pretendiam implantar no Norte
brasileiro da segunda metade de Setecentos dependia da escolha dos
ministros honrados, fiéis, inteligentes e zelosos194.
Assim, o aparelho estatal reconheceu que o sucesso do plano de
colonização a estabelecer sobre o território ultramarino dependia,
de forma indissociável, das pessoas que escolhia para o exercício do
mais alto cargo governativo no Norte da colônia. Na nomeação dos
governadores do Estado do Grão-Pará, a coroa jogou com relações
nítidas de dependência e de fidelidade, que pressupuseram não só
questões de natureza ideológica como também tiveram implícitos
vínculos familiares e noções de gratidão pessoal por parte dos indi­
víduos designados para o cargo. Paralelamente, esta nomeação devia
ser prestigiante quer para o escolhido quer para a família a que per­
tencia.
Ào longo da segunda metade do século, o apelido dos governa­
dores apontados está associado às famílias mais prestigiadas do reino
e, eventualmente, relacionadas com cargos de poder no panorama
político reinol195. A escolha de Francisco Xavier de Mendonça Fur­
tado para a govemação do Estado, em 1751, não foi, por isso, aleató­
ria: o 19.° governador e capitão-general era irmão de Sebastião José
de Carvalho e Melo, ao tempo conde de Oeiras e poderoso secretá­
rio de Estado dos Negócios Estrangeiros e da Guerra de D. José I196.
O seu sucessor, Manuel Bernardo de Melo e Castro, era irmão
de outra figura relevante na administração central, o secretário de
Estado da Marinha e Domínios Ultramarinos Martinho de Melo
e Castro197. Francisco Maurício de Sousa Coutinho, governador e

194 João Abel da Fonseca, «A propósito do tratado de limites a Norte do Brasil:


cartas secretas de Sebastião José de Carvalho e Melo, 1752-1756», in Mare Liberum,
10, Dezembro de 1995, p. 295.
195 Para uma listagem dos governadores e capitães-generais do Estado e capita­
nia do Pará, veja-se Visconde de Porto Seguro, História CeraI do Brasil antes da sua
separação e independência de Portugal, São Paulo, Companhia Melhoramentos de
São Paulo, s/d, pp. 346-348; e, ainda, Antônio Ladislau Monteiro Baena, Compêndio
das Eras da província do Pará.
196 Angela Domingues, «Francisco Xavier de Mendonça Furtado», in Dicionário de
História da Colonização Portuguesa do Brasil, coordenação de Maria Beatriz Nizza da
Silva, cols. 359-362; a sua nomeação foi comunicada à câmara de Belém por carta
régia de 5 de Junho de 1751 (AF1U, Conselho Ultramarino, códice 1275, fl. 143).
197 Jorge Couto, «Martinho de Melo e Castro», in Dicionário da História da Coloni­
zação..., cols. 149-151.

128
A T R A N S F O R M A Ç Ã O D O S ÍN D IO S EM V A SSA LO S

capitão-general da capitania do Pará entre 1790 e 1803, era filho de


D. Francisco Inocêncio de Sousa Coutinho, governador de Angola e
Benguela e embaixador em Espanha, e irmão de D. Rodrigo de Sousa
Coutinho, secretário de Estado da Marinha e Negócios Ultramarinos,
ainda nomeado, em 1801, ministro da Fazenda e presidente do Erá­
rio Régio198. Quanto às nomeações dos outros governadores, pare­
cem fazer-se em famílias ilustres do reino e de entre pessoas que
tinham já dado provas de competência e fidelidade. De tal é exemplo
João Pereira Caldas, governador e capkão-general do Estado entre
1772 e 1780 e chefe da comissão de limites de 1780, que tinha já sido
ajudante de sala de Francisco Xavier de Mendonça Furtado, durante
o serviço das demarcações de 1750199; ou D. Marcos de Noronha e
Brito, 8.° conde de Arcos e futuro vice-rei do Brasil200.
No que dizia respeito à capitania do Rio Negro, as instituições
centrais pensaram nomear como primeiro governador e capitão-
general João Egas de Bulhões, irmão de D. Miguel, Bispo do Pará,
que era fidelíssimo à causa do conde de Oeiras e governador inte­
rino da capitania do Pará durante a ausência de Mendonça Furtado
nas demarcações de limites resultantes do Tratado de Madrid de
1750201. No entanto, o designado foi Joaquim de Melo e Póvoas que,
na correspondência dirigida a Francisco Xavier de Mendonça Fur­
tado, chamava este de tio202. O mesmo indivíduo foi, aliás, no-

198 Sobre D. Francisco Maurício, veja-se Artur César Ferreira Reis, «Francisco de
Sousa Coutinho 2», in Dicionário de História de Portugal, dirigido por Joel Serrão, vol. II,
Porto, Livraria Figueirinhas, 1981, pp. 222-223; confrontem-se estes dados com
Andrée Mansuy Diniz Silva, «D. Rodrigo de Sousa Coutinho», in Dicionário de História
da Colonização..., cols. 222-225; e com Kenneth Maxwell, «Condicionalismos da inde­
pendência do Brasil», in Nova História da Expansão Portuguesa. O Império Luso-Brasileiro
(1750-18ZZ), coordenação de Maria Beatriz Nizza da Silva, vol. VIII, Lisboa, Editorial
Estampa, 1986, pp. 374-382; sobre o pensamento político e econômico deste minis­
tro, veja-se, ainda, José Luís Cardoso, O pensamento econômico em Portugal..., pp. 127 e
ss.; e Guilherme Pereira das Neves, «Do império luso-brasileiro ao império do Brasil
(1789-1822)», in Ler História (27-28), 1995, pp. 79 e ss.
199 Artur César Ferreira Reis, «João Pereira Caldas», in Dicionário de História de
Portugal, vol. i, p. 433; AHU, Pará, caixa 61 (776), Carta patente nomeando João
Pereira Caldas como governador e capitão-general do Estado do Grão-Pará por três
anos, de 13 de Julho de 1770.
200 Raúl da Silva Veiga, Diplomas régios e outros documentos dados no governo do Bra­
sil (Colecção Conde de Arcos), Catálogo, Coimbra, Arquivo da Universidade, 1988, p. 9,
nota 1.
201 Marcos Carneiro de Mendonça, A Amazônia na era pombalina, vol. n, p. 682.
202 AHU, Rio Negro, caixa 1, doc. 24, Ofício de Joaquim de Melo e Póvoas a Fran­
cisco Xavier de Mendonça Furtado, de 20 de Agosto de 1760.

129
A T R A N S F O R M A Ç Ã O D O S ÍN D IO S EM V A SSA LO S

meado de seguida para o governo da capitania do Maranhão por


diploma régio de 12 de Janeiro de 1760203.
Após a govemação de Gabriel de Sousa Felgueiras, a administra­
ção de capitania repartiu-se entre governadores interinos, governado­
res nomeados pelo soberano e juntas governativas204. A partir de
1786, com a designação do antigo comandante da fortaleza de S. José
de Macapá para a capitania do Rio Negro, deu-se início a um período
em que à frente dos desígnios da Amazônia estiveram oficiais milita­
res de reconhecidos prestígio e competência: Manuel da Gama Lobo
de Almada205, José Simões de Carvalho206, José Joaquim Victório da
Costa207. Todos eles tinham participado das partidas de demarcações
de limites com território hispânico decorrentes do Tratado de Santo
Ildefonso. As nomeações destes indivíduos para governadores do Rio
Negro surgem como um louvor e uma recompensa às suas activida-
des enquanto demarcadores e exploradores, a par das designações de
Antônio Pires da Silva Pontes para a capitania do Espírito Santo e a de
Francisco José de Lacerda e Almeida para os Rios de Sena.
Foram estes alguns dos governadores nomeados para dar cum­
primento ao plano de colonização do Norte do Brasil na segunda
metade do século xviii. Escolhidos de entre famílias ilustres do reino,
foram, durante meio século, a face pública do soberano junto da
sociedade colonial e os responsáveis pela execução das directrizes
coloniais em território brasileiro.
Há que salientar que se tenta escolher para o exercício dos mais
altos cargos administrativos da colônia uma nobreza de corte, habi-

203 AN/TT, Manuscritos do Brasil, n.° 51, fl. 8.


204 Uma listagem dos governadores do Rio Negro pode, por exemplo, encontrar-
-se em Visconde de Porto Seguro, História Geral do Brasil antes da sua separação e inde­
pendência de Portugal, pp. 372-374.
205 Tinha sido degredado para a praça de Mazagão, em África. Por serviços pres­
tados à coroa, foi-lhe comutado o degredo e honrado com o posto de sargento-mor e
a govemação de S. José do Macapá (AHU, Pará, caixa 30 (744), Ofício de Manuel da
Gama Lobo de Almada a Martinho de Melo e Castro, de 17 de Julho de 1770); em
1786 foi nomeado para a govemação da capitania do Rio Negro (AN7TT, Brasil, Avul­
sos, n.° 1, doc. 6, s/d [cerca 18 de Agosto de 1786]); concederam-lhe o posto de briga­
deiro do Exército Real por carta patente de 20 de Agosto de 1798 (AHU, Rio Negro,
caixa 19, doc. 1).
206 Nomeado tenente-coronel do Real Corpo de Engenheiros em 1799, foi pro­
vido no governo de S. José do Rio Negro em 1804 (AHU, Rio Negro, caixa 19, doc. 12,
de 3 de Agosto de 1799; ibidem, caixa 20, doc. 1, de 4 de Abril de 1804).
207 AHU, Rio Negro, caixa 20, doc. 11, Carta régia nomeando o capitão-de-fragata
e intendente da Marinha do Pará, José Joaquim Vitorio da Costa, governador da capi­
tania do Rio Negro, de 4 de Fevereiro de 1806.

130
A TR A N SFO R M A Ç Ã O D O S ÍN DIO S EM VASSALOS

tuada ao comando e ao exercício de funções burocráticas. Muitos


deles tinham já dado provas das suas capacidades em cargos de che­
fia. Detinham postos no exército ou na marinha reais e tinham já
comandado campanhas, praças ou regiões. A relevância dos serviços
prestados reflectia-se no facto de beneficiarem de comendas das
ordens militares, distribuídas pela coroa como fonte de rendimento
e relevante distinção nobiliárquica.
Depois, eram indivíduos que tinham uma forte consciência de
pertencer a um grupo e que prolongavam os laços e as ligações pes­
soais a nível institucional. O facto de muitos deles serem aparenta­
dos aos indivíduos que, no reino, definiam as opções políticas e che­
fiavam as facções no poder era uma garantia de que, na colônia, se
obedeceria fielmente e se daria continuidade às opções ideológicas.
As redes clientelares que se instituíam no reino como «uma estraté­
gia de execução mais eficaz das decisões do centro administrativo»
formavam-se também em relação às colônias e, especificamente, ao
Norte brasileiro208. E estavam relacionadas não apenas a aspectos de
eficácia de execução como também a questões de fidelidade e de
obediência devidas ao rei, à casa e à família a que pertenciam209.
A escolha dos governadores para o Estado do Grão-Pará fez-se,
portanto, de entre a «corte de funcionários do aparelho estatal», for­
mada de acordo com noções de funcionalidade e aberta a um pensa­
mento racional e empírico210. O seu recrutamento ocorreu, também,
em grande parte, em famílias de estrangeirados e de indivíduos que
permaneceram e adquiriram experiência em cortes europeias, como é
o caso de Francisco Xavier de Mendonça Furtado, Manuel Bernardo
de Melo e Castro ou Francisco Maurício de Sousa Coutinho211.
A ideologia colonial que serviu de suporte à actuação destes
indivíduos foi única e imperante ao longo da segunda metade do
século xviii. Baseava-se no reconhecimento do Brasil como elemento
vital para a sobrevivência do reino e na necessidade de defender a
soberania portuguesa e a integridade do território colonial. Apoiou-
-se na defesa do poder absoluto da monarquia através de um pro­
cesso que pressupunha a existência de estruturas fortes e centraliza-

2°8 Ângela Barreto Xavier e Antônio Manuel Hespanha, «As redes clientelares»,

in História de Portugal, dirigida por José Mattoso, vol. IV, p. 390.


209 Nuno Gonçalo Monteiro, «Poder senhorial, estatuto nobiliárquico e aristocra­
cia», in História de Portugal, cit., vol. iv, p. 365.
210 Guilherme Pereira das Neves, «Do império luso-brasileiro ao império do Bra­
sil», p. 77.
211 Andrée Mansuy-Diniz Silva, «Imperial re-organization», p. 246.

131
A T R A N S F O R M A Ç Ã O D O S ÍN D IO S EM V A SSA LO S

das a nível burocrático, militar e judicial, que se tentaram implantar


na colônia. Partiu do pressuposto que a economia colonial se devia
desenvolver para benefício exclusivo do reino e na sujeição das
directrizes definidas pelo pacto colonial.
Nesta concepção, o Norte do Brasil surgia como um elemento
imprescindível da geo-estratégia colonial, tanto mais importante
quanto sobre ele aumentava a cobiça das potências vizinhas212. Na
disputa territorial ocorrida entre as duas coroas ibéricas durante
toda a segunda metade do século XVIII, a bacia hidrográfica amazô­
nica foi, inquestionavelmente, o território que importava defender
como parte integrante da soberania portuguesa na América do Sul.
Já Alexandre de Gusmão especificava claramente esta situação
quando, às censuras do brigadeiro Antônio Pedro de Vasconcelos
sobre o abandono de Sacramento, respondia que: «nenhuma pro­
priedade há que não possa e deva prudentemente largar-se por um
equivalente, se ele fôr mais vantajoso que a mesma propriedade»213.
E as capitanias do Pará e Rio Negro surgiam aos olhos dos estadistas
da segunda metade de Setecentos como o território que importava
defender porque o Norte brasileiro era considerado na ideologia
política da época como «a chave do interior de todo o Brazil e dos
Dominios Meridionaes de Hespanha que se não pode abandonar
sem gravissimas consequências»214.

212 Manuel Nunes Dias, «Conquista e colonização da Amazônia no século XVIII»,


in Portugal no Mundo, direcção de Luís de Albuquerque, vol. v, Lisboa, Publicações
Alfa, 1989, p. 238.
213 J. M. T. de C., Collecção de vários escritos inéditos, políticos e litterários de Alexandre
de Gusmão, conselheiro do Conselho Ultramarino e Secretário Privado d'el rei D. João Quinto,
que dá à luz pública..., Porto, Tipografia de Faria Guimarães, 1841, p. 177.
214 BNRJ, 7-3-39, n.° 1, Ofício de D. Francisco de Sousa Coutinho a D. Rodrigo de
Sousa Coutinho, de 21 de Agosto de 1797.

132
C A P Í T U L O III

EM CU MPRIMENTO DO REAL SERVIÇO


O R EO RDE NAM EN TO DO TERRITÓRIO
E A I NT EG RAÇ ÃO DOS VASSALOS
O projecto político enunciado no capítulo anterior pretendia inte­
grar os ameríndios da bacia hidrográfica amazônica na política colonial
definida pela coroa portuguesa para o Norte do Brasil no período em
análise. Este programa baseava-se na miscigenação e na educação dos
povos ameríndios, na sua integração política no espaço colonial e na sua
participação activa na economia de mercado. Pretendia que os amerín­
dios vivessem em casas unifamiliares, usassem roupas, professassem o
cristianismo e vivessem de acordo com normas comportamentais em
tudo semelhantes às dos luso-brasileiros e, mesmo, dos portugueses rei-
nóis. O reconhecimento feito por Frank Safford para o caso colombiano
é, também, aplicável aos objectivos pretendidos no discurso colonial
luso-brasileiro da época: nos dois casos, a elite colonial pertendia incul-
car junto das sociedades ameríndias os valores, comportamentos e mo­
dos de vida ocidentais, bem como incorporar junto dessas comunidades
modelos de trabalho e consumo, considerados pelos europeus da época
como reveladores de altos padrões civilizacionais e de coesão nacional1.
As etnias sobre as quais este programa incidia viviam nas mar­
gens dos rios, no sertão amazônico, e, portanto, geográfica e cultural­
mente distantes dos centros de poder colonial. E, apesar de ser infin­
dável, este vasto espaço não continha a multiplicidade de culturas e
civilizações com que, por exemplo, os espanhóis se viram confronta­
dos ao estabelecerem a sua expansão imperial em território ameri­
cano. Os habitantes do Norte do Brasil eram «povos da floresta equa­
torial» e, consequentemente, considerados pelos europeus da época
como pertencentes ao mais baixo nível civilizacional de entre as
etnias habitantes do espaço luso-brasileiro2.

1Frank Safford, «Race integration and progress: elite attitude and the Indian in Colôm­
bia, 1750-1870», inHispanic American Histórica!Review, vol. 71 (1), February, 1991, p. 1.
2 Sobre as relações entre «povos da floresta» e «povos das cordilheiras», veja-se
Chantal Caillavet, «Entre sierra y selva: las relaciones fronterizas y sus reprezenta-
ciones para las etnias de los Andes Septentrionales», in Anuário de Estúdios Americanos,
vol. xlvii, 1990, pp. 71 e ss.; F. M. Renard-Casevitz, Th. Saignes, A. C. Taylor, Vinca,
l'espagnol et les sauvages. Rap>p>orts entre les sociétés amazoniennes et andines du xve au xvne
siècles, Paris, Éditions Recherche sur les Civilizations, 1986.

135
EM C U M P R IM E N T O D O REAL SER V IÇO

Não obstante, eram o trunfo político mais importante que a


coroa portuguesa possuía para afirmar as suas pretensões territoriais
face à cobiça das outras potências europeias. Constituíam, também,
a mão-de-obra disponível para satisfazer as necessidades de traba­
lho da sociedade colonial. Eram, finalmente, aqueles que melhor
controlavam as técnicas de sobrevivência na floresta equatorial e,
portanto, consideravam-se elementos essenciais na adaptação dos
luso-brasileiros à vida do sertão.
A incorporação dos ameríndios no programa civilizacional implan­
tado pelo Estado Português no Norte brasileiro era, por esse motivo,
fundamental à própria soberania lusitana no território. Através do pro­
jecto reformista e centralizador aplicado ao Norte brasileiro durante a
segunda metade do século xviii, pretendia-se firmar em todos os povos
habitantes da área de soberania portuguesa um sentimento de identifi­
cação com o monarca reinante e com o deus cristão. E, no sentido de os
instruir nesses preceitos, cumpria aos poderes coloniais demonstrar aos
ameríndios que a sua fixação nos aldeamentos cristãos luso-brasileiros
era preferível às antigas formas de vida. Havia que atraí-los aos núcleos
urbanos através da realização de discursos persuasivos, da oferta de
presentes, da promessa de protecção. Importava aliciá-los com o forne­
cimento regular de instrumentos de ferro, manufacturas e alimentos,
por forma a que as etnias abandonassem voluntariamente os seus
domínios ancestrais e se fixassem nos centros urbanos coloniais, confe­
rindo paz e coesão a um território que se queria uno e estável3.
Sobretudo, temia-se e reconhecia-se que, não obstante todas as
tentativas, muitos destes grupos permaneceríam incivilizados e
infiéis e que qualquer plano para os trazer em direcção às «luzes» da
civilização e da redenção só poderia ter êxito com tempo, pelo con­
tacto entre culturas e pela miscigenação dos povos.

In te r e s s e e p e r s u a s ã o : o s d e s c im e n to s

O plano colonial definido para o Norte brasileiro da segunda


metade de Setecentos estruturava-se em torno dos ameríndios.
Reconhecida a impossibilidade de colonizar a vasta área correspon­
dente à bacia hidrográfica amazônica com colonos luso-brasileiros e

3 Confronte-se a semelhança de objectivos e técnicas para território hispano-


-americano em, por exemplo, Jane M. Rausch, A tropical plain frontier. The Llanos of
Colombia, '1531-183't, Albuquerque, University of New México Press, 1984, p. 68.

136
EM C U M P R IM E N T O D O REAL SE R V IÇ O

reinóis, passou-se a conceder aos indígenas uma importância acres­


cida. Estes deixaram de ser avaliados unicamente como uma fonte
de mão-de-obra, para passarem também a ser considerados como
uma alternativa na efectivação dos projectos imperiais da coroa por­
tuguesa para o Norte do Brasil. A razão de Estado e motivos de natu­
reza política e estratégica determinavam a adopção de um novo pro­
grama colonizador em relação aos autóctones.
Na intenção de reconhecer como português aquele território e
de, simultaneamente, fazer com que este se identificasse como
domínio lusitano, a coroa jogava com vários interesses: pacificar as
etnias que o habitavam; defender a integridade territorial face à
cobiça internacional; potenciar os recursos econômicos; controlar
forças que, internamente, desafiassem a autoridade do Estado nacio­
nal; estabelecer uma cadeia hierárquica de poder e informação que
administrasse o território em nome do soberano e que mantivesse
as instituições centrais esclarecidas em relação a tudo o que se pas­
sava naquelas regiões marginais do Império.
Um dos mecanismos utilizados na concretização do projecto
baseou-se em continuar a actividade missionária de fazer «descer» os
ameríndios das suas terras, fixando-os em aldeamentos ou «missões».
Embora retomado nas suas intenções principais, este processo foi lai-
cizado e tomado mais agressivo. A coroa, através da concessão de
financiamentos e da intervenção dos seus funcionários, passou a ter
um papel mais interveniente, revelando um interesse ao qual não era
alheio a definição de áreas de soberania entre as várias potências
europeias com domínios coloniais em território sul-americano.
Era talvez a ponderação deste imperativo, juntamente com a
falta crônica de mão-de-obra, que levava a que, em princípios da
década de 60, se avaliassem como insuficientes os descimentos até
então realizados nas zonas de limites com a Hispano-américa. Con­
siderados como um dos meios de «povoar», isto é, de materializar a
colonização luso-brasileira no Estado do Grão-Pará, havia que inten­
sificá-los tanto no Rio Negro como no Pará4.
Ao longo do período em análise, os descimentos ocorreram em
ambas as capitanias, embora tenha havido uma maior incidência

4 Em carta a Mendonça Furtado, o ouvidor e intendente-geral do Rio Negro aler­


tava para a necessidade de se tomar a dianteira aos espanhóis no que dizia respeito
aos descimentos porque «a maior parte do gentio está da parte de lá que ao depões o
reputarão attentado» (AHU, Rio Negro, caixa 1, doc. 30, Ofício de Lourenço Pereira da
Costa a Francisco Xavier de Mendonça Furtado, s/d; veja-se também ibidem, de 16 de
Janeiro de 1761).

137
EM C U M P R IM E N T O D O REAL SERVIÇO

nas bacias dos rios Negro, Japurá, Içá e Apapóris, no rio Branco, no
rio Madeira e no complexo fluvial Tocantins-Araguaia.
O papel dos missionários ou das tropas de resgate no desaloja-
mento dos índios das suas terras comunais e na sua fixação em núcleos
de colonização era agora desempenhado pelos directores, por princi­
pais e por moradores, mas também por soldados e missionários, num
processo que envolvia índios, luso-brasileiros e negros. Assim, Alberto
de Sousa Coelho, director do lugar de Azevedo, teve, nos anos 60, uma
acção notória no descimento de etnias do rio Tocantins e de índios fugi­
dos das povoações luso-brasileiras, pelo que foi recompensado com o
posto de capitão-de-auxiliares5. O vigário José Monteiro de Noronha
revelava-se particularmente hábil junto dos grupos do Rio Negro pela
eloquência que tinha da «língua geral» e pelo zelo que demonstrava na
conversão das almas6. Também hábil nas línguas Passé e Juri era um
mulato que andava a fazer descimentos, com permissão de seu dono,
junto dos grupos referidos7. Graças à intervenção do principal Cle­
mente de Mendonça Furtado, 87 indivíduos tinham descido do mato
para a vila de Almeirim8; e o principal Manuel do Carmo tinha obtido a
sua patente como recompensa pelos descimentos feitos junto dos
povos do rio Branco9. O major Henrique João Wilkens foi particular­
mente bem-sucedido na redução e descimento do gentio Taboca que,
nos inícios de 80, deu início a uma povoação no rio Japurá10; e o em­
penho do cabo-de-esquadra Miguel Arcanjo Betencourt no descimento
de várias etnias do rio Branco era, por de mais, referenciado e louvado,
não obstante a «irregularidade do seu comportamento»11.

5 AHU, Pará, caixa 21 (739 I), Ofício de Manuel Bernardo de Melo e Castro a
Francisco Xavier de Mendonça Furtado, de 9 de Novembro de 1761.
6 AHU, Pará, caixa 24 (739 D), Carta de frei João de S. José Queirós ao conde de
Oeiras, de 23 de Novembro de 1761.
7 AHU, Rio Negro, caixa 9, doc. 1, Ofício de Custódio de Matos Pimpim a João
Baptista Mardel, de 19 de Maio de 1784.
8 ANRJ, cód. 99, vol. 1, fl. 5, Ofício de Fernando da Costa Ataíde Teive a Fran­
cisco Xavier de Mendonça Furtado, de 15 de Abril de 1765.
9 AHU, Rio Negro, caixa 10, doc. 1 B, Ofício de João Bernardes Borralho a João
Pereira Caldas, de 13 de Janeiro de 1785.
10 AHU, Rio Negro, caixa 6, doc. 1, Ofício de João Pereira Caldas aos governado­
res interinos da capitania do Rio Negro, de 17 de Outubro de 1781.
11 Ibidem, caixa 8, doc. 6, Ofício de [João Pereira Caldas] a Martinho de Melo e
Castro, de 26 de Julho de 1784; ibidem, caixa 9, doc. 1, Ofício de João Bernardes Borra­
lho a João Pereira Caldas, de 4 de Abril de 1784. A ressalva aludiría, talvez, à deserção
temporária de Miguel Arcanjo Betencourt para os domínios holandeses (ibidem, caixa
9, doc. 1, Ofício de João Pereira Caldas ao comandante da fortaleza de S. Joaquim do
rio Branco, de 28 de Fevereiro de 1784).

138
EM C U M P R IM E N T O DO REAL SERVIÇO

Os indivíduos mencionados não são mais do que meros exem­


plos da inúmera quantidade e vasta proveniência de pessoas envol­
vidas no descimento dos diferentes grupos ameríndios. Pela palavra
e pela concessão de presentes, aliciaram Barés, Baniba, Passé, Sahira,
Juma, Juris, Umayanas, Tucuna, Chumana, Curutús, Tarianos, Mura,
Mundurucú, Macuxi, Uariquena, Uapixana, Jupixuna, Pamá a fixa-
rem-se em núcleos já existentes ou em locais fundados de novo.
O que pensamos ser de realçar é a facilidade com que os chefes
de determinados grupos persuadiam nãc só a sua etnia como outras
comunidades a fixarem-se sob tutela luso-brasileira. Desta forma, o
principal Caetano de Mendonça tinha sido incumbido de promover o
descimento de Cucui e Beturu que, para além de comandarem um
«número infinito de gente», tinham contactos comerciais com os
espanhóis12. Também o principal Sesuraymé foi responsável pelo
descimento de «seus parentes e amigos» para a povoação do
Carmo13. Tinha ligações com os rebelados dessa povoação e com
índios Uapixana, Peralvilhana e Acaripi14. Ao abalizado Manuel
Antônio foi concedida a patente de principal devido aos seus serviços
no descimento de Uapixana sob seu comando e nos de seu irmão1516.
E, de igual forma, reconhecia-se o predomínio do principal Ananahi
sobre a sua etnia, os Macuxi, e sobre grande parte dos Uapixana15.
Relacionamos esta capacidade persuasiva e, talvez, autoritá­
ria com a existência de uma rede de comunicações e de relações
interétnicas que podiam ser anteriores ou contemporâneas do con­
tacto com os europeus e que assentavam em laços de amizade e de
comércio ou que derivavam de afinidades guerreiras ou laços matri­
moniais17. No imenso território que constituía a bacia hidrográfica

12 AHU, Rio Negro, caixa 1, doc. 24, Ofício de Joaquim de Melo Póvoas a Fran­
cisco Xavier de Mendonça Furtado, de 20 de Agosto de 1760.
13 AHU, Rio Negro, caixa 9, doc. 1, Ofício de João Bernardes Borralho a João
Pereira Caldas, de 29 de Abril de 1784; ibidem, Ofício de João Bernardes Borralho a
João Pereira Caldas, de 1 de Julho de 1784.
14 AHU, Rio Negro, caixa 9, doc. 1, Ofício de João Bernardes Borralho a João
Pereira Caldas, de 10 de Julho de 1784; ibidem, caixa 17, doc. 6, Ofício de João Bemar-
des Borralho a João Pereira Caldas, de 12 de Novembro de 1788.
15 Ibidem, Ofício de João Bernardes Borralho a João Pereira Caldas, de 18 de
Outubro de 1784.
16 AHU, Rio Negro, caixa 10, doc. 7, Ofício de João Bernardes Borralho a João
Pereira Caldas, de 18 de Fevereiro de 1785.
17 Estudos antropológicos feitos recentemente no terreno revelam a existência
de relações hierárquicas entre, por exemplo, os grupos habitantes da parte baixa do
Uaupés (Brasil) e os da parte alta do rio (Colômbia). Os grupos localizados junto da

139
EM C U M P R IM E N T O D O REAL SERVIÇO

amazônica existiam, portanto, alianças de parentesco, políticas,


comerciais e guerreiras que articulavam os diferentes grupos e resul-
tavam numa complexidade de confederações realizadas à margem
das relações com os luso-brasileiros.
Mas é preciso também considerar que muitas destas ligações
foram feitas e, nalguns casos, desfeitas em função da «ameaça»
constituída pela presença colonial. Face a um grupo externo às rela­
ções institucionalizadas de paz e guerra, militarmente organizado e
detentor de uma tecnologia mais avançada, em franca expansão e
com intenções imperiais, assistiu-se, tal como refere Janet Chemela,
à organização de vários grupos étnicos autônomos em confedera­
ções com objectivos militares e, também, à deslocação de popula­
ções que, por pressões de natureza vária, eram coagidas a emigrar18.
Apontamos, como exemplo, a confederação estabelecida pelo prin­
cipal Manacassary, que congregava outros chefes e outros grupos,
alguns considerados como vassalos do soberano português, contra
os luso-brasileiros no vale do rio Negro, nos inícios de 50. Para der­
rotar esta confederação recomendava-se a formação de uma força
armada proporcional à constituída por esta aliança19. Paralelamente,
reconhecia-se que o grupo luso-brasileiro não podia contar com
índios do rio Negro, pois estes tinham relações de amizade com os
revoltosos20.
Mas, acrescentamos, assistiu-se também ao rompimento de ami­
zades e de alianças previamente constituídas pelo afastamento de
etnias dos grupos de que eram originariamente solidárias, quer
quando recusavam uma autoridade tutelar colonial quer quando
entendiam que lhes era mais vantajosa a ligação com um poder colo-

embocadura dos rios são mais populosos, têm acesso a uma maior quantidade de
peixe e os aldeamentos são maiores, por contraposição aos das terras altas. As rela­
ções estabelecidas revelam o domínio dos primeiros sobre os segundos, enquanto
existe, curiosamente, uma relação de igualdade entre os grupos que habitam a
mesma área. A observação é válida para o Noroeste da Amazônia (Janet M. Cher-
nela, The Wanano Indians ofthe Brazilian Amazon, A sense of space, Austin, University of
Texas Press, 1993, pp. 12-13). Quando confrontados com o período em análise, verifi­
cámos que, de facto, os processos de descimento partiram das embocaduras dos rios,
ou seja, dos locais onde primeiro chegaram os luso-brasileiros. Eram feitos por indiví­
duos aí sediados e com prestígio junto das comunidades das terras altas e do interior,
mas não nos é permitido deduzir qualquer relação hierárquica a este nível.
18 Janet M. Chernela, The Wanano Indians of the Brazilian Amazon, p. 20.
19 AHU, Rio Negro, caixa 1, doc. 13, Ofício de [?] a Francisco Xavier de Men­
donça Furtado, de 1 de Junho de 1756.
20 AHU, Pará, caixa 18 (739 F), Extracto de uma carta a Francisco Xavier de Men­
donça Furtado, de 13 de Outubro de 1756.

140
EM C U M P R IM E N T O D O REAL SER V IÇ O

nial concorrente. As lutas e fugas ocorridas no rio Branco na década


de 80 são um exemplo acabado deste tipo de divergências21.
A penetração europeia não se limitou a fomentar alterações nas
chefaturas já organizadas. Provocou, também, movimentos migrató­
rios que se repercutiram na forma como os grupos ocupavam o ter­
ritório que constituía as capitanias do Rio Negro e Pará, acabando
por intervir, ainda que indirectamente, nas relações entre as etnias
que habitavam esse espaço.
Estes movimentos migratórios grocessaram-se em dois sen­
tidos. Enquanto muitas etnias se movimentaram em direcção ao ter­
ritório colonial, aldeando-se nas povoações luso-brasileiras, outras
refugiaram-se nos recônditos do sertão amazônico, longe de qual­
quer contacto, recuando cada vez mais à medida que o esforço de
colonização luso-brasileiro ia conquistando terreno. Nos vales do rio
Branco, Miguel Arcangelo de Betencourt não conseguiu localizar
os indivíduos que queria descer, pois estes tinham-se mudado de
lugar, deixando o seu antigo aldeamento deserto22. De igual forma,
o principal Matias, fugido de Nossa Senhora da Conceição, tinha-se
estabelecido no rio Majari. Aí fundou uma povoação com seis ma­
locas23. Abandonou-as e queimou-as, refugiando-se em paragem in­
certa. Construiu outra maloca, que voltou a abandonar com a apro­
ximação de Betencourt. Este, regressado ao primeiro local alguns
dias mais tarde, conseguiu falar com Matias, que estava disposto a
descer. A história repetiu-se com o principal Ouruhaime, da nação
Regmissana, que, desertado da mesma povoação, fundou um aldeia
no rio Camú. Também esta foi achada queimada, tendo os seus
habitantes recuado para o sertão quando fugiam das tropas luso-
-brasileiras. Quando Betencourt se aproximou do local para onde os
Regmissana se tinham mudado de novo, encontrou-o abandonado.
Pedia o índio Bernardo, irmão de Matias, e o índio Fernando, sobri­
nho do principal Tavarihá, da nação Sapará, os quais estavam, à

21 AHU, Rio Negro, caixa 12, doc. 6, Ofício de João Bernardes Borralho a João
Pereira Caldas, de 27 de Março de 1786.
22 AHU, Rio Negro, caixa 9, doc. 1, Ofício de João Bernardes Borralho a João
Pereira Caldas, de 29 de Abril de 1784; ihidem, Ofício de João Bernardes Borralho a
João Pereira Caldas, de 1 de Julho de 1784.
23 Casa de habitação ameríndia que aloja várias famílias. Descrições pormenori­
zadas encontram-se em Alexandre Rodrigues Ferreira, «Memória das malocas dos
gentios Curutús», in Viagem filosófica pelas capitanias do Grão-Pará, Rio Negro, Mato
Grosso e Cuiabá. Memórias, Antropologia, pp. 23-25; e Elisabeth Carmichael, Stephen
Hugh-Jones, Brian Moser, Donald Taylor, The hidden peoples of the Amazon, Londres,
British Museum Publications, Ltd., 1985, pp. 55-56.

141
EM C U M P R IM E N T O D O REAL SERVIÇO

data, em casa do capitão-secretário, para que intendessem no desci-


mento dos seus parentes24.
O recuo progressivo das aldeias como forma de evitar contactos
com agentes coloniais ocorreu também com os grupos chefiados por
Pixaú (Peralvilhana) e Ananay (Macuxi), até inícios de 1785, e de
Copitá, Maranari e Taruari (todos Peralvilhana)25. Quanto às etnias
Tapicaris e Saparás, depois de fugirem das antigas povoações luso-
-brasileiras na década de 80, refugiaram-se tão longe que os coloni­
zadores delas deixaram de ter notícia26.
Nos contactos que se estabeleciam com os diferentes grupos, as
ofertas tinham uma importância fundamental. Nos Armazéns da
Fazenda Real das capitanias e nos das povoações, na bagagem dos
viajantes ou na posse dos moradores, comprados com verbas públi­
cas ou com dinheiro dos funcionários e de particulares, deviam existir
inúmeros produtos especificamente destinados ao estabelecimento
de contactos e à recompensa de grupos descidos27. Muitas vezes utili­
zavam-se, ainda, produtos destinados a outros fins, como por exem­
plo à retribuição dos soldados que casassem no Rio Negro28. Não é
por acaso que, em 1764, o governador dessa capitania afirmava que

24 AHU, Rio Negro, caixa 9, doc. 6, Ofício de Miguel Arcangelo Betencourt a João
Bernardes Borralho, de 14 de Agosto de 1784; ibidem, Ofício de João Bernardes Borra­
lho a João Pereira Caldas, de 17 de Agosto de 1784.
25 AHU, Rio Negro, caixa 9, doc. 6, Ofício de João Bernardes Borralho a João
Pereira Caldas, de 20 de Novembro de 1784.
26 Ibidem, caixa 12, doc. 11, Ofício de João Bernardes Borralho a João Pereira Cal­
das, s/d.
27 Os produtos mais utilizados eram os tecidos de ruão, algodão, chita, holanda,
bretanha, beata, fitas, chapéus, barretes, espelhos, velório, granadas, verônicas, con­
tas e missangas, anzóis, machados, foices, pregos, enxadas, facas, ferros de cova,
navalhas, agulhas, ferro, aço, berimbaus, anéis de vidro, pentes, verrumas, enxós, for­
mões, goivas, limas. As dádivas de armas de fogo, pólvora, chumbo, perdigotos,
balas e pederneiras eram limitadas a indivíduos seleccionados e a alguns grupos
(AHU, Pará, caixa 20 (739 G), Ofício de Manuel Bernardo de Melo e Castro a Fran­
cisco Xavier de Mendonça Furtado, de 5 de Novembro de 1760; ibidem, caixa 21 (739 I),
Ofício de Manuel Bernardo de Melo e Castro a Francisco Xavier de Mendonça Fur­
tado, de 20 de Novembro de 1761; Rio Negro, caixa 7, doc. 12, Relação dos gêneros
oferecidos ao principal Catheamani, de 12 de Julho de 1783; ibidem, caixa 9, doc. 1,
Ordem de Henrique João Wilkens ao ajudante Cleto Antônio Marques, de 16 de
Abril de 1784).
28AHU, Rio Negro, caixa 1, doc. 24, Ofício de Joaquim de Melo Póvoas a Francisco
Xavier de Mendonça Furtado, de 20 de Janeiro de 1760. Assim, em 1764, o director de
Silves fez um descimento sem que houvesse custas para a Fazenda Real e devido uni­
camente à sua «curiosidade e diligência» (ibidem, caixa 1, doc. 44, Ofício de Joaquim
Tinoco Valente a Fernando da Costa de Ataíde Teive, de 26 de Julho de 1764).

142
EM C U M P R IM E N T O D O REAL SER V IÇ O

os descimentos se encontravam comprometidos porque não havia aí


os gêneros e as dádivas imprescindíveis a esse fim29.
A doação de tecidos, ferramentas, manufacturas e quinquilharia
de proveniência europeia era, primeiro que tudo, uma forma de cati­
var e aliciar os principais e as comunidades: dava-se presentes para
obter a boa vontade e a colaboração dos índios. Paralelamente, in­
troduzia-se na comunidade hábitos comportamentais europeus: de
vestuário, de sedentarização, de exploração agrícola. Procurava-se,
igualmente, criar nos grupos apetênciaqror determinados produtos e
dependências face a alguns instrumentos, particularmente os de
ferro, que facilitavam a vida da comunidade: no cultivo dos campos,
na obtenção de pescado e caça, na construção das canoas e casas.
Neste processo, os luso-brasileiros pretendiam impor-se como os
interlocutores por excelência30.
O que significavam estes presentes para os ameríndios? Antes
de mais, é necessário referir que os índios, tal como os africanos ou
os asiáticos, responderam selectivamente às técnicas e manufacturas
europeias que lhe eram oferecidas. Escolhiam-nas em função da sua
utilidade, da sua compatibilidade com os padrões culturais preexis­
tentes e de noções de prestígio. Os ameríndios da América do Norte
e dos pampas argentinos não tiveram dificuldade em adoptar o
cavalo na guerra e na agricultura, tal como os índios da planície
amazônica cedo se aperceberam da facilidade proporcionada pela
utilização de instrumentos de ferro na agricultura e em outras tare­
fas quotidianas, das vantagens trazidas pelas armas de fogo e do
poder embriagante da aguardente31.
Depois, é necessário reparar que alguns povos dos rios amazô­
nicos tiveram, desde muito cedo, acesso a manufacturas de origem
holandesa, inglesa, francesa, espanhola e portuguesa, não por um
contacto comercial directo que tivessem com estes povos mas atra­
vés de uma rede de relações interétnicas, pactuárias, matrimoniais e

29 Ibidem, caixa 1, doc. 41, Ofício de Joaquim Tinoco Valente a Fernando da


Costa de Ataíde Teive, de 19 de Junho de 1764.
30 Veja-se, por exemplo, um ofício de D. Francisco de Sousa Coutinho no qual se
recomendava a promoção de um comércio regular com os índios selvagens, tal como
se tinha instituído em carta régia (IHGB, lata 278, liv. 1, doc. 18, de 5 de Dezembro
de 1799).
31 Urs Bitterli, Cultures iti conflict. Encounters between European and non-European
cultures, 1492-1800, Cambridge, Polity Press, 1989, p. 49; veja-se, também, David
Sweet, «Francisca: Indian slave», in Struggle and survival in Colonial America, edição de
David Sweet e Gary Nash, Berkeley, Los Angeles e Londres, University of Califórnia
Press, 1991, p. 277.

143
EM C U M P R IM E N T O D O REAL SERVIÇO

comerciais, estabelecidas antes da conquista32. O aldeamento sob a


égide de um dos poderes coloniais europeus não significava o
acesso a novos produtos, mas uma possibilidade de abastecimento
regular de produtos já conhecidos33.
Pensamos, também, que a oferta de manufacturas pelos europeus
podia, ainda, ser entendida pelos ameríndios como uma formalização
de alianças de protecção e amizade que algumas comunidades indíge­
nas entendiam estabelecer quando se aldeavam nos núcleos luso-bra-
sileiros. Desta forma, a dádiva de «quinquilharias» e ferramentas
tinha, por vezes, equivalência na entrega de um membro da comuni­
dade, normalmente designado pelos luso-brasileiros como «refém».
Apesar de não surgirem com esta designação, os principais do rio Iça-
paraná, praticados pelo soldado Elias Fernandes e por um mulato, dei­
xaram quatro índios «para firmeza da sua palavra», enquanto iam à
sua terra falar com os seus subordinados34. Também o principal
Macieira enviou o seu filho com o soldado Floriano Pereira Pinto e
com o principal Manuel para que, dessa forma, os luso-brasileiros não
duvidassem da intenção de se estabelecer em S. Filipe35.
A relação feita pelos índios entre descimentos e alianças de pro­
tecção justifica-se porque a fixação de algumas etnias sob controlo
luso-brasileiro era provocada por conflitos interétnicos. Não obs­
tante o estado de guerra endêmico que caracterizava os contactos
entre muitas destas sociedades antes da conquista, pensa-se que os
conflitos tenham aumentado com a chegada dos europeus e com a
necessidade de obterem escravos e drogas do sertão para escamba-
rem por manufacturas e armas de fogo trazidas do Velho Conti-

32 Antônio Porro, As crônicas do rio Amazonas. Notas etno-históricas sobre as antigas


populações indígenas da Amazônia, Petrópolis, Editorial Vozes, 1992, pp. 18-19; Simone
Dreyfus, «Os empreendimentos coloniais e os espaços políticos indígenas no interior
da Guiana Ocidental (entre o Orinoco e o Corentino) de 1613 a 1796», in Amazônia.
Etnologia e História Indígena, organização de Eduardo Viveiros de Castro e Manuela
Carneiro da Cunha, São Paulo, NHII-USP e Fapesp, 1993, pp. 21 e ss.
33 Sobre as consequências ecológicas que o acesso aos instrumentos de ferro
tiveram nas reservas alimentares dos Guaicuru do Paraguai, veja-se James S. Saeger,
«Eighteenth-century Guaycuruan missions in Paraguay», in Indian-Religious relations in
Colonial Spanish America, editado por Susan E. Ramírez, Maxwell School of Citizens-
hip and Public Affairs, Siracuse University, 1989, p. 62; sobre o comércio indígena
preexistente e sobre o rápido processo de mudança provocado pelos europeus, veja-
-se David Sweet, «Francisca: Indian slave», pp. 276-277.
34 AHU, Rio Negro, caixa 9, doc. 1, Ofício de Custódio de Matos Pimpim a João
Pereira Caldas, de 19 de Maio de 1784.
35 AHU, Rio Negro, caixa 11, doc. 9, Ofício de João Bemardes Borralho a João
Pereira Caldas, de 13 de Outubro de 1785.

144
EM C U M P R IM E N T O D O REAL SERVIÇO

nente. Foi o que ocorreu, por exemplo, com os Carib e os Manao,


que utilizaram as já existentes cadeias de guerra e de troca a longa
distância para redistribuir mercadorias europeias a troco de cativos,
que obtinham dos seus aliados ou de guerras directas e que, depois,
eram levados aos holandeses do Suriname36; era o que parecia acon­
tecer com as guerras feitas por Emú e Cucui às etnias do rio Negro
nos anos 50, com o objectivo de alimentar um comércio de escravos
feito com os padres jesuítas espanhóis no rio Orinoco37.
No entanto, no período em análise, «esta situação parece não ter
contribuído de forma significativa para os descimentos realizados
posteriormente e em outras áreas. A época era de demarcação de
limites entre as nações ibéricas e as tropas de ambos os países per­
corriam as bacias dos rios Negro e Branco, aliciando os ameríndios a
fixarem-se em locais com importância táctica a troco de ferramentas
e manufacturas. Instituiu-se uma competição entre Portugal e Espa­
nha, através da qual se procurava atrair o maior número de etnias
possível por forma a tomar cada território mais habitado e, conse­
quentemente, com um maior número de mão-de-obra e de contin­
gentes armados. No entanto, sobretudo a partir dos anos 80 e com
as demarcações do Tratado Preliminar de Santo Ildefonso, as nações
envolvidas procuravam que os descimentos não suscitassem protes­
tos da potência rival no sentido de atribuírem as etnias descidas ao
território sob sua administração38.
Por seu turno, os ameríndios celebravam alianças com os euro­
peus que lhe oferecessem condições mais vantajosas e que melhor
os protegessem de ataques de inimigos tradicionais ou de novos
agressores. Em 1784, pretendiam cerca de 500 índios do rio Içá
aldear-se em Olivença por «o gentio Mura lhes ter dado, matando-
-Ihes bastantes»39. E no mesmo período, realizaram-se inúmeros des­
cimentos no rio Branco, devido aos esforços conjuntos de luso-brasi­
leiros e índios. Mas, perguntamos, até que ponto é que a sua acção
não foi facilitada pelos ataques de etnias Caripuna que mataram

36 Jane M. Rausch, A tropical plain frontier..., pp. 69-71; Simone Dreyfus, «Os
empreendimentos coloniais e os espaços políticos indígenas...», pp. 20 e ss.
37 AHU, Rio Negro, caixa 1, doc. 13, Ofício de [?] a Francisco Xavier de Men­
donça Furtado, de 1 de Junho de 1756; Pará, caixa 18 (739 F), Extracto de ofício de
Francisco Xavier de Mendonça Furtado, de 13 de Outubro de 1756.
38 AHU, Rio Negro, caixa 6, doc. 1, Ofício de João Pereira Caldas ao comandante
da fronteira do Rio Negro, de 27 de Julho de 1781.
39 Ibidem, caixa 9, doc. 1, Ofício de Custódio de Matos Pimpim a João Pereira
Caldas, de 19 de Maio de 1784.

145
EM C U M P R IM E N T O DO REAL SERVIÇO

alguns Uapixana e aprisionaram outros para levar, como escravos,


para domínio holandês40?
Alguns grupos utilizaram-se, também, das fricções políticas e da
concorrência existente entre os países europeus para obter vantagens
econômicas e políticas em benefício próprio. Pensamos que este apro­
veitamento da tensão internacional europeia foi feito pelas etnias
Manao, Marabitena e Manetibitano do rio Negro na década de 1750,
quando se aliaram aos portugueses, contra os seus inimigos Puinave ou
Guaipunave (parceiros dos espanhóis) e contra os Karinya (aliados aos
holandeses). A paz com os Puinave e a conveniência de uma aliança
com os espanhóis levou a que os grupos Manao se tivessem revoltado,
culminando estes levantamentos na destruição de aldeias no vale do rio
Negro41. De igual forma, e já no rio Branco, o rapaz índio Damião,
dependente do principal Canhacaiy, afirmava ter fugido ao grupo do
principal Matias, que o queria vender aos holandeses42. Resta afirmar
que Matias, índio desertor de povoações luso-brasileiras, era insistente­
mente persuadido desde há longa data, para voltar a estabelecer-se em
núcleos controlados pelas autoridades luso-brasileiras, acabando por
fixar residência na aldeia da Conceição em 178643.
É interessante atentar que, no entanto, a protecção requerida
pelas etnias ameríndias não se limitava unicamente ao aspecto mili­
tar, mas pressupunha ainda uma assistência medicamentosa. João
Baptista Mardel afirmava, em carta ao seu superior hierárquico, que,
se pudesse dispor de tecidos, ferramentas, quinquilharias, de um
padre e uma botica, estaria habilitado a fundar tantas aldeias quan­
tas as pretendidas pelo primeiro comissário no cumprimento do ser­
viço real44. Ora, quando atendemos a esta questão, importa referir
que, na segunda metade de Setecentos, os ameríndios debatiam-se

40 João Bernardes Borralho em ofício a João Pereira Caldas escrevia que «na
mesma situação andava hum preto Holandez em companhia da gentilidade da nação
Caripuna, que continuadamente se occupão em fazer escravatura de toda esta Gentili­
dade para venderem aos Holandezes e consta que tem levado bastantes pertençentes
às nossas extinctas povoaçõens e sendo muitas das ditas pessoas baptisadas» (AHU,
Rio Negro, caixa 9, doc. 1, de 1 de Julho de 1784; ibidem, caixa 9, doc. 6, Ofício de João
Bernardes Borralho a João Pereira Caldas, de 25 de Setembro de 1784).
41 Simone Dreyfus, «Os empreendimentos coloniais e os espaços políticos indí­
genas...», p. 31
42 AHU, Rio Negro, caixa 12, doc. 6, Ofício de João Bernardes Borralho a João
Pereira Caldas, de 27 de Maio de 1786.
43 Ibidem, caixa 12, doc. 11, Ofício de João Bernardes Borralho a João Pereira Cal­
das, de 27 de Junho de 1786.
44 Ibidem, caixa 12, doc. 6, Ofício de João Baptista Mardel a João Pereira Caldas,
de 12 de Março de 1786.
EM C U M P R IM E N T O D O REAL SERVIÇO

não só com as doenças que eram habitualmente as suas como com


aquelas introduzidas pelos contactos com os luso-brasileiros45. E, se
no que às doenças tradicionais dizia respeito, os índios encontra­
riam os seus remédios na floresta tropical, em relação à varíola,
sarampo, tuberculose, tifo, malária, alguns tipos de sífilis, escarlatina
e gripe, as comunidades indígenas não tinham nem imunidade nem
conhecimentos farmacológicos46. Consequentemente, se muitos
descimentos deixaram de se realizar porque os ameríndios tinham
contraído doenças virais e bacterianas trazidas pelos europeus,
outros efectuaram-se exactamente porque os índios tinham con­
traído essas mesmas enfermidades e não sabiam como tratá-las47.
Há que referir que os descimentos eram tão afectados pelas
doenças do Velho Continente junto das comunidades indígenas
como pelas enfermidades do Novo Mundo, que atacavam os luso-
-brasileiros e os índios que compunham as expedições luso-brasilei­
ras. Febres, sezões, diarréias e obstruções eram contraídas em alguns
rios da Amazônia, particularmente durante a época das enchentes
ou, então, devido a uma debilidade extrema causada por um trabalho
fatigante e por uma alimentação deficiente48. As suas consequências

45 Com base em documentos históricos, testemunhos arqueológicos e diagnós­


ticos feitos em comunidades ameríndias no Novo México e Arizona concluiu-se que
os habitantes do Novo Mundo sofriam de anemia, parasitas intestinais, cáries, tuber­
culose, algumas espécies de sífilis. Após os primeiros contactos, os indígenas da Amé­
rica, detentores de um sistema imunitário diferente do dos europeus, africanos e asiá­
ticos, passaram a ser afectados, nalguns casos de forma devastadora, por varíola, sarampo,
difteria, peste bubônica, tifo, cólera e escarlatina (veja-se Charles F. Merbs, «Pattems of
health and sickness in the precontact Southwest», in Columbian consecjuences. Archaeolo-
gical and Histórica! perspectives on the Spanish borderlands West, vol. I, editado por Davis
Hurst Thomas, Washington, Londres, Smithsonian Institution Press, 1989, pp. 41 e ss.)
46 Como exemplificativo desta nossa afirmação, confronte-se, para o caso Ka’a-
por, William Balée, Footprints of the forest. Ka'apor Ethnobotany. The histórica! ecology of
plant utilization by an Amazonian people: «It has been shown that a relatively smal] per-
centage of the medicines of the Ka’apor are used to resolve post-Columbian diseases.
Most are used, rather, in therapy of diseases native to Amazônia» (New York,
Columbia University, 1994, p. 113). Para uma comparação das doenças existentes e
introduzidas na bacia hidrográfica amazônica, veja-se David Graham Sweet, «The
population of the Upper Amazon Valley, 17th and 18th centuries», thesis in Master
of Arts, University of Wisconsin, pp. 43-48.
47 AHU, Rio Negro, caixa 17, doc. 6, Ofício de João Bernardes Borralho a João
Pereira Caldas, de 17 de Março de 1789; AHI, 340/04/02, doc. 45, Ofício de José
Giraldo Torres a [João Pereira Caldas], de 26 de Junho de 1787.
48 Algumas destas doenças foram descritas por Alexandre Rodrigues Ferreira,
«Enfermidades endêmicas da capitania de Mato Grosso», in Glória Marly Duarte
Nunes de Carvalho Fontes, Alexandre Rodrigues Ferreira. Aspectos da sua vida e da sua

1 47
EM C U M P R IM E N T O D O REAL SERVIÇO

nos grupos expedicionários eram, frequentemente, devastadoras49.


De entre os impedimentos criados por estas situações, cite-se o caso
dos homens da tropa do cabo-de-esquadra Raimundo Maurício, em
missão no rio Japurá. O descimento de Pexuna, Passé e Curutú ficou
comprometido porque morreu um principal e três índios e todos os
homens ficaram prostrados com uma moléstia de sezões50.
Os descimentos aumentavam os habitantes das povoações já
existentes ou davam origem a novas aldeias, sendo considerados
como um dos maiores serviços que se podiam prestar à coroa51.
Enquanto, durante as primeiras décadas da segunda metade do
século xvm, os ameríndios recém-descidos eram integrados nas
povoações já existentes, com os anos 80 parece haver alguma ma­
leabilidade por parte das autoridades luso-brasileiras no sentido de
permitir que certas etnias escolhessem os locais onde se queriam
fixar. E, assim, ao ser consultado sobre a localização do povoado
onde se ia estabelecer, o principal Ariquena pôde optar pela sua
fixação junto da embocadura do rio Cauaboris52. Também os Cure-
tús puderam escolher o seu estabelecimento sobre a cachoeira do
rio Apaporis53. E o mesmo aconteceu com os Macuxis que preferi-

obra, Manaus, Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia, 1966. É, também, o


naturalista que atribui a causa de algumas das enfermidades que afectavam os viajan­
tes a deficiências alimentares. Veja-se Alexandre Rodrigues Ferreira, Viagem filosófica
pelas capitanias do Pará, Rio Negro, Mato Grosso e Cuiabá. Memórias. Zoologia e Botânica,
Memória I, p. 16 e Memória VIII, p. 61.
49 Angela Domingues, Viagens de exploração geográfica na Amazônia em finais do
século xvui: política, ciência e aventura, Funchal, Centro de Estudos de História do Atlân­
tico, 1991, p. 45.
50 AHU, Rio Negro, caixa 15, doc. 4, Ofício de Marcelino José Cordeiro a João
Pereira Caldas, de 7 de Janeiro de 1788; ibidem, doc. 8, Ofício de João Pereira Caldas a
Marcelino José Cordeiro, de 18 de Janeiro de 1788.
51 Alvarães, Silves, Fonteboa, Olivença, Alvelos, Nogueira, Ega, Tomar, Beja,
Airão, Moreira, Poiares, Pederneira e Carvoeiro foram algumas das povoações da
capitania do Rio Negro que beneficiaram deste processo logo no início dos anos 60
(AHU, Rio Negro, caixa 1, doc. 24, Ofício de Joaquim de Melo Póvoas a Francisco
Xavier de Mendonça Furtado, de 20 de Janeiro de 1760; ibidem, caixa 6, doc. 1, Ofício
de João Pereira Caldas ao comandante da fronteira do Rio Negro, de 27 de Julho de
1781).
52 Esta opção era também vantajosa para os luso-brasileiros que, com o estabele­
cimento desta povoação, impediam o acesso dos espanhóis a território brasileiro
pelos rios Orinoco e Bacimonari (ibidem, caixa 6, doc. 1, Ofício de João Pereira Caldas
ao comandante da fronteira do Rio Negro, de 27 de Julho de 1781).
53 AHU, Rio Negro, caixa 12, doc. 6, Ofício de João Baptista Mardel a João Pereira
Caldas, de 12 de Março de 1786; ibidem, caixa 16, doc. 9, Ofício de João Pereira Cal­
das a Henrique João Wilkens, de 30 de Outubro de 1787.

148
EM C U M P R IM E N T O D O REAL SERVIÇO

ram um local próximo de um roçado fronteiro à fortaleza de S. Joa­


quim do rio Branco para fundarem a sua povoação54.
A caça e a pesca, uma das fontes de proteínas dos ameríndios da
Amazônia, era limitada quer em função da região em que os novos
núcleos se implantavam quer devido à vigilância e aos limites que as
autoridades coloniais impunham aos grupos acabados de aldear55.
Outro gênero imprescindível na alimentação tradicional amerín­
dia era a maniba ou a farinha de mandioca. No que a este produto
dizia respeito é certo que, em meados 'dos anos 50, Francisco Xavier
de Mendonça Furtado determinou a feitura de roças nos vales férteis
dos rios Branco, Negro e Solimões56. Destinavam-se à produção de
mandioca, milho, arroz e feijão para abastecimento das partidas de
demarcação e, eventualmente, às necessidades imediatas dos índios
acabados de aldear. Mas o que, de facto, se subentende do discurso
colonial da época era que as comunidades ameríndias deviam provi­
denciar o seu próprio sustento. As ferramentas dadas pelos promo­
tores dos descimentos destinavam-se, antes de mais, ao desbra-
vamento da terra e à plantação de roçados. De igual forma, na
designação dos locais de fixação, devia considerar-se a fertilidade do
solo e quer índios quer luso-brasileiros consideravam essencial que
os descimentos fossem precedidos do plantio de roças para sustento
da comunidade. Era nesse sentido que alguns principais se desloca­
vam antes dos seus dependentes: de acordo com a tradição amerín­
dia, escolhiam o sítio que daria origem ao núcleo urbano e iniciavam
a preparação dos campos para o cultivo de maniba e milho57.
Na gestão dos aldeamentos coloniais, as autoridades cedo se aper­
ceberam que os ameríndios recém-fixados tinham os seus ritmos pró-

54 João Pereira Caldas limitou-se a concordar com a escolha (AHU, Rio Negro,
caixa 15, doc. 8, Ofício de João Pereira Caldas a João Bemardes Borralho, de 19 de
Janeiro de 1788).
55 Sobre a distinção entre os rios de abundância (Japurá, Putumaio, Napo, Mara-
non, Ucayali, Madeira, Branco) e os de fome (bacia do Negro e tributários do Tapa­
jós), veja-se Betty J. Meggers, Man and culture in a counterfeit paradise, Chicago e New
York, Aldine e Atherton, 1971, pp. 12-13.
56 AHU, Pará, caixa 15 (736), Mapa das roças que por ordem de Francisco Xavier
de Mendonça Furtado se mandaram plantar, de 12 de Julho de 1755; ibidem, caixa 94
(809), Carta de Francisco Xavier de Mendonça Furtado ao ajudante Manuel Pereira de
Abreu, de 6 de Novembro de 1752.
57 AHU, Rio Negro, caixa 1, doc. 24, Ofício de Joaquim de Melo Póvoas a Fran­
cisco Xavier de Mendonça Furtado, de 20 de Janeiro de 1760; ibidem, caixa 9, doc. 1,
Ofício de Custódio de Matos Pimpim a João Baptista Mardel, de 19 de Maio de 1784;
ibidem, caixa 9, doc. 6, Ofício de João Bemardes Borralho a João Pereira Caldas, de
18 de Outubro de 1784.

149
EM C U M P R IM E N T O D O REAL SERVIÇO

prios que não se coadunavam com um trabalho regular agrícola e que


as deslocações dos principais se destinavam, em alguns casos, a avaliar
a forma como os luso-brasileiros tratavam os outros ameríndios sob
sua autoridade58. Os funcionários constatavam, também, que muitos
roçados acabados de plantar ou em vésperas de colheitas eram destruí­
dos por pragas de insectos e que as populações com fome acabavam
por regressar ao sertão. Para evitar fugas originadas pelo descontenta­
mento ou por carências alimentares, os órgãos administrativos cen­
trais das capitanias do Rio Negro e Pará propunham suprir as carências
de farinha através da sua redistribuição. Foi, assim, que Santo Antônio
de Marapi recebeu um fornecimento regular de mandioca, sobretudo
durante a pacificação e sedentarização dos Mura59; e que os aldeamen-
tos altamente instáveis do rio Branco foram abastecidos com alimen­
tos idos de Moura, Carvoeiro e de outras povoações dos rios Negro e
Amazonas60. Em finais dos anos 80, João Pereira Caldas constatava
que as povoações mais antigas e com uma colonização mais bem
implantada sustentavam os núcleos populacionais mais recentes61.
Juntamente com a farinha, a carne e o peixe, as aves, as tartaru­
gas, as frutas da terra, o milho, o feijão, o arroz selvagem, a fruta
constituíam a principal fonte de alimentação desses «inúteis come­
dores» que eram os grupos recém-aldeados62.

58 AHU, Rio Negro, caixa 15, doc. 8, Oficio de Marcelino José Cordeiro a João
Pereira Caldas, de 8 de Maio de 1787; ibidem, caixa 10, doc. 7, Ofício de João Bernar-
des Borralho a João Pereira Caldas, de 18 de Fevereiro de 1785.
59 AHU, Rio Negro, caixa 11, doc. 6, Ofício de Sebastião Pereira de Castro a João
Pereira Caldas, de 7 de Janeiro de 1786.
60 AHU, Rio Negro, caixa 10, doc. 7, Extracto de Ofício de João Bemardes Borra­
lho a João Pereira Caldas, de 18 de Fevereiro de 1785; ibidem, caixa 12, doc. 11, Ofício
de João Bemardes Borralho a João Pereira Caldas, de 27 de Junho de 1786; ibidem,
caixa 16, doc. 6, Ofício de João Bemardes Borralho a João Pereira Caldas, de 30 de
Abril de 1788.
61 AHU, Rio Negro, caixa 14, doc. 19, Ofício de João Pereira Caldas a Henrique
João Wilkens, de 31 de Agosto de 1787. Na mesma época, a fortaleza de S. Gabriel da
Cachoeira, uma das tradicionais fontes de fornecimento de alimentos às novas
povoações, diminuiu os socorros que costumava prestar a outras regiões, devido a
uma maior quantidade de índios recentemente descidos para seu redor (AHU, Rio
Negro, caixa 15, doc. 8, Ofício de Marcelino José Cordeiro a João Pereira Caldas, de
8 de Maio de 1787; ibidem, caixa 16, doc. 8, Ofício de Marcelino José Cordeiro a João
Pereira Caldas, de 10 de Maio de 1788).
62 Ibidem, caixa 14, doc. 3, Ofício de João Bemardes Borralho a João Pereira Cal­
das, de 29 de Janeiro de 1787; ibidem, Ofício de João Pereira Caldas ao comandante
da fortaleza de S. Joaquim do rio Branco, de 5 de Fevereiro de 1787; AHI, 340/04/02,
doc. 45, Ofício de João Bemardes Borralho a João Pereira Caldas, de 29 de Maio de
1787; Betty J. Meggers, Man and culture in a counterfeit paradise, p. 30.

150
EM C U M P R IM E N T O D O REAL SERVIÇO

A fixação de quantidades consideráveis de indivíduos em


povoações luso-brasileiras colocava, obviamente, sérios problemas
alimentares a serem resolvidos pelas entidades administrativas colo­
niais. Mas, antes de mais, há que referenciar que a progressão siste­
mática da colonização luso-brasileira pelos rios da bacia hidrográfica
amazônica trouxe, acima de tudo, importantes repercussões no
acesso dos ameríndios às reservas alimentares. Ao estabelecerem os
seus povoados junto dos rios e em locais férteis, os luso-brasileiros
(missionários e leigos) vedaram a muitâs etnias a utilização das suas
habituais zonas de cultivo, caça e pesca.
Ao perderem o controlo dessas áreas, as populações tinham
que se integrar voluntariamente nos novos aldeamentos ou, então,
eram obrigadas a procurar novos domínios em regiões mais afas­
tadas, menos férteis, com menores recursos, por vezes já ocupa­
das por outros grupos étnicos. Desta forma, a dificuldade na
obtenção de alimentos e a sua distribuição controlada pelos luso-
-brasileiros, a par da oferta de instrumentos de ferro, constituíam
um atractivo e, por vezes, um imperativo, à subsistência da comu­
nidade. Assim se explica em muito os actos voluntários de aldea-
mento, consequência não só do aumento de conflitos interétnicos
ou das doenças como também da incapacidade de se alimen­
tarem.

A a p lic a ç ã o d o D ir e c tó r io e a d in â m ic a
de p o d e r e s

A lógica política subjacente ao Directório consistiu, fundamental­


mente na separação de esferas de poder. A direcção dos índios
cabia, agora, a directores e missionários, cumprindo aos primeiros a
gestão dos povoados e aos últimos a assistência espiritual, mas
devendo os dois colaborar para o bem comum dos índios e para a
sua educação.
O processo originado pela expulsão dos Jesuítas e pela laiciza-
ção das missões foi uniforme em toda a bacia hidrográfica amazô­
nica, primando por uma coesão política e ideológica. Contraria­
mente ao que aconteceu nos territórios vizinhos da Colômbia, em
que as províncias de Riohacha e Darién ficaram na dependência de
militares representantes da autoridade do vice-rei e os Llanos sob
administração de dominicanos, capuchos, franciscanos e recolectos,
recuperados da crise subsequente à expulsão da Companhia, a

151
EM C U M P R IM E N T O D O REAL SERVIÇO

Amazônia contrastou por uma uniformidade de soluções regula­


mentadas no Directório63.
Na sua vontade de modelar o espaço e os seus habitantes à
semelhança do reino, os luso-brasileiros atribuíram aos aldeamentos
formados por índios da bacia hidrográfica amazônica as categorias
de aldeias e de vilas. A sua administração consistia num compro­
misso entre formas de governo familiares e soluções específicas
adaptadas à nova realidade. Desta forma, a civilização europeia sur­
gia no discurso colonial como um paradigma que se queria aplicar,
mas com concessões e ajustamentos. A interacção promovida pelos
contactos entre entidades colonizadoras e sociedades ameríndias
desembocou em soluções que, tendo o propósito de transformar as
outras culturas, provocou, como efeito de retorno, a transformação
da própria sociedade colonial. Ou, tal como Weber e Rausch consta­
taram não só para a América Latina como para qualquer outra zona
de fronteira, as experiências nas fronteiras modificavam os europeus
e as suas instituições64.
É assim que reparamos na existência de câmaras e entidades
eclesiásticas a exercerem funções juntamente com directores e prin­
cipais na gestão local dos núcleos populacionais da Amazônia da
segunda metade do século x v iii . Assiste-se, consequentemente, à
interligação de formas multisseculares de poder, transpostas do
reino, com soluções novas, especificamente criadas para o território
luso-brasileiro. Era, assim, que o exercício do poder administrante
se encontrava repartido entre as entidades camarárias, o director e o
pároco, no caso das vilas, e entre o director e o padre, no caso das
aldeias e lugares.
No seu estudo sobre os municípios e o poder local, Nuno Gon-
çalo Monteiro afirma de forma segura que, no reino e até à criação
das freguesias civis em 1836, a administração central da coroa não
tutelava directamente nenhum corpo político local abaixo das câma­
ras65. A questão que, a esta altura, entendemos ser pertinente colo­
car consiste no seguinte: será que, com a criação de directores, a
coroa não intentou, possivelmente numa experiência que seria pio-

63 Sobre a Colômbia, veja-se Jane M. Rausch, A tropical Plains frontier. The llanos of
Columbia, p. 107.
64 David J. Weber e Jane M. Rausch, Where cultures meet. Frontiers in Latin American
History, p . XVII.
65 Nuno Gonçalo Monteiro, «A sociedade local e os seus protagonistas», in Histó­
ria dos municípios e do poder local (dos finais da Idade Média à União Europeia), dirigida
por César de Oliveira, Lisboa, Círculo de Leitores, 1996, p. 45.

152
EM C U M P R IM E N T O DO REAL SERVIÇO

neira no universo territorial português, instituir uma entidade admi­


nistrativa local directamente dependente de si e, desta forma, proce­
der à instrumentalização do poder político local?
Um dos dados a considerar na avaliação da hipótese consiste no
facto de a nomeação do director depender directamente do repre­
sentante do poder soberano de Sua Majestade Fidelíssima naquele
território colonial: o governador e capitão-general da capitania66.
De igual forma, a atribuição de competências claramente explí­
citas no Directório fazia com que os directores fossem os executores
da política colonial luso-brasileira junto das populações locais. A sua
actividade regulava-se quer pela legislação quer pelas ordens que
recebiam directamente do governador e capitão-general da capitania
ou, indirectamente, por via dos comandantes das fortificações e das
regiões, dos ouvidores e dos intendentes67. Constituíam, consequen­
temente, a base de uma estrutura hierárquica de poder que tinha no
outro extremo a figura do soberano. Dessa cadeia eram, junto da
população, a face visível, ocasionalmente alterada pelas curtas visi­
tas de governadores, ouvidores, corregedores ou outros funcionários
régios em viagem.
Sobre a gestão que os directores faziam das povoações e as
infracções que cometiam, importa referir que às instruções explicita­
das no Directório, outras se juntaram sob a forma de regulamentos,
declarações, circulares ou bandos. O seu propósito era complemen­
tar ou clarificar o corpo legislativo de 1757 e incidiam particular­
mente sobre a organização fiscal e a dinamização econômica da
povoação68. A forma como os dízimos deviam ser cobrados, o seu
registo e participação às entidades administrativas centrais, a
cobrança da percentagem devida a directores e outras entidades, o
envio de canoas para recolha de drogas do sertão e a inspecção que,
localmente, se devia fazer aos indivíduos envolvidos e produtos

66Directório, § 1; era, também, da competência do governador mudar os directores


de lugar quando surgiam, entre estes e os moradores ou com os padres, dissenções que
o justificassem (AHU, Rio Negro, caixa 1, doc. 24, Ofício de Joaquim de Melo e Póvoas
a Francisco Xavier de Mendonça Furtado, de 16 de Janeiro de 1760).
67 Este facto justifica-se, em parte, por alguns dos designados na administração
das aldeias e vilas serem soldados e estarem dependentes de superiores hierárquicos
militares. Os centros difusores de ordens coincidiam com os centros de comando mili­
tar e eram, em primeiro lugar, as capitais das duas capitanias e, na capitania do Rio
Negro, as fortalezas dos rios Branco e Negro e as vilas de Tefé ou Ega e Tabatinga.
68 AHU, Pará, caixa 22 (742), Declaração de termos em aditamento ao Directório,
feita pelo bispo D. Frei Miguel de Bulhões, Manuel Bernardo de Melo e Castro e Luís
Gomes de Faria e Sousa, de 31 de Agosto de 1760.

153
EM C U M P R IM E N T O D O REAL SERVIÇO

recolhidos, a especificação do papel do tesoureiro e do procurador


dos índios foram alguns dos assuntos contemplados com maior por­
menor69. Era, então, este conjunto normativo, constantemente aper­
feiçoado e especializado, que regulava a actuação dos directores nas
vilas e aldeias luso-brasileiras da Amazônia. Procurava, igualmente,
proteger os índios de exacções e reservar para a coroa uma interve-
niência significativa ao definir as competências dos aparelhos gover­
nativo, judicial e fiscal.
Os directores, juntamente com os principais, surgiam ligados à
escolha da terra da comunidade, sobretudo quando, por motivos de
insalubridade ou infertilidade do solo, havia que mudar a localiza­
ção dos povoados. Foi o que ocorreu, por exemplo, com Serpa e
Fonteboa em finais dos anos 50 e com a nova povoação dos Mura,
já em finais dos anos 8070. Depois, deviam promover o desenvolvi­
mento agrícola e econômico da povoação; introduzir entre a popula­
ção indígena «elementos visíveis» de civilidade expressos, por exem­
plo, na utilização de vestuário; pagar os salários devidos aos
trabalhadores ameríndios; procurar mestre para ensinar as crianças e
estabelecer cirurgião para curar os índios; providenciar a recolha do
dízimo; promover os descimentos; distribuir as ferramentas neces­
sárias para a agricultura e as manufacturas da vila; distribuir gado
vacum ou outro tipo de animais domésticos; fazer ou conservar
as dependências camarárias e as casas dos índios; capinar e limpar

69 Ibidem; caixa 22 (742), Circular do dezembargador intendente-geral, Luís


Gomes de Faria e Sousa, a todos os directores das povoações, de cerca 17 de Novem­
bro de 1761; BNRJ, 7-4-75, Cópia da carta instrutiva que se escreveu aos directores da
capitania do Rio Negro no ano de 1769, enviada por Fernando da Costa de Ataíde
Teive, de 3 de Outubro de 1769; 1HGB, lata 283, pasta 10, Ofício de Fernando da Costa
de Ataíde Teive a Pedro Maciel Parente, director de Santarém, sobre a forma como tra­
tar e comerciar com os índios e fazer pagamentos, de 3 de Outubro de 1769; APEP,
cód. 106, doc. 9, Ofício de Filipe Serrão de Castro ao governador do Estado sobre a
recepção do novo apendix do Direciono, de 23 de Julho de 1770; IHGB, lata 107,
doc. 12, Instruções que regulam o método pelo qual os directores das povoações de
índios das capitanias e Estado do Pará se devem conduzir no modo de fazerem a
sementeira e plantação do comum nas povoações que lhe estão destinadas, de 28 de
Junho de 1776 (também em AHU, Pará, caixa 17 (733)).
70 AHU, Pará, caixa 18 (739 F), Ofício de Francisco Xavier de Mendonça Furtado
a Tomé Joaquim da Costa Corte Real, de 4 de Julho de 1758; AHU, Rio Negro, caixa 1,
doc. 24, Ofício de Joaquim de Melo Póvoas a Francisco Xavier de Mendonça Furtado,
de 16 de Janeiro de 1760; quanto à povoação Mura, recomendava-se ao director de
Borba que confirmasse se as terras escolhidas eram boas, livres de inundações e isen­
tas dos ataques de formigas (AHU, Rio Negro, caixa 16, doc. 7, Ofício de João Pereira
Caldas para o comandante do registo de Borba, de 29 de Maio de 1788).

154
EM C U M P R IM E N T O D O REAL SERVIÇO

as ruas; apresentar anualmente mapas demográficos71. Estavam-lhes


vedados os negócios por conta própria, desde o comércio de bebi­
das alcoólicas até ao envio de índios para recolherem drogas do ser­
tão72. Estas eram as condições que faziam dos directores «funcioná­
rios competentes», agora considerados como os protagonistas de
uma «situação de compromisso» entre a observância das directrizes
do poder central e a boa administração da comunidade.
Como exemplo de alguém que era considerado pela administração
central como bom director apontamds José de Anveres, que foi ocu­
pando sucessivamente a directoria de Sintra, Oeiras, Melgaço e Portei73
e Francisco Roberto Pimentel, director de Santa Ana do Macapá74.
No entanto, a boa execução das ordens e a administração recta da
população eram coisas que, frequentemente, não aconteciam na Ama­
zônia no período em análise. Tal como apontou Colin MacLachlan, a
fraca qualidade dos directores perverteu e corrompeu todo o princípio
da tutoria inerente ao Directório75. Com uma deficiente preparação
para o exercício do cargo e procurando obter um certo desafogo eco­
nômico pela administração de um povoado perdido nos confins do
sertão amazônico, os directores eram, na maior parte dos casos,
filhos-da-terra, soldados ou protegidos de altas individualidades76.

71 AHU, Pará, caixa 22 (742), Ofício de Feliciano Ramos Nobre Mourão sobre os
serviços do director de Vila Nova dei Rei, Manuel da Silva Alves, de 27 de Novembro
de 1761; APEP, códice 108, doc. 64, Certidão dos oficiais da câmara de Melgaço ates­
tando o desempenho das funções por parte do director Estolano Manuel Pereira de
Sousa Feio, de 25 de Junho de 1770; cód. 108, doc. 69, Ofício de Francisco Pimentel,
director da vila de Santa Ana de Mutuacá, de 6 de Agosto de 1770; códice 107, Certi­
dão de frei José Mendes Loureiro atestando o cumprimento de funções do director
Jacinto da Cunha Sampaio, de 29 de Agosto de 1770; cód. 106, Levantamento demo­
gráfico da população indígena de uma povoação cujo director era Francisco Xavier de
Morais, [1770].
72 AHU, Rio Negro, caixa 1, doc. 47 A, Representação dos moradores das novas
povoações do Rio Negro a Francisco Xavier de Mendonça Furtado, de 8 de Julho de 1766.
73Ao invés, o seu filho, nomeado director de Melgaço quando Anvers foi transferido
para Portei, era considerado como incapaz: «tendo hum genio brando não desempenhava
as suas obrigações» (AHU, Pará, caixa 95 (810), Ofício de Martinho de Sousa e Albuquer­
que à soberana sobre acusações que lhe tinham sido feitas, de 26 de Julho de 1786).
74 AHU, Pará, caixa 24 (739 D), Ofício de Luís Gomes de Faria e Sousa a Fran­
cisco Xavier de Mendonça Furtado, de 15 de Setembro de 1762.
75 Colin MacLachlan, «The Indian Directorate: forced acculturation in Portu-
guese America (1757-1799)», in The Américas, vol. xxviu (4), Abril de 1972, p. 370.
76 AHU, Pará, caixa 33 (748), Memória das acções do Ex.m° Senhor General do
Pará Fernando da Costa de Ataíde Teive, as quais se vêem declaradas nos seguintes
capítulos repartidos e seguindo os três Estados Político, Militar e Eclesiástico, por
João Baptista Mardel, de 6 de Novembro de 1772.

155
EM C U M P R IM E N T O D O REAL SERVIÇO

O estado de decadência e o abandono das povoações eram, fre­


quentemente, atribuídos à má gestão ou às exacções dos directores,
acusados de maltratarem os índios, de os explorarem e enganarem e
de porem os seus interesses pessoais à frente da felicidade e do bem
comum da comunidade77. Assim, em 1760, o director de Alvelos era
responsabilizado pela miséria e pela fome que assolavam a região,
porque não mandava roçar nem plantar as terras da povoação, e o
director de Soure era culpabilizado por perder a melhor olaria de
todo o Estado78. Em devassa instaurada pelo ouvidor, apurava-se que
o director de Fonte Boa não pagava os salários devidos aos índios
repartidos79. De igual forma, Luís da Cunha de Eça e Castro, director
de Borba, era acusado de obrigar os índios a trabalhar nas suas roças
sem lhes pagar ordenado, de os espancar e maltratar80. Também José
de Sousa Monteiro, director de Cametá, procurava livrar-se às acusa­
ções de comerciar e vender aguardente aos índios81. Os oficiais da
câmara de Sintra queixavam-se das ofensas feitas pelo director da vila
que os tinha insultado e ameaçado quando estavam a ouvir missa82.
Por seu turno, João Pinheiro Amorim, director de Tomar, foi enviado
preso para Belém, acusado de ter roubado a povoação em 100$000
réis83 e Eugênio Alvares da Câmara, director de Sousel, era culpado

77 Esta decadência, que era quase uma constante em todo o Estado do Grão-
-Pará, era também atribuída à falta de dinheiro e à constante requisição de índios
adultos para os serviços real e particular (AHU, Pará, caixa 22 (742), Ordem do gover­
nador do Rio Negro aos directores das povoações da capitania, de 25 de Janeiro de
1790; AHU, Pará, caixa 79 (794), Parecer de frei Caetano Brandão à representação do
índio Diogo de Sousa, 1 de Agosto de 1787). Martinho de Melo e Castro afirmava a
D. Francisco de Sousa Coutinho que era voz corrente que o que era ganho pelos
índios se convertia em benefício e utilidade dos directores (AHU, Pará, caixa 22 (742),
de 22 de Abril de 1790.
78 AHU, Rio Negro, caixa 1, doc. 24, Ofício de Joaquim de Melo e Póvoas a
Francisco Xavier de Mendonça Furtado, de 16 de Janeiro de 1760; Pará, caixa 22
(742), Extracto dos ofícios de Luís Gomes de Faria e Sousa, de 13 de Novembro
de 1761.
79 ANRJ, códice 99, vol. 1, fl. 60, Ofício de Fernando da Costa de Ataíde Teive
ao ouvidor-geral da capitania do Rio Negro, de 1 de Setembro de 1765.
80 AHU, Pará, caixa 29 (745), Representação dos moradores e principais de
Borba sobre os maus tratos que lhes dava o alferes Luís da Cunha de Eça e Castro,
s/d [ant. a 1769],
81 APEP, códice 103, Representação de José de Sousa Monteiro, de 18 de Maio
de 1770.
82 APEP, códice 101, doc. 37, Representação do senado da câmara da vila de Sin­
tra ao governador da capitania, de 1 de Março de 1773.
83 AHU, Rio Negro, caixa 1, doc. 47 A, Representação dos moradores das novas
povoações do Rio Negro a Francisco Xavier de Mendonça Furtado, de 8 de Julho de 1766.

156
EM C U M P R IM E N T O D O REAL SERVIÇO

de receber sextos dos negócios do sertão e da farinha da roça do


comum que os índios levavam na mesma ocasião84.
No seu propósito de fiscalizar os directores, o poder central
socorria-se, obviamente, das queixas, petições e representações que
lhe eram endereçadas, bem como das atestações passadas pelo vigá­
rio e pelo senado da câmara das povoações85. No entanto, utilizava,
fundamentalmente, entidades e métodos já criados no reino e trans­
plantados, em primeiro lugar, para as ilhas atlânticas e, mais tarde,
para o Brasil, com o propósito de examinar a actuação de todos os
funcionários reais. Dessa forma, a actividade dos directores era devas­
sada pelos corregedores, ouvidores e intendentes-gerais. Estes tanto
podiam inquirir indivíduos ou casos específicos como desempenhar a
sua função sobre todos os directores das povoações luso-brasileiras86.
Por aditamento ao Directório, feito em 1760, ficou determinado que os
delitos crime perpetrados pelos directores ficariam sob a alçada do
corregedor da comarca, enquanto os casos econômicos e fiscais per­
tenceríam à jurisdição do intendente-geral do Estado87. As devassas
deviam ser sentenciadas na Junta das Justiças do Estado e os réus
punidos como desencaminhadores da Fazenda Real88.

84 ANRJ, cód. 99, vol. 2, fls. 27-28, Ofício de Fernando da Costa de Ataíde Teive
a Francisco Xavier de Mendonça Furtado, de 30 de Junho de 1768.
85 Sobre as petições, queixas e reclamações como forma de resistência das
comunidades luso-brasileiras na Amazônia, veja-se capítulo v «Formas de resistência:
uma reavaliação das relações entre “dominantes” e “dominados”».
86 AN/I 1, Manuscritos do Brasil, n.° 51, £1. 26v, Ofício de Francisco Xavier de
Mendonça Furtado a Manuel Bernardo de Melo e Castro ordenando ao intendente-
-geral que procedesse contra os directores, de 18 de Junho de 1760; ibidem, fl. 115v,
Carta régia a Manuel Bernardo de Melo e Castro sobre as desordens dos directores
das povoações, de 23 de Dezembro de 1762; AHU, Pará, caixa 24 (739 D), Devassa
instaurada pelo desembargador e intendente-geral do Grão-Pará a cada director das
povoações da comarca, de 1762; IHGB, lata 280, pasta 10, n.° 6, Ofício de João
Pereira Caldas a Francisco Xavier Ribeiro de Sampaio sobre as competências do ouvi­
dor e sobre a sua viagem, de 28 de Abril de 1777; AHU, Rio Negro, caixa 18, doc. 6,
Certidão de Domingos Franco de Carvalho, José Antônio Freire Évora e Francisco
Xavier de Morais atestando o desempenho de João Manuel Rodrigues, ouvidor,
intendente e corregedor da comarca, de 16 de Agosto de 1786.
87 AHU, Pará, caixa 22 (742) Declaração em termos de aditamento ao Directório
feita pelo bispo D. Frei Miguel de Bulhões, Manuel Bernardo de Melo e Castro e Luís
Gomes de Faria e Sousa, de 31 de Agosto de 1760.
88 A N /1 1, Manuscritos do Brasil, n.° 51, fl. 115v, Carta régia a Manuel Bernardo
de Melo e Castro, de 23 de Dezembro de 1762; AHU, Pará, caixa 74 (789), Ofício
de João de Amorim Pereira, de 18 de Junho de 1764. Por esta altura, surgiu um pro­
blema de competências entre o intendente-geral e o ouvidor: o primeiro queria
processar, propor e ser juiz relator dos crimes dos directores, enquanto o segundo
pretendia limitar ao intendente as matérias políticas e econômicas e reservar-se os

157
EM C U M P R IM E N T O D O REAL SERVIÇO

Assim, Francisco Xavier Ribeiro de Sampaio empreendeu pelo Rio


Negro uma viagem entre 1774 a 1775 no sentido de corrigir a actuação
de directores e vigiar e punir possíveis descaminhos. Luís Gomes de
Faria e Sousa, intendente-geral, vigiava, em 1761, infracções cometi­
das em relação às canoas do negócio do sertão ou, mais especifica­
mente, o comércio particular que directores faziam, aproveitando-se
da ignorância ameríndia em relação a medidas ou a preços89. Também
o ouvidor-geral da capitania apurava que o director de Fonte Boa era
culpado de não pagar os salários devidos aos ameríndios90.
O processo de formação de concelhos estava, no Norte brasileiro da
segunda metade do século xvili, intrinsecamente relacionado com as
viagens dos governadores e capitães-generais91. Foi, sobretudo, Fran­
cisco Xavier de Mendonça Furtado quem reconverteu grande parte das
missões da Companhia, de Santo Antônio, da Piedade e da Conceição,
em vilas e aldeias, nomeando-as com as designações de outras povoa-
ções no reino, procedendo ao levantamento dos pelourinhos e supervi­
sionando a eleições das justiças camarárias92. Os governadores subse­
quentes continuaram esta acção, quando impulsionavam a criação de
novas povoações e quando promoviam particularmente o desenvolvi-

assuntos de natureza criminal (AHU, Conselho Ultramarino, cód. 272, fl. 149v, Carta
régia ao ouvidor-geral do Pará ordenando se cumprisse o que as ordens reais determi­
navam, de 14 de Dezembro de 1764). A partir da década de 80 estes cargos foram
fundidos num só indivíduo.
89AHU, Pará, caixa 22 (742), Oficio do desembargador intendente-geral Luís Gomes
de Faria e Sousa a Francisco Xavier de Mendonça Furtado, de 3 de Agosto de 1761; ihidem,
de 17 de Novembro de 1761; ihidem, de 18 de Novembro de 1761.
90 ANRJ, cód. 99, vol. 1, fl. 60, Ofício de Fernando da Costa de Ataíde Teive ao
ouvidor-geral da capitania, de 1 de Setembro de 1765.
91 Sobre o funcionamento dos concelhos no reino, consulte-se Nuno Gonçalo Mon­
teiro, «A sociedade local e os seus protagonistas», pp. 29 e ss.; sobre o seu funcionamento
no Brasil, veja-se Joaquim Romero Magalhães, «Reflexões sobre a estrutura municipal
portuguesa e a sociedade colonial brasileira», in Revista de História Econômica e Social, 16,
Julho-Dezembro de 1985, p. 17. Para uma comparação com os municípios nas ilhas
atlânticas, veja-se, por exemplo, Avelino de Freitas de Meneses, Os Açores nas encruzilha­
das de Setecentos (1740-1770), Ponta Delgada, Universidade dos Açores, 1993, pp. 75 e ss.
92 AHU, Pará, caixa 18 (739 F), Ofício de Francisco Xavier de Mendonça Furtado a
Tomé Joaquim da Costa Corte-Real, de 4 de Julho de 1758. Nesta viagem do Pará para
o Rio Negro, o governador procedeu à instalação de Oeiras (Araticú), Melgaço (Guari-
curú), Portei (Arucará), S. José do Macapá, Santa Ana, Arraiolos (Guarimocú), Espo-
sende (Juaré), Almeirim (Parú), Vale de Fonte (Acarapy), Outeiro (Urubucuara), Monta-
legre (Gurupatuba), Alter-do-Chão (Borary), Vila Boim (Santo Inácio), Pinhel (S. José),
Tapajós (Santarém), Vila Franca (Cumaru), Óbidos (Pauxís), Serpa (Abacaxis); ihidem,
caixa 21 (739 I), Ofício de Manuel Bernardo de Melo e Castro a Francisco Xavier de
Mendonça Furtado, de 23 de Abril de 1761; Pará, caixa 34, Ofício de João Pereira Cal­
das a Martinho de Melo e Castro, de 8 de Novembro de 1773.

158
EM C U M P R IM E N T O D O REAL SERVIÇO

mento das vilas que estavam no litoral ou próximo da fronteira com ter­
ritórios coloniais de potências concorrentes93. Este era o caso de Macapá
e Mazagão, onde as câmaras, compostas na sua maioria por emigrantes
do reino e ilhas, intervieram activamente na gestão dos povoados94.
A eleição de juizes ordinários, vereadores, procurador e tesou­
reiro era feita de entre os moradores do concelho. Designavam-se,
igualmente, indivíduos para desempenhar as funções de almotacés,
meirinhos e escrivães. Ora, na medida em que as leis régias aboliam as
distinções entre súbditos, o monarca habilitava os ameríndios a con­
correrem a cargos camarários, tal como quaisquer outros moradores.
Era assim que membros da elite indígena participavam activamente
do senado camarário e, ainda, em cargos subalternos95. De facto, as
entidades administrativas centrais não cessavam de lembrar que os
juizes e vereadores ameríndios, tal como os europeus, «tinham jurisdi­
ção e superioridade sobre todos os ditos moradores para lhes adminis­
trarem justissa e os prenderem quando delenquicem»96.
Contudo, um dos problemas que obstava a esta escolha residia
na falta de homens aptos e «dignos» para ocupar postos no senado ou
os cargos de apoio que facilitavam o funcionamento da câmara e exe­
cutavam as suas ordens. Se, em 1761, o ouvidor Feliciano Ramos
Nobre Mourão pode nomear dois homens inteligentes por escrivães

93 AHU, Rio Negro, caixa 1, doc. 24, Ofício de Joaquim de Melo Póvoas a Tomé
Joaquim Corte-Real, de 20 de Janeiro de 1760; ANRJ, cód. 99, vol. 1, fl. 52, Ofício de
Fernando da Costa de Ataíde Teive a Francisco Xavier de Mendonça Furtado, de 16
de Outubro de 1766; AHU, Pará, caixa 34, Ofício de João Pereira Caldas a Martinho
de Melo e Castro, de 8 de Novembro de 1773.
94AHU, Pará, caixa 21 (739 I), Ofício de Manuel Bernardo de Melo e Castro a Fran­
cisco Xavier de Mendonça Furtado, de 28 de Abril de 1761; ihidem, de 6 de Maio de 1761;
ihidem, Diário da viagem que fez Manuel Bernardo de Melo e Castro da autoria do ouvi­
dor-geral Feliciano Ramos Nobre Mourão, de 28 de Junho de 1761; ihidem, caixa 34, Ofí­
cio de João Pereira Caldas a Martinho de Melo e Castro, de 8 de Novembro de 1773.
95 Veja-se, por exemplo, APEP, cód. 116, doc. 58, Ofício do comandante director
Antônio José de Aguiar a Fernando da Costa de Ataíde Teive, de 19 de Abril de 1771;
cód. 101, doc. 37, Representação do senado de Sintra ao governador da capitania, de 1
de Março de 1773; repare-se que, do outro lado do Império Português, a participação
de macaenses no Senado da província só ocorreu em 1774 (Maria de Jesus dos Mártires
Lopes, «Mendicidade e “maus costumes’ em Macau e Goa na segunda metade do
século xvill», in As relações entre a índia Portuguesa, a Ásia do Sueste e o Extremo Oriente,
Actas do VI Seminário Internacional de História Indo-Portuguesa, edição dirigida por Artur
Teodoro de Matos e Luís Filipe F. Reis Thomaz, Lisboa, Macau, 1993, Comissão Nacio­
nal para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses, Fundação Oriente, p. 67).
96 AHU, Pará, caixa 21 (739 I), Diário da viagem que fez Manuel Bernardo de
Melo e Castro feito pelo ouvidor-geral Feliciano Ramos Nobre Mourão, de 28 de
Junho de 1761.

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EM C U M P R IM E N T O D O REAL SERVIÇO

nas vilas de Melgaço e Portei, os quais eram, aliás, imprescindíveis à


administração da justiça e às vereações camarárias, em outras vilas
não havia indivíduos hábeis para ocupar esses cargos97. Em 1770,
queixava-se o director de Bragança que o lugar de meirinho era ocupa­
do por um índio que incitava os seus companheiros a rebelarem-se
contra as ordens de Joaquim Bettencourt; era, no entanto, a escolha
possível «por não haver official nenhum nesta Povoação mais que o
Principal, homem de oitenta e tantos annos, pois não tenho quem me
ajude a dar execussão as ordens de V.a Ex.a»989. Na mesma data, quei­
xava-se o director de Pombal que o cargo de escrivão estava vago por
não ter ninguém que o ocupasse depois da demissão do mestre-
-escola". De igual forma, a câmara de Santarém queixava-se por con­
siderar que o cargo de vereador era indignamente desempenhado por
Carlos Pereira da Costa, oficial de ourives, homem insuficiente por
«incapacidade de viver e procedimento» e por ter sido expulso da vizi­
nhança, acusado de «difamador de casas e honras». Gritava como pre-
goeiro, em fralda de camisa, com calções compridos e trato vil, mos­
trando pelo seu comportamento a sua origem na vil servidão100.
Já nos inícios do centénio seguinte, se continuava a reconhecer
que a inoperância do funcionamento camarário era devida à falta de
preparação dos seus membros. Dizia Tristão da Cunha de Meneses
que a maior parte dos juizes ordinários era iletrada e que se apro­
priavam do cargo para beneficiar pessoalmente do seu exercício101.
A mesma opinião era emitida pelo conde de Arcos102.

97 AHU, Pará, caixa 22 (742), Ofício de Feliciano Ramos Nobre Mourão a Fran­
cisco Xavier de Mendonça Furtado, de 28 de Junho de 1761.
98 APEP, códice 107, doc. 38, Ofício de Joaquim José Pereira Bettencourt ao
governador do Pará, de 28 de Outubro de 1770.
99 Este fora demitido em acto de câmara devido a comportamento ilícito com
uma mulher casada (APEP, cód. 108, doc. 7, Ofício de José Lucas Espinosa de Brito
Coelho Folqman ao governador da capitania, de 7 de Agosto de 1770).
100 APEP, códice 101, doc. 62, Representação da câmara de Santarém a João
Pereira Caldas, de 6 de Abril de 1774.
101 AHU, Pará, caixa 50 A (760), Ofício de Tristão da Cunha de Meneses a
D. Francisco de Sousa Coutinho, de 20 de Maio de 1799. Quando comparada com o
quadro existente no reino, a situação constatada no Norte brasileiro não era assim
tão diferente. É Nuno Gonçalo Monteiro quem afirma que ainda nos anos 20 do
século xix, entre um terço e um quarto das câmaras de Portugal tinha vereadores ou
procuradores que assinavam «de cruz» («O espaço político e o social local», in História
dos municípios e do poder local (dos finais da Idade Média à União Européia, p. 123).
102 Ibidem, caixa 53 (768), Ofício do Conde de Arcos ao Visconde de Anadia,
de 1804; Rio Negro, caixa 19, doc. 52, Parecer do Conde de Arcos sobre o alvará régio
de 17 de Dezembro de 1802, de 12 de Fevereiro de 1805.

160
EM C U M P R IM E N T O D O REAL SER V IÇ O

Era, possivelmente, esta falta de homens dignos e competentes


que fazia com que as directorias das vilas se acumulassem com o
exercício de cargos camarários, apesar de legalmente se determinar
que os dois cargos não podiam ser cumulativos103. Era, por exemplo,
o caso de Estolano Manuel Pereira de Sousa Feio que era director e
juiz ordinário de Melgaço104.
Na tentativa de estabelecer formas de exercício de justiça e
regular as relações interpessoais, de administrar os bens camarários
e regulamentar as actividades econômicas, os membros eleitos dos
concelhos reuniam-se em câmara, elaboravam posturas e dirigiam
representações aos governadores. Assim, a câmara de Pombal pro­
nunciava-se pela exoneração do escrivão camarário105; a de Nazaré
suplicava a construção de uma canoa e de uma rede de pesca para
melhorar a vida da população da vila106; as de Macapá e Madre de
Deus pediam a fixação dos termos das respectivas vilas107. Em al­
guns casos, auxiliavam o ouvidor-geral a escolher o tesoureiro e
depositário do cofre dos órfãos108; nomeavam, ainda, os cabos-de-
-canoa que deviam supervisionar o negócio do sertão feito pelas
povoações109. Em acordo com o director e a população, deviam esti­
pular as taxas sobre os gêneros comestíveis e as obras dos oficiais
mecânicos. Cumpria-lhes, igualmente, definir o traçado urbanístico
das povoações, repartir os terrenos pelos moradores e vigiar a cons­
trução das casas de morada e edifícios públicos110.

103 AHU, Rio Negro, caixa 1, doc. 47 A, Representação dos moradores das novas
povoações do Rio Negro a Francisco Xavier de Mendonça Furtado, de 8 de Julho de
1766.
104 APEP, cód. 108, doc. 64, Certidão do senado da câmara de Melgaço sobre o
desempenho de Estolano Manuel Pereira de Sousa Feio como director da vila, de 25
de Junho de 1770.
105 APEP, cód. 108, doc. 7, Ofício de Lucas José Espinosa de Brito Coelho Folq-
man, de 7 de Agosto de 1770.
io« APgp^ có,J 101, doc. 24, Representação do Senado de Nazaré a Fernando da
Costa de Ataíde Teive, de 25 de Abril de 1771.
107 Diziam haver bulhas e pancadas entre os moradores das duas povoações por
causa da recolha de drogas do sertão (APEP, cód. 101, doc. 17, Representação do
Senado de Macapá a Fernando da Costa de Ataíde Teive, de 26 de Junho de 1771).
108 AHU, Pará, caixa 22 (742), Ofício de Feliciano Ramos Nobre Mourão a Fran­
cisco Xavier de Mendonça Furtado, de 28 de Junho de 1761.
m ANRJ, cód. 99, vol. 1, fl. 58, Ofício de Fernando da Costa de Ataíde Teive ao
ouvidor-geral da capitania do Rio Negro, de 2 de Janeiro de 1765.
110 AHU, Pará, caixa 24 (739 D), Ofício de Manuel Bernardo de Melo e Castro
ao desembargador-geral da comarca, de 25 de Janeiro de 1762; ibidem, caixa 25
(739 J), Ofício de Manuel Bernardo de Melo e Castro ao desembargador intendente-
-geral, de 16 de Agosto de 1763.

161
EM C U M P R IM E N T O D O REAL SERVIÇO

Como seria de prever, nas vilas das duas capitanias que consti­
tuíam o Norte do Brasil ocorreram dissensões entre os directores e
as câmaras. Era, assim, que o director de Ega era acusado de oprimir
os oficiais da câmara da vila111. De igual modo, o senado de Sintra
queixava-se da conduta despótica e indigna do director112.
Portanto, na administração dos núcleos urbanos do Norte do
Brasil ao longo da segunda metade do século xv iii, as alterações
ultrapassaram a reformulação e adaptação de instituições multisse-
culares às peculiaridades locais. Transpuseram até a integração de
novos estratos étnicos nas cadeias de poder. Nos aldeamentos luso-
-brasileiros da Amazônia de meados de Setecentos ocorreram, tam­
bém, alterações nas relações entre instituições tal como tinham sido
definidas pelo Directório, afinal o regulamento especificamente desti­
nado à gestão do espaço do Norte brasileiro com vista a limitar o
poder dos missionários e a permitir um maior controlo da vida quo­
tidiana das comunidades e das entidades administrativas por parte
das instituições centrais.
Como já se referiu, pelas reformas políticas aplicadas a partir de
Mendonça Furtado pretendeu-se separar as duas esferas de poder,
até então nas mãos dos missionários das diferentes ordens religio­
sas113. Devido ao reduzido número de seculares que existia no
Estado do Pará, que oficiavam, sobretudo, nos núcleos urbanos mais
importantes e nas fazendas de moradores abastados, os eclesiásticos
pertencentes às diferentes ordens tiveram uma importância conside­
rável na assistência religiosa das populações, na missionação dos
ameríndios e no ensino das crianças. Deles se socorria a coroa para
assegurar a manutenção do culto nas áreas mais afastadas do territó­
rio amazônico e para converter e administrar os índios recém-aldea-
dos nos limites do Brasil colonial sem aumento significativo das des-

111 ANRJ, cód. 99, vol. 1, fl. 61, Ofício de Fernando Costa de Ataíde Teive ao
ouvidor- geral do Rio Negro, de 2 de Setembro de 1765.
112 APEP, cód. 101, doc. 37, Representação do senado da vila de Sintra a João
Pereira Caldas, de 1 de Março de 1773. Não foi, no entanto, detectada nenhuma
queixa de directores sobre agressões perpetradas por membros da câmara.
113 É Hugo Fragoso quem afirma que «é de modo especial na legislação sobre as
missões que pode bem perceber-se como evangelização e colonização não eram duas
actividades paralelas, mas se interpenetravam de tal modo que era difícil estabelecer
uma linha divisória entre ambas» (Hugo Fragoso, «A era missionária (1686-1759)», in
História da Igreja na Amazônia, coordenação de Eduardo Hoonaert, Petrópolis, Edito­
rial Vozes, 1992, p. 167). No período de que nos ocupamos, a administração e a legis­
lação eram, juridicamente, duas fases distintas de um mesmo processo de aculturação
que pretendia tomar os ameríndios em leais súbditos e em fiéis devotos.

162
EM C U M P R IM E N T O DO REAL SERVIÇO

pesas do Erário Régio. Contudo, exorbitavam as suas funções e


autoridade e recusavam-se a admitir a visita canônica de bispos e
visitadores nas suas missões e residências. As ordens religiosas
eram, ainda, acusadas de possuírem uma fortuna considerável em
gado, escravos, propriedades e gêneros oriundos do sertão ou do
reino, que se amontoavam nos armazéns de conventos e residências
para serem comerciados no Pará e em Portugal sem serem sujeitos a
taxações alfândegárias.
Com a aplicação das medidas reformistas, as competências de
directores e párocos ficaram bem definidas nos códigos legislativos
que formavam a base legal dessas alterações: aos directores cumpria
a administração temporal e aos párocos atribuía-se a formação espi­
ritual dos índios. Se, por um lado, a nomeação dos directores devia
ter a aprovação do governador da capitania, por outro, os padres das
povoações deviam reconhecer obediência ao bispo e sujeitarem-se à
sua vigilância114. As competências das duas autoridades encontra -
vam-se dissociadas, devendo unicamente sobrepor-se na medida em
que a ambas cumpria a educação ética, moral e religiosa dos índios,
bem como a sua felicidade e bem-estar.
Formalmente, encontramos, então, duas esferas de poder, duas
autoridades com competências regulamentadas e complementares,
mas não coincidentes. No entanto, quando nos confrontamos com a
documentação compulsada, verificamos, primeiro que tudo, que
existiam inúmeras fricções e «invasão» de competências entre direc­
tores e párocos. Mencionemos, por exemplo, a instabilidade criada
na povoação de Alvelos nos anos 50, devido ao conflito existente
entre o director Simão Coelho e o padre Manuel das Neves por
motivos de «jurisdições»115. De igual forma, o desembargador e
intendente-geral Faria e Sousa notificava a grande desunião entre o
director de Soure e Mondim, Manuel Francisco Gonçalves, definido
como incapaz, e o pároco Joaquim Inácio de Betencourt, acusado de
ter agredido o director com um molho de chaves e de lhe rasgar a

114 Uma das primeiras medidas tomadas no sentido de estabelecer uma autori­
dade vigilante sobre a actuação dos sacerdotes foi a nomeação do padre José Mon­
teiro de Noronha como visitador e vigário-geral da capitania. Cumpria-lhe viajar
pelas diferentes aldeias do Estado para controlar a actuação dos párocos (AHU, Pará,
caixa 18 (739 F), Ofício de frei Miguel de Bulhões a Tomé Joaquim da Costa Corte-
-Real, de 15 de Julho de 1758).
115 Simão Coelho foi transferido para a povoação de S. José do Javari (AHU, Rio
Negro, caixa 1, doc. 24, Ofício de Joaquim de Melo Póvoas a Francisco Xavier de
Mendonça Furtado, de 16 de Janeiro de 1760).

163
EM C U M P R IM E N T O D O REAL SERVIÇO

camisa116. Também os directores de algumas das povoações da capi­


tania do Pará se alteravam quando os padres queriam impedir a par­
ticipação das índias solteiras no trabalho do campo117. Este tipo de
situações comprova que a definição de competências não era tão
clara como os legisladores desejariam, dando azo a que cada um dos
poderes reclamasse para si, por vezes de forma violenta, jurisdições
que o outro poder entendia ser da sua alçada exclusiva.
Para além disso, o poder central utilizou os padres como meca­
nismo de informação e controlo não só da respectiva paróquia como
também da actividade dos directores e do próprio território. E, desta
forma, atribuiu-lhes informalmente ou tolerou um maior número de
competências do que as meramente de formação moral ou assistên­
cia espiritual.
Quando abordamos esta questão é necessário esclarecer que o
clero tinha uma actuação relevante na aculturação dos ameríndios.
Tal como acontecia em território hispano-americano, os párocos
eram agentes da cultura ibérica em regiões de fronteira e responsá­
veis pela integração de grande parte da população indígena na estru­
tura política colonial118. Antes de mais, a presença de padres signi­
ficava para os índios a existência de um eixo em torno do qual se
organizava e perpetuava a colonização luso-brasileira. A existência
de igreja e párocos era, consequentemente, um sinal de permanência
da colonização luso-brasileira na região119.
Depois, e para além de celebrar missa e de confessar, baptizar,
casar e enterrar os paroquianos, os eclesiásticos deviam incutir nor­
mas de comportamento concordantes com a moral cristã. A fiscaliza­
ção dos costumes, indispensável ao desempenho da missão dos
padres era, frequentemente, intolerada pela população indígena.
É preciso considerar que um dos motivos apontados como causado-

116 O pároco era ainda responsabilizado de ter sujeito o índio meirinho a assistir
à missa com um pau na boca e com os braços abertos em forma de cruz e de agredir
o filho do capitão-mor com uma bengala no alpendre da igreja (AHU, Pará, caixa 22
(742), Extracto de vários ofícios de Luís Gomes de Faria e Sousa, de 13 de Novembro
de 1761).
117 Ihidem, caixa 29 (745), Ofício de João de Amorim Pereira a Francisco Xavier
de Mendonça Furtado, de 15 de Maio de 1767.
118Veja-se Gary W. Graff, «Spanish parishes in Colonial New Granada: their role
in town-building on the Spanish-American frontier», in The Américas, XXXIII (2),
October, 1976, p. 339.
119 AHI, 340/04/04, Ofício de Lourenço Pereira da Costa, provedor da Fazenda
do Rio Negro à [Secretaria de Estado da Marinha e Negócios Ultramarinos?], de 2 de
Setembro de 1762.

164
EM C U M P R IM E N T O D O REAL SER V IÇ O

res das revoltas ocorridas nas povoações do rio Negro, em 1757, con­
sistiu na actuação do clérigo de Lamalonga que impediu o índio
Domingos de viver em concubinato com uma índia da povoação; no
mesmo levantamento foi também assassinado o padre de Moreira120.
De igual forma, alguns anos mais tarde, em 1788, os Mura de Santo
Antônio de Maripi mostravam o seu descontentamento pela pre­
sença de Antônio de Sousa Santos Medeiros ao procurarem refúgio
nos matos121. Diziam que este pároco os incomodava muito por vive­
rem em malocas e que tinha maltratadoo índio Pascoal, sua mulher e
filha «por motivos que a descencia pede se ocultem»122.
Não obstante a necessidade de religiosos, havia nas capitanias do
Norte brasileiro uma nítida falta de padres para a assistência de
índios, moradores e soldados. Ocorria frequentemente que o mesmo
pároco tinha que exercer o seu ministério em vários locais separados
por largas distâncias. Para assistir aos paroquianos na época da qua­
resma, o vigário de Poiares deslocou-se a Lamalonga, Marabitenas e
S. Gabriel da Cacheira em 1764123. No ano seguinte, o governador do
Estado, Fernando da Costa de Ataíde Teive, representava junto do
secretário de Estado Mendonça Furtado que um único capelão não
podia, simultaneamente, socorrer espiritualmente as guarnições da
fortaleza e as de S. José de Marabitenas, bem como os quatrocentos
índios que compunham os povoados, pela grande distância que sepa­
rava os dois locais124. No sentido de apontar a falta de assistência
espiritual na capitania, José Monteiro de Noronha notava, já na
década de 80, a necessidade de os padres regulares servirem nas paró­
quias por não haver um número suficiente de seculares125.
A comodidade de uma vida mais confortável e segura nas fazen­
das ou nos conventos próximos à cidade de Santa Maria, bem como a

120 AHI, 340/04/02, Ofício de Francisco Xavier de Mendonça Furtado a Tomé


Joaquim da Costa Corte-Reai, de 4 de Julho de 1758; Alexandre Rodrigues Ferreira,
Viagem filosófica ao Rio Negro, pp. 55-56; sobre este levantamento, enquanto uma das
rebeliões do Rio Negro, veja-se o capítulo v «Formas de resistência: uma reavaliação
das relações entre “dominantes” e “dominados”».
121 AHU, Rio Negro, caixa 16, doc. 9, Ofício de Henrique João Wilkens a João
Pereira Caldas; ibidem, Ofício de Manuel Antônio Furtado a Henrique João Wilkens,
de 22 de Agosto de 1788.
122 Ibidem, de 22 de Agosto de 1788.
123 AHU, Rio Negro, caixa 1, doc. 44, Ofício de Joaquim Tinoco Valente a Fer­
nando da Costa de Ataíde Teive, de 26 de Julho de 1764.
124 ANRJ, códice 99, vol. 1, fl. 10, Ofício de Fernando da Costa de Ataíde Teive a
Francisco Xavier de Mendonça Furtado, de 18 de Abril de 1765.
125 AHU, Pará, caixa 42 (756), Ofício de José Monteiro de Noronha a Martinho
de Melo e Castro, de 27 de Dezembro de 1782.

165
EM C U M P R IM E N T O DO REAL SERVIÇO

pobreza dos paroquianos que dificilmente podiam pagar os emolu­


mentos justificam, em certa medida, a falta de assistência religiosa nas
aldeias e vilas do Norte brasileiro126. As inúmeras opções constituídas
pela missionação em outros territórios portugueses, nomeadamente
no Oriente, podiam ser apontadas como uma outra justificação.
Apesar de esta falta de padres ser frequentemente notada, a sua
presença chegava a locais quase inacessíveis a outros luso-brasilei-
ros, estabelecendo relações de proximidade com a população local
de uma forma que poucas entidades se podiam permitir. Juntamente
com os directores, eram uma das figuras estruturantes da comuni­
dade, desempenhando uma função prestigiada pelo monarca e res­
peitada pela sociedade colonial, tanto mais que o pároco em terras
amazônicas era, tal como o referiu Nuno Gonçalo Monteiro para o
reino, «um intermediário cultural qualificado»127. E, por isso mesmo,
ninguém estava melhor posicionado para informar a coroa do que
ocorria nas fronteiras do território paraense e rionegrino.
O seu reconhecimento enquanto elemento estrutural na consoli­
dação da presença portuguesa no Norte do Brasil levou a que, por
exemplo, as instituições centrais ordenassem ao bispo frei Manuel de
Bulhões para transmitir aos párocos da diocese do Pará instruções no
sentido de informarem o episcopado — e, consequentemente, a admi­
nistração de Lisboa — da relação de lugares e povoações das suas fre­
guesias, das distâncias que mediavam entre si, dos rios que passavam
nas povoações, das pessoas de comunhão e das capelas anexas128.
Durante os decênios seguintes, dados estatísticos e informativos com

126Ibidem-, sobre a pobreza dos índios, atestava João Bernardo de Seixas, vigário de
Salvaterra, que «consta me do meu antecessor que não pagão pela sua indigência e eu o
vou experimentando, pois de sete baptizados que fis só recebi esmola de dois e de cinco
enterros recebi a esmola de hum» (AHU, Pará, caixa 81 (796), Relação dos emolumentos
e rendimentos da igreja paroquial de Santarém, de 23 de Junho de 1798).
127 Nuno Gonçalo Monteiro, «A sociedade local e os seus protagonistas», p. 44.
Não obstante o seu baixo nível cultural, quando comparados com os directores, na
sua maioria homens rudes e iletrados e nalguns casos soldados, degredados ou filhos-
-da-terra, os clérigos detinham uma maior informação.
128 AHU, Pará, caixa 18 (739 F), Ofício de frei Miguel de Bulhões a Diogo de Men­
donça Corte-Real acusando a recepção da ordem régia, de 9 de Novembro de 1756.
Fundamentamos esta afirmação no facto de, em 1751, o governador do Pará dar conta
que os missionários se recusavam, sob as mais variadas escusas, a fazer listagens demo­
gráficas e a comunicar estas contagens às instituições administrativas centrais. O gover­
nador reiterou a ordem, ameaçando os prelados com a privação da administração das
missões (AHU, Pará, caixa 60 (775), Carta régia ordenando se cumpram as ordens sobre
as repartições dos índios, de 6 de Junho de 1751). Confronte-se, ainda, com o capítulo II
«A transformação dos índios em vassalos: um plano de colonização».

1 66
EM C U M P R IM E N T O D O REAL SER V IÇ O

a mesma proveniência ou resultantes dos róis de desobriga continua­


ram a contribuir para que os organismos de poder central tivessem um
conhecimento mais exacto das capitanias do Norte129. O envio destas
listas era, também, uma forma de sujeição e obediência das ordens
religiosas que, ao prestar estas informações, reconheceríam o direito
real de controlar e usar a população indígena das aldeias.
Assiste-se, consequentemente, à reutilização e ampliação dos
«dispositivos de controlo das populações», ou seja, dos registos
paroquiais habitualmente usados peloí párocos desde o Concilio de
Trento, que passam a englobar dados de natureza geográfica, de
conhecimento do território e dos seus recursos naturais130. Por inter­
médio dos seus párocos, o monarca pretendia conhecer os limites
do seu Império Colonial no Brasil e avaliar os seus súbditos, os seus
domínios, as suas riquezas; intentava, para além do mais, ter uma
informação passível de ser confrontada com a que lhe chegava por
outras vias, ou seja, pelos organismos da administração judicial,
financeira e econômica do Estado do Pará.
No seu desejo de controlar soberanamente o território, o poder
real foi ainda mais longe: apropriou-se da pessoa do pároco para
atestar do desempenho das funções do director. Certidões passadas
pelos párocos de Soure e Melgaço, nos inícios dos anos 70, atesta­
vam junto do poder governativo que os directores dessas povoações
haviam pago, na conformidade das ordens reais, o salário aos
índios; tinham incentivado a construção das casas de moradores;
usavam de caridade com as crianças, catequizando-as; empenha­
vam-se nos descimentos e na relocação dos fugidos; e promoviam o
desbravamento e cultivo das terras da povoação131.

129AHU, Pará, caixa 27 (740), Lista das igrejas paroquiais, freguesias e povoações da
capitania do Grão-Pará e das pessoas maiores e menores, segundo os róis de confessa­
dos, 1765; Rio Negro, caixa 12, doc. 3, Carta do capelão frei José de Santo Antônio a João
Bemardes Borralho, de 20 de Novembro de 1785. Esta preocupação em quantificar a
população está também presente nas informações prestadas pelo vigário de Santarém,
frei Manuel do Menino Jesus: «mas quantia certa não se pode dizer porque os annos, os
tempos e as gentes são mudáveis» (AHU, Pará, caixa 81 (796), Relação dos emolumentos
e rendimentos da igreja paroquial de Santarém, de 23 de Junho de 1789).
130 Confronte-se Nuno Gonçalo Monteiro, «A sociedade local e os seus protago­
nistas», p. 45.
131 APEP, códice 108, doc. 8, Certidão de frei Joaquim Cardoso Delgado sobre a
actuação do director de Soure, José Caetano Ferreira da Silva, de 4 de Agosto de
1770; doc. 65, Certidão de frei... Filipe Benicio [?] atestando, em conformidade com
as ordens do governador, o desempenho do director de Melgaço, Estolano Manuel
Pereira de Sousa Feio, de 22 de Julho de 1771.

167
EM C U M P R IM E N T O D O REAL SERVIÇO

É, contudo, claro que, enquanto membros eclesiásticos, os pró­


prios missionários eram vigiados e controlados por padres visitado-
res e pelos bispos em visitação pelas paróquias das capitanias. Feitas
«para observância das Reais Leis e para verificarem as prudentíssi­
mas direcções [aplicadas...] no estabelecimento, conservação e inte­
resse desta Capitania», estas viagens permitiam que os bispos e e as
instituições governativas do Estado tomassem conhecimento da
actuação dos padres132. Resta mencionar que a documentação con­
sultada não esclarece se, no caso destes missionários secularizados
pelo contacto com a população a que assistiam, a autoridade que
prevalecia era a do bispo ou do superior da ordem religiosa a que
pertenciam.
Se pela análise da legislação se podería pensar que as povoações
luso-brasileiras eram administradas de forma estanque pelas diferen­
tes instituições, confiado o poder temporal ao director e à câmara e o
acompanhamento espiritual aos padres, o que, em nosso entender, se
procurou alcançar, ainda que de forma implícita, foi uma gestão inte­
grada do território por várias entidades. Constatamos, obviamente, a
existência de casos extremados e as consequentes exacções e abusos
de poder criados por essas situações. Contudo, pensamos convicta­
mente que o modelo que se pretendia aplicar na administração dos
núcleos urbanos da Amazônia tinha por objectivo a tomada de deci­
sões consensuais ou equilibradas entre os diferentes poderes que
interferiam na vida quotidiana da comunidade.
Estes poderes eram constituídos, tal como já foi referido, pelos
directores, câmaras e párocos, e ainda pelos principais. Ou seja, a
interferência indígena revelava-se não só através da participação dos
ameríndios no senado camarário como na reutilização de um cargo
indígena adaptado às estruturas de poder colonial: o principalato.
Na medida em que todas estas entidades eram consideradas como
relevantes na vida comunitária, deviam tomar algumas decisões em

132 AHU, Rio Negro, caixa 2, doe. 2, Carta de José Monteiro de Noronha a Fra
cisco Xavier de Mendonça Furtado, de 20 de Abril de 1769; ibidem, doc. 3, Carta de
José Monteiro de Noronha a Francisco Xavier de Mendonça Furtado, de 20 de Abril
de 1769; Pará, caixa 59 (774), Ofício de Martinho de Melo e Castro a Martinho de
Sousa e Albuquerque, de 30 de Julho de 1783; veja-se também D. Frei Caetano Bran­
dão, Diários das visitas pastorais de D. frei..., introdução de Luís A. de Oliveira Ramos,
Porto, Instituto Nacional de Investigação Científica, Centro de História da Universi­
dade do Porto, 1991; e Frei João de S. José Queirós, «Viagem e visita do sertão em o
bispado do Grão-Pará em 1762 e 1763», in Revista do Instituto Histórico e Geográfico Bra­
sileiro, tomo IX, 1847.

1 68
EM C U M P R IM E N T O DO REAL SERVIÇO

conjunto133. Subentendia-se, ainda, que deviam vigiar-se mutua­


mente e socorrer-se dos meios que estavam à sua disposição para
comunicar infracções. A nosso ver, é esta capacidade de decidir em
conjunto e de controlo mútuo que, a par da indeterminação de com­
petências, fazia com que, na gestão dos núcleos urbanos do Norte
brasileiro de meados de Setecentos, se estabelecesse uma dinâmica
que se pretendia equilibrada entre as diferentes entidades adminis­
trativas locais. Ora tal nem sempre foi conseguido134.

A c o n s titu iç ã o de u m a elite in d íg e n a

O contacto entre índios e luso-brasileiros criou, junto das comu­


nidades ameríndias, novas atitudes em relação às estruturas de poder.
Apesar de serem os próprios luso-brasileiros a notar que algumas
etnias não tinham quem as chefiasse militarmente, governasse ou
representasse, procuraram identificar nos grupos que habitavam a
bacia hidrográfica amazônica indivíduos com prestígio social ou com
atitudes de comando. Encontraram, na maior parte dos casos, etnias
chefiadas por um indivíduo que sobre elas exercia um poder político
e social persuasivo e pouco coercitivo, denominado de principal135.
Os principais surgiram, então, como os interlocutores por exce­
lência no processo de negociação que antecedia os descimentos, com
autoridade para determinar a mudança do grupo que chefiavam ou de
outros sobre os quais tinham preponderância e com atribuições para

133 Refira-se que, por exemplo, o director, os principais e o senado de Pombal


determinaram que, em 1770, o negócio do sertão devia constar da feitura de man­
teiga de tartaruga e da recolha de cacau ao invés do cravo, que praticamente tinha
deixado de existir na região (APEP, cód. 108, doc. 7, Ofício de Lucas José Espinosa de
Brito Coelho Folqman ao governador da capitania, de 7 de Agosto de 1770).
134 É interessante corroborar esta opinião com um facto pontual: em 1781 João
Pereira Caldas recomendava que, caso se enviasse o director de Alvelos preso para a
cidade, a administração da vila devia ser confiada ao pároco ou a morador compe­
tente (AHU, Rio Negro, caixa 4, doc. 4, Ofício de João Pereira Caldas a Teodósio
Constantino de Chermont, de 17 de Janeiro de 1781).
135 Este tipo de poder pouco compulsivo é característico de grupos humanos fle-
xivelmente organizados e facilmente penetráveis por outras sociedades. Contra-
põem-se-lhes as organizações político-sociais de tipo caribe (Esteban E. Mosonyi,
«Los Arahucos dei Rio Negro», in Boletim Americanista, n.° 33, 1983, p. 145; Colin
MacLachlan, «The Indian Directorate: forced acculturation in Portuguese America»,
in The Américas, vol. XXVlii (4), Abril de 1972, p. 381); como seria de esperar, os luso-
-brasileiros ignoraram a influência do pagé ou mariri, curandeiro e intermediário
entre os mundos sobrenatural e real.

169
EM C U M P R IM E N T O D O REAL SERVIÇO

escolher o novo território destinado à etnia. No discurso colonial da


segunda metade de Setecentos, relatava-se, ainda, que estes chefes
exerciam o seu poder sobre um grupo étnico, sobre uma comunidade
aparentada mais restrita ou que tinham apenas controlo sobre os
índios que lhes eram, por vínculos de consanguinidade, mais próxi­
mos. Mencionava-se, frequentemente, que este poder era transmitido
por laços de parentesco: de pais para filhos ou de irmãos mais velhos
para irmãos mais novos. Encontramo-nos, assim, perante a questão
das diferenciações sociais e políticas das etnias ameríndias da Amazô­
nia de Setecentos à luz da leitura feita pelos luso-brasileiros da época.
Como confrontar estas descrições com os estudos antropoló­
gicos feitos recentemente sobre sociedades específicas da Amazônia
e com a noção das etnias ameríndias como sociedades igualitárias?
Alguns estudiosos da «tropical forest culture» são peremptórios ao
afirmar que cada aldeamento constitui uma unidade estanque,
caracterizada pela quase inexistência de divisões sociais ou estrutu­
ras políticas, sendo os principais detentores de uma influência muito
limitada136. Também o resultado do trabalho de Chernela sobre os
Wanano é revelador da existência de divisões derivadas de relações
de senioridade, títulos ou influências, sem que nenhum deles se
relacione com riqueza ou com controlo coercivo de trabalho137.
Como compreender, então, as referências a «grupos privilegia­
dos» tal como eram descritos na segunda metade do século xviii138?
Quem eram e de que direitos usufruíam? Antes de mais, é necessá­
rio constatar que o poder colonial introduziu ou acentuou as dife­
renças sociais entre as sociedades ameríndias de duas formas: pela
concessão de prestígio social e político aos chefes e às suas famílias
e pela introdução de categorias profissionais especializadas, com a
possibilidade de acumulação de bens e valores. «Privilégio» e «pro­
fissão» encontram-se, desta forma, intimamente associados com
«mobilidade social», sendo ambos responsáveis pela existência de
relações hierárquicas de poder e de predominância social e econô­
mica no seio das sociedades ameríndias.

136 Elisabeth Carmichael, Stephen Hugh-Jones, Brian Moser, Donald Taylor, The
hidden peoples of the Amazon, p. 17.
137 Janet M. Chemela, The Wanano Indians of the Brazilian Amazon, p. 6.
ias a designação de «índios privilegiados» aparece, por exemplo, num levanta­
mento demográfico de 1770, possivelmente respeitante a Olivença; juntamente com
esta categoria encontra-se «principais antigos», «sargento-mor», «índios incapazes»,
«índios auzentes», «índios no serviço de Sua Magestade Fidelíssima», «índios pesca­
dores» (APEP, cód. 106, s/d [de 1770],

170
EM C U M P R IM E N T O D O REAL SERVIÇO

O tipo de diferenciações feitas pelos luso-brasileiros revela-se de


imediato nas restrições de acesso a determinadas manufacturas de
fabrico europeu. Na maior parte dos casos, os luso-brasileiros distin-
guiam, através de presentes ou de atitudes, quem consideravam capaz
de poder influenciar as decisões da comunidade ou, então, aqueles que,
nas associações mentais dos colonizadores, mereciam ser considera­
dos139. Estas diferenças faziam-se pela oferta de espingardas e de muni­
ções, de determinadas peças de roupa feitas em tecidos específicos, da
entrega de sal ou pela tomada de determinadas atitudes, expressas, por
exemplo, no vestir e toucar das filhas dos chefes140. Dependendo dos
casos, assim se distinguiam os principais e os membros que constituíam
as suas famílias, os emissários, abalizados, índios ladinos e línguas.
A sedentarização dos ameríndios sob a direcção das autoridades
coloniais acentuava esta diferenciação, na medida em que a coroa
procurava integrar um grupo restrito de índios no exercício de deter­
minadas funções: de comando, de gestão comunal; como chefes das
comunidades, funcionários camarários, meirinhos, pequenos agri­
cultores e artesãos141. Uma vez mais, tal como o comprova Jane

139 Francisco José Rodrigues Barata dá claramente conta desta diferenciação


quando, ao contactar com Macuxis, afirma «Passei a brindal-os com aguardente, de que
gostavam muito, e com sal de que dei ao principal uma grande cuia, e igualmente duas
cuias pintadas. Todos os outros queriam a mesma offerta; mas como o negócio só
dependia do principal, dei a este mais um frasco de aguardente e uma pequena porção
de pólvora, e tratei de me despedir» («Diário da viagem que fez à colonia hollandeza de
Suriname o porta-bandeira da sétima companhia do Regimento da cidade do Pará, pelos
sertões e rios d’este Estado, em diligência do Real Serviço», in Revista Trimensal cie Histó­
ria e Geografia ou Jornal do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, tomo vni, 1846, p. 29).
140 AHU, Rio Negro, caixa 7, doc. 12, Relação dos gêneros que, em forma de
mimo, se mandaram ao principal Catheamani, de 12 de Julho de 1783; ibidem, caixa
14, doc. 19, Relação dos gêneros com que se premearam os principais e índios da
nação Mura que vieram de Borba a Barcelos, s/d [post. 29 de Junho de 1787]; ibidem,
Relação do que levaram os Mura dos Armazéns por prêmio, de acordo com a ordem
do Sargento Mor Wilkens, de 8 de Agosto de 1787; José Pinto da Fonseca, «Cópia da
carta que o alferes... escreveu ao Exmo. General de Goyazes, dando-lhe conta do
descobrimento de duas nações de índios, dirigida do sítio onde portou», in Revista do
Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, tomo vm, 1846, p. 383.
141 Ao extinguir a autoridade temporal das ordens religiosas na administração
das aldeias, o alvará régio de 7 de Junho estipulava, igualmente, que «nas villas sejam
preferidos para juizes ordinários, vereadores e officiais de Justiça os índios naturaes
dellas e dos seus respectivos districtos enquanto os houver idoneos para os referidos
cargos e que as Aldeias independente das ditas villas sejão governadas pellos seus res­
pectivos Principaes tendo estes por subalternos os sargentos mores, capitães e alferes
e meirinhos das suas nações que forão instituídos para os governarem» (AHU, Conse­
lho Ultramarino, códice 336, Es. 65-70, Alvará pelo qual se extingue a autoridade tem­
poral das aldeias e povoações às diferentes ordens religiosas).

171
EM C U M P R IM E N T O D O REAL SERVIÇO

Rausch para a Colômbia e Ricardo Zorraquim Becú para o Tocuman,


existem semelhanças evidentes com o que ocorreu nos vizinhos ter­
ritórios espanhóis, traduzidas na ascensão social dos mais capaci­
tados142. Rausch refere, por exemplo, que para preparar os índios
sob sua administração por forma a tomarem-se vassalos do rei espa­
nhol, os missionários seleccionavam ameríndios para ocupar cargos
políticos nas comunidades hispânicas. Assim, cada reducíon tinha
oficiais índios a ocupar os postos de capitães, tenentes e sargentos e,
ainda, ftscales que policiavam a comunidade143.
Estes índios das povoações luso-brasileiras vigiavam o cumpri­
mento da ordem, verificavam quem faltava à missa, controlavam
bêbedos e arruaceiros. Trabalhavam de soldada, eram tecelões, car­
pinteiros e calafates; especializavam-se na produção de cerâmica,
como as populações de Marajó, Belém e Barcelos, ou no fabrico de
cuias, como as índias de Montalegre e Santarém144.
Assistiu-se, consequentemente, não só à formação de uma
pequena aristocracia indígena com poder político e formação escolar
como à constituição de um outro estrato social que, podendo traba­
lhar por conta própria, tinha capacidade financeira para reinvestir os
seus lucros, ainda que reduzidos, na compra de pequenas terras ou
em oficinas artesanais.
Neste processo é interessante observar que, no primeiro caso,
os poderes coloniais se apropriaram de antigas estruturas de poder
inerentes às sociedades ameríndias e integraram-nas formalmente
na hierarquia social colonial. No discurso jurídico emanado das
instituições centrais da época, o principalato não era mais que um
dos muitos cargos administrativos ao serviço da sociedade colo­
nial, só que, desta feita, exercido exclusivamente pelos vassalos
ameríndios de Sua Majestade. Embora sendo transmissível heredi-
tariamente, a sua legitimidade dependia da concessão de carta
patente passada a mando do monarca. Nela evocavam-se os bons
serviços, a fidelidade e a obediência não só do candidato como dos
seus ascendentes. Mais do que uma capacidade de chefia informal-

142 Ja n e M . R a u sc h , A tropical Plains frontier. The llattos of Columbia, p . 7 3; R icard o


Z o r r a q u in B e cú , «L a m o v ilid a d d e i in d íg e n a y el m e s t iz a je en la A rg e n tin a C o lo n ia l»,
in Jahrbuch für Geschichte von Staat, Wirtschaft und Gesellschaft Lateinamerikas, B an d . 4,
19 6 7 , p. 73.
A tropical Plains frontier. The llanos of Columbia, p. 73.
143 Ja n e M . R a u sc h ,
Viagem filosófica pelas capitanias do Grão-Pará,
144 A le x a n d re R o d r ig u e s F erreira,
Rio Negro, Mato Grosso e Cuiabá, Memórias. Antropologia, R io d e Ja n e iro , C o n se lh o
F ed eral d e C u ltu ra , 19 7 4 , M e m ó r ia V, p p . 3 3 -3 4 ; M e m ó ria VI, p p . 35 -3 9 .

172
EM C U M P R IM E N T O D O REAL SER V IÇ O

mente reconhecida pela comunidade, o principalato surgiu no dis­


curso colonial da segunda metade de Setecentos como uma con­
cessão e uma benesse do monarca «por ter servido ao mesmo
Senhor com bom procedimento, sendo liai aos brancos e muito
obediente aos seus Missionários; e por esperar delle que daqui em
diante se haverá na mesma forma segundo a confiança que faço da
sua pessoa, Hey por bem provê-lo (como por esta o faço) no posto
de Principal dos índios de toda a sua nação [...] e gozará de todas
as honras, privilégios, liberdades, isenções e franquezas»145. O for­
mulário manter-se-á ao longo do período em análise com as altera­
ções óbvias.
Desta forma, a nação Aruã tinha sido governada por Inácio
Manajaboca, investido no seu cargo por D. Pedro II; tinha-lhe suce­
dido o neto Inácio Coelho e, por morte deste, Alberto Coelho146.
Um dos filhos de Inácio Manajaboca, Luís de Miranda, tinha sido
agraciado com o posto de sargento-mor147. Por seu turno, o filho do
principal da nação Maracanã evocava os serviços de seu pai no des-
cimento de índios, prisão de amocambados, participação na edifica­
ção de fortins no Pará e S. Luís e pedia a mercê do hábito de San­
tiago ou de Avis com uma tença efectiva para se sustentar com
decoro148. E o principal Silvestre Francisco de Mendonça Furtado,
filho do principal da vila de Porto de Mós, residente na corte há

145 AHU, Pará, caixa 94 (809), Petição de Inácio Coelho, índio Aruã e principal
de S. José do Igarapé Grande, na ilha de Joanes, para o rei lhe passar carta patente do
seu cargo, s/d [cerca 1755]. Não obstante o que afirmamos, dificilmente concordaría­
mos com a definição de «principais» como «porta-vozes do colonizador» e «pessoas
com trânsito entre os colonos brancos e autoridades do governo colonial» (Rita
Heloísa de Almeida, O Directório dos índios, pp. 164 e 326-327). Muitas das fugas e
rebeliões ocorridas na Amazônia durante a época em estudo foram desencadeadas
pelos principais, tal como muitos dos protestos contra entidades administrativas
coloniais (confronte-se capítulo v «Formas de resistência: uma reavaliação das rela­
ções entre “dominantes" e “dominados”»).
146 Inácio falecera de bexigas em Lisboa (AHU, Conselho Ultramarino, códice
1214, fls. 235-239, Ofício do Marquês de Pombal a Francisco Xavier de Mendonça
Furtado, de 14 de Março de 1755); AHU, Pará, caixa 94 (809), Petição de Inácio
Coelho para lhe ser passada carta-patente do exercício do seu cargo, s/d; ibidem,
Ordem de Sebastião José de Carvalho e Melo ao Marquês de Penalva, de 15 de
Março de 1755; Conselho Ultramarino, códice 1214, fls. 234v, Ordem régia comuni­
cando ao Marquês de Penalva para passar as cartas-patentes mencionadas, de 15 de
Março de 1755.
147 AHU, Pará, caixa 94 (809), Petição de Luís de Miranda para se lhe passar
carta-patente de sargento-mor, s/d.
148 Ibidem, Petição de Francisco de Sousa de Meneses, s/d.

173
EM C U M P R IM E N T O D O REAL SERVIÇO

15 meses, pedia autorização para regressar ao Pará com o posto de


sargento-mor e soldo e a mercê do hábito de Cristo149.
Formou-se, como afirmámos, uma elite indígena que se queria
leal. Ocupava os «cargos» de principais, sargentos-mores, capitães-
-mores150; era eleita como juizes de fora e vereadores151; e integrada
nas Companhias de terços-de-auxiliares e ordenanças e nas tropas
ligeiras de milícias152. Constituiu-se, desta forma, um grupo que,
mesmo pelos seus nomes e apelidos, inspirados, possivelmente, nos
de padrinhos ilustres e frequentemente precedidos de dom, parecia
querer distanciar-se do comum da população. Desta forma, Fran­
cisco Xavier de Mendonça Furtado e José de Nápoles foram, respec­
tivamente, principais de Porto de Mós e de Serpa153; D. Francisco de
Sousa e Meneses encontrava-se na corte de Lisboa quando seu pai,
D. Gonçalo, recebeu a patente de principal da nação Maracanã154;
D. Mariana de Saldanha era filha do principal Manuel de Saldanha,
defensor da vila de Tomar durante as revoltas do Rio Negro155.

149 Pará, caixa 60 (775), Petição de Silvestre Francisco de Mendonça Furtado


para se lhe fazer mercê do posto de sargento-mor e do hábito de Cristo, s/d. O des­
pacho de 17 de Janeiro de 1767 concedia-lhe a patente com o soldo de 4000 réis por
mês.
150 Ibidem, caixa 60 (775), Carta patente concedida a Manuel da Silva da Costa
como sargento-mor da vila de que era natural com soldo de 3000 réis, 11 de Setem­
bro de 1769 (também em Conselho Ultramarino, cód. 4, fl. 25); ibidem, Carta patente
nomeando Baltasar da Silva, 12 de Setembro de 1769; Pará, caixa 79 (794), Petição de
Romão Vieira para se lhe dar carta patente de principal dos índios Pacajás em Vila do
Conde, s/d.
151 APEP, cód. 108, doc. 7, Ofício de Lucas José Espinosa de Brito Coelho Folq-
man ao governador da capitania, de 7 de Agosto de 1770.
152 ANRJ, códice 99, vol. 1, fls. 193-194, Mapa da promoção dos terços-de-auxi-

liares e ordenanças do Pará e Rio Negro, 1767; AHU, Conselho Ultramarino, cód. 4,
fl. 25, Carta patente nomeando Baltasar da Silva como capitão-de-ordenança da vila
que é natural, de 12 de Setembro de 1769 (também em Pará, caixa 60 (775)); Pará,
caixa 51 (767), Carta patente passada por D. Francisco de Sousa Coutinho insti­
tuindo Teodósio de Mendonça como alferes da 9.a Companhia de Tropa Ligeira de
Milícias do Rio Negro; ibidem, caixa 73 (788), Ofício de Valentim Antônio de Oli­
veira e Silva a [governador da capitania] sobre a nomeação de Lourenço Justiniano
de Sequeira como capitão da 8.a Companhia da Tropa Ligeira de Santarém, de 4 de
Fevereiro de 1803.
153 AHU, Conselho Ultramarino, códice 1214, fls. 235-239, Ofício do Marquês de
Pombal a Francisco Xavier de Mendonça Furtado, de 14 de Março de 1755.
154 BNRJ, 4-3-13, Ofício de José de Nápoles Telo de Meneses a Martinho de
Melo e Castro, de 19 de Novembro de 1781.
155 APEP, códice 103, doc. 71, Petição da índia D. Mariana de Saldanha ao gover­
nador do Estado, na qual conta os maus tratos inflingidos pelo director de Tomar, de
24 de Julho de 1770.

174
EM C U M P R IM E N T O D O REAL SERVIÇO

D. Ana Maria de Ataíde evocava a sua lealdade e actuação em desci-


mentos para Lamalonga para pedir um vigário156. Estes antropóni-
mos contrastavam com os dos índios Adriana, Alexandre, Anselmo,
Atanásio, Faustino, Germana e outros citados sem menção a sobre­
nome na devassa instaurada entre 1763 e 1769, durante a Visitação
do Santo Ofício à cidade de Santa Maria157.
Em que é que se distinguiam dos outros índios? Quando colo­
cado face ao protesto de Calisto Geraldo da Costa, que se queixava
do bispo por este lhe ter faltado ao respeito que lhe era devido em
função do seu nascimento e ao facto de ser capitão, o conde de
Arcos respondeu que «relativamente ao respeito devido ao seu nas­
cimento em qualidade de filho de hum Principal não posso explicar
nada a Va. Mee. porque não conheço ainda bem esta Jerarquia»158.
Os privilégios da elite indígena, apesar de não se encontrarem clara­
mente enunciados num texto, eram invocados pelos índios, que os
consideravam como um direito inerente à posição social que ocupa­
vam. Deviam igualmente ser reconhecidos pela sociedade colonial,
que concedia aos índios que socialmente e politicamente se destaca­
vam direitos e privilégios que o resto da população não usufruía.
Para além de muitos deles auferirem de um pequeno rendi­
mento mensal, a título de soldo ou ordenado, para se vestirem e dos
«rendimentos, próis e precalços» adstritos aos seus empregos, bene­
ficiavam do trabalho de alguns índios sob seu comando: para a
extracção de drogas do sertão, para a pesca, para o serviço domés­
tico e lavouras159. As mulheres e filhas estavam isentas do serviço da
povoação e era proibida a sua utilização como remeiras, devendo ser
tratadas com todo o «decoro e atenção»160. Os filhos dos principais
tinham, como já anteriormente foi abordado, prioridade de coloca­
ção nos colégios e casas de aristocratas e a sua formação podia cul-

156 AHU, Rio Negro, caixa 1, doc. 44, Ofício de Joaquim Tinoco Valente a Fer­
nando da Costa de Ataíde Teive, de 26 de Julho de 1764.
157 Livro da visitação do Santo Ofício da Inquisição ao Estado do Grão-Pará (1763-
1769), texto inédito e apresentação de José Roberto do Amaral Lapa, Petrópolis, Edi­
torial Vozes, 1978.
158 AUC, Colecção Conde de Arcos, cód. 27, fls. 83-83v, Ofício do Conde de Arcos
a Calisto Geraldo da Costa, de 26 de Julho de 1804.
159 AHU, Conselho Ultramarino, códice 342, fl. 79, col. A, Ofício do governador do
Pará sobre o pedido de Cipriano Inácio de Mendonça para mandar dez índios à extrac­
ção das drogas do sertão, de 2 de Maio de 1780; APEP, códice 103, doc. 71, Petição da
índia D. Mariana de Saldanha ao governador do Estado, de 24 de Julho de 1770.
160APEP, cód. 103, doc. 71, Reclamação de D. Mariana de Saldanha ao governador
da capitania sobre as exacções do director da vila de Tomar, de 24 de Julho de 1770.

175
EM C U M P R IM E N T O D O REAL SERVIÇO

minar com uma visita à corte para poderem constatar in loco a mag­
nificência do soberano e as vantagens de serem seus súbditos161.
Enquanto membros desta elite, os principais e seus familiares
mais próximos estavam habilitados a propor-se como irmãos da
Ordem Terceira de S. Francisco162. Já em finais do centénio era-lhes
permitido ocupar os postos de oficiais comandantes das Tropas de
Milícias e houve um caso em que, possivelmente por recompensa de
serviços prestados a João Pereira Caldas, um índio, Filipe de Santiago
Monteiro, alferes de Monforte, ocupou a directoria dessa vila163.
Em contrapartida, era-lhes exigido que, acima de qualquer
índio, fossem bons vassalos, leais e obedientes às leis reais e divinas,
que colaborassem nos descimentos dos ameríndios e na captura de
fugitivos e amocambados164. Deviam incentivar, junto dos seus agre­
gados, a prática da agricultura e o exercício do pequeno comércio.
No entanto, e como já referimos, a mobilidade social era permi­
tida a outras camadas sociais. A outorga da liberdade de pessoas e
bens possibilitou, sobretudo nos centros urbanos de maior dimen­
são, uma pequena acumulação de capitais por parte de oficiais
mecânicos, pequenos proprietários rurais, rendeiros, caseiros, inqui­
linos e assalariados165. Recebendo salários, pagando impostos sobre
os seus rendimentos e conhecendo os direitos que lhe assistiam,
muitos deles protestavam quando se sentiam vítimas de abusos por
parte das autoridades administrativas166.

161 Alguns principais idos a Lisboa na década de 50 estiveram hospedados em


casa de Paulo de Carvalho e Mendonça (AHU, Conselho Ultramarino, códice 214,
fls. 235-239, Ofício do Marquês de Pombal a Francisco Xavier de Mendonça Furtado,
de 14 de Março de 1755).
162 AHU, Pará, caixa 28 (743), Carta de frei Jerónimo de Jesus Maria ao governa­
dor do Rio Negro, sobre o pedido dos principais para serem admitidos como irmãos
terceiros da Ordem de S. Francisco, de 12 de Novembro de 1768.
163Ibidem, caixa 62 (777), Parecer de Valentim Antônio de Oliveira e Silva à nomeação
do índio Luís da Gama e Melo como tener da 6.a Companhia da Tropa Ligeira de Milí­
cias do Cametá; Conselho Ultramarino, cód v t 588, fls. 35v-36, Ordem de Martinho de Melo
e Castro a D. Francisco de Sousa Coutinho, de 12 de Março de 1790.
164AHU, Pará, caixa 94 (809), Atestação de Francisco Pedro Gorjão de Mendonça dos
serviços prestados por Gonçalo de Sousa, 4 de Maio de 1754; AHU, Rio Negro, cabra 10,
doc. 1-B, Ofício de João Bemardes Borralho a João Pereira Caldas, de 13 de Janeiro de 1785.
165 AHU, Pará, caixa 75 (790), Ofício de José de Oliveira Peixoto à [Secretaria de
Estado da Marinha e Negócios Ultramarinos] sobre as exacções de Tello de Meneses;
ibidem, caixa 61 (776), Petição da índia Maria Silvina para trabalhar na lavoura das
suas terras em Sintra, s/d [ant. a 18 de Agosto de 1784],
166 Repare-se que, por exemplo, a índia Maria Silvina e sua família considera­
vam ser «verdadeiros operános de suas lavouras de que fabrica no destricto daquella
vila de que paga o dizimo a Lieos» (:bidem, s/d [ant. a 18 de Agosto de 1784]). Sobre

176
EM C U M P R IM E N T O D O REAL SERVIÇO

R e p a r tiç õ e s de ín d io s e tr a b a lh o in d íg e n a

A reavaliação do território amazônico na política e na economia


do Império durante a segunda metade de Setecentos colocaram a
sociedade colonial luso-brasileira perante um problema: o da refor­
mulação do estatuto dos índios enquanto força de trabalho nessa
mesma sociedade. Tal como durante a primeira metade do centénio,
a dependência da mão-de-obra indígena era intrínseca à organização
econômica e social no Norte brasileir®. No entanto, o acentuar das
disputas territoriais e a recuperação do direito de uti possidetis atri­
buíram aos índios uma importância estratégica nos jogos de interes­
ses europeus167. Os ameríndios eram utilizáveis pelos poderes colo­
niais na medida em que serviam de suporte à colonização europeia
nas áreas geográficas que eram objecto de conflito.
Não podendo dispensar o trabalho obrigatório ameríndio, as
sociedades paraense e rionegrina iriam ter que conciliar a necessi­
dade constante de mão-de-obra com uma série de novas realidades:
a proclamação da liberdade dos indígenas e reconhecimento da
posse de bens; a mudança da autoridade tutelar indígena de missio­
nários para governador e directores; a prioridade em ocupar e colo­
nizar os limites do Estado; o prevalecimento dos serviços da Coroa
e das demarcações; e a necessidade de, acima de tudo, se manter a
paz e a estabilidade internas.
Alguns dos meios encontrados para solucionar este problema
traduziram-se, como já referimos, na promulgação de legislação com
o objectivo de evitar a vadiagem e no incentivo à importação de
escravos africanos168. Contudo, e ao contrário do que acontecia na
Guiana Francesa, a sociedade colonial do Norte do Brasil continuou a

a im p o rtâ n c ia ju ríd ica d o p a g a m e n to d o d íz im o , v e ja -se o c a p ítu lo VI «A co n stru ç ã o


d e im a g e n s: d e fin iç õ e s d e a m e r ín d io s n o s d isc u rso s c o lo n iais».
167 Sobre este assunto, consulte-se o capítulo rv «“As muralhas do sertão": os
ameríndios na defesa da integridade territorial luso-brasileira».
168 Veja-se o capítulo I, «Ameríndios do Norte do Brasil na segunda metade do
século xvill: as contradições da liberdade». Em relação às medidas tomadas para evitar
a ociosidade, confronte-se com o ocorrido em Macau em Maria de Jesus dos Mártires
Lopes, «Mendicidade e “maus costumes” em Macau e Goa na segunda metade do
século xvili», pp. 68; sobre o impacte gerado pela Companhia Geral de Comércio de
Grão-Pará e Maranhão e sobre a introdução de mão-de-obra negra as opiniões diver­
gem. Confronte-se Manuel Nunes Dias, A Companhia Geral do Grão-Pará e Maranhão
(1755-1778), São Paulo, 1971, pp. 459-500 e Ciro Flamarion Cardoso, Economia e socie­
dade em áreas coloniais periféricas. Guiana Francesa e Pará (1750-1817), Rio de Janeiro,
Edições Graal, L.da, 1984, pp. 113-114 e 123-124.

177
EM C U M P R IM E N T O D O REAL SERVIÇO

depender predominantemente do trabalho ameríndio169. A econo­


mia colonial paraense não se baseava em grandes plantações e o cul­
tivo de cana-sacarina, ao contrário do que se passava na região nor­
destina, era uma actividade agrícola e comercial equiparável a
muitas outras. Para além do mais, na recolha de drogas do sertão ou
na extracção de madeiras, afinal duas das mais importantes ocupa­
ções da Amazônia, a mão-de-obra ameríndia era a mais apropriada
e eficiente170.
De 1686 até às reformas empreendidas por Francisco Xavier de
Mendonça Furtado, os índios de cada aldeamento, com idades com­
preendidas entre os 15 e os 60 anos, eram repartidos em três grupos:
um, dedicado à exploração agrícola dos campos da missão, devia
produzir excedentes suficientes para sustento da comunidade e dos
índios recentemente aldeados; outro, constituído por vinte e cinco
indivíduos, tinha a obrigação de servir exclusivamente os missioná­
rios; e, finalmente, um último grupo era disponibilizado para suprir
as necessidades de mão-de-obra estatal e particular171. O sistema era
rotativo, sendo de seis meses o tempo de duração destes grupos. Os
recém-aldeados ficavam isentos da prestação de serviços por um
período de dois anos.
Deste sistema decorriam abusos óbvios. Assim, as proporções
dos grupos, o tempo de serviço e o seu carácter voluntário (e remu­
nerado) não eram respeitados. Os índios que iam à recolha das dro­
gas do sertão eram coagidos a trabalhar em fazendas e sítios; eram

169 Ciro Flamarion Cardoso, Economia e sociedade em áreas coloniais periféricas.


Guiana Francesa e Pará (‘1750-1817), pp. 51 e ss.; Colin M. MacLachlan, «The Indian
labor structure in the Portuguese Amazon, 1700-1800», in Colonial roots ofModem Bra-
zil. Papers of the Newherry Library Conference, editado por Dauril Alden, Berkeley, Los
Angeles e Londres, University of Califórnia Press, 1973, p. 199.
170 Sobre a abundância da madeira americana e as inconveniências da sua expor­
tação para a Europa devido aos altos custos de transporte, veja-se Bárbara L. Solow,
«Slavery and colonization», in Slavery and the rise of the Atlantic System, editado por Bár­
bara L. Solow, Cambridge, Cambridge University Press, 1991, p. 26. Compare-se esta
situação com as elevadas «exportações» do produto, feitas pelo arsenal de Belém,
quer sob a forma de cavemame para ser utilizado nos estaleiros de Lisboa quer sob a
forma de produto acabado (barcos) construídos nos estaleiros do Pará (BNRJ, 1-17-
-12-2, Ofício de D. Francisco de Sousa Coutinho a Manuel da Gama Lobo de
Almada, de 3 de Julho de 1796; ihidem, Ofício de D. Francisco de Sousa Coutinho a
D. Luís Pinto de Sousa, de 1 de Agosto de 1796).
171 Os missionários cujas missões estavam localizadas a menos de 30 léguas de
Belém contavam com os índios da aldeia de Gonçares à sua disposição para serviços
pessoais. Do repartimento excluíam-se menores, sexagenários, doentes, oficiais públi­
cos e artesãos (Colin M. MacLachlan, «Indian labor structure in the Amazon», p. 202).

178
EM C U M P R IM E N T O D O REAL SERVIÇO

tratados como escravos; e a sua devolução às aldeias era evitada,


declarando-se o seu óbito e mudando-se-lhes o nome172.
Para além de tudo, os missionários tinham acesso directo aos
aldeamentos que forneciam a mão-de-obra, eram figuras de prestí­
gio dentro da comunidade e controlavam tanto os levantamentos
demográficos quanto as repartições. Ora, tal como Colin MacLach­
lan reparou, as missões colidiam com os interesses econômicos e
políticos das coroas em relação às suas colônias. À medida que os
poderes coloniais se foram organizando e centralizando, as missões
foram substituídas por instituições seculares173.
No Estado do Grão-Pará congregaram-se, na segunda metade de
Setecentos, factores de natureza vária que conduziram a um avolu­
mar de tensões sobre o problema do trabalho indígena. Para além
dos que fomos já mencionando, há que considerar que, com a
segunda metade do século, as disputas entre os diferentes extractos
da sociedade colonial por uma maior quantidade de mão-de-obra
ameríndia se acentuaram. Em primeiro lugar, porque o incentivo à
colonização através da emigração de colonos, ilheús, reinóis e
mazaganistas, fez, consequentemente, aumentar o número de can­
didatos à repartição de trabalhadores. Na medida em que, na sua
maioria, pertenciam a camadas desfavorecidas, não tinham capital
para investir na aquisição de escravos africanos e preferiam ter na
sua dependência assalariados ameríndios a quem, na maior parte
dos casos, não pagavam. Depois, porque os senhores-de-engenho
eram, eles próprios, candidatos à repartição de mão-de-obra índia.
Não tendo dinheiro para adquirir escravos à Companhia monopo­
lista, ficavam, na maioria dos casos, dependentes dos indígenas para
a lavoura das suas fazendas174. Era nesse sentido que procuravam
conservar sob sua dependência os indivíduos que, até à data da pro­
mulgação da liberdade ameríndia, tinham sido seus escravos175.

172 Ciro Flamarion Cardoso, Economia e sociedade em áreas coloniais periféricas..., p. 168.
173 Colin M. MacLachlan, «The Indian Directorate: forced acculturation in Portu-
guese America (1757-1799)», in The Américas, vol. xxviii (4), April 1972, p. 357.
174 AHU, Pará, caixa 19 (739 H), Representação da Mesa da Junta de Inspecção a
Francisco Xavier de Mendonça Furtado sobre os incrementos a dar ao cultivo de
cana-sacarina, de 8 de Novembro de 1760.
175 Era este o caso de Petronilha que, ao ficar livre, tinha continuado a servir em
casa de seu senhor, Antônio José de Carvalho «nos serviços próprios de qualquer
mulher recolhida, como costurar e engomar» (AHU, Pará, caixa 104 (819), Petição da
índia Petronilha pedindo para ficar independente da tutela do director de Beja, s/d
[anterior a 1779]); o mesmo para a índia Madalena, da povoação da Penha Longa, ao
serviço de D. Ana Narcisa da Costa (ihidem, caixa 95 (810), s/d, [anterior a 1799]).

179
EM C U M P R IM E N T O DO REAL SERVIÇO

É igualmente importante relevar que se pretendia dar prioridade


de ocupação a áreas até então marginais, mas agora imprescindíveis
à integridade do domínio colonial português no Norte brasileiro.
Importava fundar novas povoações e ocupar os bordos das frontei­
ras com território hispânico, holandês e francês, por forma a defen­
der o acesso de outros europeus com intenções expansionistas na
América do Sul. Ora, isso significava uma alteração ou uma expan­
são dos eixos tradicionais de condução de ameríndios. Ao invés de
alimentarem, enquanto mão-de-obra, os centros de colonização e as
unidades agrícolas e domésticas coloniais, passaram a direccionar-se
para zonas até então secundárias nas opções políticas coloniais.
Por último, é preciso relacionar estas questões com as grandes
epidemias que assolaram a cidade de Santa Maria de Belém nas
décadas de 40 e 50. Muito se tem escrito sobre o problema das
doenças bacterianas e virais decorrentes dos contactos entre povos
com heranças biológicas e imunológicas distintas. Mas até agora, e
tanto quanto é do nosso conhecimento, nunca se relacionou este
fenômeno com os anteriormente apontados e, assim, não se consi­
deraram as epidemias como factores avolumadores das tensões
sociais sentidas em Santa Maria de Belém em meados de Setecen­
tos176. Alden e Miller descrevem a situação gerada nas capitanias
do Norte da seguinte forma: uma violenta epidemia de varíola
assolou Belém em Agosto de 1743. A população debilitada foi afec-
tada por outras infeccções, tais como catarro, pleuresia, fluxos de
sangue. Depois, em 1749, quando estas doenças já tinham desapa­
recido, Belém, São Luís e o interior do Estado foram varridos por

AHU, Pará, caixa 40 (752), Bando de José Nápoles Telo de Meneses, de 9 de Junho de
1780. Alguns destes senhores de engenho tinham «tropas de escravos», como era o
caso de Hilário de Morais Bettencourt (ibidem, caixa 95 (810), Petição da índia Josefa
Martinha, s/d [cerca 1779]).
176 De entre a extensa bibliografia produzida sobre o assunto, cite-se, para este
caso específico, Dauril Alden e Joseph C. Miller, «Out of África: the slave trade and the
transmission of smallpox to Brazil 1560-1831», in Journal of lnterdisciplinary History,
vol. xvni (2), Autumn 1987, pp. 196 e ss.; sobre as doenças provocadas pelos contactos
no continente americano de colonização ibérica, consulte-se Charles F. Merbs, «Pat-
tems of health and sickness in the precontact Southwest», in Cotumbian consequentes.
Archaeological and Historical perspectives on the Spanish Borderlands West, vol. I, editado
por David Hurst Thomas, Londres e Washington, Smithsonian Institution Press, 1989,
pp. 41 e ss; Woodrow Borah, «Introduction», in Secret judgements of God. Old World
desease in Colonial Spanish America, editado por Noble David Cook e George Lovell,
Norman e Londres, University of Oklahoma Press, 1991, pp. 3 e ss.; Henry F. Dobyns,
«Disease transfer at contact», in AnnualReview of Anthropology, vol. 22,1993, pp. 273 e ss.

180
EM C U M P R IM E N T O D O REAL SER V IÇ O

uma epidemia de sarampo. Durante os anos de 50, epidemias de


varíola eclodiram no Maranhão e Pará, causando um estado de
devastação registado em todo o território177. De acordo com Fran­
cisco Dias Pereira, contratador dos dízimos de 1749 a 1751, as roças
ficaram cobertas de mato, os engenhos foram perdidos e as fazendas
destruídas. Não se realizaram tropas de resgates, nem se desceram
índios. Não se enviaram canoas ao sertão por não se poderem esqui-
par. Havia fome e falta de mantimentos por todo o Estado178.
É neste âmbito que surgem novaí medidas com vista a regular o
trabalho indígena e a sua distribuição. Ao contrário do que ocorria
na Hispanoamérica, onde o sistema dos repartimientos havia termi­
nado já no século xvn, mantendo-se unicamente para a mineração,
em território lusitano o principal sistema que regulamentava a con­
cessão de mão-de-obra continuava a ser a repartição dos índios179.
Pelo Directório, os ameríndios das povoações luso-brasileiras eram
divididos em duas partes: uma metade destinava-se à produção de
gêneros alimentares, ao trabalho da comunidade e ao serviço da
coroa, enquanto a outra era canalizada para trabalhos de particula­
res. Para além disso, existia, também, mão-de-obra ameríndia assa­
lariada não incluída nos repartimentos, bem como indivíduos esta­
belecidos por conta própria180.
O governador era, em última instância, responsável pela atribui­
ção do trabalho ameríndio. Só mediante portarias assinadas por esta
autoridade é que os índios podiam ser requisitados por particula­
res181. Uma vez munidos com o documento, os moradores ou os

177 Dauril Alden e Joseph Miller, «Out of África...», pp. 196-197.


178 AHU, Pará, caixa 110 (825), Petição de Francisco Dias Pereira ao rei, s/d [post.
a 1751]; uma situação semelhante é relatada em AHU, Conselho Ultramarino, códice
271, fl. 235, Carta régia aos oficiais da câmara de Belém sobre o pagamento dos dízi­
mos, de 18 de Abril de 1753; também em ibidem, cód. 1275, fl. 147, de 18 de Abril de
1753.
179 Compare-se a situação contrastante entre o Norte brasileiro e a Hispanoamé­
rica onde, «By the seventeenth century, labor in colonial Spanish America was gene-
rally based on the wage labor of native workers (naboríos), mestizos, and mulattos
and on the slave labor of the blacks, even though coerced Amerindian labor conti-
nued illegally and could not be totally abolished» (William D. Phillips, «The Old
World backgroud of slavery in the Américas», in Slavery and lhe rise of the Atlantic
system, p. 45).
180Ciro Flamarion Cardoso, Economia e sociedade em áreas coloniais periféricas..., p. 182.
181 AHU, Pará, caixa 40 (752), Bando de José Nápoles Telo de Meneses sobre
as transgressões feitas às leis reais pelas ambições e «liberdades» dos moradores, de
9 de Junho de 1780; também em ANRJ, cód. 101, vol. 1, fls. 115-116, de 30 de Junho
de 1780.

181
EM C U M P R IM E N T O D O REAL SERVIÇO

seus representantes deviam dirigir-se aos principais das povoações


e às câmaras para recolher a mão-de-obra que lhe era destinada182.
O tempo de requisição era de seis meses, posto o que deviam os
índios regressar às povoações de onde eram originários183.
A concessão do trabalho ameríndio a particulares tinha implíci­
tas algumas contrapartidas. Nelas estava incluído o pagamento de
salários. As tabelas, ajustadas por Mendonça Furtado em 1751, deter­
minavam que se procedesse da seguinte forma: os índios ocupados
em serviços normais deviam receber 400 réis mensais, os pilotos
auferiríam 600 réis e os artesãos especializados teriam 100 réis diá­
rios. O seu desajustamento em relação aos preços das mercadorias
vendidas no Pará levou a que, em 1773, se procedesse a uma altera­
ção nas tabelas salariais: os homens utilizados em serviços pesados
deviam ter uma remuneração mensal de 1200 réis; aqueles ocupados
nos trabalhos leves recebiam 800 réis; as índias destinadas a serviços
pesados e amas-de-leite, 800 réis e as destinadas a serviços leves e
domésticos, 600 réis184. Quanto aos vencimentos dos artesãos índios
especializados, equiparavam-se aos dos luso-brasileiros.
No entanto, numa economia escassamente monetarizada como
a da Amazônia durante a segunda metade de Setecentos, os paga­
mentos não se faziam na maior parte das vezes em dinheiro, mas
em algodão, facas, cacau, aguardente e outros gêneros considerados
pelos luso-brasileiros como úteis aos ameríndios185. Não se processa-

182 AHU, Rio Negro, caixa 19, doc. 52, Parecer de Francisco Xavier Ribeiro de
Sampaio sobre a carta régia de 12 de Maio de 1798 extinguindo o Directório, de 19 de
Junho de 1805.
183As infracções detectadas eram, por lei, seriamente punidas: um mês de prisão e
multa de 5$000 réis por índio (Rita Heloísa de Almeida, O Directório dos índios, p. 237).
184 Por serviços pesados entendia-se o trabalho em roças, engenhos, cortes de
madeiras, transporte de troncos e pedras, navegação, negócios do sertão; os serviços
leves compreendiam os domésticos, a caça e a pesca. A esta remuneração devia
acrescer o «ordinário e preciso sustento» que quotidianamente se devia conceder
(AHU, Pará, caixa 34, Bando promulgado por João Pereira Caldas regulando o salário
dos índios, de 30 de Maio de 1773; também em ibidem, caixa 22 (742)). Os salários
pagos aos índios do Norte do Brasil tinham já sido alterados pelo governador Fer­
nando da Costa de Ataíde Teive em 1772. O aumento de 4 para 12 tostões acarretou
protestos junto dos moradores que diziam não poder comprar escravos e, por isso,
recorriam aos índios assalariados (AHU, Pará, caixa 33 (748), Memórias das acções
do Exm.° Sr. General do Pará, Fernando da Costa de Ataíde Teive, as quais se vêm
declaradas nos seguintes capítulos repartidos e seguindo os três estados Político, Mili­
tar e Eclesiástico por João Baptista Mardel, de 6 de Novembro de 1772).
185 AHU, Rio Negro, caixa 12, doc. 11, Ofício de João Bemardes Borralho a João
Pereira Caldas, de 23 de Julho de 1786.

1 82
EM C U M P R IM E N T O D O REAL SERVIÇO

vam igualmente de forma regular. Se os remeiros e guias empregues


nas expedições de Manuel da Gama Lobo de Almada receberam
atempadamente os seus salários, as altas entidades administrativas
da capitania reconheciam que os índios usados na expedição cientí­
fica de Alexandre Rodrigues Ferreira, no cultivo de anil e nos cortes
e transporte das madeiras para o arsenal não tinham recebido orde­
nados186. O mesmo motivo parece estar na origem de uma deserção
dos índios da parte superior do rio Negro para Nova Granada em
1805. O facto de não se lhes pagaretn os vencimentos respectivos
desde 1800 e os rumores de uma nova requisição para serviço real
provocaram uma debandada geral em direcção a territórios perten­
centes a Espanha187.
Uma outra condição inerente às repartições de mão-de-obra
indígena consistia na responsabilidade que os senhores tinham de
alimentar, vestir, tratar, instruir e doutrinar espiritualmente os seus
dependentes. Apesar de estas disposições estarem já contempladas
pela primeira vez nas «Ordenanzas para el tratamiento de los
índios» como direitos inerentes à condição ameríndia, os princípios
filosóficos, morais e éticos que lhe estavam subjacentes em pleno
século xvni eram diferentes dos iniciais188. Não se negando a impor­
tância da evangelização dos pagãos, a intervenção luso-brasileira
legitimava-se, no entanto, por razões de caridade e humanidade, de
soberania, de reconhecimento e defesa da igualdade entre súbditos.
A intervenção do monarca português era simultaneamente enten-

186 AHU, Rio Negro, caixa 15, doc. 8, Ofício de João Bernardes Borralho a João
Pereira Caldas, de 29 de Outubro de 1787; Pará, caixa 69 (784), Ofício de João Pereira
Caldas a Martinho de Melo e Castro, de 30 de Novembro de 1789. A Fazenda Real
estava igualmente em dívida com os filhos-da-folha eclesiástica e civil, com os artífi­
ces e com os soldados. Faltava moeda, mantimentos, medicamentos e tecidos.
187 AHU, Pará, caixa 53 A (768), Ofício de Caetano Pereira Pontes ao Conde de
Arcos, de 8 de Fevereiro de 1805; AUC, Colecção Conde de Arcos, cód. 27, fl. 115v, Ofí­
cio do Conde de Arcos ao ouvidor do Rio Negro, Caetano Pereira Pontes, 19 de Abril
de 1805; AHU, Pará, caixa 53 A (768), Ofício do Conde de Arcos a Caetano Pereira
Pontes, de 21 de Abril de 1805.
188 Vulgarmente conhecidas por Leis de Burgos, datadas de 27 de Dezembro de
1512, constituem a primeira tentativa para estabelecer uma legislação ameríndia.
Regulamentavam ou codificavam as relações dos índios com os colonizadores e
resultaram de uma junta de eminentes letrados e teólogos que, reunidos em Burgos,
legislaram sobre a liberdade dos ameríndios e o trabalho indígena. Asseguravam aos
índios certos direitos, nomeadamente o de tratamento humano, instrução na fé cristã,
baptismo, casamento, enterro, alimentação, educação, alojamento, vestuário, assis­
tência na doença (Richard Konetzke, América Latina. II. La época colonial, Madrid e
México, Siglo Veintiuno, 16.a edição, 1984, pp. 163-164).

1 83
EM C U M P R IM E N T O D O REAL SERVIÇO

dida como vantajosa para os índios e útil para os luso-brasileiros e


Fazenda Real189. Visava o bem comum, a felicidade, a riqueza e o
bem-estar dos povos, que deviam ser «Bons cathólicos e bons vassa­
los, úteis ao serviço de Deos e de Sua Magestade»190. Em finais de
Setecentos esta legislação não tinha, portanto, uma finalidade peda­
gógica. Pretendia, sobretudo, relembrar as vantagens que, quer para
particulares quer para a Coroa, advinham da «civilização» dos índios
e os inconvenientes políticos, sociais e econômicos que resultavam
de abusos, maus tratos e infracções.
O sistema das repartições, tal como foi aplicado após as reformas
de Mendonça Furtado, permitia a utilização de inúmeros subterfúgios
para ultrapassar a lei. O governador podia, assim, privilegiar apanigua­
dos seus pela concessão de um maior número de portarias e socorrer-se
do seu poder para requisitar uma quantidade significativa de indiví­
duos para serviços públicos ou privados191; os directores, no sentido de
usar a maior quantidade possível de mão-de-obra em benefício próprio,
podiam eludir as contagens demográficas e evitar dar cumprimento às
ordens governamentais192; os moradores tentavam manter os antigos
escravos sob sua tutela na forma de trabalhadores assalariados, prolon­
gar os tempos de serviço dos índios que lhe tinham sido atribuídos e
dar guarida aos fugitivos193; outras vezes dirigiam-se directamente às
povoações para extrair índios sem autorização do governador194.

189 AHU, Pará, caixa 69 (784), Condições com que são concedidos aos particula­
res os índios silvestres dos novos descimentos, de 1 de Julho de 1782.
190 Sobre estes conceitos, veja-se o capítulo VI «A construção de imagens: defini­
ções de ameríndios nos discursos coloniais».
191 AHU, Rio Negro, caixa 1, doc. 47 A, Representação dos moradores das povoa­
ções novas do Rio Negro a Francisco Xavier de Mendonça Furtado sobre as exacções
de Joaquim Tinoco Valente, de 8 de Julho de 1766; JCB, Codex Port. 7, «Ensaio eco­
nômico e político sobre o Pará», de 1816, p. 78.
192 APEP, cód. 114, doc. 10, Ofício de João Xavier de Mariz Sarmento a João
Pereira Caldas, de 27 de Agosto de 1776.
193 AHU, Rio Negro, caixa 1, doc. 30, Ofício de Lourenço Pereira da Costa a Fran­
cisco Xavier de Mendonça Furtado, s/d; Pará, caixa 95 (810), Petição de Josefa Marti-
nha que tinha sido dada de soldada a Hilário de Morais Bettencourt, s/d [cerca 1779],
A índia dizia que os termos da soldada não eram mais que os de uma servidão disfar­
çada; ibidem, caixa 40 (752), Bando de José Nápoles Telo de Meneses sobre as trans­
gressões feitas às leis reais sobre as ambições e «liberdades» dos moradores do
Estado, de 9 de Junho de 1780; ibidem, caixa 78 (793), Ofício do Ouvidor e Intendente
Matias José Ribeiro a Martinho de Sousa e Albuquerque sobre os índios que se con­
servam em poder de Mariana Maia e de suas irmãs Benta Nunes de Sousa e Francisca
Nunes de Sousa, de 7 de Setembro de 1784.
194 ANRJ, 1-17-12-2, Bando de D. Francisco de Sousa Coutinho, de 2 de Julho
de 1796.

18 4
EM C U M P R IM E N T O D O REAL SERVIÇO

A investigação realizada leva-nos a concluir que a mão-de-obra


ameríndia era indispensável à organização social, política e econô­
mica das capitanias do Pará e Maranhão. Essa dependência era tão
grande que por muitos índios disponíveis que houvesse, estes pare­
ciam nunca ser suficientes para satisfazer as necessidades das
povoações, da coroa ou dos moradores. Para além dos serviços
domésticos, agrícolas e artesanais em que eram utilizados, o Estado
dependia dos índios para tarefas tão primárias e vitais como as
comunicações e transportes, a defesâ militar, a construção naval, a
arrematação de contratos, os abastecimentos ou a recolha das dro­
gas do sertão195. Exemplo desta situação é o seguinte caso: em 1761
a capitania do Pará possuía 2520 índios aptos para o trabalho. Des­
tes, 1152 foram distribuídos pelos moradores e 108 pelos principais;
os 1260 restantes dividiam-se entre a esquipação das canoas (do ser­
tão, do corte de madeiras, do bispo, do ouvidor, do intendente, dos
práticos dos Baixos da Tijioca, da canoa de açougue), os pescadores
dos directores e vigários, os recolectores de madeiras para constru­
ção naval, os cortadores de achas, os carpinteiros do arsenal, os pes­
cadores dos pesqueiros reais, os vaqueiros do Marajó, os traba­
lhadores da salga de peixe e das salinas e os responsáveis pelo
abastecimento de S. José do Macapá. Incluíam-se neste número os
oficiais mecânicos que não deviam sair das suas povoações196.
Esta dependência acentuava-se, sobretudo, durante as épocas de
demarcações de limites ou em períodos de dificuldades de relaciona-

195 AHU, Pará, caixa 25 (739 J), Ofício de Manuel Bernardo de Melo e Castro ao
desembargador intendente-geral, de 22 de Agosto de 1763; ANRJ, cód. 99, vol. 1,
fls. 127-127v, Condições com que se deve pôr a lanço o novo contrato do peixe seco
e salgado que se deverá rematar por três anos, s/d [cerca 1767]; BNRJ, 21-2-10, doc. 2,
Detalhe dos índios determinados às esquipações das duas canoas e Guarda-Costa
que se acham estabelecidos nos dois Canais do Norte e do Sul na foz do rio Amazo­
nas, s/d [post a 21 de Outubro de 1773]; APEF, cód. 114, doc. 74, Relação dos índios
que se ocuparam no serviço d'El Rei por mandado do comandante da fortaleza de
Gurupá, 9 de Julho de 1774; BNRJ, 21-2-10, doc. 3, Detalhe dos índios determinados
aos diferentes reais serviços de Macapá, Vila Vistosa, Mazagão e Pesqueiro Real,
regulado por portarias de 18 de Março e 9 de Novembro de 1774, s/d [post a 9 de
Novembro de 1774],
196 AHU, Pará, caixa 21 (739 I), Relação das vilas e lugares e do número de
índios seus moradores e sua distribuição, s/d [cerca 26 de Junho de 1761]. É interes­
sante comparar este mapa geral com os mapas parcelares de cada localidade feitos
pelos respectivos directores. Veja-se APEP, cód. 103, doc. 19, Relação geral de todos
os índios e rapazes capazes de serviço que se acham nesta vila de Salvaterra e fora
dela, de 16 de Fevereiro de 1770; cód. 106, doc. 62, Mapa dos moradores da vila de
Melgaço feita hoje, 17 de Julho de 1770.

1 85
EM C U M P R IM E N T O D O REAL SER V IÇ O

mento entre os estados soberanos197. As viagens das tropas, a circula­


ção das directrizes políticas e governativas, os abastecimentos e as
actividades secundárias decorrentes de mobilizações militares
dependiam dos índios das duas capitanias do Norte brasileiro. Era
sobretudo nestes períodos que as povoações não tinham indivíduos
suficientes para manter a rotatividade de mão-de-obra e que os
moradores viam os seus dependentes ser requisitados para serviços
da coroa198. De igual modo, os directores das povoações eram inter­
pelados, em 1776, a ter sempre prontas as infra-estruturas que per­
mitissem a armação de um bote com 6 a 8 remos por banda para uso
••»|i exclusivo do real serviço; ou seja, alimentos, munições e remeiros
j' das exauridas aldeias e vilas portuguesas em território brasileiro199.
Como consequências óbvias desta necessidade «desenfreada»
de mão-de-obra ameríndia sob as suas várias formas (escrava, livre,
compulsiva), apontamos a rarefacção demográfica de alguns grupos
e a extinção de outros, sinais constantemente sentidos em todo o
território durante a época em estudo, à semelhança do que aconte­
cia em outras regiões da Hispanoamérica. Ambos os factos acabam
por forçar a busca de trabalhadores em áreas cada vez mais afasta­
das dos locais onde seriam utilizados. Ou seja, o trabalho regular, os
maus tratos, as epidemias, a subnutrição e, para além disso, os con­
frontos armados decorrentes da implantação da colonização luso-
-brasileira, dizimavam, de forma mais ou menos célere, os grupos
ameríndios que estavam fisicamente mais próximos dos colonos.
À medida que essas reservas humanas se iam esgotando e que a

197 AHU, Pará, caixa 17 (733), Ordem de João Pereira Caldas a todos os directo­
res das povoações de índios sobre os socorros a enviar à capital ou praça atacada em
caso de confrontos armados com potências coloniais, de 30 de Setembro de 1776.
198 JCB, Codex Port 7, «Ensaio econômico e político sobre o Pará», 1816, pp. 22-
-23; BNRJ, 1-17-12-2, Ofício de D. Francisco de Sousa Coutinho a D. Luís Pinto de
Sousa, de 1 de Agosto de 1796.
199 As ordens dadas nesse sentido datam de período imediatamente antecedente
à assinatura do Tratado preliminar de Santo Ildefonso e foram extensíveis a todos os
directores do Pará e Rio Negro. Para além deste bote com toldo de palha, deviam ter
farinha, sal, pólvora, munição grossa, pederneiras, machados encabados, facões, fer­
ros de cova, enxós, verrumas, pregos, estopa e breu para calafetagem, anzóis e linhas
de pesca e panelas (AHU, Pará, caixa 17 (733), Ordem de João Pereira Caldas a todos
os directores das povoações para terem um bote de 6-8 remos por banda para o real
serviço, de 1 de Fevereiro de 1776; também em IHGB, lata 280, pasta 10, doc. 5;
APEP, cód. 114, doc. 114; AHU, Pará, caixa 17 (733), Ordem de João Pereira Caldas
aos directores das diferentes povoações para terem sempre aprestados os mantimen­
tos que se especificam, de 2 de Setembro de 1776; também em IHGB, lata 280, pas­
ta 10, doc. 5).

186
EM C U M P R IM E N T O D O REAL SERVIÇO

complexificação da sociedade colonial acarretava uma maior depen­


dência de trabalho assalariado ou servil, passou a ser imperativo
procurar índios em locais cada vez mais longínquos.
Os dados que comprovam esta destruição sucedem-se. Assim,
já em 1657, o padre Antônio Vieira denunciava que, no espaço de
quarenta anos, dois milhões de índios tinham sido destruídos no
litoral e que, no interior, cerca de quinhentos povoados tinham
desaparecido200. Um século e meio após, João Daniel relatava que,
quando os portugueses tinham chegado ao vale do Amazonas, os
rios estavam povoados por milhares de indivíduos e por um número
incontável de aldeamentos. Ainda na década de 60, frei João de S.
José Queirós dizia que «Bastaria um sertão de qualquer rio, e não
dos maiores, para povoar Portugal (como está habitado o Minho)
desde Ayamonte a Tuy»201. Alguns anos mais tarde, em meados dos
anos 80, muitos daqueles grupos não passavam de lembranças na
descrição que Alexandre Rodrigues Ferreira fazia dos rios do Norte
brasileiro: a extinção de etnias ameríndias tinha já atingido os
afluentes dos rios Negro e Branco e incluía grupos como os Manau,
os Curanau, os Marapitana ou os Arinis202.
Neste aspecto da repartição de mão-de-obra ameríndia, como,
aliás, em outras questões, a administração de D. Francisco Maurício
de Sousa Coutinho constituiu um período diferenciado. Os organis­
mos centrais começaram a perceber que as directrizes reformistas
aplicadas ao Norte brasileiro ao longo da segunda metade de Sete­
centos não tinham alcançado o êxito que delas se esperava. Atri-
buía-se o fraco desenvolvimento econômico do Pará e Rio Negro a
fraudes, descuidos e omissões fiscais e econômicas203. Imputava-se
o fracasso do discurso colonial elaborado nos anos 50 à incompe­
tência e ambição dos directores204. No meio das considerações que

200 Sobre a questão indígena em Antônio Vieira, veja-se Charlotte de Castelnau-


-UÉstoile, «Salvar-se salvando os outros: o padre Antônio Vieira, missionário no Mara­
nhão, 1652-1661», in Oceanos, 30-31, Abril-Setembro, 1997, pp. 60-61. É Dauril Alden
quem estima em 1000 a 2000 os índios que passaram anualmente pelos mercados de
escravos de S. Luís e Belém entre 1620 e 1720. O mesmo autor menciona que nos anos
seguintes a tendência seria para aumentar («El índio desechable en el Estado de Mara­
nhão durante los siglos xvil y xviii», in América Indígena, vol. XLV (2), Abril-Junho de 1985).
201 Frei João de S. José Queirós, «Viagem e visita...», pp. 91 e 98.
202 Alexandre Rodrigues Ferreira, Viagem filosófica pelo Rio Negro, pp. 616-617.
203 AHU, Conselho Ultramarino, cód. 588, fls. 5-35, Instrução que levou D. Fran­
cisco de Sousa Coutinho que foi no navio Águia e Coração de Jesus, de 1790.
204 AHU, Pará, caixa 22 (742), Ofício de D. Francisco de Sousa Coutinho à admi­
nistração central, de 22 de Março de 1791.

1 87
EM C U M P R IM E N T O D O REAL SERVIÇO

conduziríam à derrogação do Directório, por carta régia de 12 de


Maio de 1798, diagnosticava-se que parte dos problemas do Estado
do Grão-Pará resultava da falta de mão-de-obra e, particularmente,
da má gestão que dela se fazia.
Para se atalhar a «escandaloza conducta» dos directores, Sousa
Coutinho legislava. Primeiro que tudo, determinava que se per­
doasse a deserção dos índios das povoações do Pará e Rio Negro e
que os moradores respeitassem os tempos de repartição das porta­
rias205. Exigia, igualmente, que se cumprisse o que o Directório esti­
pulava sobre a distribuição de aguardentes206. Seguidamente, propu­
nha uma distribuição planificada e racional do trabalho índio. Ou
seja, procurava evitar que fossem mandados ameríndios em quanti­
dade excessiva para a recolecção das drogas da floresta207; sugeria o
aumento de salários e da repartição dos lucros provenientes das dro­
gas do sertão; a substituição dos índios remeiros por escravos nas
viagens para Mato Grosso; a interdição de se repartirem ameríndios
para serviços domésticos; a proibição de casamentos entre índios e
negros; e o aumento de descimentos208.
Algum tempo mais tarde, e com base nos levantamentos demo­
gráficos da povoação activa nos anos de 1791 a 1794, afirmava que,

205 A N /1 1, Brasil. Avulsos, n.° 1, doc. 20, n.° 1, Bando de D. Francisco de Sousa Cou-

tinho, de 25 de Agosto de 1790; AHU, Pará, caixa 22 (742), Ofício de D. Francisco de


Sousa Coutinho ao juiz ordinário da vila de Cametá, de 30 de Novembro de 1790.
206 A questão das aguardentes era fundamental na vivência de luso-brasileiros e
índios. Estes recusavam-se a trabalhar se não se lhes desse uma dose diária desta
bebida, utilizada eficazmente no alívio das dores e das imposições coloniais. A de­
pendência dos índios em relação às aguardentes era grande, tanto no Brasil como na
América Espanhola, sendo um factor de endividamento dos índios e, consequente­
mente, de dependência dos assalariados em relação a credores e empregadores. O Di­
rectório proibia, debalde, o seu comércio aos directores e Sousa Coutinho relembrava
essa interdição (AN/TT, Manuscritos do Brasil, n.° 51, fl. 52, Ofício de Francisco Xavier
de Mendonça Furtado a Manuel Bernardo de Melo e Castro, de 22 de Abril de 1761;
AHU, Pará, caixa 22 (742), Circular do desembargador intendente-geral Luís Gomes
de Faria e Sousa a todos os directores, de 17 de Novembro de 1761; AN/TT, Brasil.
Avulsos, n.° 1, doc. 20, n.° 1, de 25 de Agosto de 1790; AHU, Pará, caixa 22 (742),
Ofício de D. Francisco de Sousa Coutinho à administração central, de 22 de Março
de 1791).
207 AHU, Pará, caixa 22 (742), Portaria de D. Francisco de Sousa Coutinho aos
directores das povoações determinando uma nova forma de ratear os lucros do
comércio das canoas do sertão, de 12 de Fevereiro de 1791; ibidem, Certificado e pare­
cer de José Antônio Carlos de Ávila, escrivão da tesouraria dos índios, sobre a porta­
ria emitida por Sousa Coutinho, de 21 de Março de 1791).
208 AHU, Pará, caixa 22 (742), Ofício de D. Francisco de Sousa Coutinho às insti­
tuições centrais, de 22 de Março de 1791.

188
EM C U M P R IM E N T O D O REAL SERVIÇO

apesar dos cerca de 4000 indivíduos em idade de trabalhar, o Estado


do Pará precisava de mão-de-obra do Maranhão e Piauí e de escra­
vos negros para poder suprir as necessidades que resultavam da
arrematação dos contratos reais, do serviço das câmaras, dos corte e
embarque de madeiras, da construção de navios, das viagens para
Mato Grosso. Definia estas actividades como prioridades políticas e
insinuava que se «deixe de se faltar ou em todo ou em parte a outras
que forçozamente vem a ser as concessões de índios a Particulares e
a expedições do Sertão das Canoas do Comum das Povoaçõens»209.
Em 1816, Sousa Coutinho era acusado de ter assolado o Estado do
Grão-Pará nos 12-13 anos da sua governação: tinha devastado os
ameríndios, dilapidado o Erário Régio e vexado o povo210.

Entre d u a s c u ltu ra s: a p e r m a n ê n c ia c o m o
fo r m a de r e s is tê n c ia p a ssiv a

A fixação das comunidades ameríndias em aldeamentos luso-


-brasileiros significava, primeiro que tudo, o abandono da vida
nômada ou das grandes habitações comunitárias. Indicava também
que deviam submeter-se a uma disciplina rigorosa e abandonar a
sua cultura tradicional. Como consequência do processo de acultu­
ração assistiu-se à desintegração de alguns grupos étnicos e à redefi­
nição de outros, bem como a alterações radicais nas formas de vida
e modos de subsistência dessas comunidades indígenas211.
Conduziu, também, ao desenvolvimento de «formas de perma­
nência» por parte de outras comunidades que resistiram de forma
mais ou menos velada aos esforços feitos pelos colonizadores. Às ten­
tativas por estes desenvolvidas no sentido de esbater as particula­
ridades de cada etnia e de as reduzir a um comportamento unifor­
mizado que permitisse a sua identificação com o ser português e
católico, os ameríndios respondiam com «estratégias de resistência
passiva» que perpetuavam comportamentos e crenças ancestrais

209 BNRJ, 1-17-12-2, Ofício de D. Francisco de Sousa Coutinho a D. Luís Pinto de


Sousa, de 1 de Agosto de 1796.
210 JCB, Codex Port. 7, «Ensaio econômico e político sobre o Pará», pp. 24-26.
211 Neal Lancelot Whitehead, «The ancient Amerindian polities of the Amazon,
the Orinoco and the Atlantic coast. A preliminary analysis of their passage from
Antiquity to extinction», in Amazonian Indians from Prehistory to the Present. Anthopologi-
cal perspectives, editado por Anna Roosevelt, Tucson, Londres, The University of Ari­
zona Press, 1994, p. 43.

189
EM C U M P R IM E N T O D O REAL SERVIÇO

dentro da comunidade212. Estas praticavam-se umas vezes clandesti­


namente, outras com o conhecimento e cumplicidade do poder
colonial, mas, na maior parte dos casos, sem o seu assentimento.
Enquanto detentoras de padrões de comportamento considera­
dos como incivilizados e impróprios, as etnias ameríndias deviam
ser o alvo da atenção de directores e párocos. Importava industriá-
-las a estabelecerem-se permanentemente em aldeamentos, a explo­
rar a terra e a viver em casas individuais. Era vital que abandonas­
sem a prática de uma agricultura itinerante e a substituíssem por um
cultivo regular da propriedade agrícola individual e das terras comu­
nitárias. Havia, ainda, que incentivar os habitantes das povoações
luso-brasileiras a vestirem-se, a comportarem-se de forma casta e
sóbria, a assistirem às cerimônias religiosas com assiduidade.
No entanto, se estas atitudes estavam já interiorizadas por algu­
mas comunidades onde a presença luso-brasileira se tinha feito sentir
há mais tempo ou com maior intensidade, outros grupos revelavam
dificuldades em adaptar-se às imposições estabelecidas pelos coloni­
zadores. Não obstante viverem em núcleos populacionais luso-brasi-
leiros, muitas etnias continuavam a preservar os seus ritmos e os seus
hábitos, levantando algumas dificuldades às autoridades que as vigia­
vam. Mantinham os seus rituais de iniciação. Preservavam muitos
dos seus ídolos e cultuavam os seus antepassados213. A recolha de
vegetais, frutos e bagas, e a caça de animais e aves, permitia um aban­
dono temporário da povoação e uma fuga à vigilância colonial. Era na
floresta ou nas casas das povoações que objectos de culto eram guar­
dados e preservados da acção destruidora de leigos e eclesiásticos ou
do espírito de recolecção de homens de ciência de Setecentos214.

212Para confrontar o que definimos por formas de permanência (resistência passiva


e escondida) e formas de resistência, confronte-se o que aqui é dito com o capítulo V
«Formas de resistência: uma reavaliação das relações entre “dominantes” e “dominados”».
213 Uma síntese sobre a religião dos povos tupi pode ser encontrada em Alfred
Métraux, A religião dos Tupinambás, São Paulo, Editora Nacional, Editora da Universi­
dade de São Paulo, 2,a edição, 1979; Anna Curtenius Roosevelt, «Sociedades pré-his­
tóricas do Amazonas brasileiro», in As vésperas do mundo moderno. Brasil, p. 26.
214 Sobre os motivos religiosos e estéticos que justificavam a destruição das ima­
gens de culto ameríndio, veja-se Serge Gruzinski, «A guerra das imagens e a ocidenta-
lização da América», in América em tempo de conquista, organizado por Ronaldo Vain-
fas, Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor, 1992, pp. 198 e ss.; sobre as razões que
conduziam à sua recolha para serem integradas nos Gabinetes e Museus de História
Natural, veja-se Angela Domingues, «As remessas das expedições científicas no
Norte brasileiro da segunda metade de Setecentos», in Nas vésperas do mundo moderno.
Brasil, organizado por Jill Dias, Lisboa, Comissão Nacional para as Comemorações
dos Descobrimentos Portugueses, 1992, pp. 87 e ss.

190
EM C U M P R IM E N T O D O REAL SERVIÇO

Assim, índios Tapajós e Cayoanas, baptizados há mais de cem anos,


continuavam a retirar-se ciclicamente para umas choupanas escon­
didas na floresta para realizarem uma festa com bailes e bebidas.
O propósito era cultuar os corpos mirrados e cosidos com panos dos
«primeiros homens que houve no mundo» e umas pedras a que
pediam água, peixe e fogo215.
Tal como os Tapajós e Cayoanas, os moradores ameríndios das
povoações luso-brasileiras continuavam a fazer as suas reuniões e
festas tradicionais, com bailes, bebidaS, drogas e danças216. A atitude
comportamental ameríndia podia ser considerada dúbia: se, por um
lado, moravam em povoações luso-brasileiras, usavam roupas, assis­
tiam à missa e aos ritos cristãos, por outro, embebedavam-se e
tomavam drogas, falavam com os espíritos ancestrais e com os
demônios217. Em Barcelos de meados do século existia uma «casa
grande de paricá», onde os homens, para além de tomarem tabaco,
drogas e bebidas, faziam as suas celebrações tradicionais218. Embora
as autoridades administrativas e eclesiásticas manifestassem o seu
desagrado, quer em relação às práticas quer à existência de seme-

215 Este facto foi constatado em 1742 pelo padre Luís Álvares, que queimou
publicamente os ídolos e destruiu as pedras. Nas aldeias luso-brasileiras da segunda
metade do século XVIII constatava-se a permanência de rituais de enterramentos e a
utilização de objectos de culto em cerimônias mágicas (BN, cód. 11 750, Breve notícia
do rio Tapajós cujas cabeceiras último se descobriram no ano de 1742 por uns serta­
nejos ou mineiros de Mato Grosso dos quaes era cabo Leonardo de Oliveira, de 14 de
Agosto de 1741). Confronte-se a descrição do padre Luís Álvares com os resultados
de escavações arqueológicas feitas no baixo Amazonas, onde foram encontradas
múmias e imagens pintadas de antepassados de chefes, bem como pedras que eram
objecto de rituais e que representavam divindades (Anna C. Roosevelt, «Sociedades
pré-históricas do Amazonas brasileiro», pp. 28 e 38-45).
216 Alexandre Rodrigues Ferreira, Viagem filosófica ao Rio Negro, p. 359; Livro da
visitação do Santo Ofício da Inquisição do Estado do Grão-Pará, 1765-1769, texto inédito
e apresentação de José Roberto do Amaral Lapa, Petrópolis, Editorial Vozes, 1976,
p. 227; relacione-se o papel desempenhado pelas danças e bebidas nos festejos e
rituais tanto entre as sociedades ameríndias do Brasil como do México, Guatemala e
Peru (Ronaldo Vainfas, «O baile dos espíritos», in A festa, vol. I, Lisboa, Sociedade
Portuguesa de Estudos do Século XVIII, Editora Universitária, 1992, pp. 245-249).
217 Esta mesma duplicidade era corrente nas áreas sujeitas à dominação espa­
nhola. Veja-se Héctor H. Bruit, «O visível e o invisível na conquista hispânica da
América», in América em tempo de conquista, pp. 84-85.
218 Apesar do seu descontentamento, frei José da Madalena não conseguia dis­
suadir os índios de frequentarem este local. A solução encontrada foi um incêndio
ateado «com manha e recato» por Francisco Xavier de Andrade. A casa foi posterior­
mente transformada em olaria (Alexandre Rodrigues Ferreira, Viagem filosófica ao Rio
Negro, p. 358).

191
EM C U M P R IM E N T O D O REAL SERVIÇO

lhantes locais, revelavam-se impotentes ou cautelosas em relação à


supressão destas «formas de persistência quotidiana».
Muitas das festas realizadas nas povoações luso-brasileiras con­
sistiam, por exemplo, em cerimônias de iniciação masculinas e femi­
ninas destinadas à integração dos membros mais jovens na comuni­
dade adulta, bem como à clarificação e fixação de regras de conduta
ou de estatuto social219. O naturalista Alexandre Rodrigues Ferreira
na sua viagem científica pelas capitanias do Pará e Rio Negro descre­
via-as como uma prática corrente, ainda que clandestina, em algumas
das aldeias e vilas do Estado220. Já em finais dos anos 80, frei Caetano
Brandão fazia o saldo de um esforço colonizador que durava há mais
de trinta anos: os índios eram ignorantes e prevaricadores em matéria
de religião, viviam como brutos e morriam como tal221.
Nos relatos que descreviam a vida quotidiana nas povoações
luso-brasileiras perdidas pelos sertões da bacia hidrográfica amazô­
nica, directores e vigários denunciavam, na maior parte dos casos, a
sua incompreensão ou a sua impotência para controlar tanto etnias
recém-chegadas quanto grupos de há longo tempo «aculturados».
Da vontade que tinham em transformar as civilizações ameríndias à
semelhança da sua própria, bem como da resistência movida pelos
ameríndios de forma subterrânea e constante, espalhada pelas mani­
festações mais ínfimas da vida quotidiana, geravam-se incompreen-
sões culturais. Face a estas situações, os luso-brasileiros podiam
optar por modificá-las ou, simplesmente, deixá-las inalteradas.
É nesta perspectiva que consideramos a exposição que Lucas
José Espinosa de Brito Coelho Folqman, director de Pombal, fazia de
alguns hábitos dos seus aldeãos. Dizia que lhes faltava caridade,

219 Muitas destas práticas são ainda objecto de trabalho de campo de antropólo­
gos que estudam as etnias ameríndias da bacia hidrográfica amazônica e contemplam
grupos brasileiros, venezuelanos e colombianos. Esteban E. Mosonyi, «Los Arahucos
dei Rio Negro», in Boletin Americattista, n.° 33, 1983, p. 146.
220 Ao chegar à puberdade, as raparigas eram encerradas num local próprio da
casa ou numa habitação separada, escondidas aos olhares dos homens da comuni­
dade. Não lhes estava autorizado tomar banho ou alimentar-se senão com caldo de
farinha de mandioca (Alexandre Rodrigues Ferreira, Viagem filosófica pelas capitanias do
Grão-Pará, Rio Negro, Mato Grosso e Cuiabá, Memórias. Zoologia e Botânica, Rio de
Janeiro, Conselho Federal de Cultura, 1972, p. 97); esta mesma cerimônia é praticada
actualmente pela etnia Yanomami com poucas alterações em relação à descrição feita
pelo naturalista luso-brasileiro em finais do século xviii (Jacques Lizot, Tales of the
Yanomami. Daily life in lhe Venezuelan forest, Cambridge e Paris, Cambridge University
Press e Editions de la Maison des Sciences de 1’Homme, 1991, pp. 75 e ss.
221 AHU, Pará, caixa 79 (794), Parecer do bispo D. Frei Caetano Brandão à rainha
sobre uma representação do índio Diogo de Sousa, de 1 de Agosto de 1787.

192
EM C U M P R IM E N T O D O REAL SERVIÇO

porque vendo alguém doente o deixavam nu, com fogo à cabeceira


e não providenciavam ao seu sustento ou ao seu tratamento. Folq-
man descrevia um costume ancestral praticado por algumas etnias
da Amazônia, mas explicava-o em função da sua própria formação
quando o atribuía à «falta de caridade». Tentava minorar esta situa­
ção dando comida e vestuário aos vivos e mortalha aos mortos, mas
percebia que a resolução do problema só podia partir das mais altas
instâncias governativas222.
Estas incompreensões culturais revçlam-se, também, em relação
a outro aspecto. Na sua função de vigiar e controlar a comunidade,
directores e párocos descreviam a instabilidade demográfica que
caracterizava as povoações do monarca português em território
amazônico e apontavam a inadaptação dos índios às regras da socie­
dade colonial luso-brasileira. Mas a sua análise dos factos que iam
ocorrendo nas capitanias do Rio Negro e Pará reflectia a maneira
como viam as sociedades ameríndias e a sua formação de homens
da segunda metade de Setecentos interferia na objectividade da
exposição. Desta forma, o que muitas vezes era classificado na cor­
respondência da época como «deserções de ameríndios» pode ser
entendido, obviamente, como o abandono da aldeia por parte de um
grupo que decidia ir viver para o sertão. Mas pode, de igual modo,
ser considerado como uma saída temporária, espécie de reminiscên-
cia de hábitos ancestrais ou alternativa às limitações impostas pelas
regras de conduta colonial, implicando, assim, um retomo voluntá­
rio e a curto prazo dos ameríndios aos aldeamentos. Estas ausências
estavam, na sua maioria, associadas à procura de caça e pesca ou à
recolha de alimentos na floresta e podiam ser interpretadas precipi­
tadamente pelas autoridades coloniais como uma fuga das popula­
ções indígenas dos aldeamentos luso-brasileiros.
Era esta a posição do governador do Rio Negro, Joaquim Tinoco
Valente, quando expressava a sua censura ao reparar que não era
possível fazer com que os índios habitassem as povoações, cons­
truíssem casas ou cultivassem terras. Dizia que os índios preferiam
viver muitos meses fora das povoações e fora do grêmio da igreja,
da disciplina e da obediência que os vassalos deviam observar,
vivendo como que amocambados223. A mesma situação era comen-

222 APEP, códice 108, doc. 7, Ofício do director da vila de Pombal ao governador
da capitania, de 7 de Agosto de 1770.
223 AHU, Rio Negro, caixa 1, doc. 41, Ofício de Joaquim Tinoco Valente a Fer­
nando da Costa de Ataíde Teive, de 24 de Julho de 1764.

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EM C U M P R IM E N T O D O REAL SERVIÇO

tada pelo comandante da fortaleza de S. Joaquim do rio Branco que,


contudo, a interpretava de forma diferente. No seu relatório a João
Pereira Caldas notava a dispersão de índios que, finais dos anos 80,
estavam fixados em torno da fortificação. Porém, atribuía este facto
à fome que então grassava, considerando-o, consequentemente,
como um fenômeno temporário e uma solução habitualmente
usada pelos índios, destinada a suprir as carências alimentares do
grupo224.
De igual modo, e sob pena de terem as povoações permanente­
mente desertas e os hábitos de ataques e pilhagens reactivados, os
funcionários leigos e eclesiásticos das povoações do rio Madeira per­
cebiam que nada podiam fazer em relação às ausências temporárias
dos índios que constituíam as povoações Mura. Os hábitos ances­
trais da etnia justificavam, aos olhos dos funcionários administrati­
vos das aldeias, as suas ausências constantes das povoações. O desa­
parecimento destes índios era particularmente notado quando se
convocavam para trabalhar na construção das casas ou no plantio
das roças. Intemavam-se imediatamente na floresta, regressando à
noite225. Dava-se igualmente conta que, apesar de possuírem um
apetite insaciável por farinha de mandioca, se recusavam a trabalhar
nas roças e preferiam dedicar-se à captura de tartarugas e peixes-boi,
bem como à recolecção de castanhas-do-pará e à feitura de ca­
noas226. É que, e nunca é demasiado relembrar, a agricultura era uma
actividade exclusivamente feminina e repugnava aos homens da
etnia a sua prática.
Contrariamente ao que se podería pensar, as «estratégias de per­
manência» não se desenvolveram unicamente em locais afastados

224 Em alternativa à mandioca, os índios procuravam no mato frutos de miriti,


guarea e palmitos (AHI, 340/04/02, Ofício de João Bernardes Borralho a João Pereira
Caldas, de 6 de Janeiro de 1788; também em AHU, Rio Negro, caixa 15, doc. 2 ).
225 AHU, Rio Negro, caixa 15, doc. 1, Ofício de Sebastião Pereira de Castro a João
Pereira Caldas, de 2 de Janeiro de 1788.
226 De resto, estes produtos eram a base de um comércio de troca que efectua-
vam com os luso-brasileiros. Estes preferiam receber tartarugas pelas suas produções
agrícolas do que verem-se delas despojados a troco de coisa nenhuma. Os Mura tro­
cavam ainda tartarugas e drogas do sertão por arpões, sararacas, espelhos, navalhas,
foices, canivetes, aguardente, tecidos e, obviamente, farinha. Com estas trocas, as
autoridades procuravam incentivar a pesca mas, também, a agricultura e a apetência
dos índios pelas manufacturas e quinquilharias europeias (ibidem, caixa 13, doc. 2,
Ofício de Henrique João Wilkens a João Pereira Caldas, de 26 de Julho de 1786; ibi­
dem, caixa 16, doc. 7, Extracto de ofício do comandante do registo de Borba a João
Pereira Caldas, de 3 de Maio de 1788).

1 94
EM C U M P R IM E N T O D O REAL SERVIÇO

dos centros de colonização. Deparamos com a prática de cultos e


costumes ancestrais indígenas reprovados pela sociedade colonial
em várias povoações luso-brasileiras fundadas desde o tempo das
missões e até na própria cidade de Santa Maria.
Uma das formas mais interessantes traduz-se na prática de feitiça­
rias, adivinhações e defumações, praticadas de acordo com ritos ame­
ríndios e envolvendo todos os estratos da sociedade colonial de Belém
do Pará. Na capital dos domínios do monarca fidelíssimo no Norte bra­
sileiro, governadores, proprietários,^artífices, criados e escravos,
homens e mulheres socorriam-se das práticas mágicas usadas pelos
ameríndios para curar enfermos, conciliar amantes, descobrir ladrões
ou quebrar feitiços227. Foi assim que Manuel de Sousa Novais e Domin­
gos Rodrigues Lima, cristãos-velhos moradores em Belém, mandaram
buscar a índia Sabina ao rio Acarã. A sociedade colonial atribuía a esta
mulher um grande poder mágico, capaz de acabar com as feitiçarias
que, ao primeiro, lhe dizimavam a escravaria e, ao segundo, lhe enfei­
tiçavam a família228. Também João de Abreu Castelo-Branco, governa­
dor e capitão-general do Estado do Maranhão, Antônio Rodrigues
Martins, tesoureiro dos índios, e Manuel da Costa Fenão, tesoureiro
dos ausentes, se soconeram dos serviços da mesma mulher229.
Na tentativa de recuperar a saúde ou repor a ordem, a sociedade
colonial que, oficialmente, bania, condenava ou ignorava os pagés ou
xamans, oficiosamente utilizava e recompensava estes especialistas
mágicos, curandeiros e religiosos. Tal como Sabina, também Anto-
nino, Domingos de Sousa, Bernardina, Pedro Rodrigues e Antônio
exerciam os mesmos poderes curativos que vinham tanto de cascas e
raízes de árvores, purgas e defumadouros como de danças e rezas230.

227 Também na Hispanoamérica, os processos inquisitoriais revelam a existência


de formas de resistência nativa, patentes na continuação de práticas de idolatria, feiti­
çaria, rituais, sacrifícios humanos, conhecimentos medicinais. Eram uma forma de
perpetuar antigas crenças e saberes. Contudo, as denúncias à Inquisição foram tam­
bém manipuladas para afastar caciques e outros indivíduos do exercício do poder
(Richard E. Greenleaf, «Persistence of native values: the Inquisition and the Indians of
Colonial México», in The Américas, L (3), 1994, pp. 352-353).
228 Livro da visitação do Santo Ofício da Inquisição, pp. 165 e 172.
229 Ibidem, pp. 172-173 e 174; João de Abreu Castelo-Branco foi décimo sétimo
governador e capitão-general do Estado do Maranhão e Pará, fidalgo da Casa Real e
comendador da comenda de Collos da Ordem de Santiago. Tomou posse a 18 de Setem­
bro de 1737 e manteve-se em funções até 1747 (Antônio Ladislau Monteiro Baena, Com­
pêndio das eras da Província do Pará, s/1, Universidade Federal do Pará, 1969, pp. 151-155).
230 Ibidem, pp. 223 e 225. É o bispo frei João de S. José Queirós quem afirma que
nos casos delatados de feitiçaria nada mais tinha encontrado que um conhecimento

195
EM C U M P R IM E N T O D O REAL SERVIÇO

Contudo, numa cidade portuária como era Santa Maria, deten­


tora de um tráfico mercantil que trazia ao Norte brasileiro reinóis e
negros, as crenças e as práticas mágicas sofriam a influência do
outro lado do Atlântico. O processo de aculturação que tanto tem
sido mencionado conhece, agora, um outro sentido, com a feitiçaria
reinol a ser adoptada pelas índias que trabalhavam ao serviço dos
senhores e crioulos. Assim, a mameluca Domingas Gomes da Res­
surreição tinha aprendido com a sua antiga senhora, D. Maria de
Barros, a arte de «fazer curas de quebranto eripizela e dor de olhos»
através da invocação da Santíssima Trindade231. Também a índia
Quitéria chamava os nomes de S. Pedro, Santiago e S. Paulo en­
quanto cravava uma tesoura em um balaio para poder encontrar os
autores de furtos232. As evocações ancestrais de deuses e demônios
índios mesclavam-se com a chamada dos santos da igreja católica;
os fumos de ervas da floresta misturavam-se ao poder da água
benta; e os antigos exorcismos e cânticos ameríndios potencializa­
vam-se com o efeito benfazejo das orações centenares cristãs233.
As denúncias feitas à Inquisição revelavam, ainda, que uma das
manifestações utilizadas pelos ameríndios para exprimir o seu desa­
grado contra a presença colonizadora consistia no desrespeito pelos
símbolos religiosos mais sagrados dos luso-brasileiros. Tal como
tinha já ocorrido durante as revoltas do Rio Negro em 1756, com os
rebelados a destruírem a efígie de Santa Rosa e as igrejas de duas
povoações, na cidade e nas regiões em seu redor, os principais alvos
eram as imagens e os objectos sagrados234. Miguel e Pedro, filhos de
André Miguel Aires, tinham feito «horríveis desacatos e acções que
costumão faser os indios» às imagens que estavam num oratório,
cuspindo-lhes, injuriando-as e mostrando-lhes as nádegas235. Da
mesma forma Joana Mendes Azeitona e Rosaura partiram um rosá­
rio, calcando as contas com os pés ao mesmo tempo que diziam
renegar a Santíssima Trindade e a Virgem Maria236.

natural de plantas e ervas medicinais e que as saudações e benzeduras feitas pelos


pagés, que fingiam ter pacto com o diabo, podiam ser substituídas e curadas por
exorcismos de pau («Viagem e visita do sertão em o bispado do Grão-Pará em 1762-
-1763», in Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, tomo ix, 1847, p. 368).
231 Ibidem, p. 180.
232 Ibidem, p. 157.
233 Ibidem, pp. 157 e 173.
234 Alexandre Rodrigues Ferreira, Viagem filosófica ao Rio Negro, pp. 55 e ss.
235 Livro da visitação do Santo Ofício..., pp. 220-221.
236 Ibidem, p. 163.

196
EM C U M P R IM E N T O D O REAL SERVIÇO

Uma das formas de resistência mantida pelas etnias ameríndias


de há longo tempo consistia na realização de práticas contraceptivas
e abortivas. Se as doenças, o modo inadequado como os índios
eram tratados e a ausência dos homens adultos podem explicar o
decréscimo da população, deve-se também referir que as mulheres
ameríndias reprimiam a natalidade ou cometiam infanticídios como
uma forma de resistência à dominação colonial237. Já Faustino da
Fonseca Freire e Melo se referia a este tipo de práticas em relação
aos Timbira do Maranhão, «gentio péssimo e de quantos aquy se
venderão a mayor parte fugio e se achão mortos pelos circuitos
desta cidade, muitas comendo as mães os filhos e não se achão de
todo maiz que alguns pequenos»238. Na cidade de Belém dos anos
60, as índias continuavam a utilizar os conhecimentos medicinais e
mágicos ancestrais de pagés para abortar. Pedro Rodrigues, carpin­
teiro, «tido e commummente reputado por feitiçeiro adivinhador e
principal mestre ou oráculo entre os índios», incitava as índias a
matar os fetos fazendo rezas e dando beberagens. Igual procedi­
mento era atribuído ao capitão Marçal Agostinho239.
Detendo funções equiparadas às dos pajés entre as sociedades
ameríndias, estes indivíduos eram os responsáveis pela manutenção
das antigas crenças e ritos ameríndios na sociedade urbana colonial.
De acordo com a opinião válida de historiadores como Hugo Fra­
goso, a estratégia de sobrevivência dos ameríndios «era simples­
mente ocultar aos conquistadores sua vivência religiosa própria» no
sentido de evitar a destruição dos objectos de culto e de preservar a
sua identidade cultural240. Ora se esta afirmação é válida para os
casos relacionados com os ritos religiosos indígenas, no que diz res­
peito às práticas mágicas ameríndias que, de algum modo, se po­
diam relacionar com o «universo familiar» da feitiçaria e da magia
europeias, essas foram utilizadas pelos luso-brasileiros em seu bene­

237 Confronte-se Antônio Porro, «Social organization and political power in the
Amazon floodplain. The Ethnohistorical sources», in Amazonian Indians frotn Prehistory
to the present. Anthropological perspectives, edição de Anna Roosevelt, Tucson e Londres,
The University of Arizona Press, 1994, p. 81.
238 BN, Colecção Pombalina, cód. 621, fls. 244-245v, Ofício de Faustino da Fonseca
Freire e Melo a Francisco Xavier Mendonça Furtado, de 20 de Março de 1753.
239 Ibidem, pp. 225-227.
240 Hugo Fragoso, «A era missionária», in História da Igreja na Amazônia, p. 178.
O mesmo é aplicável ao território hispano-americano onde, de igual forma, a oculta-
ção das antigas crenças e tradições evitou o desaparecimento da cultura ameríndia e a
absorção da cultura hispânica; confronte-se Hector Bruit, «O visível e o invisível na
conquista hispânica da América», p. 84.

197
EM C U M P R IM E N T O D O REAL SER V IÇ O

fício, da sua saúde ou da sua riqueza. Afinal, foi para terminar com
maus-olhados e maleitas que um governador da capitania, João de
Abreu Castelo-Branco, consentiu na celebração de rituais mágicos
indígenas no palácio governamental241.
Ao avaliar esta questão, importa considerar que os luso-brasilei-
ros tinham, eles próprios, a sua «cultura popular» e, tal como men­
cionámos, havia «referências familiares» e associações que se po­
diam estabelecer a esse nível. São estas afinidades, constituídas por
superstições e crenças paralelas em duas culturas distintas, tantas
vezes antagônicas, que sobressaem, por exemplo, do Livro de Visita­
ção do Santo Ofício ou dos escritos de um observador irônico e lúcido
como era frei João de S. José Queirós. Face à persistência de rituais
ameríndios e de práticas de magia nas povoações luso-brasileiras, o
bispo comentava: se em Portugal se mantinham ainda vivas tantas
superstições, datadas da ocupação romana e, até, de períodos ante­
riores, como se poderia estranhar que na floresta amazônica, onde
tantos indivíduos eram missionados por tão poucos e tão recente­
mente, ainda se seguissem as antigas crenças242?
O que queremos, contudo, ressaltar é que, ao contrário do que
se passou em outras capitanias no vice-reinado do Brasil, as compo-
nentes-chave desta cultura não pareciam sofrer grande influência de
valores africanos243. Apesar de ser um porto de mar onde afluíam
regularmente tumbeiros, Belém da segunda metade de Setecentos
parece ter privilegiado na formação da sua cultura popular elemen­
tos católicos e ameríndios. A religião afro-católica, tal como ocorreu
nas regiões mineradoras e no litoral nordestino brasileiro do século
xviii, não parece ter ocupado um lugar relevante na sociedade colo­
nial paraense e rionegrina244.

241 Livro da visitação do Santo Ofício da Inquisição, pp. 172-173.


242 Frei João de S. José Queirós, «Viagem e visita do sertão em o bispado do
Grão-Pará em 1762-1763», p. 368.
243 Confronte-se, por exemplo, Donald Ramos, «A “voz popular” e a cultura
popular no Brasil do século xviu», pp. 144 e ss.
244 Este fenômeno explica-se, ainda que parcelarmente, pela relevância que a pre­
sença negra tinha nas capitanias do açúcar nordestinas de Pernambuco e Bahia durante
o século XVII, bem como nos distritos mineiros e no Rio de Janeiro ao longo do centénio
seguinte. Tal como reparou Joseph Miller, «Much smaller mumbers of captive Africans
embarked from PortugaPs two small trading towns on the Upper Guinea coast, Bissau
and Cacheu, mostly destined for BraziPs far northern captaincies, Maranhão and Pará,
in the middle and later eightheenth century», in «A marginal institution on the margin
of the Adantic system: the Portuguese Southern Atlantic slave trade in the eightheenth
century», in Slavery and the rise of the Atlantic system, p. 124.

198
C A P Í T U L O IV
«
«AS MURALHAS DO S E R T Ã O » ;
OS AMERÍNDIOS NA DEFESA DA INTEGRIDADE
TERRITORIAL LU S O - BR ASILEIR A
O discurso colonial definido pelo aparelho estatal luso-brasileiro
para o Norte do Brasil durante a segurftía metade do século xvm con­
siderava os ameríndios como vassalos de pleno direito, no sentido
de os transformar em instrumentos efectivos de colonização. Houve
um empenho notório por parte da coroa portuguesa e do aparelho
político e administrativo na constituição de um programa coloniza­
dor que procedesse à transformação da sociedade colonial luso-bra-
sileira do Estado do Grão-Pará e do papel que os ameríndios nela
ocupavam.
A reformulação da importância dos índios na concepção da
política colonial setecentista aplicada à área geográfica em análise,
explica-se pela necessidade que o Estado teve em firmar a sua auto­
ridade tanto a nível interno como externo. É este último aspecto que
procuraremos clarificar no presente capítulo e, para tal, faremos
incidir esta abordagem na importância que é dada aos índios no
contexto dos jogos da estratégia e da disputa de poderes que carac­
terizaram a geopolítica colonial sul-americana durante a segunda
metade do século xviii.
Ainda hoje, em pleno século xx, os meios de comunicação
social dão frequentemente conta da indeterminação do espaço terri­
torial que existe entre o Norte do Brasil e países circunvizinhos.
Assim, as tropas dos exércitos brasileiro e da República da Colôm­
bia ou dos cartéis de droga deste país acusam-se mutuamente de
invadir território alheio, dando origem a escaramuças fronteiriças.
Também se noticia a existência de etnias ameríndias que tomam
reféns entre europeus que, motivados por interesses privados ou
públicos, invadem territórios nativos1. Além disso, muitas etnias
dividem-se por espaços territoriais de vários países limítrofes, como
é o caso dos Wanano, que ocupam a planície do rio Uaupés, tanto
do lado colombiano quanto do lado brasileiro2.

1Jornal ftíWrcc (edição Lisboa), 6 de Junho de 1997, «Brasil. índios fazem reféns», p. 48.
2 Janet M. Chernela, The Wanano Indians of lhe Brazilian Amazon: a sense of space,
Austin, University of Texas Press, 1993, p. 4.

201
«AS M U R A L H A S D O SE R T Ã O »

Estes acontecimentos, que levantam questões sobre os limites


entre os países e sobre as áreas de soberania nacional, regional ou
étnica, não são, pois, um problema que se coloca só na actualidade3.
As fronteiras equacionaram-se de forma indefinida desde o início
das colonizações portuguesa e espanhola do continente americano e
questionaram-se quando outras potências europeias se propunham
invadir espaços que eram considerados pelos países ibéricos como
sua legítima propriedade. Surgiram, também, de forma mais acuti-
lante, quando passou a haver confrontos entre as linhas-da-frente de
colonizações estruturadas, nomeadamente as ibéricas. As primeiras
tentativas para solucionar as disputas pela posse do território em
análise e as escaramuças fronteiriças decorrentes da ambiguidade de
soberania nessas áreas surgiram ainda durante a primeira metade do
século xvill, mas o culminar da actividade diplomática e do trabalho
de «localização, delimitação e demarcação» de fronteiras decorreu
em período imediatamente anterior e ao longo da segunda metade
daquele século.
Os jogos políticos e diplomáticos desenrolados ao nível das
casas reinantes europeias eram seguidos nos confins do sertão ama­
zônico e as oscilações provocadas por períodos altemantes de paz e
de guerra reflectiam-se na instabilidade da política geo-estratégica
e militar coloniais, bem como nas indecisões das atitudes das tropas
estacionárias na fronteira. Por sua vez, estas nunca sabiam se
deviam avaliar os opositores como inimigos ou aliados políticos
mas, não obstante, consideravam-nos sempre como aqueles que,
por contraposição aos índios, lhe eram familiares e com os quais se
identificavam, porque falavam uma língua semelhante e tinham
referências culturais e mentais próximas.
As tensões políticas relacionadas com a partilha de soberania
entre os países europeus introduziram junto das etnias ameríndias
novos elementos que se tornaram responsáveis por mudanças,
incompreensões e desequilíbrios: uma delas foi a noção de fronteira
«colonial» junto de indivíduos e comunidades que não tinham
noção do que era o Estado do Grão-Pará ou o Vice-Reinado de Nova
Granada; outra consistiu na introdução de noções de identidade e
unidade, através das quais as monarquias europeias pretendiam
incutir, junto das diferentes etnias, um sentimento de pertença a um

3 Nádia Farage e Paulo Santilli, «Estado de sítio: territórios e identidades no vale


do rio Branco», in História dos índios do Brasil, organizado por Manuela Carneiro da
Cunha, pp. 267 e ss.

202
«AS M U R A L H A S D O SE R T Ã O

território colonial, ou seja, de identificação com a coroa portuguesa,


mas diferenciação face à coroa espanhola. Esta questão relaciona-se
com a existência de princípios de vassalagem, fidelidade e subordi­
nação que se queriam implantar com o plano de colonização deli­
neado pelo Estado português para o Norte brasileiro da segunda
metade de Setecentos.
Pensamos que na estruturação do discurso político colonial sete-
centista para a questão indígena esteve presente a importância estra­
tégica dos índios na defesa e preservação do território. Este é tam­
bém um factor que permite compreender o empenho do aparelho
estatal na execução do projecto colonial aplicado ao Norte brasileiro
durante a segunda metade do século xviii.

In s ta b ilid a d e fr o n te ir iç a : u m a v ia c o m
d o is s e n t id o s

A expansão colonial ibérica esteve, durante três séculos, juridi­


camente delimitada pelo Tratado de Tordesilhas e, teoricamente,
confinada por uma linha divisória que, traçada a trezentas e setenta
léguas a oeste do arquipélago de Cabo Verde, determinava as áreas
de influência de cada potência interveniente. No entanto, a abstrac-
ção de uma linha divisória e a indefinição de medidas, o desconheci­
mento geográfico e humano da realidade sul-americana e limitações
de ordem técnica condicionaram a fronteira imposta por Tordesi­
lhas, reservando à dinâmica e à capacidade de cada país a sua actua-
ção futura sobre terras sul-americanas.
Até ao século xviii, a fronteira luso-brasileira foi incorporando
territórios que se encontravam a uma latitude que extravasava qual­
quer interpretação razoável do meridiano determinado. Beneficiava
da conjuntura política europeia e, obviamente, da União Ibérica e do
período durante o qual tinham deixado de fazer sentido as distin­
ções territoriais entre as grandes potências que dividiam entre si o
território sul-americano (1580-1640). Como ainda era favorecida
pela pobreza (por vezes aparente), pela periculosidade e pelas difi­
culdades de comunicação de um espaço imenso, compreendido
entre duas zonas de opulência: o Brasil do litoral e das minas e o
vice-reinado do Peru.
Esta afirmação é particularmente válida para o Norte amazônico
que, durante muito tempo, foi considerado como tendo um valor
econômico nulo para os colonizadores. A floresta equatorial amazó-

203
«AS M U R A L H A S D O SE R T Ã O »

nica era uma fronteira física e cultural para os espanhóis; para eles,
a selva ocidental estava carregada de mais valores simbólicos que a
oriental; separava os impérios andinos altamente organizados e
ricos das terras altas e gentes da floresta, os caçadores e recolectores
das terras baixas4.
O conde de Superunda, vice-rei do Peru, definia desta forma a
bacia hidrográfica amazônica: «Los países no conquistados son una
selva e montarias de difícil trânsito y los Uanos muy húmedos, cega-
nosos e ardientes, por lo que no pueden mantenerse los espanoles.
Las naciones que alli habitan son bárbaras. No cuidan de cubrir su
desnudez y sus casas son tan pobres que nada pierden aunque se las
quiten [...]. Reducirlos por armas se he tenido siempre por imposi-
ble, respecto de que con mudarse de un lugar a otro e intemarse en
lo más espeso de la montana [...], quedan frustradas las diligencias,
perdidos los gastos y expostas muchas vidas por las enfermidades
que se contraem.»5
Este desinteresse das autoridades espanholas tinha sido já assi­
nalado pelo padre Samuel Fritz quando, em 1692, alertou o vice-rei
do Peru, conde de Monclova, para a necessidade de impedir a pro­
gressão das expedições luso-brasileiras pelo rio Solimões, bem como
a ocupação de terras que, gradualmente, iam sendo colonizadas por
portugueses6. O vice-rei respondeu que estes eram cristãos católicos
e muito combativos e que as índias tinham terras suficientes para
que as potências peninsulares pudessem aumentar os seus domínios
sem haver razão para confrontos7.

4 Edmund Hegen, «The Andean frontier», in Journal of Inter-American Studies,


October, 1963, pp. 431 e ss. Para uma revisão desta dicotomia entre terras altas e flo­
resta, civilizações complexas e grupos tribais, veja-se Anna Curtenius Roosevelt,
«Sociedades pré-históricas do Amazonas brasileiro», in Nas vésperas do mundo moderno.
Brasil, dirigido por Jill Dias, Lisboa, Comissão Nacional para as Comemorações dos
Descobrimentos Portugueses, 1992, pp. 26 e ss.; Chantal Caillavet, «Entre sierra y
selva: las relaciones fronterizas y sus representaciones para las etnias de los Andes
septentrionales», in Anuário de Estúdios Americanos, XLV1I, 1990, pp. 71-91.
5 Francisco Requena y otros, Ilustrados y barbaros. Diário de la exploratión de limites
al Amazonas (1792), edição de Manuel Lucena Giraldo, Alianza Editorial, Madrid,
1991, pp. 7-8.
6 Samuel Fritz, jesuíta da Província de Espanha, viajou, em 1678, de San Joaquín
de Omáguas para as aldeias Jurimagua do médio Solimões. Aí viveu durante dezoito
anos. Foi o primeiro a registar um movimento messiânico na Amazônia, organizado,
aliás, em tomo da sua pessoa (Antônio Porro, «Mitologia heróica e messianismo na
Amazônia Seiscentista», in Revista de Antropologia, vol. 30-31-32, 1987-1988-1989).
7 Antônio Porro, Crônicas do rio Amazonas. Notas etno-históricas sobre as antigas
populações indígenas da Amazônia, Petrópolis, Editorial Vozes, 1992, p. 160.

204
AS M U RA LH AS DO SERTÃO

A colonização espanhola da bacia hidrográfica amazônica aca­


bou por ficar confinada a iniciativas particulares sendo, em boa parte,
sustentada até meados do século XVIII por missionários jesuítas que
foram ocupando os rios Ucayali, Huallaga, Mararion e Napo8. Do
lado português, os luso-brasileiros penetraram acentuadamente para
o interior, motivando-se quer pela captura e tráfico de índios quer
pela ocupação e colonização de terras cada vez mais para oeste, con­
tando, na maioria das vezes, com o apoio e o financiamento estatais9.
Apesar dos encontros de luso-brasileiros e jesuítas espanhóis no
Alto Rio Negro e nos rios Içá, Japurá, Solimões, Juruá e Purús, a acti-
vidade colonizadora luso-brasileira só foi travada em Setecentos,
quando ficaram eminentes conflitos fronteiriços entre as duas fren­
tes de colonização, a luso-brasileira e a hispano-americana10.
Impunha-se um reajuste na definição de áreas de soberania e no
controlo e ocupação efectiva do espaço colonial na América do Sul.
A primeira tentativa diplomática destinada a corresponder a este
intento ocorreu em Madrid, a 13 de Janeiro de 1750, data da assina­
tura de um tratado cujas negociações tinham demorado 13 anos e
que, volvidos onze anos, seria anulado pelo Tratado do Pardo. Pos­
teriormente, em 1777, seria celebrado um outro acordo, o Tratado
Preliminar de Santo Ildefonso, prioritariamente destinado a cessar as
hostilidades que, entre 1763 e 1776, estiveram latentes nas zonas de

8 Manuel Lucena Giraldo, «Las expediciones de limites y la ocupacion dei espa­


do americano, 1751-1804», in Homenaje al Pe. José Del Rey, Faramillo, San Cristobal,
UCAT (no prelo); Antônio Porro, «Mitologia heróica e messianismo na Amazônia
seiscentista», p. 384.
9 Para a expansão luso-brasileira no vale amazônico, veja-se o estudo de Max
Justo Guedes, «Os limites territoriais do Brasil a Noroeste e a Norte», in Portugal no
Mundo, direcção de Luís de Albuquerque, vol. v, Lisboa, Publicações Alfa, 1989; para
os núcleos urbanos e arraiais fundados com o financiamento régio e por iniciativa
particular no Rio Negro, veja-se A N /1 1, Manuscritos do Brasil, n.° 51, doc. 2, s/d
[cerca 1755].
10 Para a fronteira de Mato Grosso, veja-se o estudo de David M. Davidson,
«How the Brazilian West was won: freelance and State on the Mato Grosso frontier
(1737-1752)», in Modem roots of Colonial Brazil, editado por Dauril Alden, Berkeley
e Los Angeles, University of Califórnia Press, 1973, pp. 61-106; Ângela Domingues,
«O forte Príncipe da Beira na estratégia de Luís de Albuquerque de Melo Pereira
Cáceres», in Portugaliae Histórica (no prelo); para a Amazônia, veja-se o estudo clássico
de Artur César Ferreira Reis, «Limites e demarcações na Amazônia brasileira. A fron­
teira com as colônias espanholas. O Tratado de Santo Ildefonso», in Revista do Instituto
Histórico e Geográfico Brasileiro (244), Julho-Setembro de 1959 e Ângela Domingues,
Viagens de exploração geográfica na Amazônia em finais do século xvill: política, ciência e
aventura, Funchal, Centro de Estudos de História do Adântico, 1991.

205
AS M U RA LH AS DO SERTÃO

fronteira e a estabelecer um ponto de partida para empreender ver­


dadeiras negociações.
Mas a instabilidade sentida nas fronteiras coloniais não era só
motivada localmente pela indeterminação das áreas de soberania.
Outro dos motores que agravava a tensão política nas fronteiras da
colônia era a política das monarquias europeias, isto é, as alianças e
os tratados, os casamentos ou as agressões que ocorriam entre os
países que dividiam entre si território sul-americano. Sobretudo,
porque a verdadeira origem de muitos dos jogos e acordos diplomá­
ticos celebrados na Europa de Setecentos se relacionava com os
impérios coloniais e com as riquezas que o comércio por eles gerado
trazia aos Estados europeus11.
A consolidação dos novos impérios coloniais da França, da
Inglaterra e da Holanda fazia-se à custa dos velhos impérios ibéricos.
Economistas franceses e ingleses de finais do século xvn e da centú­
ria seguinte apontavam que as perspectivas de engrandecimento dos
respectivos países residiam não numa anexação territorial dos seus
vizinhos europeus mas na expansão colonial e marítima12. Na se­
gunda metade do século xvm, reconhecia-se que a posse da América
era a fonte mais importante de poder político e que o comércio colo­
nial de um país continha a origem da sua força13.
É, assim, que o problema das fronteiras na América, ou seja, de
quem conseguiria obter o domínio e a exploração de uma maior

11 M. S. Anderson, The rise of Modem Diplomacy, 'I450-19'I9, London e New York;


Longman, 1993, p. 170.
12 A. J. R. Russell-Wood, «Portugal and the world in the Age of D. João V», in
The Age of the Baroque in Portugal, editado por Jay A. Levenson, Washington, New
Haven e Londres, The National Gallery of Art, Yale University Press, 1993, pp. 27-28.
Para além de uma expansão colonial dos países do Norte da Europa feita, em parte,
«à custa» de antigos domínios ibéricos, há que referir a importância do contrabando
feito nos litorais brasileiro, africano ou asiático como uma forma de desenvolvimento
econômico de países como a Inglaterra, a França e a Holanda (veja-se, por exemplo,
Ernest Pijning, «Passive resistence: Portuguese diplomacy of contraband trade during
king John V’s reign (1706-1750)», in Arquipélago, História, 2.a série, II, 1997).
13 Jose de Carvajal y Lancaster expressara claramente esta ideia quando afirmou,
em meados do século XVIII: «la America que es la alma de nuestra grandeza» (Miguel
Artola, «América en el pensamiento espanol dei siglo xvill», in Revista de índias, XXIX
(115-118), 1969, p. 63); em finais do século o mesmo pensamento está presente
quando D. Rodrigo de Sousa Coutinho afirma que: «Portugal reduzido à si só, seria
dentro de hum breve período de tempo huma Província d’Espanha» («Memória
escrita pelo Senhor..., de que se remete copia ao Senhor D. João de Almeida ao Rio
de Janeiro em Julho de 1810. Sobre o melhoramento dos domínios de Sua Magestade
na América», Lisboa, AHU, s/d, p. 1).

206
«AS M U R A L H A S D O S E R T Ã O »

fatia de território colonial, se coloca com uma premência que não


tinha até então. E no jogo político, diplomático e militar que é a par­
tilha de territórios na América do Sul durante a segunda metade do
século xviii, as duas potências ibéricas propuseram-se dividir entre si
a parte de leão.
As duas monarquias, mais interessadas em assegurar a paz do
que em desencadear guerras de prestígio, fizeram cedências territo­
riais em determinadas áreas para receber contrapartidas em outras.
Para os espanhóis, tal como considera1Eduardo Moyano Bazzani, o
domínio do estuário platino era de suma importância porque permi­
tia um fácil acesso às ricas regiões do rio da Prata e do Alto Peru e,
ainda, porque possibilitava controlar o contrabando que se efec-
tuava na região, especialmente do lado português14. Por seu turno,
na estratégia da coroa portuguesa, o autor do tratado de 1750, Ale­
xandre de Gusmão, considerava que «nenhuma propriedade há que
não possa e deva pmdentemente largar-se por uma equivalente, se
ela for mais vantajosa do que a mesma propriedade»15. Ora, aos
olhos dos estadistas da segunda metade de Setecentos, a cedência
de Sacramento a troco da maior parte do Estado do Grão-Pará e por
Mato Grosso, Cuiabá e parte de Goiás afigurava-se compensadora16.
Nesta balança contava, também, a avaliação que o Estado português
fazia da Amazônia como uma fonte inesgotável de recursos natu­
rais, as «drogas do sertão» ou os frutos do Pará, bem como do inte­
rior do Brasil e das suas terras auríferas17.
Os vínculos pessoais entre as casas reinantes reflectiam-se nas
opções políticas dos reinos e, no caso concreto da América Latina, as
relações coloniais exprimiam, especialmente, o estado das relações
entre as coroas ibéricas. Os interesses e as ligações pessoais entre
monarcas podiam explicar e influir na assinatura de tratados e na cele­
bração de alianças. Desta forma, a esta harmonia de interesses ibé­
ricos, que culminou com a assinatura do Tratado de Madrid em 1750,

14 Eduardo L. Moyano Bazzani, «Aportaciones de la historiografia portuguesa a


la problemática fronteriza luso-espanola em America Meridional, 1750-1778», in
Revista de índias, LII (195-196), 1992, p. 727.
15 J. M. T. de C., Collecção de vários escritos inéditos, políticos e litterários de Alexandre
de Gusmão, conselheiro do Conselho Ultramarino e Secretário Privado d'el Rei D. João
Quinto, que dá à luz pública..., Porto, Typografia de Faria Guimarães, 1841, p. 177.
16 lbidem, p. 178; Eduardo Moyano, «Aportaciones de la historiografia portu­
guesa a la problemática fronteriza...», p. 729.
17 Para uma definição de drogas do sertão, veja-se Ângela Domingues, «Drogas
do sertão», in Dicionário de História da Colonização Portuguesa do Brasil, coordenação de
Maria Beatriz Nizza da Silva, Lisboa, Editorial Verbo, 1994, cols. 270-271.

207
«AS M U R A LH A S D O SER TÃ O »

não devia ser alheio o facto de as duas monarquias peninsulares terem


visto as suas ligações estreitadas pelos vínculos matrimoniais contraí­
dos entre D. Maria Bárbara de Bragança e Fernando VI, em 174618.
De igual forma, o empenho pessoal dos monarcas podia tam­
bém desfazer uns acordos e refazer outros, podendo os inimigos da
véspera ser considerados como os novos aliados. Assim, com a
morte dos dois monarcas espanhóis e a ascensão de Carlos III defi-
niram-se outras opções políticas que tiveram o seu reflexo nas rela­
ções coloniais. A anulação do Tratado de Madrid, substituído pelo
Tratado do Pardo, formalizou as posições discordantes dos dois rei­
nos face à precedente política conciliadora, e as desavenças mostra­
das pelas alterações diplomáticas reflectiram-se no estado de alerta
das guarnições de fronteira tão depressa quanto as distâncias dos
impérios permitiam a circulação de notícias.
Mas não foram apenas as ligações entre os reinos peninsulares
que determinaram as opções políticas na América do Sul. As alian­
ças que Espanha e Portugal realizavam com outros países europeus
eram utilizadas pelas duas velhas potências como elementos de
força e de pressão. Portugal surgia como o eterno aliado de Ingla­
terra, enquanto a Espanha formalizava a sua aliança com a França
através do Pacto de Família.
Celebrado em 1761 entre os reis de França, de Aústria, de Espa­
nha e das Duas Sicílias e o duque de Parma, o Pacto de Família foi sen­
tido na Amazônia como uma dupla ameaça: tanto a Espanha quanto a
França tinham colônias confinantes com território brasileiro. No
Norte do Brasil tomaram-se medidas defensivas, traduzidas na avalia­
ção das forças militares, tanto portuguesas quanto espanholas e fran­
cesas, na inventariação de munições e artilharia e na construção de
fortificações. Temia-se, sobretudo, pela fortaleza de Macapá e pela
segurança de Belém e recomendava-se que se inspeccionassem caute­
losamente os navios ingleses que aportassem para abastecimento,
não se fosse dar o caso de serem embarcações inimigas asteando a
bandeira britânica19. Simultaneamente, a fronteira da capitania do
Rio Negro não era descurada. Esta era a época em que o Tratado de
Madrid tinha sido anulado pelo do Pardo e em que os espanhóis pas­
savam, de novo, a ser considerados como potenciais inimigos. Dava-

18 Uma bem estruturada síntese sobre o período joanino que contempla a dis­
puta de poderes das duas potências ibéricas na América do Sul encontra-se em A. J. R.
Russell-Wood, «Portugal and the world in the Age of D. João V», pp. 15 e ss.
19 A N /1 1, Manuscritos do Brasil, n.° 51, fl. 109, Oficio de Francisco Xavier de
Mendonça Furtado a Manuel Bernardo de Melo e Castro, de 11 de Fevereiro de 1762.

208
AS M U RA LH AS DO SERTÃO

-se instruções no sentido de se manter na capitania as tropas que se


utilizaram nas demarcações, agora com uma outra finalidade20.
O estado de conflito latente na colônia manteve-se até 1777 e
era um reflexo dos antagonismos existentes entre as ambições do
marquês de Pombal e o marquês de Grimaldi. A assinatura do Tra­
tado de Santo Ildefonso acabou por ser resultante da ascensão da
sobrinha de Carlos III ao trono português e da boa vontade dos
governos dos dois países em remodelar os respectivos gabinetes,
com Grimaldi a ser substituído pelo cende de Floridablanca e Pom­
bal por D. Francisco Inocêncio de Sousa Coutinho21.
Poucos anos mais tarde, em 1790, D. Francisco Maurício de
Sousa Coutinho foi designado para a govemação do Estado do
Grão-Pará. O novo governador, tal como seu pai e seus irmãos, era
simpatizante de Inglaterra e um partidário da facção pró-anglófila.
As opções políticas e estratégicas tomadas por Sousa Coutinho para
o Estado do Grão-Pará talvez possam encontrar uma filiação na ati­
tude política pessoal do governador, bem como na consciência de
que a integridade territorial brasileira era ameaçada pelas investidas
que os franceses vinham progressivamente fazendo, desde 1777, a
território considerado como português pelo Tratado de Utrech.
Assim, o governador e capitão-general do Estado deixou a polí­
tica de observação que tinha sido característica da governação de
Martinho de Sousa e Albuquerque para passar a uma política agres­
siva que taticamente valorizava a embocadura do rio Amazonas e a
fortaleza de S. José de Macapá. Na geo-estratégia de D. Francisco
Maurício de Sousa Coutinho era vital a defesa do litoral paraense e
dos rios que, vindos de norte — da Caiena —, pudessem dar acesso a
território luso-brasileiro. Assim, aumentou o patrulhamento da costa
por canoas de flotilha da Guarda Costa, mandou reparar a fortaleza
de S. José do Macapá e construir fortes na barra dos rios que desagua-
vam na margem setentrional do rio Amazonas, mudou a população
de Mazagão para o Macapá. Paralelamente, ordenou que se proce­
desse ao reconhecimento e levantamento topográfico do litoral
Implícita ao projecto colonial de D. Francisco Maurício para o
Norte brasileiro estava a ideia, já advogada por Alexandre de Gusmão
e defendida por D. Francisco Inocêncio, de que a conservação da bacia
hidrográfica amazônica se devia fazer a todo o custo. Com a designa­

20 A N /1 1, Manuscritos do Brasil, n.° 51, fl. 113v, Ofício de Francisco Xavier de


Mendonça Furtado a Manuel Bernardo de Melo e Castro, de 30 de Abril de 1762.
21 Eduardo Moyano, «Aportaciones de la historiografia portuguesa a la proble­
mática fronteiriza...», p. 741.

209
«AS M U R A LH A S D O SER TÃ O

ção de D. Rodrigo de Sousa Coutinho, conde de Linhares, para a Secre­


taria de Estado da Marinha e Negócios Ultramarinos, em 1795, o
governador do Pará contava com o apoio incondicional do governo de
Lisboa. Nos desígnios da alta política colonial, o Norte do Brasil conti­
nuava a ser considerado pelos indivíduos no poder como a jóia da coroa
do Império Português no Brasil: «A possessão exclusiva do Rio das
Amazonas, e dos que dezagoão n'elle vindo do Norte quaes os Rios
Branco, e Negro, unida a immensa Costa de que a nossa real Corôa he
Senhora fazem que Espanha possa tirar pouca vantagem de tudo o
que posuhe alem da linha, e que o mesmo Rio da Prata com que se
confunde o Paraguay mal compense esta falta de Communicação.. .»22
Mais uma vez é preciso considerar que, no final do centénio, a
Espanha e a França surgiam como os grandes inimigos políticos da
coroa portuguesa, ameaçando, desta vez, a integridade territorial rei-
nol e pondo em perigo a autonomia governativa do reino. A França
tinha-se decidido, neste final de século, por uma política expansio-
nista, quer em relação aos territórios europeus quer em relação aos
domínios coloniais. Na América do Sul, o espaço sob a sua dominação
aumentava consideravelmente com as investidas em direcção à Ama­
zônia Portuguesa e com a incorporação do Suriname holandês em
1795. É que o facto de, nesta data, a França ter anexado os Países Bai­
xos concedia-lhe direitos sob os territórios coloniais do país ocupado23.
Paralelamente, é preciso lembrar que a França aliava-se frequen­
temente a Espanha contra Portugal. O cenário das Guerras Peninsu­
lares acabaria por ser transposto para a América do Sul, caracteri-
zando-se este período por um estado de alerta total nos territórios
confinantes com a América Espanhola e por uma situação de guerra
latente entre Caiena e o Pará24.
Os franceses esforçavam-se por incorporar aos seus domínios
terras mais a sul e os luso-brasileiros opunham-se a estes avanços,

22 D. Rodrigo de Sousa Coutinho, «Memória escrita pelo Senhor... de que se


remete copia ao Senhor D. João de Almeida, ao Rio de Janeiro em Julho de 1810...»,
pp. 2-3. Resta adiantar que a memória se encontra datada de Outubro de 1797.
23 Ernest Pijning, «The Portuguese Jewish Community of Surinam and changing
ideas of nation and nationhood at the end of the eighteenth century» (no prelo).
24 Em relação à América Espanhola, veja-se AHU, Pará, caixa 50 A (760), Ofício de
Francisco Rodrigues do Prado a Ricardo Franco de Almeida Serra, de 17 de Setembro
de 1801; ibidem, caixa 51 (767), Ofício de José Antônio Salgado a D. Francisco de Sousa
Coutinho, de 9 de Dezembro de 1801; ibidem, Ofício de D. Francisco de Sousa Couti­
nho a Francisco Luís Carneiro, de 5 de Janeiro de 1802. Sobre as relações entre Portugal
e França, consulte-se o ainda útil estudo de Castilhos Goycochêa, A diplomacia de
D. João VI em Caiena, Rio de Janeiro, Edições GTL, 1963.

210
AS M URA LH AS DO SERTÃO»

vigiando a costa e desenvolvendo acções de espionagem. No sentido


de ajustar as concordâncias diplomáticas determinadas desde 1715
pelo Tratado de Utrech à expansão colonial de finais do século xvui, a
velha potência e o novo império negociavam tratados atrás de trata­
dos, no sentido de fixar as fronteiras entre as duas colônias: o Tratado
de Paris, celebrado a 10 de Agosto de 1797 pelo «partido francófilo»
de Antônio de Araújo de Azevedo, mal recebido pela facção no poder
e não ratificado por D. João VI, colocava o limite austral no rio Cal-
soene e o ocidental no rio Branco; o Tratado de Madrid, que não che­
gou a entrar em vigor; o Tratado de Badajoz, de 6 de Junho de 1801,
estabelecia que a navegação do rio Araguarí fosse comum aos dois
países; o Novo Tratado de Madrid, confirmado a 29 de Setembro de
1801, estipulava o rio Carapanatuba como marco demarcador entre
as colônias; o Tratado de Amiens, datado de 27 de Março de 1802,
voltava a rectificar o rio Araguari como fronteira25. O problema só se
estabilizaria temporariamente quando D. Rodrigo de Sousa Couti­
nho, já no Rio de Janeiro e ocupando a pasta dos Negócios Estrangei­
ros e da Guerra, se decidiu pela anexação de Caiena, em finais de
1808, isto é, numa altura em que por toda a Península Ibérica eclo-
diam motins e revoltas contra a ocupação francesa.

O v a lo r e s tr a té g ic o d o s ín d io s n a o c u p a ç ã o
das fr o n te ir a s

Foi ao longo da segunda metade do século xviii que o Estado


português tentou determinar de forma precisa, através do estabele­
cimento de fronteiras políticas, a sua área de soberania territorial no
Norte brasileiro.
A coroa empenhou-se em criar no Norte do Brasil um espaço
territorial ao qual deu uma definição externa quando estabeleceu
uma divisão linear, com significado militar e jurídico, entre o seu
território e o de outro país. Essa linha definia uma vasta área geográ­
fica à qual pretendia alastrar a sua soberania jurisdicional, tomada
num factor de unificação26. E, para concretizar esse objectivo, havia

25 Castilhos Goycochêa, A diplomacia de D. João VI em Caiena, pp. 68-100.


26 Para uma definição de fronteira e limite, veja-se Jose Sala Catalá, «Ciência e
técnica en las expediciones de limites hispano-portuguesas: una aproximación», in
Ciência, técnica y Estado en Ia Espana Ilustrada, editado por Joaquín Fernández Pérez e
Ignacio González Tascón, Madrid, Ministério de Educacion y Ciência, Sociedad Espa-
riola de Historia de las Ciências y de las Técnicas, s/d, p. 244.

211
«AS M U R A L H A S D O SE R T Ã O

que fazer do índio um vassalo europeu, através de um processo cul­


tural e institucional de assimilação e de integração27. Desta forma se
compreende o empenho do Estado português na implantação de
uma língua única e de insistir na pertinência de uma actividade
escolar que tinha, primeiro que tudo, a finalidade de ensinar aos
habitantes da Amazônia as bases culturais e religiosas do projecto
político português. Pretendia-se que os ameríndios deixassem de se
identificar com um grupo étnico ou com uma área geográfica espe­
cífica e que neles se sobrepusesse um «sentido de pertença» à colô­
nia luso-brasileira e ao soberano português. Este processo, ao con­
trário do que se passou em outras sociedades, não foi desenvolvido
pela população indígena, mas imposto pelas autoridades administra­
tivas coloniais28.
Vimos já que era pela inculcação deste projecto civilizacional
junto dos ameríndios, mas também pela «educação» dos luso-brasi-
leiros, que a coroa queria transformar todos os habitantes do Norte
brasileiro em vassalos e, enquanto tal, utilizá-los na colonização do
espaço.
Tanto o Tratado de Madrid quanto o de Santo Ildefonso recupe­
ravam um princípio do direito romano para justificar as pretensões
das coroas ibéricas sobre território sul-americano: o direito de uti
possidetis. Ou seja, face à ocupação efectiva de um território colonial
por uma potência colonizadora, a evocação deste princípio jurídico
permitia que o direito de soberania e autoridade dessa coroa sobre a
possessão fosse reconhecido como legítimo pelas outras potências
europeias. Esta ocupação territorial podia ser resultante de uma
colonização efectiva, como podia resultar da asserção de argumen­
tos históricos, consequentes da primazia de uma navegação ou da
existência de um posto de fixação temporária.
Como já mencionámos, a coroa teve uma clara noção de que,
por muito que se empenhasse no envio de colonos, soldados ou
degredados para o Norte brasileiro, a presença europeia nunca seria
suficiente para assegurar uma colonização estável. E, por isso, o apa­

27 Peter Sahlins, Boundaries. The making of Trance and Spain in the Pyrenees, Berke-
ley, Los Angeles e Oxford, University of Califórnia Press, 1989, pp. 7-8. Esta ideia
expressa-se de forma muito clara em relação ao caso estudado pelo autor: «The corol-
lary idea is that peasants became national citizens only when they abandon their
identity as peasants: a local sense of place and a local identity centered on the village
or valley must be superseded and replaced by a sense of belonging to a more exten-
ded territory or nation.»
28 Peter Sahlins, Boundaries. The making of France and Spain in the Pyrenees, p. 9.

2 12
AS M U R A L H A S D O S E R T Ã O »

relho governativo incentivou e financiou a extracção dos índios do


sertão, agora já não com o objectivo de os trazer à cidade para os
utilizar como mão-de-obra, mas com a finalidade de os fixar em
aldeamentos situados em locais taticamente significativos.
Para os estrategos ibéricos de Setecentos, preocupados com as
questões de limites, tais locais situar-se-iam em zonas que permitis­
sem o acesso ou uma subsequente invasão dos países antagônicos.
Por isso, no discurso de diplomatas e militares, consideravam-se os
rios e as serras como pontos de referência no traçado da fronteira
linear: os acidentes geográficos eram considerados como limites
naturais29. Mas neste mesmo discurso avaliava-se estes marcos
menos como barreiras e mais como passagens que permitiam a
entrada no território. A navegação dos rios era uma porta aberta à
invasão de tropas ou à circulação de mercadorias. Era assim que os
rios Negro, Branco, Solimões e os afluentes da margem meridional
eram considerados30. Por sua vez, os cursos fluviais podiam ser vias
de acesso a zonas que importava preservar a todo o custo. E, conse­
quentemente, era importante assegurar o monopólio de navegação
pelo complexo Madeira-Mamoré-Guaporé, porque a livre circulação
por estes rios podia comprometer o acesso às minas do interior do
Brasil e o socorro militar e comercial da capitania de Mato Grosso31.
Era a «fraqueza» resultante das condições naturais que impor­
tava suprimir pela construção de obstáculos, consubstanciada na
edificação de monumentos de arquitectura militar e urbana ou pelo
patrulhamento de embarcações. Nesta ocupação planeada que,
durante a época em estudo, ocorre simultaneamente tanto do lado
português quanto do lado espanhol da fronteira, os índios tiveram
uma importância estratégica enquanto meio de implantação do
direito de uti possidetis.
A importância jurídica e estratégica que foi concedida aos indíge­
nas condicionaria a forma como as coroas ibéricas se relacionaram quer
com os ameríndios, quer entre si, enquanto entidades concorrentes.
Para compreendermos estes mecanismos é preciso atentar que na
Amazônia nunca houve uma força organizada indígena que se opu­

29 Peter Sahlins, Boundaries. The making ofFrance and Spain..., pp. 35-43.
30 Ângela Domingues, Viagens de exploração geográfica na Amazônia em finais do
século xvni: política, ciência e aventura, pp. 36-37.
31 Ângela Domingues, «A importância do forte do Príncipe da Beira na estratégia
de Luís de Albuquerque de Melo Pereira Cáceres», in Portugaliae Flistórica (no prelo);
José Roberto do Amaral Lapa, «Do comércio em área de mineração», in Economia
Colonial, São Paulo, Editora Perspectiva, 1973, pp. 23 e ss.

213
«AS M U R A L H A S D O SE R T Ã O »

sesse às actividades de demarcação, ao contrário do que aconteceu


no Sul do território. Por exemplo, os relatos da época referem vivida-
mente a resistência movida por uma confederação de chefes índios à
actuação de Gomes Freire de Andrade e do marquês de Povar: «elles
[índios] mandaram dizer aos coronéis que se erão vindos áquelle sitio
a tomar das terras violenta posse, devião entender mais na retirada
honesta, que na empresa arriscada; pois as terras, que ouzadamente
vinhão a demarcar, não erão domínios de Portugal, nem de Castela;
que elles se conservavão havia, não somente annos, mas séculos na
pacifica posse daqueles dilatados paízes; que ainda que os conhecião
barbaros na falta de comunicação das gentes, os não julgassem bizo-
nhos no exercício das armas: que tendo rei natural para os defender
não havião admitir Monarca estranho»32.
Esta oposição estruturada encontrada a sul em defesa do territó­
rio indígena não se verificou, como dissemos, no Norte brasileiro.
Os ameríndios revelaram-se incapazes de constituir alianças milita­
res que se apresentassem como uma ameaça à vontade delimitadora
dos dois poderes coloniais33. Militarmente não tiveram iniciativa ou
habilidade para se confederar num grande exército, o que talvez se
possa compreender pelas características das etnias locais que, na sua
maioria, não tinham chefaturas centralizadas. Na compreensão
deste facto talvez possa contribuir a constatação da existência de
guerras interétnicas e de inimizades tradicionais que levavam os
índios a aliarem-se aos luso-brasileiros e aos espanhóis contra os
seus contrários.
Depois, podem encontrar-se outras explicações para justificar o
desinteresse pela defesa da terra enquanto patrimônio do grupo, as
quais radicam na própria natureza da colonização ibérica, implan­
tada em zona de floresta equatorial: a presença luso-brasileira limi­
tava-se à navegação dos rios e concentrava-se em núcleos urbanos
situados em pontos específicos das margens34. O sertão era, incon-
testavelmente, posse dos habitantes da terra e fonte de refúgio para

32 Felix Feliciano da Fonseca, Relaçam do que aconteçeo aos Demarcadores portugue-


zes t castelhanos no certam das terras de collonia; opoziçam que os Índios lhe fizerão, rompi­
mento de guerra que houve e de como se atalharão todas as deficuldades, escrita por..., Lis­
boa, s/d [post. 1753], pp. 5-6.
33 As formas de resistência e os motins e revoltas como reacção à colonização
serão estudados no capítulo v «Formas de resistência: uma reavaliação das relações
entre “dominantes” e “dominados”».
34 David M. Davidson, «How the Brazilian West was won: Freelance & State on
the Mato Grosso frontier», p. 66.

2 14
-

«AS M U R A L H A S D O S E R T Ã O »

aqueles que se rebelavam contra o colonizador. Diriamos, de resto,


que no Norte do Brasil a arma mais eficaz e frequentemente usada
pelos índios era a fuga, definida pelos documentos da época como
«deserção», e não o combate.
A situação que se encontrou criada às vésperas da segunda
metade do século xvin confluiu, portanto, na formação de imensos
espaços coloniais partilhados pelas potências ibéricas. Estes espaços
sobrepunham-se aos territórios étnicos preexistentes, coexistindo
com eles mas, politicamente, não os'considerando. Podemos, aliás,
referir que esta é uma situação que permanece ainda actualmente35.
Foi este paradoxo que regulamentou as relações de ibero-america­
nos e índios nas zonas de fronteira em análise e que levou a que
luso-brasileiros e hispano-americanos disputassem a «partilha das
populações» de par com a «divisão da terra». É Thomaz Gomez que
menciona que a conquista de novos territórios e o controlo de novas
povoações aumentava o poder e a riqueza das coroas, ao mesmo
tempo que fazia progredir a evangelização, num processo que, afi­
nal, foi semelhante tanto em domínio espanhol como em território
português36.
Ao longo do período estudado é possível distinguir três
momentos, inter-relacionados com os marcos diplomáticos que
regulamentam a geopolítica ibérica na América do Sul. Pensamos
que, durante o período de vigência do Tratado de Madrid, tenha
sido tênue a pressão gerada pela partilha das etnias. Primeiro, por­
que a administração luso-brasileira se confrontava com problemas
de ordem interna, relacionada com choques de poder e com a
implantação de reformas37. Depois, porque o conhecimento geográ­
fico não era ainda exacto ao ponto de definir com precisão as gran­
des linhas prioritárias para fins militares e tácticos. E, finalmente,
porque a colonização luso-brasileira nos bordos do império não era

35 Sobre este assunto, veja-se a etnia macuxi-ingaricó, que actualmente conta


com cerca de 22 000 indivíduos, repartidos entre território brasileiro, a Guiana e a
Venezuela (A. M., «Os herdeiros dos filhos do Sol», in jornal Público (edição de Lis­
boa), 11 de Julho de 1995, p. 17).
36 Thomas Gomez, Lflnvention de 1'Américjue. Rêve et réalités de Ia conquête, s/1,
Aubier, 1992, p. 179.
37 Consulte-se também Jorge Couto, «O Brasil Pombalino», in História de Portugal
dos tempos pré-históricos aos nossos dias, dirigida por João Medina, vol. v, Alfragide, Edi-
clube, s/d, pp. 116 e ss.; Ângela Domingues, «Francisco Xavier de Mendonça Fur­
tado», «Rio Negro», «Pará, capitania do» e «Estado do Grão-Pará e Maranhão», in
Dicionário de História da Colonização Portuguesa no Brasil, coordenação de Maria Beatriz
Nizza da Silva, Lisboa, Editorial Verbo, 1994.

215
«AS M U R A L H A S D O SE R T À O

suficientemente forte para entrar em fricção, tal como entraria mais


tarde, com os espanhóis.
A atenção da coroa e dos seus representantes concentrou-se,
de forma particular, na preservação do eixo Madeira-Mamoré-Gua-
poré devido à importância dos seus acessos38. Foi nesta altura que
D. José I determinou a abertura das comunicações da capitania do
Pará com a de Mato Grosso e Minas exclusivamente pela via Ma-
deira-Guaporé39. As frentes de colonização dos dois países ibéricos
defrontavam-se neste complexo fluvial, ocupando os jesuítas espa­
nhóis a margem direita com três aldeias e com uma quarta a margem
oriental, enquanto os luso-brasileiros reforçavam a sua presença
neste local, enviando o sargento-mor de infantaria Luís Fagundes
Machado e o secretário José Gonçalves da Fonseca em viagem de ex­
ploração e fundando povoações e postos de controlo alfandegário40.
Quanto aos afluentes da margem direita do rio Amazonas, eram
descritos como rios que «sobre não haver nelles objecto para a
cubissa, são summamente doentios e para entrar nelles, he neceça-
rio escolher tempo, com pena de que o não fazendo asim, ficarem lá
todos os que forem sem remedio humano»41. Mas, ainda assim,
revestiam-se de uma importância fundamental porque eram habita­
dos por uma quantidade infindável de etnias ameríndias, considera­
das, em 1755, como imprescindíveis para o povoamento das terras
da coroa e para o desenvolvimento interno da capitania do Pará42.
Foi nesta mesma altura que se efectuou o reconhecimento das etnias
habitantes nas bacias dos rios Negro, Japurá e Branco43.

38 AHU, Conselho Ultramarino, códice 1213, fls. 58-60, Ofício de Marco Antônio
de Azevedo Coutinho a Francisco Pedro de Mendonça Gorjão, de 15 de Setembro de
1748.
39 BNRJ, 1-32-9-14, Carta régia dirigida a Francisco Xavier de Mendonça Furtado,
de 14 de Novembro de 1752.
40 AHU, Conselho Ultramarino, códice 1213, fls. 48-54, Ofício de Pedro Mendonça
Gorjão a Diogo de Mendonça Corte Real, de 1 de Dezembro de 1751.
41 AHU, Pará, caixa 15 (736), Ofício de Francisco Xavier de Mendonça Furtado a
Sebastião José de Carvalho e Melo, de 12 de Julho de 1755.
42 AHU, Rio Negro, caixa 1, doc. 13, Ofício dirigido a Francisco Xavier de Men­
donça Furtado, de 1 de Junho de 1756.
43 AHU, Rio Negro, caixa 1, doc. 8, Relação dos rios que desaguam no Rio Negro,
s/d [post. 9 de Junho de 1755]; ihidem, Informação que deu Euquério Ribeiro do rio
Japurá. Este Ribeiro é o melhor prático que se conhece, de 25 de Março de 1755;
ihidem, Noticia do rio Branco que me deo Francisco Ferreira, homem de mais de
oitenta anos, que tem mais de cinquenta de navegação do dito rio e mas participou
em Mariuá, de 29 de Março de 1755.

2 16
«AS M U R A L H A S D O S E R T Ã O »

O período que medeia entre a anulação do Tratado de Madrid e


a aplicação do Tratado Preliminar de Santo Ildefonso faz-se sentir na
Amazônia como uma «uma paz armada»44. Se, por um lado, se pro­
testavam as relações de paz e amizade e os laços de consanguini­
dade e matrimônio existentes entre as duas coroas, por outro, a
aliança entre Espanha e França e a celebração do Pacto de Família
despoletavam um estado de alerta sentido nas colônias e no reino.
Em contraposição às ordens dadas para cessar a actividade dos
demarcadores, enviavam-se recomendações no sentido de reforçar
os destacamentos das povoações do Rio Negro.
No que diz especificamente respeito à América do Sul, pensa­
mos que não obstante estar estipulado por acordo diplomático que
os dois países deveríam manter as suas posições avançadas, de facto
assiste-se a uma expansão simultânea de hispânicos e luso-brasilei-
ros, às vezes desencontrada, outras vezes em colisão. Portugueses e
espanhóis aproveitaram este interregno para, às ocultas dos oposito­
res, irem fundando povoações e cimentando a sua frente de coloni­
zação em locais cada vez mais irradiados do centro político.
Desta forma, os luso-brasileiros consolidaram, logo em 1761, as
suas posições no Alto Rio Negro com a fortificação e o aumento da
guarnição nas Cachoeiras Grandes e em Marabitenas45. Os protestos
espanhóis fizeram-se seguir de imediato, quer por parte do coman­
dante de S. Carlos quer por parte de D. José de Iturriaga. O Alto Rio
Negro era, assim, o exemplo de uma «zona de tensão» latente por­
que as pretensões de domínio de luso-brasileiros e hispano-america­
nos se sobrepunham. S. Francisco Xavier de Tabatinga era outro
ponto de conflito. A partir de 1761, a missão jesuíta deu lugar a um
posto avançado luso-brasileiro, transformado, em 1773, num reduto
militar, com casas, edifícios públicos e porto com estacada.
Outro local de colisão entre as frentes de colonização ibéricas
foi o rio Branco. As tropas de D. Miguel Centurión tentaram, por
duas vezes, cimentar uma presença espanhola estável, mas conta­

44 A anulação do Tratado de Madrid foi dada a conhecer ao governador e capi-


tão-general do Estado nos inícios de 1761 (AN/TT, Manuscritos do Brasil, n.° 51, fl. 52,
Ofício de Francisco Xavier de Mendonça Furtado a Manuel Bernardo de Melo e Cas­
tro, de 22 de Abril de 1761; AHU, Pará, caixa 21 (739 I), Ofício de Manuel Bernardo
de Melo e Castro ao Governador do Rio Negro, de 20 de Maio de 1761).
45 AHU, Rio Negro, caixa 1, doc. 28, Ofício de Francisco Fernandes de Bobadilha
a Miguel de Sequeira Chaves, de 28 de Dezembro de 1761; Pará, caixa 24 (739 D),
Ofício de Manuel Bernardo de Melo e Castro a Francisco Xavier de Mendonça Fur­
tado, de 28 de Junho de 1762.
AS M U R A LH A S DO SERTÃO»

ram com a oposição de luso-brasileiros. Os contingentes coman­


dados por Filipe Sturm capturaram as forças espanholas, tomaram
S. Juan Bautista de Caya-Caya e destruíram Santa Rosa ficando
desta forma gorado o Proyecto Parime de formação de uma fronteira
espanhola sobre o Amazonas português46.
No entanto, em outras regiões, a consolidação de posições fez-
-se de forma mais pacífica, como foi o caso dos rios Japurá, Uaupés,
Içá e Içana. A colonização luso-brasileira implantou-se nesta área
através da constituição de aldeamentos com índios da região: sete
povoados no rio Içana, um no Iça, um no Japurá e, finalmente, outro
no Uaupés. E, apesar do projecto que articulava estas edificações ser
«bastantemente dezagradavel aos dittos Hespanhoes porque lhes
vou empedindo os passos de seu destino», não é do nosso conheci­
mento que tivessem surgido protestos imediatos47. Esta área era
geograficamente mal conhecida e as pretensões espanholas, apesar
de existirem, não se baseavam num conhecimento geográfico fun­
damentado. Entre os anos de 60 e 80, procedeu-se, nesta região, ao
alastramento da área de soberania luso-brasileira e a repetidas tenta­
tivas para frustrar os planos espanhóis de ocupação das cabeceiras
destes rios48.
Este período caracteriza-se, fundamentalmente, por uma agres­
sividade velada em relação à disputa dos ameríndios. Tanto luso-
-brasileiros, como hispano-americanos, embora defendendo oficial­
mente a amizade e o respeito mútuos, aliciavam as etnias e faziam
incursões em território vizinho com a finalidade de integrar o maior
número possível de índios no seu espaço soberano. As zonas mais
afectadas parece terem sido, nesta altura, as cachoeiras do rio
Negro, Marabitenas e os rios Solimões e Branco, enquanto as
povoações mais atingidas seriam, do lado espanhol, S. Carlos, Tra-
quatuba, Maturá, S. Pablo, Yaquari e Nova Tabatinga e S. José de

46 Manuel Lucena Giraldo, «La última búsqueda de El Dorado: las expediciones


al Parime (1770-1776)», in Ibero-Americana Pragensia, XXVI, 1992, pp. 67-86.
47 AHU, Rio Negro, caixa 1, doc. 41, Ofício de Joaquim Tinoco Valente a Fernando
da Costa de Ataíde Teive, de 24 de Julho de 1764; ibidem, caixa 2, doc. 8 e 9, Ofício
de Joaquim Tinoco Valente a Francisco Xavier de Mendonça Furtado, de 6 de Agosto
de 1769.
48 AHU, Rio Negro, caixa 1, doc. 41, Ofício de Joaquim Tinoco Valente a Fer­
nando da Costa de Ataíde Teive, de 24 de Julho de 1764; ibidem, caixa 2, doc. 8, Ofí­
cio acompanhando um mapa de Filipe Sturm, onde se dava a Francisco Xavier de
Mendonça Furtado uma noção aproximada dos territórios acrescentados aos domí­
nios da coroa portuguesa, de 6 de Agosto de 1769.

2 18
«AS M U R A L H A S D O SE R T Ã O

Marabitenas e S. Francisco Xavier de Tabatinga, do lado portu­


guês49.
O período subsequente ao Tratado de Santo Ildefonso é por nós
considerado como uma outra fase. O reconhecimento dos indígenas
enquanto peça vital na ocupação e na colonização ibéricas reflectiu-
-se nas considerações jurídicas feitas sobre a liberdade natural dos
ameríndios. Ou seja, os diplomatas de ambos os países concorda­
ram em considerar que os índios, enquanto detentores da liberdade
natural, tinham o direito de escolher"sob que soberania se queriam
colocar50. No que à questão indígena dizia respeito, os demarcado-
res regulamentavam-se pelo seguinte pressuposto, assim expresso
porTeodósio Constantino de Chermont:«[...] todo o Gentio habita-
dor de quaesquer terras sujeito não está, pela Ley Natural a Monar-
cha alguma, senão dipois do dito Gentio de expontânea e livre von­
tade se querer sujeitar a este ou áquelle Domínio que mais lhe
agrada e conveniência lhe fas, pois nasce e vive livre, senhor inde­
pendente e absoluto das suas acçõens sem sugeição alguma se não
áquelle ou aquelles indivíduos que por convenção reciproca, elles
ente si estabelecido e authorizado tem para os reger»51.
Alguns anos mais tarde, em 1805, o conde de Arcos reiterava o
mesmo princípio quando, dirigindo-se ao ouvidor do Rio Negro
sobre assunto relacionado com os índios espanhóis fixados em Cas-
tanheíro-o-Novo, afirmava: «convem observar a V.a Mee que na
qualidade de homens ainda desligados de qualquer sociedade e que
gozão da independencia natural em que nascerão, sem dúvida
podem a seu arbítrio unir-se a quaisquer outros homens já vassalos
e ligados a huma qualquer sociedade de quem então têm o direito
de exigir os officios que a espécie humana se deve reciprocamente
mesmo observadas só as regras da natureza»52.

49 AHU, Rio Negro, caixa 1, doc. 28, Ofício de Francisco Fernandes Bobadilha a
Miguel de Sequeira Chaves, de 28 de Dezembro de 1761; AHI, 340/04/04, Ofício de
Lourenço Pereira da Costa, provedor da Fazenda Real a [Francisco Xavier de Men­
donça Furtado], de 2 de Setembro de 1762; AHU, Pará, caixa 17 (733), Ofício de
Joseph Dequsa ao comandante da fronteira do Rio Negro, Diogo Luís Rebelo, de 24
de Fevereiro de 1776.
50José Ferreira Borges de Castro, Contratos e Actos Públicos celebrados entre a Coroa de
Portugal e as mais potências desde 1640 até ao presente, tomo III, Lisboa, 1856, p p . 232-291.
51 AHU, Rio Negro, caixa 8, doc. 1, Ofício de Teodósio Constantino de Chermont
a D. Francisco de Requena, de 2 de Novembro de 1783.
52 AHU, Pará, caixa 53 A (768), Ofício do conde de Arcos a Caetano Pereira
Pontes, de 21 de Abril de 1805; também no AUC, Colecção Conde de Arcos, cód. 27,
fl. 115v, com data de 19 de Abril de 1805.

219
«AS M U R A LH A S D O SER TÀ O »

Não obstante, a liberdade de opção na escolha da soberania,


que devia ser uma prerrogativa das sociedades ameríndias, revelava-
-se, de facto, condicionada pela concorrência que se estabelecia
entre as duas coroas. Pensamos que, ao considerarmos a questão da
partilha do território e dos seus habitantes no Norte do Brasil em
período posterior ao Tratado de 1777, há sempre que ter em conta a
existência de duas políticas paralelas e contraditórias, decorrentes da
posição oficial e da actuação oficiosa.
Esta dupla posição reflecte-se, antes de mais, na vigilância disfar­
çada que é efectuada pelos contingentes militares dos dois países.
Ambas as tropas de demarcação tentaram avaliar a capacidade ofen­
siva dos opositores, saber antecipadamente das intenções e averiguar
a rapidez com que podiam ser socorridos53. Os luso-brasileiros, por
exemplo, sentiram sempre a ameaça de uma possível invasão vinda
de território hispano-americano pelos rios que davam acesso ao inte­
rior da Amazônia portuguesa. Por isso, tentavam manter-se informa­
dos da movimentação e concentração de tropas em Laguna, Quito e
Pasto.
É, ainda, de salientar que tanto luso-brasileiros quanto hispano-
-americanos se esforçaram por tomar a dianteira no conhecimento
do espaço e em conquistar o máximo de território para as respecti­
vas coroas. Assim, o capitão de conquista espanhol Fernando Roxas
tentou explorar o rio Içá, alegando que ia procurar farinhas e reali­
zou algumas expedições não autorizadas pela capitania do Rio
Negro54. Da parte luso-brasileira, ocorreram inúmeras viagens de
reconhecimento por toda a bacia hidrográfica amazônica e ao vice-
-reinado de Nova Granada, às ocultas de espanhóis55.
Para além disso, os luso-brasileiros tiveram uma intenção pre­
meditada de ocultar informações sobre o território, porque conside­
ravam que a divulgação do conhecimento de rios, afluentes, comu­
nicações e habitantes era sumamente prejudicial à integridade

53 AHU, Rio Negro, caixa 7, doc. 1, Ofício de Custódio de Matos Pimpim a Teo-
dósio Constantino de Chermont, de 11 de Agosto de 1783.
54 AHU, Rio Negro, caixa 4, doc. 2, Ofício de Teodósio Constantino de Chermont
a João Pereira Caldas, de 6 de Agosto de 1781; ibidem, caixa 7, doc. 12, Ofício de José
Manuel de Morais a Teodósio Constantino de Chermont, de 29 de Maio de 1783.
55 AHU, Rio Negro, caixa 8, doc. 1, Ofício de Teodósio Constantino de Chermont
a João Pereira Caldas do qual constava o resultado da viagem de Elias Fernandes ao
rio Içá, de 25 de Outubro de 1783; ibidem, doc. 6, Ofício de Manuel Gama Lobo de
Almada a João Pereira Caldas sobre a expedição aos rios Ixié e Tomon, de 13 de Julho
de 1784; Ângela Domingues, Viagens de exploração geográfica na Amazônia em finais do
século xviii: política, ciência e aventura, p. 48.

220
«AS M U R A L H A S D O SE R T Ã O »

territorial portuguesa na região56. Procuravam, também, evitar a


fixação dos espanhóis em áreas disputadas, como as embocaduras
dos rios Içá e Japurá57. Por seu tumo, os espanhóis eram acusados de
introduzir intencionalmente indivíduos que facultassem informa­
ções sobre os locais e os índios, como é o caso de Fernando Roxas.
Este escravo fugitivo de um morador do Pará tinha vivido durante
alguns anos entre índios Mauás ou Omáguas e era conhecedor de
inúmeras línguas indígenas e das áreas geográficas abrangidas pelos
rios Japurá, Cumiári, Tefé e Cupacá58.'
A realização de expedições de demarcação, de viagens de explo­
ração e de inquéritos junto das populações levou a que, nos anos 80 e
90 da segunda metade do século xvm, a controvérsia entre os países
ibéricos incluísse as regiões circundantes aos rios Japurá, Içá, Issapa-
raná e Cavaboris. O melhor conhecimento geográfico foi acompa­
nhado por um maior reconhecimento das etnias ameríndias e os con­
flitos pela partilha do território aludiam a referências cada vez mais
específicas. A título de exemplo, mencione-se que, em 1782, tinha-se
conhecimento específico de que, na margem ocidental do rio Copati,
havia 18 nações «gentias» que deviam partilhar da indulgência e da
liberdade de povoar a margem que escolhessem59.
Embora não pretendendo dar uma abordagem relevante à ques­
tão dos limites, afigura-se-nos que estas considerações são, no
entanto, importantes para a avaliação das relações entre as coroas
ibéricas e os ameríndios porque as demarcações são determinantes
na política colonial ameríndia da segunda metade do século xvm.
A forma como representantes dos poderes coloniais e índios se rela­
cionaram reflecte a mesma ambiguidade de procedimento notada
para as demarcações, podendo as várias etnias ameríndias ser enca­
radas como joguetes ao serviço dos interesses das potências60.

56 AHU, Rio Negro, caixa 9, doc. 1, Oficio de Henrique João Wilkens a João
Pereira Caldas, de 5 de Março de 1784; Ângela Domingues, Viagens de exploração geo­
gráfica na Amazônia..., p. 49.
57 AHU, Rio Negro, caixa 7, doc. 1, Ofício de João Pereira Caldas a Teodósio
Constantino de Chermont, de 28 de Fevereiro de 1783.
58 AHU, Rio Negro, caixa 8, doc. 1, Ofício de Teodósio Constantino de Chermont
a D. Francisco de Requena, de 2 de Novembro de 1783; ibidem, caixa 9, doc. 1, Ofício
de Henrique João Wilkens a João Pereira Caldas, de 5 de Março de 1784.
59 AHU, Rio Negro, caixa 7, doc. 1, Ofício de Teodósio Constantino de Chermont
a D. Francisco de Requena, de 30 de Dezembro de 1782.
60 Veja-se, por exemplo, que a política ibérica para as suas colônias em processo
de demarcação era idêntica e que estava relacionada com a fundação de povoados com
índios, com a necessidades de criar dependências entre as populações autóctones e os

221
AS M URALHAS DO SERTÃO»

Os representantes das duas coroas, desde os ministros plenipo-


tenciários até aos capitães de conquista, rivalizavam entre si para
captar o maior número de etnias para a respectiva área de influên­
cia. Oficialmente eram obrigados a comunicar aos habitantes das
povoações que passavam de soberania, como S. Fernando do rio Içá
ou S. Joaquim de Macupiri, o seu direito de permanecer no mesmo
local ou de se retirarem com todos os bens móveis para territórios
da potência rival61.
No entanto, através da concessão de ferramentas, vestuário,
quinquilharias e aguardente e contando com a intervenção de intér­
pretes e outros homens hábeis e experientes, tentavam aliciar os
índios a fixar-se em povoações situadas em locais tácticos, dissua-
dindo-os dos direitos que lhe eram concedidos pela legislação62.
O alvo de governadores, comissários, intérpretes e soldados era
tanto os índios habitantes dos sertões amazônicos como os indíge­
nas já aldeados pelas autoridades do país contrário. Assim, Inácio,
chefe de S. Fernando do rio Içá, era simultaneamente disputado por
D. Joaquim de Bustos, que o aliciava e brindava com aguardente,
tentando convencê-lo a permanecer em S. Fernando do rio Içá, e por
Teodósio Constantino de Chermont, que o queria persuadir a fixar-
-se em Castro de Avelãs, local onde, aliás, se tinha dado início a um
roçado para sustentar os «súbditos» do principal63.
Também os Taboca, Chumana, Juris, Passés, Miranha e Mauá
eram algumas das muitas etnias disputadas por Requena e Cher­
mont no Alto Rio Negro, tal como os Macuxi, Peracota, Uarequena e
Uapixana eram no rio Branco. Os Taboca, primeiramente sediados
na orla meridional do rio Japurá, ter-se-iam mudado para a margem
setentrional, talvez a instâncias do segundo comissário luso-brasi-
leiro. Este facto teve, como consequência, a apresentação de um pro­
testo imediato por parte das autoridades espanholas, que afirmavam

poderes coloniais e com a ocupação territorial efectiva através de uma população


nativa fiel. Pretendia-se, igualmente, destruir alianças entre indígenas e europeus
rivais (Manuel Lucena Giraldo, Laboratorio tropical. La expedicion de limites al Orinoco,
1750-1767, Caracas, Monte Avila Editores, CSIC, 1991).
61 AHU, Rio Negro, caixa 4, doc. 4, Bando que se publicou ao tempo da cedência
de alguns estabelecimentos portugueses aos domínios espanhóis, s/d [de cerca 1781];
ibidem, caixa 4, doc. 2, Ofício de Teodósio Constantino de Chermont a João Pereira
Caldas, de 6 de Agosto de 1781.
62 AHU, Rio Negro, caixa 6, doc. 1, Ofício de João Pereira Caldas aos comandan­
tes da fronteira do Rio Negro e da fortaleza de S. Gabriel, de 27 de Julho de 1781.
63 AHU, Rio Negro, caixa 4, doc. 2, Ofício de Teodósio Constantino de Chermont
a João Pereira Caldas, de 6 de Agosto de 1781.

222
AS M U R A L H A S D O SE R T Ã O »

que as duas povoações luso-brasileiras fundadas nos rios Apapóris e


Japurá tinham sido constituídas com índios que, pelo Tratado de
Santo Udefonso, pertenciam à coroa espanhola64. O mesmo se pas­
sava com Juris, Passés, Miranhas, e outros habitantes dos rios Içá e
Japurá, sediados em povoações localizadas em território luso-brasi-
leiro65. Quanto aos Mauá e Chumana, as autoridades portuguesas
afirmavam que teriam sido aliciados por Fernando Roxas a favorecer
os espanhóis, que se queriam fixar na parte inferior do rio Içá66.
Os protestos são repetitivos e recíprocos, conduzindo a sua lei­
tura a dois tipos de ilações: por um lado, havia uma indeterminação
entre as áreas de soberania dos poderes coloniais, o que provocava
conflitos territoriais; por outro, havia uma justaposição dos territó­
rios coloniais sobre territórios étnicos, o que conduzia, igualmente,
a antagonismos entre as potências coloniais.
Colocada desta forma, a questão é, sem dúvida, anacrônica.
O que, na segunda metade do século xviii, estava em jogo era o esta­
belecimento da fronteira entre dois países europeus e, nesta disputa,
era intenção dos poderes coloniais utilizar as nações indígenas na
construção da fronteira nacional.
No entanto, a existência dessas entidades indígenas ocasionou
inúmeros confrontos entre os poderes colonizadores que dividiam a
Amazônia em meados do século xviii. As coroas ibéricas admitiam
que as etnias ou «nações» indígenas ocupavam terras definidas em
torno de um núcleo de fixação permanente ou delimitadas por uma
área onde as etnias circulavam. Mas não reconheciam estas terras
como territórios. E, assim, a linha fronteiriça colonial partia, por
vezes, territórios étnicos e repartia igualmente grupos étnicos. Famí­
lias de Passés, Miranha ou Chumana povoavam igualmente aldeias
luso-brasileiras e hispano-americanas; os Uariquenas repartiam-se
entre aldeamentos lusos, espanhóis e franceses; e os Aruans ocupa­
vam tanto as ilhas fronteiras à costa paraense como os postos avan­

64AHU, Rio Negro, caixa 5, doc. 7, Ofício de D. Francisco de Requena a Teodósio


Constantino de Chermont sobre o abandono da povoação de S. Francisco de Ma-
cupiri, de 12 de Abril de 1782; ibidem, doc. 7, Ofício de D. Francisco de Requena a
Teodósio Constantino de Chermont, de 9 de Julho de 1782.
65 AHU, Rio Negro, caixa 8, doc. 1, Ofício de Teodósio Constantino de Chermont
a D. Francisco de Requena, de 2 de Novembro de 1783.
66 AHU, Rio Negro, caixa 5, doc. 6, Ofício de João Pereira Caldas a Martinho de
Melo e Castro, de 22 de Julho de 1782; ibidem, caixa 7, doc. 1, Oficio de Teodósio
Constantino de Chermont a João Pereira Caldas, de 29 de Março de 1783; ibidem,
doc. 12, Ofício de Teodósio Constantino de Chermont a João Pereira Caldas, de 8 de
Julho de 1783.

223
«AS M U R A LH A S D O SER TÃ O

çados da colonização francesa. A fronteira colonial caracterizava-se


por uma fluidez que não estava prevista nem era aprovada pelas
autoridades dos países colonizadores.
O que acabámos de afirmar deixa prever que os ameríndios
também foram objecto de ponderação dos governos coloniais nas
questões de limites entre Portugal e a França. Desde 1777 que a
Guiana Francesa vinha demonstrando intenções expansionistas em
direcção a território luso-brasileiro, expressas sobretudo na funda­
ção de quatro aldeamentos nos rios Oiapoque e Amapá67. Adminis­
trados por quatro jesuítas portugueses, eram em grande parte cons­
tituídos por ameríndios fugidos de povoações luso-brasileiras, como
era o caso da índia Arcangela Rufina, oriunda de Salvaterra, e do
filho do principal Joanico, que tinha autoridade sobre os índios
trânsfugas de território luso-brasileiro68. Face à ofensiva francesa, os
luso-brasileiros procuravam manter-se informados dos lugares nova­
mente fundados, dos contingentes armados e das etnias que consti­
tuíam as povoações.
No entanto, a situação alterar-se-ia a partir de 1790. Em 1789, a
Revolução Francesa tinha acontecido no reino e a protecção oficial e
o financiamento dados às quatro «missões» francesas acabariam por
ser suspensos. Não obstante, o temor sentido pelas autoridades
administrativas paraenses e pela sociedade colonial luso-brasileira
agudizava-se: receavam a «contaminação ideológica» pelos ideais
revolucionários que os contactos com a Guiana podiam trazer e,
sobretudo, temia-se a fuga de escravos para território francês69.
De par, tomava-se cada vez mais urgente o reajustamento dos
velhos acordos diplomáticos às novas fronteiras. A experiência
decorrente das demarcações entre territórios ibéricos aconselhava à
realização de viagens e expedições de reconhecimento geográfico,
imediatamente transpostas para diários, roteiros e mapas. O conhe­
cimento facultado pelas viagens de João Vasco Manuel de Braun e
Manuel Joaquim de Abreu permitia uma informação precisa das

67 Ciro Flamarion Cardoso, Economia e Sociedade em áreas coloniais periféricas.


Guiana Francesa e Pará (/I7í0-i8'l7), Rio de Janeiro, Edições Graal, L.da, 1984, p. 170.
68 AHU, Pará, caixa 42 (756), Relação das respostas da índia Arcangela Rufina às
perguntas de Leonardo José Ferreira, s/d [cerca 3 de Julho de 1782]; ihidem, caixa 43
(759), Ofício de Manuel Gama Lobo de Almada a Martinho de Sousa e Albuquerque,
de 9 de Dezembro de 1783.
69 Ciro Flamarion Cardoso, Economia e Sociedade em áreas coloniais periféricas...,
p. 153; AHU, Pará, caixa 47 (764), Ofício de D. Francisco de Sousa Coutinho a Luís
Pinto de Sousa, de 11 de Agosto de 1795.

224
AS M U R A LH A S D O SERTÃ O »

posições avançadas francesas, fortificações e guarnição, comunica­


ções fluviais com o rio Amazonas, número de colonos e de índios e
distâncias em relação a território luso-brasileiro. Estes dados teriam
sido, eventualmente, utilizados nas negociações que se seguiram, já
no princípio do século seguinte, para restabelecer as fronteiras entre
as colônias de Portugal e da França na América do Sul70.
Quanto aos índios, a situação revelava-se idêntica à do período
anterior: as etnias ameríndias que constituíam as povoações luso-
-brasileiras tinham parentes, amigos a> comércio com os índios do
outro lado da fronteira e as autoridades administrativas luso-brasi-
leiras temiam pelas informações que podiam prestar sobre as comu­
nicações, núcleos de povoamento, fazendas e produções71. No
entanto, e ao contrário do que se passava na fronteira espanhola,
parece não ter havido despiques entre as entidades dos dois países
para agarrar às respectivas povoações o maior número possível de
ameríndios. Assim, Diogo de Mendonça Corte Real desempenhava
tranquilamente as suas funções ao prender os índios fugidos das
povoações luso-brasileiras para o rio Maiacaré sem haver protestos
formais por parte das autoridades francesas72.
Para além do mais, a prioridade da política colonial indígena
portuguesa, delineada nos anos 90 para as fronteiras com território
francês, consistia em «estudar e estabelescer todos os meios de con­
servar os índios [...] e que he melhor sofrer a sua ociozidade do que
arriscar-nos ou a ficar sem elles ou a te-los por Inimigos [...] e maior
sacrifício a ser precizo se deverá fazer quando se trata de conservar
esta Costa tão necessária à defeza do Paiz, que de todos os d’Ame-
rica fica sendo o mais exposto»73. Estávamos já em finais de Sete­
centos e assistia-se à definição de um novo discurso político para as
comunidades ameríndias do Norte do Brasil.

70 AHU, Pará, caixa 45 (763), Instruções de D. Francisco de Sousa Coutinho a


João Vasco Manuel de Braun, de 30 de Julho de 1790; ibidem, Ofício de D. Francisco
de Sousa Coutinho a João Vasco Manuel de Braun, de 24 de Fevereiro de 1791;
ibidem, Ofício de D. Francisco de Sousa Coutinho a Martinho de Melo e Castro, de
1 de Julho de 1791; ibidem, caixa 46 (762), Ofício de D. Francisco de Sousa Coutinho
a Martinho de Melo e Castro, de 16 de Julho de 1794.
71 AHU, Pará, caixa 49 (765), Ofício de D. Francisco de Sousa Coutinho a
D. Rodrigo de Sousa Coutinho, de 20 de Abril de 1798.
72 AHU, Pará, caixa 67 (782), Atestação de João de Medina Azere sobre o com­
portamento, zelo e actividade de Diogo de Mendonça Corte Real, de 7 de Outubro
de 1798.
73 Ibidem.

225
«AS M U R A L H A S D O SE R T Ã O »

A p e r m e a b ilid a d e d as fr o n te ir a s :
u m e n tr a v e a o s p r o je c t o s e x p a n s io n is ta s
d o s E s ta d o s c o lo n ia is

As fronteiras entre os países ibéricos caracterizaram-se sempre


por uma certa fluidez, na medida em que, à margem das relações
oficiais que nem sempre eram pacíficas, se processaram contactos
entre as populações de ambos os lados das linhas divisórias. Ao
longo das linhas fronteiriças que dividiam os países europeus, as
populações de ambos os lados da fronteira trocavam produtos e
dinheiro, num contrabando quase institucionalizado e bem conhe­
cido pelos governos dos países envolvidos. Esta afirmação é tão
válida para as linhas fronteiriças entre Portugal e Espanha como para
as deste país com a França74.
A permeabilidade das fronteiras não foi, portanto, um dado
novo nas relações entre os Estados na América do Sul. No entanto,
quando se trata deste assunto aplicado às fronteiras coloniais de
meados de Setecentos, deparamos com algumas peculiaridades, cujo
conhecimento é o propósito deste subcapítulo. Estas especificidades
são resultado do facto de a colonização ibérica e francesa se ter esta­
belecido sobre território já povoado. Ou seja, quando as coroas dos
três países se tentaram implantar nesta vasta região havia estruturas
de comunicação, vias de migração e rotas de comércio já montadas
pelas etnias habitantes da bacia hidrográfica amazônica. Os contac­
tos interétnicos preestabelecidos e as alianças anteriormente forma­
das contribuíram, de forma decisiva, para uma maior permeabili­
dade da fronteira colonial.
Um dos casos mais bem conhecidos é o dos Manao e das articula­
ções que estabeleciam entre os rios Negro e Solimões. Já antes dos
primeiros contactos com os ibero-americanos, estabelecidos cerca de
1640, esta étnia tinha por hábito abandonar o seu território originá­
rio e descer ao vale do rio Solimões, onde comerciava. David Sweet
refere este tráfico: os Manao traziam pequenas chapas de ouro para
serem utilizadas como adornos, raladores de mandioca, redes feitas
de fibras vegetais, clavas, escudos de couro e uma quantidade razoá­
vel de onoto ou urucú, tinta vermelha usada para tingir tecidos e pin­
tar caras e corpos. Alguns destes gêneros eram produzidos pelos
Manao; outros obtinham-se por troca com outros grupos que habi­
tavam a norte e a oeste do seu território. As etnias do Solimões

74 Peter Sahlins, Boundaries. The making of France and Spain in the Pyrenees, p. 90.

226
AS M U R A L H A S D O S E R T Ã O »

abasteciam os comerciantes Manao com colares de conchas e, pre­


sumivelmente, com mandioca, peixe fumado, cerâmica, cestaria,
roupas de algodão e curare para envenenar flechas75. Desta rede
comercial montada pelos Manao beneficiaram luso-brasileiros e
holandeses que trocavam artefactos de fabrico europeu, como
machados, facas, agulhas, anzóis, armas de fogo, contas, aguardente
e algodão em peça por cacau, baunilha, salsaparrilha, sucedâneos de
cravo e canela, algodão em rama e escravos.
Também as ligações que se fgziam entre os vales dos rios
Branco e Negro e a Guiana, documentadas a partir do século xvi,
encontravam-se já estabelecidas por grupos que faziam a permuta
de gêneros e a guerra e que mantinham alianças e trocas rituais de
prisioneiros e de mulheres. Por esta via circulavam as famosas
«pedras verdes» que, apanhadas nas margens do rio Amazonas,
eram vendidas às etnias que habitavam a vasta área compreendida
entre o rio Orinoco e o litoral atlântico para protegê-las e curá-las da
epilépsia e das mordeduras de serpentes76. Obviamente, este comér­
cio não era desconhecido a holandeses, ingleses e luso-brasileiros.
E Simone Dreyfus que, no seu estudo sobre os espaços indíge­
nas da Guiana, dá conta da complexidade destas rotas, ao afirmar
que a famosa comunicação entre a costa e o Amazonas, de um lado
pelo Orinoco e Negro, de outro pelo Essequibo e a bacia do Branco,
era utilizada antes da chegada dos europeus. Lawrence Keymis,
lugar-tenente de Sir Walter Ralegh, tinha sabido dela por volta de
1596, bem como dos rios Rupununi e Parime através dos Yao, índios
habitantes de Trinidad e da costa, e dos Karinya, que ainda lhe
tinham dito que era preciso exactamente vinte dias de viagem para
se passar do estuário do Essequibo até à bacia do rio Branco, através
do varadouro do Pirara e pelo rio Repununi77.
Ora, se os europeus podiam lucrar com essas ligações para obter
um maior conhecimento geográfico do território ou para adquirir
uma maior eficiência na colocação dos seus produtos, essas mesmas
estruturas opor-se-iam a uma «definição fechada ou estanque» de

75 David G. Sweet, «Francisca: Indian slave», in Struggle and survival in Colonial


America, editado por David G. Sweet e Gary B. Nash, Berkeley, Los Angeles e Lon­
dres, University of Califórnia Press, 1991, p. 276.
76 Simone Dreyfus, «Os empreendimentos coloniais e os espaços políticos indí­
genas no interior da Guiana Ocidental (entre o Orinoco e o Corentino) de 1613 a
1796», in Amazônia Etnológica e História Indígena, organização de Eduardo Viveiros de
Castro e Manuela Carneiro da Cunha, São Paulo, NHII-USP, Fapesp, 1993, pp. 24-25.
77 Ibidem, p. 29.

227
«AS M U R A L H A S D O SE R T Ã O »

território nacional ou colonial. Queremos dizer que a vontade dos


povos que habitavam as fronteiras, fossem eles europeus, amerín­
dios ou africanos, estava muitas vezes em colisão com as decisões
oficiais dos governos.
Os poderes administrativos das regiões tinham claro conheci­
mento que, não obstante a hostilidade que, em determinados
momentos, deveria regular as relações entre, por exemplo, súbditos
das coroas portuguesa e espanhola, havia contactos amistosos e
«invasões» pacíficas numa fronteira que, durante um tão longo
período, permaneceu indeterminada.
O comércio ou o contrabando era uma das muitas formas pelas
quais esses contactos eram feitos e era uma questão com a qual os
países europeus tinham que lidar dentro do seu espaço nacional.
Como é que este problema foi transposto para um espaço colonial
como era a Amazônia da segunda metade do século xviii?
Os padres da Companhia surgiam como os principais beneficiá­
rios deste comércio de fronteira até à data da sua expulsão. A conju­
gação de vários factores, nomeadamente o facto de terem uma pre­
ponderância quase exclusiva na missionação e colonização dos
territórios coloniais, de sobre eles não se efectuar uma vigilância fis­
cal ou militar efectiva e de, entre si, existirem laços de solidariedade
enquanto membros da mesma ordem religiosa, conduzia à existên­
cia de um comércio activo sobretudo entre os Jesuítas das duas
potências ibéricas78.
Imediatamente após 1759, eram ainda os elementos das ordens
religiosas que continuavam a intervir neste comércio. Os negócios
tidos entre o chantre da Sé de Belém Antônio Francisco Portfelix e o
missionário espanhol frei Antônio de Jesus Paredes eram do conheci­
mento público mas, apesar de serem desaprovados pelas autoridades,
reconheciam-se como úteis ao desenvolvimento econômico do Estado.
Ao dar conta deste facto, Manuel Bernardo de Melo e Castro
apresentou um projecto no qual propunha a substituição do reli­
gioso por homens de sua confiança e a criação, em Ega ou nas
povoações do rio Içá, de armazéns que tivessem em quantidade os
produtos habitualmente pretendidos pelos espanhóis, com o pre­
texto de se destinarem ao abastecimento das novas povoações do
rio Solimões. Face à proposta do governador do Estado, Mendonça
Furtado recomendava que «Este estabelecimento porém se deve

78 Dauril Alden, «Economic aspects of the expulsion of the Jesuits from Brazil: a
primary report», p. 36.

228
AS M U RA LH AS DO SERTÃO

fazer com summa cautella e prudência publicando que ha de casti­


gar asperamente todo o que tiver comércio que não seja com os vas­
salos de S. Magestade incumbindo inteiramente estas ordens sem
que se participe a pessoa alguma»79.
Através do projecto elaborado por Manuel Bernardo de Melo e
Castro, irmão do futuro secretário de Estado da Marinha e Negócios
Ultramarinos, a coroa portuguesa parecia disposta a substituir os
Jesuítas no comércio clandestino com a América Espanhola. De facto,
e com o decorrer do tempo, o plano incipiente de Manuel Bernardo
foi ganhando uma maior definição. As estratégias de dinamização
comercial tomaram formas cada vez mais definidas nos planos
comerciais elaborados pelos gabinetes pombalinos com vista a serem
aplicados pelas entidades governativas do Estado do Grão-Pará80.
É dos anos 70 que data a versão mais elaborada destes projectos
de comércio ilegal com a Hispanoamérica. Pela lnstmcção Secretís­
sima... confiada a João Pereira Caldas, o poder central pretendia
beneficiar de uma extensa fronteira incipientemente vigiada para,
simultaneamente, dinamizar a economia do Estado do Pará e captar
alguma da prata produzida em território hispânico. O seu objectivo
era a introdução, a preços competitivos, de produtos comerciados
pela Companhia Geral de Comércio do Grão-Pará e Maranhão nos
mercados do Orinoco, Quito e Peru81. No entanto, parece que, na
prática, poucos resultados teriam sido obtidos da aplicação deste e de
outros planos, que, aliás, foram anulados em 1777 pelo secretário de
Estado Martinho de Melo e Castro82. Tinha entrado em vigor um
novo período de boas relações com a Espanha e a assinatura do Tra­
tado de Santo Ildefonso deixava antever a chegada das tropas demar-
cadoras espanholas a território amazônico. Com o dealbar dos anos

79 AHU, P a rá , caixa 22 (7 4 2), Carta de Manuel Bernardo de Melo e Castro a [?],


de 3 de Novembro de 1760; AN/TT, M anuscritos do Brasil, n.° 51, fl. 104v, Ofício
de Francisco Xavier de Mendonça Furtado a Manuel Bernardo de Melo e Castro, de
5 de Junho de 1761.
80 BN, Colecção Pom balina, códice 8549, fls. 297 e ss., Instrucção Secretíssim a com
que S u a M a g e sta d e m anda p a s s a r à capitania de Belém do P a rá o governador e capitão-
-general Jo ã o Pereira C a ld a s, de 2 de Setembro de 1772; Corsino Medeiro dos Santos,
«As relações hispano-lusitanas na América e o Secretíssimo plano de comércio do
Marquês de Pombal», in A n ais d a Sociedade Brasileira de P esquisa Histórica (no prelo).
81 Ângela Domingues, «Urbanismo e colonização na Amazônia em meados de
Setecentos: a aplicação das reformas pombalinas na capitania de S. José do Rio
Negro», in Revista de C iências Históricas, n.° 10, 1995, p. 270.
82 AHU, P a rá , caixa 17 (733), doc. 2, Ofício de João Pereira Caldas ao Marquês
de Pombal, de 31 de Outubro de 1776.

229
«AS M U R A L H A S D O SE R TÃ O

80, deixaria de haver necessidade de se colocarem produtos em mer­


cado peruano para se beneficiar do comércio com os espanhóis, que
frequentemente o efectuavam de uma forma que as autoridades luso-
-brasileiras consideravam abusivas. Foi, talvez, esta constatação que
levou D. Francisco de Sousa Coutinho a recomendar, em 1799, que
cessassem todos os contactos comerciais com a vizinha América
Espanhola e se reforçasse a fiscalização dos registos das povoações de
Ega, Olivença, foz do Içá e outros locais fronteiriços83.
O que é interessante verificar é que, a par destes projectos
monumentais, decorria, de facto, um pequeno comércio feito quer
pelos moradores, por funcionários e por etnias ameríndias com pro­
dutos espanhóis, portugueses, franceses e holandeses e, possivel­
mente, indígenas84. Sobretudo os holandeses tinham uma parte
importante porque, apesar de não demonstrarem qualquer intenção
expansionista em direcção à bacia hidrográfica amazônica, conse­
guiam-se nela implantar através do comércio intertribal das suas
mercadorias negociadas a troco de escravos. Ou seja, por todo o
vale amazônico surgiam machados, anzóis, facas e outros instru­
mentos de ferro de proveniência holandesa a serem utilizados por
etnias que não tinham tido, até à data, qualquer tipo de contacto
com europeus85. Também grupos ameríndios dos rios Negro e
Branco sem contacto directo com o Suriname e até colonos luso-
-brasileiros encontravam produtos com a mesma proveniência nos
seus mercados de abastecimento. Apesar de se noticiar esporadica­
mente a presença de holandeses em território rionegrino, esta pare­
cia não constituir uma ameaça fundamentada às pretensões ibéricas
na região, porque não se resumia a mais que entradas destinadas à
captura de escravos e motivadas por razões comerciais86. A coroa

88 IHGB, lata 278, livro 1, doc. 18, Ofício de D. Francisco de Sousa Couti
recomendando se evitassem o comércio com os espanhóis e se incrementasse as tro­
cas com os índios, de 5 de Dezembro de 1799.
84 Para definir o termo com mais precisão, diriamos pequeno em quantidade, mas
grande pelos milhares de quilômetros percorridos e pelas inúmeras operações de troca.
85 BNRJ, 1-32-21-1, Sinopse de algumas notícias geográficas para o conheci­
mento dos rios, por cuja navegação se podem comunicar os domínios da Coroa Por­
tuguesa em o Rio Negro com os de Espanha e províncias unidas de América, de 22 de
Outubro de 1764.
86 AHU, Conselho Ultramarino, códice 271, fl. 173, Carta régia a Francisco Xavier de
Mendonça Furtado, de 20 de Abril de 1751; IHGB, lata 278, pasta 1, doc. 3, Carta régia
sobre se construir uma fortificação no rio Branco, de 14 de Novembro de 1752; também
publicada em Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, tomoiv, 1842, p. 501; Nádia
Farage, Ãs m uralhas do sertão. O s povos indígenas no rio Branco e a colonização, pp. 76-77.

230
AS M U R A L H A S D O SE R T Ã O »

portuguesa insistia na necessidade de se construir uma fortificação


no rio Branco, de se patrulharem os afluentes mas, sobretudo, de se
proceder à colonização do vale fértil87.
Importa salientar que este comércio, constituído tanto por pro­
dutos europeus quanto por mercadorias indígenas, se justapunha às
relações interétnicas e, através de uma rede extensa e multilateral
de trocas, anulava as fronteiras das colônias. Os inquéritos, as
informações e as notícias recolhidas junto dos moradores e dos
índios ou divulgadas pelas instituiçõss administrativas conduzem-
-nos à percepção de um intrincado sistema de comunicações e
comércio montado pelas etnias ameríndias. O conhecimento destas
redes de ligação não é, frequentemente, global, e só pode ser
reconstituído, na maior parte dos casos, pela leitura de depoimen­
tos parcelares88.
Desta forma, as informações interligavam-se e pelos índios
Mauá sabia-se que os Quairés, que habitavam as serras onde termi­
nava o rio Messai, tinham comércio com as missões espanholas de
S. João de Coslhanos; que após 9 dias de navegação pelo rio Macaia
e 3 dias por terra se podiam encontrar missões de missionários
capuchos castelhanos89; que se podia chegar pelo rio Japurá às mis­
sões franciscanas do bispado de Popaian, a Santa Maria e S. Fran­
cisco Solano90. índios das etnias Uapixana e Macuxis davam infor­
mações a hispano-americanos e luso-brasileiros sobre o rio Branco e
estabeleciam alianças distintas com representantes dos dois países
europeus que disputavam entre si o território91.
Tal como os Manao de Ajuricaba nos anos 20, há grupos que,
na década de 50, faziam guerra a outras etnias para vender os pri­
sioneiros: alguns dos habitantes dos afluentes do rio Negro eram

87 AHU, Conselho Ultramarino, códice 209, fl. 261v, Parecer do Conselho Ultrama­
rino sobre as incursões feitas por holandeses e no rio Branco, de 16 de Abril de 1753;
Marcos Carneiro de Mendonça, A A m azôn ia na E ra Pom balina. Correspondência inédita
do governador e capitão-general do E stado do G rão -P ará e M aran h ão Francisco X avier de
vol. i, 1963, p. 114.
Mendonça Furtado, 1 7 5 1 -1 7 5 9 ,
88 AHU, Rio Negro, caixa 4, doc. 8, Informação do rio Apaporis dada pelo índios
Antônio, filho do principal Umani e transmitida por Teodósio Constantino de Cher-
mont, de 15 de Novembro de 1781.
89 BNRJ, 7-2-40, fl. 7v, Termo de indagação a que se procedeu com o gentio
Mauá, de 19 de Maio de 1782.
90 AHU, Rio Negro, caixa 5, doc. 7, Ofício de Teodósio Constantino de Chermont
a João Pereira Caldas, de 22 de Junho de 1782.
91 Manuel Lucena Giraldo, «La última búsqueda de El Dorado: las expediciones
al Parime (1770-1776)», p. 82.

231
AS M U R A LH A S D O SERTÃ O

comerciados no Suriname92; outros com os padres jesuítas do rio


Orinoco e com as tropas de resgate luso-brasileiras93; os prisioneiros
dos Taboca eram vendidos, já na década de 80, tanto aos demarca-
dores espanhóis quanto aos portugueses94.
Quando consideramos a permeabilidade das fronteiras coloniais
da Amazônia na segunda metade do século xvm há que, por um
lado, ter em conta, como já o afirmámos, a existência de relações de
parentesco e comércio, bem como alianças entre grupos étnicos de
ambos os lados da fronteira. As etnias que tinham sido divididas
pelas fronteiras coloniais circulavam livremente para visitar os seus
parentes e os seus amigos95; os índios do lado espanhol da fronteira
casavam com ameríndias do lado luso-brasileiro do território96; os
principais aliavam-se entre si e, por vezes, persuadiam os amigos a
transferirem as suas povoações, ganhando o país colonial que ofere­
cia condições mais vantajosas ou que tinha uma maior quantidade
de presentes para oferecer97; índios desertores e suas familias pro­
curavam a protecção das autoridades e tentavam fixar-se em povoa­
ções já constituídas do outro lado da fronteira98.

92 Sobre a participação dos Manao no tráfico de escravos para território holan­


dês, veja-se Nádia Farage, A s m uralhas do sertão. O s povos indígenas no rio Branco e a
colonização, p. 65; AHU, Rio N egro, caixa 1, doc. 8, Relação dos rios que desaguam no
rio Negro de que até agora tenho achado notícia, de 9 de Junho de 1755; AHI,
340/04/04, Ofício de Lourenço Pereira da Costa a [Francisco Xavier de Mendonça
Furtado], de 2 de Setembro de 1762.
93 AHU, Rio N egro, caixa 1, doc. 13, Ofício de [?] a Francisco Xavier de Men­
donça Furtado, de 1 de Junho de 1756.
94 AHU, Rio N egro, caixa 5, doc. 7, Ofício de Teodósio Constantino de Chermont
a João Pereira Caldas, de 22 de Junho de 1782.
95 AHU, Rio N egro, caixa 18, doc. 5, Ofício de Francisco de Requena a Manuel
Gama Lobo de Almada, de 18 de Maio de 1791; P ará, caixa 53 A (768), Ofício de
Caetano Pereira Pontes ao conde de Arcos, de 8 de Fevereiro de 1805.
96 AHU, Rio N egro, caixa 18, doc. 5, Ofício de Manuel Gama Lobo de Almada ao
capitão Bemardes Borralho dando ordem para não autorizar a passagem de índias ou
de mulheres portuguesas e de mamelucos filhos de pai espanhol e mãe portuguesa,
de 19 de Julho de 1791.
97 Veja-se, por exemplo, a intervenção do principal Teobaldo Pereira que dis­
suadiu os seus parentes de se fixarem em território espanhol (AHU, Rio N egro, caixa
7, doc. 12, Ofício de Teodósio Constantino de Chermont a João Pereira Caldas, de
8 de Julho de 1783); junto dos índios Passe, os espanhóis tinham fama de maltratar
os ameríndios {ihidem, caixa 8, doc. 1, Ofício de Teodósio Constantino de Cher­
mont a João Pereira Caldas, de 25 de Outubro de 1783); ihidem, doc. 1, Ofício de
Custódio de Matos Pimpim a Teodósio Constantino de Chermont, de 11 de Agosto
de 1783.
98 IHGB, lata 280, pasta 10, doc. 25, Ofício de João Pereira Caldas ao coman­
dante do registo de Borba, de 25 de Janeiro de 1787; AHU, Rio Negro, caixa 14, doc.

232
«AS M U R A L H A S D O SE R T Ã O »

Para inviabilizar as ligações entre ameríndios dos mesmos gru­


pos étnicos habitantes de países rivais, as autoridades ponderaram a
ideia de alterar a localização de alguns dos seus núcleos populacio­
nais. No caso português, D. Francisco de Sousa Coutinho propunha
o abandono de «alguns estabelecimentos principiados nas ilhas de
Caviana e Mexianna chamando os seus proprietários para o interior
da de Marajó e que os índios Aroans de Chaves e Rebordello que
são os que tem mais parentes com os Franceses e os mais robustos e
fortes entre os deste Estado se chamem também para o interior de
Marajó, tudo a fim de difficultar a comunicação não só pelo meio
desta considerável distância entre os nossos e os seus estabeleci­
mentos, mas pello de effectivas embarcações armadas e de ronda
nos passos e no destricto que devemos guardar»99.
Algumas entidades luso-brasileiras, como o governador e capitão-
-general D. Francisco de Sousa Coutinho, tinham uma ideia clara dessas
redes e da sua importância enquanto meio de informação: «Os índios
das nossas Povoaçõens ainda que de differentes Naçõens quazi todos
têm parentes em Caienna, quazi todos failão a Lingoa geral, que fallão
também não só os que fugirão dellas mas os que lá habitarão sempre.
Huns e outros são sem dúvida melhores emissários do que os mais bem
instruídos franceses, e tendo muitos dos nossos fugidos, que sabem
todas as communicaçõens, sendo muitas as que facilitão os muitos Rios,
Riachos e Ilhas deste país e muito remotas e espalhadas Povoaçõens e as
mesmas Fazendas quando menos se pense podemos ter dentro de caza
hum grande corpo dos nossos armados contra nós e quando menos
esperamos por grande remédio o grande mal de nos vermos livres de
Escravos e índios podemos achar-nos às mãos com elles.»100
Por outro lado, é preciso ainda contar que, entre europeus de
países com uma mesma base civilizacional, que falavam uma língua
semelhante e que tinham uma mesma religião, se estabeleciam liga­
ções que informalizavam as relações de fronteira, dando-lhe, fre­
quentemente, um carácter contraditório ao que seria antevisto pela
tensão existente entre as coroas ibéricas.
O facto de em três dos países com fronteiras comuns existirem
estruturas institucionais e religiosas semelhantes facilitava essa per­

19, Ofício do comandante de Borba a João Pereira Caldas, de 22 de Abril de 1787;


Pará, caixa 60 (775), Ofício de Manuel Bernardo de Melo e Castro a Francisco Xavier
de Mendonça Furtado, de 12 de Março de 1763.
99 AHU, Pará, caixa 49 (765), Ofício de D. Francisco de Sousa Coutinho a
D. Rodrigo de Sousa Coutinho, de 20 de Abril de 1798.
100 Ihidem.

233

_
«AS M U R A LH A S D O SER TÃ O »

meabilidade. Por exemplo, missionários jesuítas, franciscanos e car­


melitas espanhóis transitavam pelo território amazônico contando
com o apoio dos seus congêneres luso-brasileiros e a protecção das
entidades administrativas: podiam utilizar a calha do rio Amazonas
como um meio mais fácil e rápido de transitar do Peru para Espa­
nha, como também podiam procurar em território português refú­
gio ou alternativas ao seu descontentamento101. De igual modo, os
franceses contavam, frequentemente, com a colaboração de jesuítas
expulsos de território luso-brasileiro para organizarem as suas
povoações sitas nos limites, algumas delas constituídas por uma
maioria de índios desertores dos aldeamentos portugueses. Era este
o caso de João de Padilha, antigo jesuíta do Pará e vigário da povoa-
ção de S. Francisco Xavier do rio Araguari, onde prestava assistência
religiosa a antigos índios das povoações de Portei e Salvaterra102.
Em zonas de limite como esta, chegava a haver uma «promis­
cuidade» de funções, como se pode classificar a situação que é dei­
xada transparecer no pedido de frei Joaquín de S. Tadeo y Gil que,
em 1765, solicitava ao vigário José Monteiro de Noronha para lhe
serem concedidas as licenças e faculdades necessárias para confessar
e assistir religiosamente algum vassalo português da diocese do Pará
que recorresse aos seus serviços. Resta dizer que o frade mencio­
nado exercia as suas funções em S. Joaquim do rio Içá e mencionava
o precedente aberto por frei José Antônio de Xeres, procurado pelos
luso-brasileiros do Alto Rio Negro e Alto Orinoco103.
As fronteiras eram também atravessadas por militares e civis,
devido às mais variadas razões e com as mais diversas finalidades.
Desertores, pescadores, colonos, espiões navegavam pelos rios da
bacia hidrográfica amazônica e ultrapassavam em muito o raio de
vigilância dos postos fronteiriços dos países colonizadores. Os
comandantes das guarnições das fortalezas do Rio Negro noticiavam

101 AN/TT, Ministério dos Negócios Estrangeiros, livro 127, £1. 73, Carta de Francisco
Xavier de Mendonça Furtado a D. Luís da Cunha, de 27 de Janeiro de 1761; ANRJ,
códice 99, vol. 1, fl. 204, Ofício de Fernando da Costa de Ataíde Teive a Francisco
Xavier de Mendonça Furtado, de 30 de Junho de 1767.
102 AHU, Pará, caixa 42 (756), Ofício de Manuel Gama Lobo de Almada a José
Nápoles Telo de Meneses, de 3 de Julho de 1782; ibidem, Relação do que respondeu a
índia Arcangela Rufina às perguntas feitas por Leonardo José Ferreira, s/d [cerca de 3
de Julho de 1782],
103 AHU, Pará, caixa 93 (808), Carta de Fr. Joaquin de S. Tadeo y Gil ao vigá­
rio José Monteiro de Noronha, de 1 de Setembro de 1765; ibidem, Ofício de Gi-
raldo José de Abranches a Francisco Xavier de Mendonça Furtado, de 29 de Março
de 1766.

234
«AS M U R A L H A S D O SE R T Ã O »

constantemente o afluxo de soldados espanhóis que procuravam


refúgio em território luso-brasileiro, tal como o negro castelhano José
Inácio, sargento no forte de S. Carlos no rio Negro, e o antilhano
Domingos Antônio, natural da ilha Margarita e soldado na mesma
fortificação104. O trânsito de desertores em sentido inverso também
se processava, chegando ao ponto de, em 1766,12 soldados de S. José
de Marabitenas se terem aproveitado da ausência do ajudante Fran­
cisco Rodrigues e, depois da apropriação de armas, pólvora, ferra­
mentas e outros tipos de bens, fugirem para os limites espanhóis105.
Nos anos 80, os luso-brasileiros contaram com as informações de
Sebastião Rigo, um espingardeiro espanhol natural de Maiorca que
acompanhava um capitão-engenheiro francês Mantel no reconheci­
mento das fronteiras de Caiena com os domínios luso-brasileiros106.
Um cavalheiro navarro caído em desgraça junto do vice-rei de
Lima, seis índios e mamelucos espanhóis enviados pelo governador
de Mato Grosso, os espanhóis Antônio Bermon e João Adrião e os
soldados aprisionados pelas tropas portuguesas durante as investi­
das hispano-americanas ao rio Branco foram alguns dos espanhóis
que voluntária ou compulsivamente circularam das suas terras para
a Amazônia portuguesa107. Depois de se encontrarem presentes no
Norte do Brasil, eram sujeitos a interrogatórios pelas autoridades
das capitanias e do Estado. Seguidamente, podiam ser enviados para
o Reino e ficar à disposição do conde de Oeiras e dos secretários de
Estado dos Negócios Ultramarinos, ou, em alternativa, permanecer
nas cadeias do Pará e Rio Negro ou, ainda, ser integrados na socie­
dade colonial paraense como colonos.
Assim, os poderes coloniais luso-brasileiros contavam com estes
indivíduos como elos na cadeia de informações que tinham sobre os

104 AHU, Pará, caixa 26 (741), Ofício de Fernando da Costa de Ataíde Teive a
Martinho de Melo e Castro, de 23 de Novembro de 1771; ibidem, caixa 95 (810), Ofí­
cio de José Roberto Vidal da Gama a [?], de 26 de Junho de 1775.
105 AHU, Pará, caixa 28 (743), Ofício de Joaquim Tinoco Valente a Francisco
Xavier de Mendonça Furtado, de 20 de Fevereiro de 1766.
106 AHU, Pará, caixa 43 (759), Ofício de Martinho de Sousa e Albuquerque a
João Vasco Manuel de Braun, de 7 de Novembro de 1783.
107 AHU, Pará, caixa 24 (739 D), Ofício de Manuel Bernardo de Melo e Castro a
Francisco Xavier de Mendonça Furtado, de 9 de Julho de 1762; ANRJ, códice 99, vol.
1, fl. 114, Ofício de Fernando da Costa de Ataíde Teive a Francisco Xavier de Men­
donça Furtado, de 17 de Março de 1767; AHU, Pará, caixa 34 (347), Ofício de João
Pereira Caldas a Martinho de Melo e Castro, de 7 de Janeiro de 1773; ibidem, caixa 17
(733), doc. 2, Ofício de Joaquim Tinoco Valente a Martinho de Melo e Castro, de 24
de Julho de 1776.

235
«AS M U R A L H A S D O SE R T Ã O »

espanhóis e franceses, a par de outros que lhes eram facultados


pelos indígenas, pelos soldados ou pelos espiões. Por seu turno, os
hispano-americanos tinham igualmente as suas fontes de informa­
ção, empregando criados portugueses, acolhendo desertores e utili­
zando espiões108. Os franceses contavam ainda com os serviços que
lhes prestavam os índios e, sobretudo, os escravos fugidos do Pará,
os quais eram integrados na sociedade colonial guianense ou refu­
giados em mocambos protegidos pelas autoridades francesas109.
Vejamos, em seguida, dois dos casos mais representativos da
ambiguidade de relações em zona de fronteira colonial como é a
Amazônia de meados de Setecentos. Um é o do ajudante Francisco
Rodrigues, comandante da casa forte de Marabitenas, «com quem o
Sargento Castelhano intretem huma política correspondência em
amizade que o dito Ajudante Francisco Rodrigues fomenta com os
seus mimos, motivo porque os Castelhanos não desconfiaram de o
ver navegar pelo Rio acima»110. O outro é o de João de Matos com o
comandante da fortaleza de S. Carlos que, em 1801, lhe pediu para
que «não tomasse Eu lá mais porque lhe causava muito incômodo e
que nem mandasse eu lá soldados e que podia eu mandar lá algum
índio de sastifação porque não lhe causava muito encómodo como
erão Brancos, pois o dizer me elle isto he porque o dito Comman-
dante me he devedor de huns trinta e tantos Pezos fortes»111. O ofi­
cial luso-brasileiro e o comandante espanhol, que costumavam jogar
às cartas em tempo de paz, continuaram a visitar-se assiduamente
depois de ficarem esclarecidas as relações entre as duas coroas112.
Ao dar relevância a casos como estes, o que, de facto, queremos
salientar é que, a par de uma política colonial estruturada e de progra­
mas de colonização claramente definidos através dos quais se tentava
implantar sentimentos de identidade e de nacionalidade, havia com­

108 AHU, Rio Negro, caixa 4, doc. 2, Ofício de Teodósio Constantino de Cher-
mont a João Pereira Caldas, de 6 de Agosto de 1781; Manuel Lucena Giraldo, «La
última búsqueda de El Dorado: las expediciones al Parime (1770-1776)», p. 83.
109 AHU, Pará, caixa 42 (756), Relação das respostas da índia Arcangela Rufina às
perguntas de Leonardo José Ferreira, s/d [cerca de 3 de Julho de 1782]; AHU, Pará,
caixa 45 (763), Ofício de D. Francisco de Sousa Coutinho a Martinho de Melo e Cas­
tro, de 1 de Julho de 1791.
110 AHU, Pará, caixa 60 (775), Ofício de Manuel Bernardo de Melo e Castro a
Francisco Xavier de Mendonça Furtado, de 12 de Maio de 1763.
111 AHU, Pará, caixa 51 (767), Ofício de João de Matos a José Antônio Franco, de
24 de Novembro de 1801.
112 AHU, Pará, caixa 52 (766), Ofício de Domingos José da Silva a D. Rodrigo de
Sousa Coutinho, de 1 de Janeiro de 1803.

236
«AS M U R A L H A S D O S E R T Ã O »

portamentos individuais ou de grupo que punham em causa esses


aspectos definidos como prioritários para os Estados coloniais de
finais de Setecentos. Tal como seria fácil de antever, não eram unica­
mente os ameríndios que questionavam estas intenções; os próprios
europeus, ao encontrarem-se em plena floresta amazônica e longe do
mundo que lhes era familiar, mais facilmente se identificavam com
indivíduos do lado de lá da fronteira, mas com a mesma formação
social, profissional e cultural, do que com os «vassalos bárbaros» de
Suas Majestades que habitavam o «território nacional».

O s in té r p r e te s e m z o n a s de lim ite s :
o se u p a p e l c o m o in te r m e d iá r io s

Um dos problemas que afectavam a expansão dos Estados


coloniais na América do Sul consistia no facto de à pluralidade
étnica da bacia hidrográfica amazônica corresponder um multilin-
guismo generalizado. Ou seja, apesar de haver grandes grupos lin­
guísticos, cada grupo étnico falava um dialecto específico, podendo
afirmar-se que existia um sentimento de identificação entre língua e
etnia. O jesuíta João Daniel tinha descrito claramente esta situação
quando afirmava que existiam missões constituídas por «trinta para
quarenta nações diversas, com idiomas tão diferentes que não têm
nenhuma conjexão] entre si; por cuja rezão já se vê que devem
aprender uas as linguas das outras (como ordinariamente fazem)
para se comonicarem entre si»113.
Como seria de prever, a comunicação entre etnias ameríndias e
os ibero-americanos era afectada por este fenômeno. Apesar de mui­
tos índios serem conhecedores de vários dialectos, imposição decor­
rente das deslocações frequentes, das trocas intertribais e das alianças
matrimoniais e bélicas interétnicas, o desconhecimento de uma lín­
gua comum entre europeus e índios dificultava os contactos de fron­
teira, sobretudo no Rio Negro da segunda metade do século xviii.
O plano de colonização que fazia da implantação de uma língua
«nacional» prioridade era reconhecido como complexo e moroso e
viría a revelar-se, já nos princípios do século seguinte, como ineficaz.
No entanto, tanto o estabelecimento da colonização como a
sobrevivência dos indivíduos dependia, em muito, dos contactos

113 João Daniel, «Tesouro descoberto no rio Amazonas», in separata dos Anais da
Biblioteca Nacional, vol. 95, 2 ° tomo, Rio de Janeiro, Biblioteca Nacional, 1976, p. 225.

237

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AS M U RA LH AS DO SERTÃO

que se constituíam com os povos indígenas. Comerciantes, colonos,


soldados, viajantes estavam sujeitos às boas relações e à boa von­
tade daqueles que continuavam a ser, de forma indiscutível, os
«senhores do sertão». Não obstante as ordens oficiais emitidas ou o
aparato de força ostentado pelos europeus, os representantes «do
progresso, da civilização e das luzes» dependiam vitalmente dos ser­
viços prestados pelos índios, dos seus alimentos, das suas capacida­
des curativas, dos seus conhecimentos geográficos.
A consideração destes factores contribui para explicar a impor­
tância que se deu aos intérpretes como elementos de contacto e
intermediários no Norte do Brasil da segunda metade de Setecentos.
Numa área em que a tensão se fez sentir duplamente, quer pela fric­
ção resultante dos conflitos entre os Estados coloniais quer pelos
choques entre forças colonizadoras e sociedades ameríndias, o papel
que cabia ao indivíduo que protagonizava o contacto era fulcral114.
No Norte brasileiro da segunda metade de Setecentos, os intér­
pretes podiam preferencialmente ser os mestiços, filhos dos luso-
-brasileiros e de índias. Tinham um acesso simultâneo às línguas, às
referências culturais e às estruturas de pensamento dos grupos civili-
zacionais em contacto. No entanto, podiam também ser os índios
puros, os europeus originários do Velho Continente ou, até mesmo,
os negros oriundos de África; podiam igualmente estar integrados
no sistema colonial vigente, e serem índios aculturados, capitães-de-
-conquista, comerciantes, escravos ao serviço dos seus senhores ou
elementos do exército luso-brasileiro; como podiam ainda ser indi­
víduos rebelados contra esse sistema e, assim, serem indígenas fugi­
dos das povoações, escravos negros trânsfugos ou luso-brasileiros
desertores. Podiam, também, ser índios capturados por portugueses
com o propósito de aprender o português ou a «língua geral» para,
posteriormente, servir de elo de ligação com a sua etnia, como
podiam ser índios das povoações luso-brasileiras aprisionados por
uma etnia em guerra e, mais tarde, servir involuntariamente de
intermediários.
A documentação é exemplificativa desta multiplicidade de
casos e, se numas vezes é indefinida, mencionando-os apenas como
índios ou índias capturados ou ladinos, índios intérpretes ou fugi­
dos, vezes há em que nomeia os indivíduos, dando-lhes quase um

114 O mesmo se pode aplicar para os contactos que se estabeleceram com a


sociedades africanas (Urs Bitterli, Cultures in conflict. Encounters belween European and
non-European cultures, 'I492-'I800, p. 59).

238
AS M U R A L H A S D O SE R T Ã O »

rosto: e, então, surge o capitão-de-descimento João Francisco «que


tem a inteligência de muitas línguas de infiéis»115, João e Bento, da
antiga povoação de S. Joaquim de Macuperi, a viverem entre os
Taboca do rio Apaporis116, o tenente Leonardo José Ferreira, um dos
intervenientes no complicado processo de comunicação com um
velho principal da nação Peracota117, ou Fernando Roxas, um negro
espanhol que desempenhou um leading role nos contactos entre his-
pano-portugueses e etnias dos rios Içá, Apaporis e Japurá.
Afirmámos, repetidamente, que» a função primordial do intér­
prete era a comunicação interétnica. Esta afirmação impõe o equa-
cionamento de um problema: qual é o papel que, de forma concreta,
se esperava do intérprete na Amazônia de finais de Setecentos?
Para além daqueles que são óbvios, o língua, e sobretudo o língua
indígena, teve um papel fundamental no processo de descimento de
novas etnias, ou seja, na sua transferência das regiões onde estas tra­
dicionalmente habitavam para outras que tivessem uma importância
táctica nos desígnios estratégicos e econômicos da política de coloni­
zação portuguesa. O facto de haver um indivíduo estranho à comuni­
dade a «falar o seu próprio idioma» podia ser razão suficiente para
que o principal optasse por sair do local onde estava sediado e trans-
ferir-se para outro118. Depois, dava-se preferência aos índios porque
um ameríndio teria sempre mais credibilidade junto de outros do
mesmo grupo étnico. O índio intérprete, que podia ser do mesmo
grupo ou não, sabia melhor persuadir ou praticar porque dominava a
língua, porque empregava os mesmos conceitos e porque era um
exemplo vivo da convivência e coabitação entre luso-brasileiros e
ameríndios. Por outro lado, há ainda a considerar que, enquanto
conhecedor dos hábitos e costumes índios, podia evitar «acidentes
diplomáticos» alertando, por exemplo, para o inconveniente de ini­
ciar uma negociação sem ofertar ou trocar presentes: facas, enxadas,
machados, ferros de cova, chapéus, anzóis, missangas, espelhos, agu­
lhas, pentes, fitas, pregos e contas de vidro por alimentos, curiosida­
des animais ou artesanais e, até mesmo, índios.

115 APEP, códice 116, doc. 10, Ofício de Antônio José Pestana a Joaquim Tinoco
Valente, de 15 de Janeiro de 1771.
116 AHU, Rio Negro, caixa 5, doc. 7, Informação dos índios Taboca e mais índios
adjuntos dada pelo índio Jordão e pelo índio Bento, de 12 de Abril de 1782.
117 AHU, Rio Negro, caixa 14, doc. 12, Ofício de José Simões de Carvalho a
Manuel Gama Lobo de Almada, de 27 de Abril de 1787.
lis APP, cód. 116, doc. 91, Ofício de José Caetano Ferreira da Silva a D. Fernando
da Costa de Ataíde Teive, de 9 de Junho de 1771.

239
«AS M U R A L H A S D O SE R T Ã O

No entanto, os línguas de outros grupos étnicos também


podiam ser bem-sucedidos como intermediários. Mencionemos, por
exemplo, o caso de um mulato que andava no rio Içá com licença do
seu senhor e que conhecia as línguas Passé e Juri com se fosse natu­
ral da região. Este indivíduo prometeu despovoar o rio, trazendo os
índios dos grupos mencionados para as povoações da capitania de
S. José do Rio Negro119.
Mas o intérprete que fazia «boas práticas», convencendo os
indígenas a aceitar a sujeição colonizadora, tinha a capacidade de
fazer também «más práticas», incitando à fuga e à revolta. As deser­
ções dos núcleos urbanos coloniais foram, sem dúvida, consequên­
cia de incompatibilidades entre as populações indígenas e as insti­
tuições administrativas, religiosas ou laicas, e os moradores. Os
valores propagados no acto de colonizar tinham a ver com o exer­
cício de um trabalho regular, com a crença num único deus e obe­
diência ao soberano, com a renúncia de costumes ancestrais, com a
castidade, a continência, a sobriedade, muitos destes valores incom­
patíveis com as formas tradicionais de vida indígena120.
Este mal-estar latente podia facilmente transformar-se num
abandono das povoações e num retorno à floresta, bastando para tal
a intervenção do intérprete. É o caso de um língua da povoação de
S. Filipe que, vivendo com uma índia pagã e temendo que o pároco
da povoação os afastasse, convenceu a população a retirar-se para o
mato durante a ausência do director121. Ou da índia Joaquina de
Andrade, que foi remetida presa para Barcelos, por ter dito que
todos os índios morreríam às mãos dos brancos (principalmente os
que colaborassem nas viagens a Mato Grosso e nas diligências das
Demarcações), provocando uma retirada da população da vila de
Nossa Senhora da Conceição122. Importa afirmar que estes exemplos
pontuais são apenas reflexo das deserções maciças que ocorreram, a
partir de 1781, no vale do rio Branco, região que, por essa altura, se
tentou tornar num dos pólos de atracção e fixação de colonos e de

119 AHU, Rio N egro, caixa 8, doc. 1, Ofício de Teodósio Constantino de Cher-
mont a João Pereira Caldas, de 25 de Outubro de 1783; ibidem, caixa 9, doc. 1, de 19
de Maio de 1784.
120 Ângela Domingues, «A importância das visitações para o conhecimento das
etnias ameríndias da Amazônia e Pará em meados de Setecentos», in Congresso Inter­
nacional de História. M ission ação Portuguesa e Encontro de Culturas, A ctas, vol. II, p. 461.
121 AHU, Rio N egro, caixa 5, doc. 3, Ofício de Pedro Maciel Parente a João Pereira
Caldas, de 20 de Agosto de 1781.
122 Ibidem.

240
«AS M U R A L H A S D O SE R T Ã O »

índios por razões simultaneamente estratégicas e econômicas. Estas


fugas eram atribuídas por Martinho de Melo e Castro quer à «má
escolha que se fez de uma mulher para ser intérprete ou língoa dos
referidos índios, e sobre isto deve haver grande cautella, como tam­
bém a maior a respeito das prizõens, ferros e grilhões que praticou e
pedio o Tenente Comandante da Fortaleza de S. Joaquim, Pedro
Maciel Parente»123.
Para além de uma intervenção notória na mobilidade das popu­
lações, cumpria ao intérprete colaborar»com os hispano-portugueses,
veiculando-lhes informações sobre os territórios que exploravam.
Servia-se da sua experiência pessoal, mas também da sua capacidade
de comunicar com outras etnias, a quem inquiria sobre informações
de natureza geográfica e étnica. Sob juramento, traduzia perguntas e
respostas sobre a navegação dos rios, sobre as cachoeiras e forma de
as passar, sobre os rios colaterais e as suas ligações com os cursos já
conhecidos, sobre os habitantes e eventuais contactos que tivessem
com espanhóis, franceses e holandeses124.
No entanto, esta função podia ser dificultada ou comprometida
quando se desconhecia totalmente a língua. Por exemplo, este foi o
caso ocorrido com o oficial de demarcações José Joaquim Vitorio da
Costa que, ao encontrar um grupo de índios do rio Messai, só pôde
inquiri-los de forma gestual: «Com effeito eu pude obter delles, por
certas acçoens significantes com que se me expressavam, falta de nos
entendermos reciprocemente, que elles sim eram habitantes daquelle
rio e da mesma Nação daquelles que habitão os Rios Circunvizinhos
e que nós conhecemos pelo nome de Mauás.»125 Ou então, por um
complicadíssimo processo de tradução patente no questionário feito
a um principal Peracota sobre o rio Tucutú, envolvendo «a passagem
das línguas Caripuna pela Peralvilhana e esta pela Geral para a Portu­
guesa». Serviram de intérpretes o principal Cunhançari, peralvilhano
da povoação da Conceição e o tenente Leonardo José Ferreira126.

123 AHU, Rio Negro, caixa 3, doc. 10, Ofício de Martinho de Melo e Castro a João
Pereira Caldas, de 7 de Julho de 1783.
124 Como exemplos, citem-se apenas: BNRJ, 7-2-40, Ofício de Henrique João
Wilkens a João Pereira Caldas, de 5 de Julho de 1782; AHU, Rio Negro, caixa 8, doc. 2,
Viagem que fez Vitorio Gomes com o principal José Caboquena pelo rio Uaupés, s/d
[ant. a 1783],
125 AHU, Rio Negro, caixa 6, doc. 1, Notícias expressas de José Joaquim Victório
da Costa sobre a viagem que fez ao rio Messai em 6 e 7 de Outubro, de 21 de
Dezembro de 1782.
126 AHU, Rio Negro, caixa 14, doc. 12, Ofício de José Simões de Carvalho a
Manuel Gama Lobo de Almada, de 27 de Abril de 1787.

241
AS M U R A LH A S DO SERTÃO»

O que temos vindo a mencionar pode sugerir uma visão distor­


cida do processo de comunicação entre europeus e ameríndios. Não
se pense que a iniciativa da comunicação pertenceu de forma exclu­
siva aos hispano-portugueses. Esta visão europocêntrica deve ser
corrigida, primeiramente, por considerações de ordem prática. Os
europeus eram estranhos ao território e tinham motivos para
explorá-lo: estes eram tanto de natureza política e científica quanto
se relacionavam com questões de sobrevivência, que dependia das
condições de navegação, do clima, dos recursos e dos indivíduos
que nele habitavam127128.
Há também a considerar que os intérpretes não eram apanágio
dos hispano-portugueses. Quer tendo sido contactadas quer tomando
elas a iniciativa dos contactos, muitas etnias tinham entre si indiví­
duos que conheciam a «língua geral». Estes podiam ser desertores que
tivessem voluntariamente abandonado os núcleos populacionais,
como podiam ser prisioneiros de guerra apresados em assaltos a
aldeias ou canoas. Assim, quando alguns grupos Mura tomaram a ini­
ciativa de se sujeitarem e aldearem, trouxeram consigo os seus intér­
pretes, como Adão, natural de Monte Alegre, capturado quando tinha
12 anos numa viagem para Mato Grosso123 ou como a mãe e a irmã
do abalizado Ambrósio, levadas de Praguri, muruficadas e transmis­
soras da vontade de sedentarização do principal no lago Amaná129.
A dependência estabelecida em relação ao intérprete revela-se,
assim, incontestável. E se o é em períodos normais, em períodos
politicamente conturbados e de tensão, como este de que nos ocu­
pamos, no qual estiveram em jogo o domínio de vastas regiões tácti-
cas, essa dependência recrudesce. Para além da sua função como
elemento de comunicação, exigia-se do intérprete uma honestidade
e uma fidelidade sem limites: como tradutor, mas também como
súbdito; não apenas na transmissão da informação mas na defesa
dos interesses da coroa de que era representante.
Enquanto elementos constitutivos das equipas de demarcação,
os intérpretes tinham um papel-chave na inquirição de dados infor­
mativos que tivessem interesse para o traçado da fronteira entre a

127 Era grande a preocupação em saber se as etnias habitantes de uma região


inexplorada estariam dispostas a socorrer as partidas de demarcação com alimentos.
De igual importância era também o facto de saberem se eram antropófagas.
128 AHU, Rio Negro, caixa 12, doc. 15 A, Ofício de Antônio Carlos da Fonseca a
João Pereira Caldas, de 13 de Junho de 1786.
129 AHU, Rio Negro, caixa 10, doc. 7, Ofício de João Baptista Mardel a João
Pereira Caldas, de 15 de Março de 1785.

242
AS M U R A LH A S D O SERTÃ O

América Portuguesa e a Hispanoamérica. Ora se, eticamente, a sua


actuação devia primar pela imparcialidade, o que, de facto, se verifi­
cava é que tomavam partido, manipulando informações ou ten­
tando saber, sub-repticiamente, dados que fossem relevantes para as
tropas a que estavam vinculados.
Esta manipulação efectuada pelos intérpretes revelava-se, sobre­
tudo, ao nível das duas funções primordiais apontadas na alínea
anterior: o da inquirição sobre o espaço e o da fixação das etnias aos
territórios. «
O acordo das duas coroas peninsulares em relação ao ajuste das
fronteiras, patente na assinatura dos tratados de limites de 1750 e
1777, encontrou equivalência numa rivalidade constante entre as
tropas actuantes no terreno. Desta discordância é demonstrativa a
indeterminação da verdadeira situação da boca mais ocidental do
rio Japurá, considerada pelos portugueses como a foz do canal Aua-
tiparaná no rio Solimões e pelos espanhóis como a embocadura do
rio Japurá no rio Amazonas130.
Ambos os grupos tentavam colocar-se em situação vantajosa na
disputa do território. Neste processo, o conhecimento do espaço
tinha um papel predominante. Este conhecimento baseava-se quer
na realização de viagens quer nos inquéritos realizados aos autócto­
nes sobre os sistemas de comunicação fluvial, as potencialidades
econômicas ou as características demográficas e étnicas.
A consciência de que a informação podia ser manipulada, quer
inconscientemente devido ao desconhecimento da língua quer pro-
positadamente em função de interesses políticos, levou a uma des­
confiança mútua na tradução que era feita por um intérprete do
grupo opositor. A natureza das fontes analisadas restringe a nossa
perspectiva à visão portuguesa: por isso, podemos apenas afirmar
com segurança que, quando o interveniente na tradução era afecto
aos espanhóis, a fiabilidade dessa informação era sempre encarada
com uma certa reserva. Assim, Teodósio Constantino de Chermont
afirmava que «nunca sendo eu garante da verdade dellas, não por
malicia delles (índios) mas pella que podería haver da parte do Intér­
prete (Francisco de Roxas) não obstante o juramento que prestou»131.

130José Simões de Carvalho, «Plano que representa porção do rio Solimões entre
as duas disputadas bocas mais occidentais do rio Japurá para a acordada demarcação
de limites (1785)», Centro de Estudos de História e Cartografia Antiga, Cartografia,
Casa da fnsua, 34-A.
131 AHU, Rio Negro, caixa 5, doc. 7, Oficio de Teodósio Constantino de Cher­
mont a João Pereira Caldas, de 22 de Junho de 1782.

243
AS M U R A LH A S D O SERTÃ O

Outra forma de manipulação relaciona-se, como mencionámos,


com a fixação das etnias ao território. Ora, a dimensão deste aspecto
só pode ser verdadeiramente avaliada se tomarmos em consideração
que o Tratado de Madrid ressuscitou o direito do uti possidetis.
O que acabamos de enunciar justificou a mudança de atitude
dos luso-brasileiros face aos ameríndios a partir da segunda metade
do século xviii. É, pois, também neste sentido que se deve ver a pro­
mulgação da liberdade indígena, proclamada pelo alvará de 6 de
Junho de 1755 e reforçada por uma série de medidas legislativas que
tomaram juridicamente o ameríndio em cidadão de pleno direito e
em súbdito da coroa portuguesa132. Outras medidas, estas de cariz
mais prático, basearam-se na opção tomada pelas entidades gover­
nativas portuguesas em deixar os indígenas recentemente descidos
em zonas próximas àquelas de que eram oriundos, ao invés de os
fazer transportar para a cidade e para as zonas economicamente
mais desenvolvidas, onde eram utilizados como mão-de-obra. Esta
opção, apesar das contradições que lhe eram inerentes (instabilidade
demográfica e social, dificuldade no estabelecimento de uma acultu­
ração eficaz), justificava-se pela necessidade de ocupar efectiva-
mente um território sob a égide do monarca português e de lhe dar
um suporte humano e econômico que as fortificações e a presença
dos moradores lusos não tinham possibilidade de estabelecer133.
A indeterminação das fronteiras estava em relação directa com
a hesitação que se tinha em relação à tutela de cada coroa face às
etnias da região em disputa. Esta situação era ainda agravada pelo
facto de, como temos vindo a afirmar, as fronteiras traçadas pelos
europeus não corresponderem a qualquer divisão ou separação sen­
tida pelos indígenas, que tinham familiares, amigos ou trocas
comerciais em áreas pertencentes à potência rival e que facilmente
transitavam para cada lado da divisão convencionada.
Esta mobilidade foi responsável por um aguçar da capacidade
persuasora de intérpretes portugueses e espanhóis, tornados concor­
rentes no que a descimentos diz respeito. Nesta tarefa, os hispano-
-americanos tiveram, nos anos 80, ao seu serviço dois homens cuja
actividade é por de mais posta em evidência na documentação. São

132 Ângela Domingues, «As sociedades e as culturas indígenas face à expansão


territorial luso-brasileira na segunda metade do século xviii», in Ãs vésperas do mundo
moderno. Brasil..., pp. 185-187.
133 Ângela Domingues, «Urbanismo e colonização na Amazônia em meados de

Setecentos: a aplicação das reformas pombalinas na capitania de S. José do Rio


Negro», pp. 264 e ss.

244
AS M U R A L H A S D O SE R T Ã O »

eles Fernando Roxas e João da Silva, dois negros cujo título de capi-
tães-de-conquista os fazia sobressair dos índios e da tropa. Exerce­
ram uma função indispensável no contacto com os habitantes dos
rios Cumiari, Apaporis, Iça e Japurá, falando, entre outras, as línguas
das etnias Miranha, Omágua e Mahuá, com quem Roxas tinha
vivido durante sete anos134. Quer um quer outro eram acusados de
serem escravos no Pará e, depois de procurarem refúgio durante
algum tempo na floresta, terem fugido para território espanhol135.
Conhecedores das línguas, usos e costumes de inúmeras etnias
de uma vasta área geográfica e usufruidores de um apoio incontes-
tado por parte dos chefes da expedição espanhola, estes indivíduos
eram acusados de secundar as práticas que faziam aos principais
com dádivas e aguardente, bem como de serem sérios rivais dos
intérpretes luso-brasileiros, ao fomentar guerrilhas interétnicas para
desalojar das suas povoações os índios afectos aos luso-brasileiros136
e ao aliciar indígenas que tencionavam descer para território portu­
guês a mudar para terras espanholas137. Paralelamente, os luso-brasi­
leiros eram acusados de irregularidades semelhantes.
O intérprete teve uma função primordial nos contactos in-
terétnicos ocorridos na Amazônia em finais do século xviii. A sua
actuação repercutiu-se quer em aspectos de natureza demográfica e
colonizadora quer de cariz científico e estratégico. É que se, por um
lado, interferiu na transferência de grupos populacionais autóctones
para os núcleos povoadores luso-brasileiros, por outro, interveio no
melhor conhecimento de uma nova terra e de uma nova huma­
nidade.
A importância que lhe era atribuída na Hispanoamérica encon­
tra-se patente, por exemplo, no corpo legislativo que regulava a sua
função138. Em território luso-brasileiro, a sua interferência foi igual­
mente relevante. Apesar disso, e tanto quanto conhecemos, não

134 AHU, Rio N egro, caixa 5, doc. 7, Ofício de Teodósio Constantino de Cher-
mont a João Pereira Caldas, de 22 de Junho de 1782.
135 AHU, Rio Negro, caixa 9, doc. 1, Ofício de Henrique João Wilkens a João
Pereira Caldas, de 1 de Maio de 1784.
136 AHU, Rio Negro, caixa 9, doc. 1, Ofício de Henrique João Wilkens a João
Pereira Caldas, de 16 de Abril de 1784.
137 AHU, Rio Negro, caixa 7, doc. 12, Ofício de Teodósio Constantino de Cher-
mont a João Pereira Caldas, de 8 de Julho de 1783; ibidem, caixa 7, doc. 1, Ofício de
Teodósio Constantino de Chermont, de 29 de Março de 1783.
138 Documentos sobre política linguística en H ispanoam érica, '1492-1800, compilação,
estudo preliminar e edição de Francisco de Solano, Madrid, Consejo Superior de
Investigaciones Científicas, Centro de Estudos Históricos, 1991.

245
«AS M U R A L H A S D O SE R T Ã O »

existiu nenhum conjunto jurídico organizado que sustentasse a sua


actuação. Também a documentação existente nos arquivos rara­
mente é significativa em relação à sua actividade. Não obstante, em
todo o território sul-americano sob domínio ibérico, o intérprete
aproximou elementos díspares mas constitutivos da sociedade colo­
nial, ultrapassando barreiras linguísticas que implicariam desencon­
tros e incomunicação, ainda no século xvni, nas vésperas de o Brasil
passar de colônia a nação.

246
CAPÍTULO V

FORMAS DE RES ISTÊNCIA:


UMA REAVALIAÇÃO DAS RELAÇÕES ENTRE
«DOMINANTES» E «DOMINADOS»
A resistência movida pelos índios do Estado do Grão-Pará à pre­
sença colonizadora luso-brasileira dtfrante a segunda metade de
Setecentos caracterizou-se por uma multiplicidade de manifestações
que englobou, para além da revolta, o recurso aos meios legais colo­
cados pela coroa portuguesa ao serviço dos índios quando promul­
gou a liberdade ameríndia e quando lhes concedeu os mesmos di­
reitos que aos vassalos nascidos na colônia ou no reino. Revelou-se,
ainda, em aspectos mais subterrâneos, como, por exemplo, na pre­
servação de ritos ancestrais praticados à revelia das instituições e da
sociedade luso-brasileiras ou na utilização de meios abortivos como
uma forma de controlo ou impedimento da natalidade. Ou seja, os
ameríndios socorreram-se das formas de resistência que lhe eram
possíveis tanto para tentarem preservar a sua identidade cultural e
étnica como para discordarem e protestarem em relação à presença
e aos valores da colonização luso-brasileira que lhe estavam a ser
impostos1.
Os trabalhos historiográficos consultados, tanto em relação ao
Brasil quanto à Hispanoamérica, enfatizam os confrontos armados e
as revoltas sociais, deixando de lado outras formas de resistência
expressas, por exemplo, nas queixas, petições e reclamações que

1 O conceito de resistência foi objecto de debate por inúmeros estudiosos da


história da colonização portuguesa e espanhola, tanto para a América do Sul como
para África. Como em outra parte referimos, temos em conta as especificidades de
cada sociedade e os resultados dissemelhantes decorrentes da política de colonização
implantada pelo mesmo país em locais diferentes. Contudo, não podemos deixar de
referir a afinidade que existe entre, por exemplo, os quilombos africanos e brasileiros
enquanto forma estruturada de resistência à colonização. Pensamos, sobretudo, que é
fundamental relevar o esforço destes especialistas para conceptualizar os «mecanis­
mos de resistência» desenvolvidos pelos grupos colonizados ao processo de fortale­
cimento dos Estados absolutistas com possessões coloniais. Veja-se, por exemplo,
B. Heintze, «Historical notes on the Kisama of Angola», in Jo u rn al o f African History,
XIII, 1972, pp. 407-418; Wemer Thomas e Bart De Groof (edição), Rebelión y resistên­
cia in el mundo hispânico d ei siglo xvn, Lovaina, Leuven University Press, 1991; Pilar
Garcia Jordán e Miquel Izard (coordenação), C onquista y resistência en Ia Historia de
América, Barcelona, Universitat, D.L., 1992.

249
F O R M A S DE R E S I S T Ê N C I A

moradores brancos e índios podiam endereçar e que, de facto, diri­


giam ao rei ou aos seus representantes enquanto súbditos da coroa
portuguesa. Mais ainda: os índios não tinham unicamente o direito de
utilizar os meios legais que a coroa portuguesa punha à sua disposição
enquanto vassalos do monarca fidelíssimo. Possuíam também a facul­
dade de usufruir da protecção de instituições especificamente criadas
para esse fim, representadas pelo juiz da liberdade dos índios e pelo
procurador dos índios. Beneficiavam, igualmente, de um estatuto jurí­
dico especial, o de desprotegidos e miseráveis, também concedido a
viúvas, órfãos e indivíduos mentalmente debilitados. E, assim, adapta-
vam-se as instituições já existentes no reino e criavam-se outras
novas, servindo todas elas os interesses das sociedades de fronteira2.
É na tentativa de colmatar uma lacuna tantas vezes encontrada
na historiografia sobre a «resistência indígena» para outras áreas que
propomos que, em relação ao Estado do Grão-Pará durante este
período, se estabeleça uma tipologia da reacção ameríndia à pre­
sença colonizadora luso-brasileira com base em: revoltas de etnias
aldeadas, resistência de etnias não-pacificadas, deserções individuais
ou de pequenos grupos e, finalmente, recurso aos meios legais.
Quando comparamos esta classificação com outras tipologias
ajustadas às manifestações ameríndias contra os europeus na Hispa-
noamérica verificamos que na Amazônia da segunda metade do
século xviil não existiu, assim, o que Scarlett 0 ’Phelan Godoy define
de rebeliões, isto é, movimentos sociais com alguma duração tem­
poral, propagando-se a várias comunidades, circunscrições ou pro­
víncias, com um plano de organização e coordenação mínimos, por
vezes sustentado por comunicados, éditos ou programas políticos, e
dirigidos contra instituições representativas do poder central ou
governativo3. As sociedades ameríndias da Amazônia não dispu­
nham, durante a segunda metade do século xvni, de mecanismos de
chefia e de comando que lhes permitissem desenvolver uma oposi­
ção ordenada e sistemática contra as instituições militares, adminis­
trativas e religiosas luso-brasileiras.
Neste capítulo, considerar-se-ão muitas das razões que estão na
origem de reacções dos índios contra a presença colonial e, em

2 David J. Weber e Jane M. Rausch, «Introduction», in Where cultures meet. Frott-


tiers in Latin American History, pp. xvu e xxm.
3 Scarlett OThelan Godoy, «Hacia una tipologia y un enfoque alternativo de las
revueltas y rebelliones dei Perú Colonial (siglo xviil)», in Jahrbuch für Geschichte von
S taat, Wirtschaft und G esellschaft Lateinam erikas, vol. 21, 1984, p. 128.

250
F O R M A S DE R E S IS T Ê N C IA

seguida, analisar-se-ão os meios de protestos mais utilizados: fugas


individuais ou colectivas, ataques, tácticas de combate, protestos e
queixas. É de salientar que há uma relação nítida entre as formas de
resistência escolhidas e o grau de implantação da civilização luso-
-brasileira ou, consequentemente, de aculturação indígena. Um outro
aspecto a considerar neste capítulo é que, durante o período em
estudo, se pacificaram muitas etnias, consideradas pelos luso-brasi-
leiros como dos mais temíveis adversários com que podiam deparar.
Nesta época, Muras, Mundurucús e outros grupos, debilitados por
confrontos interétnicos, por doenças ou por pressões de vários tipos
procuraram a amizade e protecção dos luso-brasileiros, celebrando
alianças.

A s s e m e n t e s da d isc ó rd ia

A questão que primeiramente se coloca é a de saber as razões


pelas quais os ameríndios da bacia hidrográfica amazônica (e, parti­
cularmente, os índios aldeados) se revoltavam contra a presença
luso-brasileira.
Em 1781, Pedro Maciel Parente, tenente-comandante da forta­
leza de S. Joaquim do Rio Negro, expunha, de forma elucidativa, as
principais causas de deserção entre os índios: o grande número de
serviços exigidos, tanto dentro como fora das povoações; o facto de
se querer evitar os «abusos» em que os índios viviam (tais como
queimar os mortos dentro das suas casas, a bigamia, a untuação
com urucú); e, finalmente, a grande facilidade que tinham em fugir,
pois estavam na terra deles4. Pensamos que nas palavras de um
homem que vivia em pleno sertão amazônico na segunda metade
de Setecentos estavam equacionados os principais aspectos de uma
questão que era de vital importância na organização social, econô­
mica, política e estratégica das capitanias do Rio Negro e Pará.
Antes de mais, os índios constituíam a principal fonte de mão-
-de-obra do Estado e, em consequência disso, eram também vítimas
de abusos e de maus tratos físicos. Ao serem utilizados em grande
parte dos trabalhos manuais — na pesca e na caça, na salga de
peixe, na apanha de tartarugas e na feitura de manteigas de tartaru­
gas, nas obras dos edifícios públicos, religiosos, fortificações e casas

4 AHU, Rio Negro, caixa 4, doc. 3, Ofício de Pedro Maciel Parente a João Pereira
Caldas, de 20 de Agosto de 1781.

2 51
F O R M A S DE R E S IS T Ê N C IA

particulares, na agricultura, na recolecção das drogas do sertão,


como remeiros e guias, como amas-de-leite, lavadeiras, engomadei-
ras, na produção de anil, na criação de gado, nos serviços domés­
ticos — estavam a ser integrados num sistema econômico que era
estranho ao seu modo de vida. Habituados a caçar, a pescar, a produ­
zir alimentos ou manufacturas para sobreviverem ou para exercerem
um pequeno comércio de troca com outras etnias, os ameríndios
passaram, na segunda metade do século xviii, a ser considerados
como a mão-de-obra que permitiría que as capitanias do Pará e Rio
Negro fossem integradas no sistema econômico mundial como
áreas periféricas fornecedoras de matérias-primas, produtos exóticos
e medicinais. Não obstante, e apesar do crescente aumento da
importância que as culturas do café, anil e cacau iam tendo no
desenvolvimento local, o recurso de maior valor para a economia
colonial continuava a ser o trabalho indígena5.
Ao contrário do que ocorria na vizinha Guiana Francesa e em
outras áreas do vice-reinado do Brasil do mesmo período, no espaço
colonial português do Norte do Brasil a escravidão negra não constituía
o fundamento das estruturas e das relações sociais6. Os escravos negros
introduzidos pela Companhia Geral de Comércio do Grão-Pará e Ma­
ranhão não eram assaz numerosos e, não obstante os privilégios fiscais,
os seus preços não eram suficientemente apelativos por forma a consti­
tuírem uma alternativa viável à mão-de-obra índia abundante, barata e,
nalguns casos, mais eficiente e ajustada a determinadas funções7.
O funcionamento do sistema colonial luso-brasileiro no Norte do
Brasil da segunda metade do século xviii dependia, intrinsecamente,
dos habitantes nativos, considerados como a fonte de trabalho mais
representativa na organização econômica da colônia. Mas, ironica­
mente, esta relação de dependência não se limitou apenas a uma
necessidade constante de mão-de-obra. Sustentou-se também no
conhecimento ameríndio, ou seja, na percepção, domínio e utilização
que os ameríndios da bacia hidrográfica amazônica detinham do seu

5 Janet M. Chernela, The W anano In dian s o f the Brazilian Am azon: a sense o f space,
Austin, University of Texas Press, 1993, p. 31.
6 Ciro Flamarion Cardoso, Economia e sociedade em á r e a s coloniais periféricas.
G u ian a Francesa e P a rá , p. 58.
7 Stuart B. Schwartz, «The formation of a Colonial Identity in Brazil», p. 30.
Veja-se ainda a divergência de posições entre Manuel Nunes Dias, «Conquista e colo­
nização da Amazônia no século X V III», in Portugal no M undo, vol. v , pp. 238 e ss. e Ciro
Flamarion Cardoso, Economia e sociedade em áre as coloniais periféricas..., pp. 108, 123
e ss. Esta questão foi abordada no capítulo I «A promoção de ameríndios a vassalos:
as contradições da liberdade».

252
F O R M A S DE R E S I S T Ê N C I A

espaço. Ao comparar duas áreas periféricas brasileiras, Stuart Schwartz


concluiu que tanto nos rios da Amazônia quanto em São Paulo, os
colonos adaptaram materiais, utensílios, alimentos e hábitos da popu­
lação autóctone8. Os ameríndios conheciam a rede hidrográfica fluvial
e eram óptimos remeiros; estavam adaptados a um sistema de vida
que dependia dos rios e sabiam como sobreviver na floresta equatorial
amazônica; sabiam exactamente os locais de produção e as formas de
extracção dos produtos naturais da Amazônia, as madeiras mais apro­
priadas à construção naval que se tentava implementar no Estado, os
terrenos e as técnicas mais apropriados ao cultivo das produções da
terra ou as inúmeras utilizações que as plantas nativas podiam ter para
fins medicinais, alimentares ou artesanais9. E, por isso, se a dependên­
cia do trabalho índio não era total era, pelo menos, grande10.
A sociedade colonial do Norte brasileiro exigia aos índios um
trabalho regular e uma cooperação absoluta, não atendendo, porém,
ao facto de estas exigências entrarem em conflito com os hábitos,
princípios e estatutos das sociedades ameríndias. Desta forma, estes
grupos reservavam aos homens o desbravamento e a preparação da
superfície cultivável, bem como a construção das casas e o corte das
madeiras. As sementeiras e as colheitas, a par da cerâmica e da fia­
ção, eram ocupações da exclusiva responsabilidade feminina11. Por
isso, ao querer utilizar os índios como a principal fonte de mão-de-
-obra agrícola, os luso-brasileiros violavam princípios básicos que
regulavam a hierarquia das sociedades ameríndias12.

8 Stuart B. Schwartz, «The formation of Colonial Identity in Brazil», p. 30.


9 Considerado por nós como um aspecto marginal ao tema a que nos propomos,
assinalamos unicamente a existência de inúmera documentação manuscrita existente
no Arquivo Histórico Ultramarino, na Academia das Ciências de Lisboa e no Museu
Bocage; no entanto, veja-se Alexandre Rodrigues Ferreira, Viagem filosófica p elas capi­
tanias do G rão-P ará, Rio Negro, M ato G rosso e C uiab á. M em órias. Zoologia e botânica, Rio
de Janeiro, Conselho Federal de Cultura, 1972; William Balée, Footprints o f the forest.
K a 'a p o r ethnobotany. The historical ecology o f p lan t utilization by an A m azon ian people,
New York, Columbia University Press, 1994, pp. 4 e ss.; sobre a utilização luso-brasi-
leira da farmacopeia ameríndia, veja-se também o artigo de Claude-Henri Freches,
«La pharmacopée des Indiens ao xvie siècle», in Arquivos do Centro C ultura! Português,
vol. xv, Paris, Fundação Calouste Gulbenkian, 1980, pp. 569 e ss.
10Ciro Flamarion Cardoso, Economia e sociedade em áreas coloniais periféricas..., p. 99.
11 Elisabeth Carmichael, Stephen Hugh-Jones, Brian Moser e Donald Tayler, The
hidden peoples o f the A m azon, Londres, British Museum Publications, 1985, pp. 58 e 80.
12 Confronte-se esta afirmação com o capítulo iii «Em cumprimento do real ser­
viço: o reordenamento do território e a integração dos vassalos»; veja-se, por exem­
plo, Esteban E. Mosonyi, «Los Arahucos dei Rio Negro», in Boletin Am ericanista, n.° 33,
1983, p. 146.

253
F O R M A S DE R E S I S T Ê N C I A

Também na sua utilização como mão-de-obra ao serviço da


sociedade luso-brasileira, índios e índias eram frequentemente
espancados e tratados com brutalidade. Comandantes de fortifica­
ções, soldados, ouvidores, intendentes, juizes camarários, directores,
bispos, vigários, moradores e, até mesmo, governadores e capitães-
-gerais eram acusados de inúmeras infracções contra os índios de todo
o Estado. Assim, Inácio Monderá, principal da aldeia de Pirauery do
rio Xingu, tinha sido amarrado num tronco pelo inaciano João de
Sousa e sua mulher e os índios forros Simeão, Jacari e Veríssimo
tinham, também, sido espancados13. Mas, e não obstante todas as
mudanças que legalmente ocorreram entre a expulsão dos jesuítas e a
aplicação do Directório, também os moradores de Borba-a-Nova se
queixavam de, em 1769, terem sido sovados pelo alferes Luís da
Cunha de Eça e Castro, director da povoação, que ainda os obrigava a
servir gratuitamente nos seus tabacais, roças de mandioca, milheirais
e na extracção de breu14. As índias das diferentes povoações eram,
correntemente, castigadas com palmatoadas pelos vigários quando, a
mando dos directores, iam trabalhar em roças próprias ou nas da
povoação15. E as escoltas de malfeitores armadas pelo governador
Telo de Meneses lançavam o terror sobre os habitantes de todo o
Estado por prenderem índios e mestiços que conduziam em ferros
para outras povoações, para o Arsenal e para galés e calabouços. De
igual modo, eram acusados de assaltarem casas, engenhos e roças,
saquearem bens móveis e destruírem bens imóveis, desflorarem as
filhas e desonrarem as mulheres e irmãs dos moradores16. Ora, estes
são apenas alguns exemplos de uma situação corrente no Estado do
Grão-Pará ao longo da segunda metade de Setecentos.
Os abusos sexuais eram, de par com os espancamentos, das for­
mas mais usuais de agressão aos índios. João Baptista Mardel quei­
xava-se que os pais de família não tinham as suas mulheres e filhas
seguras face às investidas das tropas espanholas, mas soldados,

13 AHU, Pará, caixa 112 (827), Petição de Simeão, Jacari e Veríssimo requerendo
ao governador que autorize a sua saída para outra povoação, s/d; ibidem, Petição de
Inácio Monderá solicitando a substituição do vigário ou a autorização da transferên­
cia do principal e sua família para outra povoação, s/d.
14 AHU, Pará, caixa 29 (745), Representação dos moradores de Borba-a-Nova
pedindo que se instaurasse uma devassa à acção do director por ministro compe­
tente, s/d [ant. 1769].
15 AHU, Pará, caixa 29 (745), Ofício de João de Amorim Pereira a Francisco
Xavier Mendonça Furtado, s/d [ant. 1769].
16 AHU, Pará, caixa 44 (758), Ofício de José Justiniano de Oliveira Peixoto a
Martinho de Melo e Castro, s/d.

254
F O R M A S DE R E S IS T Ê N C IA

moradores e autoridades laicas e religiosas luso-brasileiros compor-


tavam-se de forma igualmente abusiva, espancando e violando as
ameríndias das povoações17. O ataque sexual às mulheres da terra
era um crime assaz frequente e as penas impostas aos raros réus jul­
gados em tribunal consistiam no degredo para fora do termo da
povoação e/ou no trabalho em obras de fortificações que se iam
construindo no Estado, designadamente no Macapá18.
Requisitados de entre os habitantes dos aldeamentos luso-brasi-
leiros e colocados ao serviço da coroa, de moradores, de missioná­
rios e da sua própria povoação, os índios não viam os seus tempos
de repartição serem respeitados19. A legislação real e as portarias
emitidas pelos governadores estipulavam que deviam trabalhar
durante seis meses nos serviços públicos e privados, posto o que
deviam regressar aos seus povoados e descansar por um igual
período de tempo. Contudo, na prática, os ameríndios eram recon­
duzidos nos seus trabalhos. A ausência dos indivíduos masculinos
das suas povoações de origem aumentava para um número infinita­
mente maior de meses e, por vezes, anos. As longas e perigosas via­
gens para Mato Grosso, as comunicações e os transportes dentro do
Estado do Grão-Pará, o serviço da coroa em tempo de delimitação
de fronteiras, assim o exigiam. Assim era requerido pelos moradores
e pelas entidades administrativas e religiosas, cuja mobilidade,
riqueza e conforto dependiam indissociavelmente da mão-de-obra
indígena.
Não lhes eram respeitados alguns direitos básicos, podendo ser
postos em calcetos sem serem «citados, ouvidos ou comvencidos»20.
Também os baixos salários que, por lei, lhes estavam estipulados ou
não eram pagos ou eram-lhes entregues com alguns anos de
atraso21. «Homens sem honra, sem barba e sem vergonha», cães e

17 AHU, Rio Negro, caixa 8, doe. 6, Protesto de João Baptista Mardel a D. Fran­
cisco de Requena, de 13 de Junho de 1784; ibidem, Ofício de Francisco Xavier de Aze­
vedo Coutinho a João Baptista Mardel, de 12 de Julho de 1784; ibidem, Participação
sobre a tentativa de violação de uma índia, mulher do morador Ascenço Rodrigues
Chaves, de 29 de Julho de 1784.
18Ciro Flamarion Cardoso, Economia e sociedade em áreas coloniais periféricas..., p. 145.
19 AHU, Rio Negro, caixa 4, doc. 3, Ofício de Pedro Maciel Parente a João Pereira
Caldas, de 20 de Agosto de 1781.
20 APEP, códice 116, doc. 10, Oficio de Antônio José Pestana e Silva a Joaquim
Tinoco Valente, de 15 de Janeiro de 1771.
21 ANRJ, códice 99, vol. 5, fl. 110, Petição de 24 índios do lugar de Azevedo
queixando-se que fazia quatro anos não eram remunerados pela apanha de cravo,
doc. de 1780.

255
F O R M A S DE R E S IS T Ê N C IA

malévolos constituíam alguns dos epítetos com que os luso-brasilei-


ros mimoseavam frequentemente os ameríndios22.
No entanto, as fugas dos índios para os sertões equatoriais não
decorriam unicamente dos abusos e maus tratos já enunciados.
Podiam ser, ainda, uma expressão do seu desacordo contra o pro­
cesso de aculturação desenvolvido pelas autoridades administrativas
e religiosas luso-brasileiras; contra as fomes que, por vezes, grassa­
vam durante um ano de más colheitas agrícolas ou em locais de
recente fixação e, por isso, ainda não cultivados, como foi o caso de
S. Marcelino e S. Joaquim do rio Branco em 178723; e, finalmente
como forma de protesto contra o pagamento de impostos, como
ocorreu em Tabatinga, na mesma altura, em que houve «huma fer­
mentação geral dos índios que o tributo pagar recusavão»24. De igual
forma, as doenças, nomeadamente o sarampo e a varíola, podiam
ser responsáveis pelo abandono das terras comunais e pela decadên­
cia das povoações25.
Durante as demarcações de limites, as fugas e revoltas foram
uma constante e reflectiam, frequentemente, o que de mais subter­
râneo existia no pensamento indígena. As áreas para as quais as via­
gens de exploração se dirigiam, tanto podiam ser totalmente desco­
nhecidas pelas tropas luso-hispânicas como podiam englobar locais
onde a colonização luso-brasileira se tivesse processado em fase
recente. Num caso ou no outro, a sobrevivência das tropas e o êxito
das expedições dependia, de forma intrínseca, da boa vontade dos
índios.
Contudo, as fugas de pequenos grupos eram, ao longo destas
viagens, uma constante, devido às doenças, ao excesso de trabalho,
à fome, à hostilidade do meio geográfico. Mas a estas razões junta-
vam-se, por vezes, motivos de natureza mais interna, relacionados
com crenças e medos. Desta forma, quando Manuel da Gama Lobo

22 AHU, Rio Negro, caixa 11, doc. 8, Ofício de João Baptista Mardel a João Pereira
Caldas, de 20 de Agosto de 1785; ibidem, does. 6 e 7, Ofício de Miguel Arcanjo a João
Bernardo Borralho, de 8 de Outubro de 1785; ibidem, caixa 10, doc. 5, Ofício de
Manuel Carvalho dos Santos a Marcelino José Cordeiro, de 21 de Maio de 1785.
23 AHI, 340/04/02, doc. 45, Ofício de João Bemardes Borralho a João Pereira Cal­
das, de 29 de Maio de 1787.
24 AHU, Rio Negro, caixa 14, doc. 21, Ofício de Henrique João Wilkens a João
Pereira Caldas, de 13 de Março de 1787.
25 AHI, 340/04/02, Ofício de João Bemardes Borralho a João Pereira Caldas, de
9 de Janeiro de 1788; AHU, Rio Negro, caixa 17, doc. 6, Ofício de Henrique João Wil­
kens a João Pereira Caldas, de 20 de Janeiro de 1789; Pará, caixa 22 (742), Ofício de
Francisco de Sousa Coutinho a D. Maria I, de 22 de Março de 1791.

256
F O R M A S DE R E S IS T Ê N C IA

de Almada intentou proceder à exploração do rio Uaupés contou


com a oposição dos índios não aldeados que, para além de se terem
retirado para o rio Sereveny e de não se poder contar com eles como
uma alternativa aos remeiros desertados, lançaram entre os amerín­
dios das canoas de demarcação a notícia de que forças mágicas esta­
vam contra o empreendimento26. Desta situação dava conta o sar­
gento Manuel Carvalho dos Santos quando relatava que «[...] vendo
eu antão que marchando asim nem em dous mezes chegava ó
Senhor Coronel, e que os índios, infalivelmente me dezamparavam,
porque todos estavam esmorecidos, pasmados e insolentes, nem
faziam caso das canoas nem de mim, nem dos soldados, e vendo eu
antão esta novidade, perguntei lhes o que tinhão, responderão que o
gentio da cachoeira [Papuris] lhes disseram se queriam bem a suas
mulheres não passassem adiante que os donnos do Rio já tinhão
feito pussanga para morrerem todos, e vendo eu que totalmente não
podia seguir viagem, tornei para trás hum pouco e vim parar à
Maloca que foi do Principal Calisto que está em Santa Izabel»27.
A forma de protesto mais habitual ocorrida na Amazônia da
segunda metade do século xvm consistia, como já dissemos, na
«deserção»: fugas individuais, de pequenos grupos e de povoações
inteiras ou, até, de núcleos de aldeamento em cadeia. Ao invés de
optarem por confrontos directos com as forças luso-brasileiras, os
ameríndios escolhiam o sertão amazônico como alternativa às pro­
postas de integração apresentadas pela sociedade colonial.
A floresta, por de mais conhecida dos nativos da Amazônia, fome-
cia-lhes refúgio, alimento e defesa. Este é mais um exemplo da forma
como as movimentações dos indivíduos podem ser condicionadas
não só por questões de ordem geográfica e do habitat como também
por motivos culturais28. Desta forma, o que para os luso-brasileiros era
representativo do território controlado e fronteira entre o espaço oci­
dentalizado e o «domínio do selvagem», para os ameríndios apresen-
tava-se como uma alternativa à autoridade colonial e o local onde lhe
era permitido preservar a sua herança cultural e a sua identidade29.

26 AHU, Rio Negro, caixa 11, doc. 6 e 7, Ofício de Miguel Arcanjo a João Bernar-
des Borralho, de 8 de Outubro de 1785.
27 AHU, Rio Negro, caixa 10, doc. 5, Ofício do Sargento Manuel Carvalho dos
Santos ao tenente Marcelino José Cordeiro, de 21 de Maio de 1785.
28 A. J. R. Russell-Wood, «The frontier concept: its past, present and future
influence», p. 29.
29 Para avaliar o que sertão significava para europeus e índios do Brasil, veja-se
ibidem, pp. 37-38.

257
F O R M A S DE R E S IS T Ê N C IA

Este paradoxo relaciona-se, então, com a percepção das peculiari­


dades físicas da paisagem e da geografia amazônicas. A floresta densa,
que dificultava e, nalguns casos, impossibilitava as comunicações por
terra, instituía os rios da bacia hidrográfica amazônica como a via
alternativa possível. Explicava também, em certa medida, o facto de
algumas técnicas de combate utilizadas com sucesso na repressão das
insurreições ameríndias em outras áreas da América do Sul não terem
resultado de igual forma no Norte do Brasil.
Quando se confrontavam com um combate em plena floresta
equatorial, os luso-brasileiros viam-se envolvidos num tipo de
guerra à qual não estavam habituados. A superioridade técnica e a
preparação militar dos portugueses não valia de muito face às tácti-
cas de guerrilha e às emboscadas exercidas por pequenos grupos
militarmente não organizados, mas conhecedores do terreno em
que combatiam e das técnicas de combate mais apropriadas30. Da
dificuldade deste tipo de encontros dava conta o bispo D. Frei João
de São José Queirós quando descrevia a viagem feita por frei
Manuel de S. Paulo pelo rio Tocantins: as margens do rio tinham
arvoredo altíssimo e eram habitadas por gentio belicoso «que vivem
em as brenhas como feras com sua instrução tal ou qual militar não
só para as embuscaduras mas para outros fingimentos que se prati-
cão na guerra affectando fraqueza para desordenar a tropa que os
pica pela rectaguarda, e de repente fazendo cara contra ella, dispa­
ram as setas quando não vão correndo e atirando como os antigos
Persas por cima do hombro ao inimigo que o persegue»31.
Também a formação de regimentos de cavalaria se revelava
desapropriada à realidade amazônica. Os cavalos, que tinham
desempenhado uma função táctica na conquista de tantas zonas da
Hispanoamérica — papel que, aliás, foi imediatamente reconhecido
pelas comunidades ameríndias da América do Sul e México que
cedo o adoptaram —, eram de utilidade nula na floresta equatorial
do Estado do Grão-Pará32. Ao invés, assiste-se à adopção das canoas

30 O mesmo aconteceu aos espanhóis quando passaram a defrontar-se com apa­


ches, araucanos, caribes, chichimecas, jívaros, pampas e outros (Carlos Lazaro Ávila,
«Un freno a la conquista: la resistência de los cacicazgos indigenas americanos en la
bibliografia historico-antropologica», Revista de índias, vol. ui (195-196), 1992, p. 589).
31 AHU, Pará, caixa 19 (736 H), Ofício de Frei João de S. José Queirós a Sebas­
tião José de Carvalho e Melo, de 8 de Novembro de 1760.
32 Susan Migden Socolow dá conta da importância dos equídeos para as comu­
nidades índias do vice-reinado do Rio da Prata: «these Indian groups tended to inha-
bit zones that were either peripheral ou inaccessible to the mainstream of Spanish

258
F O R M A S DE R E S IS T Ê N C IA

como o veículo de transporte na condução das tropas luso-brasilei-


ras e à incorporação de artilharia de pequeno calibre em barcos
construídos com técnicas e materiais indígenas. Em 1803, reco­
nhece-se formalmente que as estradas do Estado eram os rios e que
a defesa do território em tempo de guerra, bem como a sua manu­
tenção em época de paz dependiam de uma Marinha que, até à
data, não existia33.
Nos confrontos entre luso-brasileiros e ameríndios, se o fogo de
artilharia e de fusil era ainda temido por alguns índios, não se pode
afirmar que os europeus receassem menos as setas com pregos na
ponta, as flechas envenenadas com urucú, as bordunas, as zarabata­
nas, as clavas e as lanças34. Nas emboscadas perpetradas pelos
índios dos sertões da Amazônia, as lanças e as flechas tinham uma
eficácia garantida e o seu silvo um efeito aterrador. Os jovens índios
tinham com estas armas um contacto quotidiano e a sua utilização
não implicava um treino específico35. Pondere-se ainda o facto de a
floresta fornecer a matéria-prima necessária ao seu fabrico e encon­
traremos nestes motivos justificação para o facto de as armas tradi­
cionais continuarem a ser utilizadas com êxito pelas etnias amerín-

colonization, to live in dispersed and small comunities, and to be adept at the techni-
ques of seminomadic living and guerrilla warfare», in «Spanish captives in Indian
societies: cultural contact along the Argentine frontier, 1600-1835», in Hispanic Ameri­
can Historical Review, 72 (1), 1992, pp. 74-75. Consequências de outra natureza são pon­
deradas em Carlos Lazaro Avila, «Un freno a la conquista: la resistência de los cacacaz-
gos indígenas americanos en la bibliografia historico-antropologica», pp. 605-606.
33 AHU, Pará, caixa 52 (766), Ofício do Conde de Arcos ao Visconde da Anadia
comunicando o provimento de José Joaquim Vitorio da Costa no lugar de Intendente
da Marinha, de 15 de Dezembro de 1803.
34 Para uma referência iconográfica, veja-se «Brasil: sinais de culturas desapareci­
das ou em vias de extinção», in Nas vésperas do mundo moderno. Brasil, dirigido por Jill
Dias, pp. 230 e ss.; M. L. Rodrigues Areia, Maria Armanda Miranda, Tekla Hartmann,
Memória da Amazônia. Alexandre Rodrigues Ferreira e a Viagem philosophica pelas capita­
nias do Grão-Pará, Rio Negro, Mato Grosso e Cuiabá, 1783-M9Z, Coimbra, Museu e
Laboratório Antropológico, Universidade de Coimbra, 1991; e Alexandre Rodrigues
Ferreira, Viagem Filosófica pelas capitanias do Grão-Pará, Rio Negro, Mato Grosso e
Cuiabá, Iconografia, vol. 2, s/1, Conselho Federal de Cultura, 1971; AHU, Pará, caixa
19 (736 H), Ofício de Frei João de S. José Queirós a Sebastião José de Carvalho e
Melo, de 8 de Novembro de 1760.
35 Por exemplo, ao considerarem as brincadeiras infantis como uma forma de
preparação para a vida adulta, os Mura ensinavam os seus filhos desde muito jovens
a construírem e usarem arcos e flechas (Adélia Engrácia de Oliveira e Ivelise Rodri­
gues, «Alguns aspectos da ergologia Mura-Parahã», in Boletim do Museu Paraense Emílio
Goeldi, Antropologia, Nova Série, vol. 65, Janeiro de 1977, p. 30.

259
F O R M A S DE R E S IS T Ê N C IA

dias na segunda metade do século xvill, em detrimento das armas de


fogo europeias36.
Raras, por vezes de má qualidade e de difícil manutenção,
necessitando de um fornecimento regular de munições, as espingar­
das não tiveram um grande impacte junto dos povos que faziam
guerra aos luso-brasileiros37. Parece terem, sobretudo, tido impor­
tância junto das comunidades étnicas que traficavam escravos com
os holandeses e que atacavam os grupos ameríndios do rio Branco38.
Quanto ao espaço controlado pelos luso-brasileiros, o ferro e a sua
utilização em machados, pontas de setas e pregos tiveram, indiscuti­
velmente, importância, porque, ao serem adaptados aos instrumen­
tos de guerra (e de caça) tradicionais, potencializavam-nos39. Os
índios em fuga levavam os pregos das canoas para os utilizarem
como pontas nas flechas e o ferro era fundido para ter uma utiliza­
ção semelhante40. Tal como nas sociedades africanas, os fusis eram,
sobretudo, instrumentos de prestígio e de poder, distribuídos com
parcimônia pelos luso-brasileiros a poucos chefes de comunidades
consideradas leais41. Nalguns casos chegava-se a recomendar especi-

36 Não conseguimos apurar se as etnias ameríndias do Norte do Brasil desen­


volveram, à semelhança de outras etnias do Paraguai, como os Guaicurús ou Mbayá,
técnicas de guerrilha específicas contra os europeus. Estes grupos atacavam em
momento de chuvas e, portanto, na altura em que as armas de fogo não disparavam,
ou durante procissões, missas ou outros momentos importantes para a vida da
comunidade 0ames S. Saeger, «Eighteenth-century Guaycuruan missions in Para-
guay», in Indian-Religious relations in C olonial S p an ish America, editado por Susan E.
Ramírez, s/1, Maxwell School of Citizenship and Public Affairs, Siracuse University,
1989, p. 60.
37 Mesmo os luso-brasileiros queixavam-se frequentemente que não tinham
armas suficientes ou que estas estavam arruinadas e que não tinham munições (por
exemplo em AHU, Rio N egro, caixa 14, doc. 19, Ofício de Frei José da Conceição a
João Pereira Caldas, de 5 de Agosto de 1787.
38 John Hemming, «How Brazil acquired Roraima», in H ispanic H istórica! Ameri­
can Review, 70 (2), 1990, pp. 298 e 302.
39 AHI, 340/04/02, Ofício de João Bemardes Borralho a João Pereira Caldas, de
9 de Janeiro de 1788.
40 Os Mura destruíram o marco de demarcações luso-espanholas colocado na
boca do rio Japurá para tentarem extrair o ferro que supunham aí existir (AHU, Rio
N egro, caixa 6, Parágrafo de ofício de Teodósio Constantino de Chermont a João
Pereira Caldas), de 10 de Outubro de 1782.
41 Para uma comparação do papel das armas de fogo nas sociedades africanas,
veja-se Isabel Castro Henriques, «Armas de fogo em Angola no século XIX: uma in­
terpretação», in I Reunião Intenacional de H istória de África. R elação Euroya-África no ter­
ceiro quartel do século XIX, Lisboa, Instituto de Investigação Científica Tropical, 1989,
pp. 408 e ss.

260
F O R M A S DE R E S IS T Ê N C IA

ficamente que os ameríndios aliados continuassem a combater com


as suas armas tradicionais, não se lhe devendo confiar nunca armas
de fogo, consideradas pelas autoridades coloniais como apanágio
dos luso-brasileiros42. No sentido de restringir o acesso dos índios às
armas de fogo, Lourenço Pereira da Costa reiterava a Mendonça
Furtado os esforços feitos para impedir o aumento de espingardas
de proveniência holandesa junto das etnias do rio Branco e reco­
mendava que a feitoria luso-brasileira na região devia comercializar
algodão em peça, abstendo-se do tráfico de armas43.
Tão temidas como as armas indígenas eram também as tradi­
ções de guerra e as suspeitas de práticas antropofágicas dos adversá­
rios ameríndios. E, em relação a este aspecto, uma das etnias mais
temidas era a Mura «que por sua natureza conserva cruel e irrecon-
ciliável inimisade com todas as mais nações, não exceptuando os
índios; que professa por instituto a pirataria, grassando por todos os
lugares do público território, em que deve haver mais segurança;
que, nas suas guerras e assaltos, usa a mais barbara tyrania, não per­
doando aos mesmos mortos, em que commettem inarraveis cruel­
dades, esfolando e rompendo os cadáveres»44. As práticas guerreiras
da etnia Mundurucú eram, também, descritas de forma assustadora:
«porque elles não atendem nem à idade, nem ao sexo, só sim ao
maior número de víctimas, para augmentarem com ellas o seu
triunfo e executarem aquellas deshumanidades que eu fiz ver a
V. Exa. nas cabeças que lhe remeti de alguns infelices por elles mor-

42 AHU, P a rá , caixa 52 (766), Ofício de D. Francisco de Sousa Coutinho a Joa­


quim José Máximo, de 13 de Abril de 1803.
43 AHU, Rio N egro, caixa 1, doc. 30, Ofício de Lourenço Pereira da Costa a Fran­
cisco Xavier de Mendonça Furtado, de 16 de Janeiro de 1761.
44 Francisco Xavier Ribeiro de Sampaio, D iário que em visita e correição d a s povoa-
ções d a capitania de S ã o Jo s é do Rio N egro fez o ouvidor e intendente-geral d a m esm a no anno
Lisboa, Academia de Ciências de Lisboa, 1825, pp. 75-76; também
de 1 7 7 4 -1 7 7 5 ,
citado em Alexandre Rodrigues Ferreira, Viagem filosófica ao Rio Negro, p. 536. A acção
dos Mura sobre os vencidos é descrita em Henrique João Wilkens, «Muhuraida ou o
triumfo da fé na bem fecundada esperança da enteira conversão, e reconciliação da
grande, e feróz nação do gentio Muhúra Poema heroico composto e compediádo em
seis cantos dedicádo e offerecido ao Illustrissimo e Excellentissimo Senhor Joam
Pereira Caldas, do Concelho de Sua Magestade Fidelissima, alcaide-mór, commenda-
dor de S. Mamede de Troviscozo na Ordem de Christo: governador, e cappitão gene­
ral, que era do Estádo do Grão Pará, e agora nomeado das cappitanias de Matto
Groça e Cuyabá; e nos districtos dellas, e deste Estádo do Pará, encarregádo da exe­
cução do Tractádo Preliminar de Páz e Limites, por parte da mesma Augustissima
Rainha Fidelissima», in A n ais d a Biblioteca N acional, vol. 109, 1989, pp. 103-104.

261
F O R M A S DE R E S I S T Ê N C I A

tos e que tinhão preparadas e conservadas para ornato horrorozo


das suas cazas»45.
Nos combates entre índios e luso-brasileiros era difícil saber
quem seria vencedor: por um lado, as técnicas indígenas eram efica­
zes e a reputação dos índios como inimigos valorosos ou traiçoei­
ros, praticantes de estranhos e desumanos ritos de guerra estava
constituída; por outro, os luso-brasileiros contavam com um sistema
rápido de comunicações e transportes, com tropas especializadas e
eficazes nos combates em rios e as armas de fogo tinham, ainda,
algum efeito sobre a população indígena.
Havia, desta forma, um jogo equilibrado de forças e as perdas
sucedia-se de parte a parte. Assim, em 1766, comunicava-se a
«tyranna e aleivosa morte» do ajudante de auxiliares Francisco
Rodrigues pelos índios Mabiú do rio Cauaboris «e milagrozamente
escaparão os que o acompanhavão, salvando-se todos a nado»46.
Durante as revoltas nos rios Negro e Branco, soldados, missioná­
rios e moradores eram frequentemente mortos pela população
revoltada, como o carmelita Raimundo Barbosa e um outro missio­
nário assassinados durante um levantamento ocorrido, no ano de
1757, em Lamalonga e, depois, propagado a Camará (Moreira) e
Bararoá (Tomar)47. Também o soldado José Gomes da Silva foi
morto durante a rebelião do rio Branco, em 1790: «e como me
pedio [a Sarmento] algumas coisas de meu gasto, lhe disse as
viesse buscar e dei ordem ao Cabo de Esquadra Bernardino de
Sena para lhas dar, e na volta que fez para a Povoação, dormio da
outra banda da fortaleza, e levou na sua canoa o Principal da outra
banda, que lhe fez a morte de Joseph Gomes de manhãa e veio
trazer as outras três de tarde, matando o soldado Director em casa
deixando lhe ficar enterrados na cabeça três machados e aos dous
soldados que vinhão da caça lhe fizerão espera na roça que o pri­
meiro que foi Aluisio de Novaes ficando mal ferido o acabarão
com braçangadas, como fizerão a Joseph Gomes e aos mais tam

45 BNRJ, 7-3-30, Ofício de Martinho de Sousa e Albuquerque a Martinho de


Melo e Castro, de 17 de Agosto de 1788; para ilustração iconográfica, veja-se «Brasil:
sinais de culturas desaparecidas ou em vias de extinção», in Nas vésperas do mundo
moderno. Brasil, pp. 222 e 230.
46 AHU, Rio Negro, caixa 1, doc. 47, Ofício de Joaquim Tinoco Valente a Fran­
cisco Xavier de Mendonça Furtado, de 22 de Julho de 1766; ANRJ, códice 99, vol. 1,
fl. 86, Ofício de Fernando da Costa de Ataíde Teive a Francisco Xavier de Mendonça
Furtado, de 16 de Outubro de 1766.
47 Alexandre Rodrigues Ferreira, Viagem filosófica ao Rio Negro, pp. 55 e ss.

262
F O R M A S DE R E S I S T Ê N C I A

barbaramente»48. Aos outros soldados atacados em emboscada só


lhes restou refugiarem-se na fortaleza.
Por seu tumo, nos confrontos havidos entre luso-brasileiros e
ameríndios no sentido de controlar estas revoltas noticiava-se, fre­
quentemente, a morte ou o ferimento de indígenas. Desta forma, as
tropas de Antônio Carlos da Fonseca Coutinho, num ataque a um
tijupare mundurucú, mataram vinte índios e aprisionaram um rapaz
de 9 anos e uma rapariga com cerca de 1049. Também um encontro
entre luso-brasileiros e Mundurucú no rio Guautazes saldou-se na
morte de quatro índios das povoações da coroa e de outros tantos
do lado dos ameríndios emboscados50.
Por seu tumo, o medo dos ataques de certas etnias ameríndias
condicionava as reacções que os luso-brasileiros tinham. Em 1785,
um pescador que ia a Alvelos queixou-se que os índios Mura lhe
tinham tomado a canoa e morto o companheiro. No entanto, estava
tudo naquela povoação a salvo, inclusive o outro indivíduo a quem
o «gentio amarrou a hu pao e foi se naturalmente sentindo de ver
que o não comunicão, que os evitão e que não querem pás com
elles»51.

A g e o g r a fia da r e sistê n c ia

Se o que temos vindo a afirmar explica, de certo modo, as gran­


des formas de resistência das etnias ameríndias face à política de
colonização luso-brasileira durante a segunda metade de Setecentos,
importa mencionar que nem todas as etnias reagiram da mesma
forma e com a mesma intensidade à presença colonizadora.
Antes de mais, é pertinente notar que enquanto alguns grupos
mantiveram uma unidade étnica reagindo em bloco, outros deixa­
ram de ter consistência, passando as suas iniciativas de resistência a
processar-se através de acções individuais ou de pequenos grupos.
Depois, é interessante verificar que algumas etnias, como os Aruans

48 AHU, Rio Negro, caixa 18, doc. 4, Ofício de Nicolau de Sá Sarmento a Manuel
Gama Lobo de Almada, de 17 de Fevereiro de 1790.
49 AHU, Rio Negro, caixa 17, doc. 6, Ofício de Antônio Carlos da Fonseca Couti­
nho a João Pereira Caldas, de 27 de Maio de 1790.
50 AHU, Rio Negro, caixa 17, doc. 6, Ofício de Antônio Vieira Correia da Maia a
João Pereira Caldas, de 21 de Fevereiro de 1789.
51 AHU, Rio Negro, caixa 11, doc. 8, Ofício de João Baptista Mardel a João Pereira
Caldas, de 20 de Agosto de 1785.

263
FO RM AS DE R ESISTÊN C IA

do Marajó, foram extintas, enquanto outras acabaram por submeter-


-se à autoridade luso-brasileira e colaborar com ela, como ocorreu
com os Mundurucú52. Outras, ainda, optaram por modificar os seus
padrões de vida tornando-se, por exemplo, nômadas e com uma
densidade demográfica menor por forma a aumentar a sua mobili­
dade. Foi isso que sucedeu aos Ka^por53. Finalmente, é necessário
reparar que se uns grupos optaram por enfrentar os colonizadores
em confrontos armados, como os Mura, outros escolheram uma
resistência passiva, procurando refúgio na floresta.
Houve, portanto, uma multiplicidade de respostas aos contactos
entre luso-brasileiros e ameríndios, as quais se compreendem, em
parte, através das reacções específicas de cada grupo étnico. Con­
tudo, os tipos de resistência que os ameríndios moveram à presença
luso-brasileira estão também relacionados com o nível de implanta­
ção da colonização. Ou seja, parece existir uma relação directa entre
as opções que os índios escolheram para se rebelarem contra os
luso-brasileiros e a cronologia da colonização ou a valorização estra­
tégica de uma área. Estas traduziam-se, por exemplo, na densidade
de moradores brancos, na existência de casamentos mistos e no
aparato militar que suportava a presença colonizadora. Outros fac-
tores que seriam igualmente decisivos na escolha das formas de
resistência relacionar-se-iam com o grau de descaracterização das
etnias ameríndias e com a sua capacidade de aculturação.
Desta forma, seria compreensível que os índios em tomo da
capital, de S. José de Macapá, de Mazagão, de Borba, de Barcelos, de
Tomar, de Santarém, escolhessem formas de protesto legais contra as
exacções particulares de determinados indivíduos leigos ou religio­
sos. Podiam, também, optar pelas fugas individuais ou de pequenos
grupos que procuravam refúgio na floresta ou apoio nos mocambos
incrustados em tomo das povoações. Contrapondo-se a estas mani­
festações legais e «individuais», nos rios Branco, Negro ou Uaupés,
as manifestações de revolta singulares ou de pequenos grupos po­
diam ser o rastilho que despoletava o levantamento de aldeias intei­
ras ou de grandes contingentes dentro do povoado. As agressões

52 Este grupo, como adiante veremos com mais detalhe, foi utilizado pelos luso-
-brasileiros como mercenários na pacificação de outras etnias ameríndias.
53 William Balée, Footprints of the forest. Ka'apor Ethnobotany..., p. 113. O autor
afirma que: «with the Conquest, respiratory and other diseases from the Old World
and subsequent severe depopulation thus pushed some sedentary groups into the
more nomadic lifestyles of hunter-gatheres or trekkers — or put an end to them al-
together as unique societies».

264
F O R M A S DE R E S IS T Ê N C IA

dirigidas contra o pároco, o governador ou as imagens de santos


simbolizavam, na maior parte das vezes, o desacordo dos índios
contra a política de colonização e contra a presença luso-brasileira.

1. F o rm a s de re s is tê n c ia em áreas
de c o lo n iz a ç ã o im p la n ta d a

A colonização luso-brasileira no Norte do Brasil durante a


segunda metade do século xvm estava jár'suficientemente implantada
em algumas áreas para que os índios tivessem conhecimento que
lhes assistiam os mesmos direitos que os luso-brasileiros. Esses
direitos eram-lhes facultados e defendidos pela legislação e pelas
instituições do Estado e do Reino. Os casamentos entre índias e sol­
dados e moradores luso-brasileiros prendiam pessoas e etnias às
povoações, criavam alianças e laços de dependência, mas também
permitiam que os ameríndios fossem elucidados sobre os mecanis­
mos institucionais e de solidariedade que actuavam em sua defesa.
As escolas, os seminários e as casas de altos membros da adminis­
tração colonial tinham a seu cargo a educação dos filhos das elites
ameríndias e eram responsáveis pela sua aculturação. Mas, na
medida em que os iniciavam na literacia e nos costumes europeus,
ensinavam-lhes também que as leis de Deus e do Rei os considera­
vam como verdadeiros súbditos.
Por isso, não nos espanta o facto de a índia D. Mariana de Sal­
danha, filha primogênita do principal Manuel de Saldanha da vila de
Tomar, se ter dirigido ao governador do Estado nos seguintes ter­
mos: «e assim como se não faz justiça crescem os dezaforos e alguns
dos requerentes tomam por amparo das suas enfelicidades as intrin­
cadas veredas dos matos e se vão meter entre o gentio, eu porém
dando me Deos discurso para o acerto determiney dar a Va. Exa.
esta parte, enfim espero sejão por Va. Exa. ouvidos meus clamores,
pois a Va. Exa. como lugar tenente de El Rey recorremos, e como
tal, nos deve Va. Exa. proteger pois também somos de El Rey filhos
e súbditos de Va. Exa.»54. Para este membro da aristocracia indígena,
a opção a tomar era clara: o seu estatuto social tinha sido atrope­
lado, os seus privilégios desrespeitados e, por isso, como qualquer
vassalo luso-brasileiro esclarecido, encaminhava o seu protesto ao

54 APEP, códice 103, doc. 71, Petição da índia D. Mariana de Saldanha ao gover­
nador do Estado contra os maus tratos do director da vila de Tomar, de 24 de Julho
de 1770.

265
F O R M A S DE R E S IS T Ê N C IA

governador do Estado, enquanto representante directo do rei, para


que os abusos fossem corrigidos e a ordem voltasse a ser reposta.
Os protestos surgiam quer em nome individual quer por parte de
«associações de solidariedade» que podiam englobar unicamente
moradores como, também, populações e entidades oficiais. A câmara
em bloco ou, então, apenas algumas figuras proeminentes do senado
davam credibilidade e força às queixas que surgiam no Estado do
Grão-Pará. Estas dirigiam-se, sobretudo, contra as injustiças perpetra­
das pelos directores, mas as acusações podiam ainda abranger juizes
de julgado, governadores de fortalezas e, até mesmo, os governado­
res e capitães-generais das capitanias.
Contudo, nem o soberano nem as instituições que mais directa-
mente o representavam eram alvo de críticas. As partes envolvidas
assumiam-se como verdadeiros súbditos luso-brasileiros e, quando
se nomeavam, tomavam por referência a povoação portuguesa que
habitavam em território amazônico, não mencionando jamais o
nome da etnia a que pertenciam. Não obstante, a referência à ori­
gem indígena surgia nos nomes dos indivíduos citados e, por isso, a
par de Miguel do Rego, Domingos de Sampaio, Januária dos Santos,
D. Camila de Castro ou Tomásia Francisca, índios moradores de
Borba, eram mencionados João Pamá, José Ariquena e o pagão
Pissô, igualmente habitantes desta povoação de Sua Majestade Fide-
líssima, perdida nos confins dos sertões do rio Madeira55.
Os motivos que justificavam os protestos englobavam desde os
insultos e abusos físicos ao trabalho excessivo e salários em atraso,
passando por questões de natureza ética relacionadas com o desres­
peito pelas figuras proeminentes da comunidade ou com o compor­
tamento incivil e indigno de homens que deviam servir de modelo a
colonos e índios56.
Nas reclamações destes luso-brasileiros nascidos nos sertões da
Amazônia, a utilização abusiva de mão-de-obra ameríndia, uma
recompensa insuficiente ou inexistente e eventuais espancamentos

55 AHU, Pará, caixa 29 (745), Representação dos principais e moradores de


Borba sobre os maus tratos ministrados pelo director, o alferes Luís da Cunha de Eça
e Castro, s/d [cerca 1769],
56 No que a este último aspecto diz respeito, veja-se, por exemplo, a representa­
ção que os moradores de Una fizeram, acusando o principal Gervásio Dias de não
lhes dar ferramentas para trabalhar, de fazer distúrbios e mandar prender os habitan­
tes. Censuravam-lhe o hábito de beber de porta em porta e de ter empurrado a mãe,
deixando-a quase morta (ANRJ, códice 99, vol. 5, fl. 257, Representação dos morado­
res do lugar de Una queixando-se de Gervásio Dias, s/d [de cerca 1783].

266
F O R M A S DE R E S IS T Ê N C IA

andavam associados. Assim, em 1767, os moradores, principais e


índios de Tomar queixavam-se das exacções de João Pinheiro do
Amorim que, com a conivência do governador do Rio Negro, explo­
rava os habitantes da povoação, não pagando os seus míseros sa­
lários, obrigando-os a fiar algodão graciosamente, a cultivar fa­
rinhas, melancias, abóboras e laranjas para vender em nome do
governador57. Também os moradores de Borba-a-Nova protestavam
contra os maus tratos do director, alferes Luís da Cunha de Eça e
Castro, que os requisitava para serviço» pessoais e os punia com
pauladas cruéis quando se recusavam a servi-lo. Resta afirmar que
Eça e Castro tinha plantios de tabaco, roças de mandioca, milho e
explorações de breu e que, nessas actividades econômicas, utilizava
ameríndios58. Por seu turno, D. Mariana de Saldanha dava conta que
o director da vila de Tomar utilizava os habitantes nas suas lavouras
pessoais e tinha por hábito puni-los com palmatória; esta reclama­
ção denunciava, ainda, a incompetência do director, ao referir que
este não tinha feito roça do comércio, nem consertado as casas dos
moradores59.
De maus tratos queixavam-se, também, os habitantes índios e
brancos e os soldados da vila de Santarém, por volta de 1779, para
dar conta dos espancamentos que o tenente Gama Lobo costumava
perpetrar. Pediam que se instaurasse uma devassa a todos os coman­
dantes da fortificação por ministro recto, sendo a sua preferência
dirigida para o ouvidor-geral, João Francisco Ribeiro60.
Os mesmos directores que maltratavam a população índia eram
ainda acusados de um outro tipo de delito: infringir os privilégios
dos grupos favorecidos. Se o espancamento dos índios era ofensa
grave, muito maior seria se estes fossem principais. Deparamos com
esta situação em Borba, durante a directoria de Eça de Castro.
O director era acusado de não respeitar o estatuto dos chefes índios,

57 Tanto o director quanto o governador impediam, igualmente, o descimento de


índios da nação Maniva e tinham um comportamento que motivava a fuga de alguns
índios para o sertão (ANRJ, códice 66, vol. 1, fl. 73-84, Queixa dos moradores, princi­
pais e índios de Tomar contra as exacções do director da vila, s/d [de cerca 1767]).
58 AHU, Pará, caixa 29 (745), Representação dos principais e moradores de
Borba-a-Nova delatando os maus tratos ministrados pelo director Luís da Cunha
de Eça de Castro, s/d [de cerca 1769],
59 APEP, códice 103, doc. 71, Petição da índia D. Mariana de Saldanha ao gover­
nador do Estado contra os abusos do director de Tomar, de 24 de Julho de 1770.
60 AHN, Rio Negro, caixa 2, doc. 31, Petição dos moradores e soldados da vila
de Santarém para instaurar uma devassa ao comandante da fortaleza, s/d [ant. 22 de
Março de 1779].

267
FO RM AS DE R ESISTÊN C IA

espancando-os e ofendendo-os, mesmo quando das suas pessoas


dependia a subsistência da povoação61. Por seu tumo, D. Mariana de
Saldanha, «huma aflita, pobre e dezamparada mulher», queixava-se
como o director de Tomar era injusto consigo porque a filha do
principal resistia às suas pretensões libidinosas. Tinha mandado
prender D. Mariana por «pessoa indigna para a conduzir» por esta
ter faltado à missa62.
Face a este tipo de violências, a resistência ameríndia podia
manifestar-se de dois modos: fugindo ou protestando, atitudes que
eram sempre determinadas pelo grau de aculturação das popula­
ções. E, no que a este aspecto diz respeito, temos que salientar que,
numa mesma povoação, as reacções podiam ser díspares. Foi o que
aconteceu, por exemplo, em Borba: se os recém-aldeados Pamás
optaram por fugir, os moradores índios e os brancos pediam às
autoridades competentes que mandassem devassar Eça de Castro63.
De igual forma, ao insurgir-se contra José Inácio de Sousa Pinto,
juiz do Julgado de Castanheiro-o-Novo, o índio Raimundo, principal
da nação Uaupés, dirigiu o seu protesto às instituições judiciais da
coroa. É importante relacionar esta atitude, que foi, aliás, dissonante
à de vinte elementos da sua «família», com o facto de Raimundo ser
cunhado do furriel João de Matos. Em vez de procurar refúgio na
floresta, o principal Uaupés optou por mudar a sua comunidade
para local próximo à fortaleza de S. José de Marabitenas, na época
comandada por João de Matos, e de relatar os abusos do grupo
constituído por Sousa Pinto, José Galvão e José Gonçalves às autori­
dades judiciárias da capitania64.

61 AHU, Pará, caixa 29 (745), Representação dos principais e moradores de


Borba sobre os maus tratos ministrados pelo director, o alferes Luís da Cunha de Eça
e Castro, s/d [cerca 1769],
62 APEP, códice 103, doc. 71, Petição da índia D. Mariana de Saldanha ao gover­
nador do Estado contra os abusos do director de Tomar, de 24 de Julho de 1770.
63 AE1U, Pará, caixa 29 (745), Representação dos principais e moradores de
Borba-a-Nova delatando os maus tratos ministrados pelo director Luís da Cunha de
Eça de Castro, s/d [cerca 1769].
64 José Inácio de Sousa Pinto lera um papel que dizia ser ordem régia, intimando
os habitantes a dar-lhes galinhas, farinhas, banquinhos, penachos, salsa e outras coi­
sas «estimando lhe que hera Rey e que se não lhe dessem tudo que lhe avia cortar a
cabeça». Os índios da esquipação mencionavam, também, que as mencionadas auto­
ridades judiciais da capitania do Rio Negro tinham cometido, ao longo da viagem,
desordens, bebedeiras, violações e agressões (AHU, Pará, caixa 54 (769), Termo do
testemunho do índio Raimundo sobre as exacções cometidas por José Inácio de
Sousa Pinto, de 19 de Novembro de 1805). O testemunho do índio foi confirmado
pelo furriel João de Matos, comandante da fortaleza de São José de Marabitenas e

268
F O R M A S DE R E S IS T Ê N C IA

O que temos vindo a afirmar reflecte a existência de grupos de


ameríndios integrados na sociedade colonial, nalguns casos pertencen­
tes à elite que administrava os núcleos de colonização luso-brasileiros,
noutros podendo exercer ofícios mecânicos. Estavam, contudo, aptos
a utilizar, por si ou em grupo, os recursos judiciais que a legislação e as
instituições coloniais punham ao seu dispor. Detentores de bens imó­
veis, trabalhando a soldo ou como rendeiros ou usufruindo de um
estatuto social privilegiado, estes indivíduos já não ponderavam o ser­
tão amazônico como uma opção para «o seu descontentamento. Mais
do que membros de uma etnia, consideravam-se súbditos do monarca
português e era a ele ou aos seus representantes que se dirigiam
quando protestavam contra as infracções que os directores cometiam
ou quando achavam que os seus direitos eram postos em causa.
Sabiam que a lei não permitia o espancamento dos ameríndios,
pois o monarca «manda gozemos das izenções dos brancos e só
podemos ser multados com os ditos»65. Conheciam a faculdade que
a legislação lhes permitia de fazerem as suas exposições e reque­
rimentos às instituições competentes, podendo solicitar o auxílio
do procurador geral dos índios para a constituição do processo66.
Tinham a faculdade de recorrer, tal como qualquer outro súbdito,
aos tribunais centrais quando as sentenças lhes eram desfavorá­
veis. Desta forma, podiam, por exemplo, dirigir um recurso à Mesa
de Consciência e Ordens quando os autos de liberdade não ti­
nham deferimento favorável pela Junta das Missões67. Protestavam
quando não era observado o «Direito e estillo da Coroa em que as
causas dos prezos pobres se não demorão, posto que não tenhão
com que pagar»68. Até os próprios governadores instigavam à utili­

cunhado de Raimundo, que relatava uma actividade conjunta de Sousa Pinto, de José
Galvão, juiz das povoações anexas à fortaleza de S. Gabriel, e de José Gonçalves,
meirinho de Tomar (AHU, Pará, caixa 54 (769), Ofício de João de Matos a José Joa­
quim Cordeiro, de 16 de Dezembro de 1805; ibidem, Ofício de João de Matos a José
Antônio Salgado, de 28 de Dezembro de 1806).
65 APEP, códice 103, doc. 71, Petição da índia D. Mariana de Saldanha, de 24 de
Julho de 1770.
66 AHU, Pará, caixa 24 (739 D), Oficio de Manuel Bernardo de Melo e Castro a
Francisco Xavier de Mendonça Furtado, de 2 de Novembro de 1762.
67 AHN, códice 99, vol. 1, fls. 128 e ss., Certidão de Manuel Alves Bandeira,
escrivão da ouvidoria-geral e liberdades de Belém atestando que no juízo correram os
autos de liberdade do canarim Antônio de Sequeira, indeferidos pela Junta das Mis­
sões, de 13 de Maio de 1767.
68 AHU, Pará, caixa 24 (739 D), Ofício de Manuel Bernardo de Melo e Castro a
Francisco Xavier de Mendonça Furtado sobre D. Frei João de S. José Queirós, de 2 de
Novembro de 1762.

269
F O R M A S DE R E S IS T Ê N C IA

zação dos recursos legais, como aconteceu com o conde de Arcos


que afirmava ao juiz ordinário de Macapá que a ninguém importava
o destino que os contratadores davam dos índios enquanto estes se
não queixassem pelos meios ordinários69.
Muitos dos instrumentos legais de resistência utilizados pelos
índios, tais como requerimentos, queixas e petições, eram igual­
mente utilizados como meios de vigilância e controlo das instituições
administrativas leigas e eclesiásticas sobre os seus subalternos70.
No entanto, surgem também casos de utilização abusiva destes
recursos legais, como era o caso de Caetano Lira. Este tinha sido mes­
tre de meninos em Borba, morador em Vigia, soldado em Baião e, em
1770, em Cametá tinha-se associado aos índios «feito seu letrado
pois diz que o não a milhor por dez a sua criação o ter heyzersido e
desde menino ter sido athe que lhe sentarõ prasa, tabalião e escripvão
de todos os cartórios desa sidade [...] que sertamente não vai indio
nem india destas partes a hesa sidade com requerimentos que não
seja acomselhado por hele e aliando huns e outros, tras tudo em hua
mera confuzão e dezasusego com estes requerimentos fa lios sendo
devezas de tudo o que lhe maça em todo o sentido»71. Era, assim, que
Manuel Carlos Silva dava conta das inquietações provocadas junto da
comunidade ameríndia pela «actividade jurídica» deste irmão do
tabelião de Santa Maria de Belém. Para além do mais, Lira era ainda
acusado de instigar os índios a não viverem em paragem certa, mas
nos sertões e em mocambos porque, dizia, quando o governador vol­
tasse ao reino todos voltariam a ser escravos.

2. D e s e rç õ e s e re v o lta s c o m o fo rm a de resistên cia


em áreas de im p la n ta ç ã o c o lo n ia l d im in u ta

Nos vales dos principais afluentes da capitania do Rio Negro as


formas de protesto utilizadas pelos ameríndios como reacção à colo­

69 AUC, Colecção Conde de Arcos, VI-3.°-I-l-27, fl. 150v, Ofício do Conde de


Arcos ao juiz ordinário do Macapá sobre o espancamento e chibatadas dos índios
pelos oficiais do contratador, de 27 de Novembro de 1805.
70 Ângela Domingues, «A importância das visitações para o conhecimento das
etnias ameríndias da Amazônia e do Pará em meados de Setecentos»; para período
anterior, veja-se Jorge Couto, «As visitas pastorais às missões da Amazônia: focos de
conflito entre Jesuítas e o l.° Bispo do Pará (1724-1733)» (no prelo).
71 APEP, códice 103, doc. 55, Ofício de Manuel Carlos da Silva a Fernando da
Costa de Ataíde Teive de Sousa Coutinho, de 14 de Maio de 1770.

270
F O R M A S DE R E S IS T Ê N C IA

nização luso-brasileira do Norte do Brasil na segunda metade de Sete­


centos eram diferentes. Aqui as reacções podiam extremar-se: os ame­
ríndios, sediados pelos luso-brasileiros havia pouco tempo em povoa-
ções-satélite das fortificações, eram menos tolerantes às alterações
culturais e civilizacionais que os «dominantes» queriam implantar. Por
sua vez, os luso-brasileiros, em número reduzido e vivendo num
espaço físico e humano estranho, quando não hostil, exageravam as
suas atitudes, como manifestações de poder e, talvez, de medo.
Tal como em qualquer outro local do Estado do Grão-Pará, as
deserções foram a forma de resistência mais correntemente utili­
zada pelos ameríndios da capitania de S. José do Rio Negro durante
a segunda metade de Setecentos. Os levantamentos demográficos,
que dão conta do número de habitantes existentes nas povoações,
dos indivíduos descidos de novo e das ausências, têm uma validade
limitada porque qualquer ocorrência podia suscitar fugas de indíge­
nas para o sertão72.
Foi, sobretudo, na época das demarcações de limites dos anos
50 e 80 que esta instabilidade demográfica se acentuou. As cons­
tantes requisições de indivíduos adultos para as viagens entre as
capitanias e para as explorações das demarcações levavam a que os
índios procurassem, primeiro, o amparo dos padres ou o refúgio da
floresta e, depois, a integração em outras aldeias ou a protecção do
sertão73.
Apesar de Francisco Xavier de Mendonça Furtado culpar os mis­
sionários das povoações do Norte brasileiro (e, fundamentalmente,
os Jesuítas) de, nas demarcações decorrentes do Tratado de Madrid,
serem os principais instigadores das fugas dos índios, estas conti­
nuaram a ocorrer depois da expulsão da Companhia, após a instau­
ração do Directório e durante as partidas de demarcações de limites
de Santo Ildefonso74.

72 Sobre este assunto, veja-se o já mencionado capítulo iii «Em cumprimento do


real serviço: o reordenamento do território e a integração dos vassalos índios».
73 AHU, Conselho Ultramarino, códice 1214, fls. 201-202v, Ofício de Francisco
Xavier de Mendonça Furtado a Sebastião José de Carvalho e Melo, de 10 de Setem­
bro de 1754; Rio Negro, caixa 10, doc. 15, Ofício de Marcelino José Cordeiro a João
Pereira Caldas, de 18 de Março de 1785.
74 AHU, Conselho Ultramarino, códice 1214, fls. 201-202v, Ofício de Francisco
Xavier de Mendonça Furtado a Sebastião José de Carvalho e Melo, de 10 de Setem­
bro de 1754; BPADE, CXV/2-14, doc. 268, Ofício de Francisco Xavier de Mendonça
Furtado ao padre Bento da Fonseca, de 6 de Julho de 1755; AHU, Pará, caixa 18
(739 F),Ordem de frei Miguel de Bulhões a frei Antônio de Beja, da Província da Pie­
dade, de 22 de Maio de 1758.

271
F O R M A S DE R E S IS T Ê N C IA

Desta forma, Manuel da Gama Lobo de Almada viu as suas via­


gens aos rios Uaupés, Issana e Ixié serem interrompidas pelas deserções
dos índios que constituíam as esquipações das suas canoas75. O sol­
dado Jerónimo José da Silva foi dado como desertor porque os índios
das suas canoas fugiram para a floresta e, consequentemente, não tinha
forma de prestar o auxílio que devia a Lobo de Almada76. Também «em
cinco de Agosto deste Anno vierão huns fugidos a esta Maloca falarão
com os que aqui estavão, e com elles fugirão três índios [...] hum destes
sempre estava deitado na rede, gritando que morria, mas logo que teve
occazião de fugir sarou e furtarão huma Igarité em que tinha vindo o
Porta bandeira Leonardo e quatro paneiros de farinha sem que
nenhuma das sentinelas desse parte de couza alguma»77.
Para além das ininterruptas fugas de indivíduos sozinhos, de
famílias nucleares ou de pequenos grupos, refira-se que, em 1785,
ocorreu uma grande deserção nas povoações próximas à fortaleza
de S. Gabriel das Cachoeiras. De Santa Ana, de Nossa Senhora da
Nazaré e de São Filipe fugiram todos os seus habitantes e de São
Joaquim e Camanáu apenas um número diminuto de índios perma­
neceu (cerca de 11). Como motivos para esta fuga mencionavam-se
o retomo dos homens que tinham acompanhado o tenente Fran­
cisco Rodrigues Coelho nas expedições de rio Uaupés, a natural
inconstância dos índios e a falta de tropas nos destacamentos de
S. Gabriel e Marabitenas78. Mas a razão que devia ter tido mais peso
adviria, provavelmente, da circulação da notícia de que as tropas
demarcadoras necessitavam de mais gente. É que, para os índios da
planície amazônica, as demarcações significavam trabalhos, afasta­
mento da comunidade, fome, doenças e, às vezes, morte: «O horror
que esta gente tem tomado à entrada ou internação dos mesmos
pestiferos Rios pode ser de bem funestas consequências e do mayor
embaraço para o progressivo Curso da Demarcação.»79

75 AHU, Rio Negro, caixa 10, doc. 4, Ofício de Manuel Gama Lobo de Almada a
João Pereira Caldas, de 18 de Março de 1785.
76 AHU, Rio Negro, caixa 10, doc. 1, Ofício de João Pereira Caldas a Manuel da
Gama Lobo de Almada, de 8 de Abril de 1785.
77 AHU, Rio Negro, caixa 11, doc. 5, Ofício de Manuel Carvalho dos Santos a
Marcelino José Cordeiro, de 21 de Agosto de 1785.
78 AHU, Rio Negro, caixa 10, doc. 1, Ofício de Marcelino José Cordeiro a João
Pereira Caldas, de 17 de Março de 1785; ibidem, doc. 1, Ofício de Marcelino José Cor­
deiro a João Pereira Caldas, de 27 de Março de 1785.
79 AHU, Rio Negro, caixa 11, doc. 11, Ofício de João Pereira Caldas a Martinho
de Melo e Castro, de 29 de Dezembro de 1785.

272
F O R M A S DE R E S IS T Ê N C IA

Apesar de, no rio Negro, terem ocorrido, sobretudo, deserções,


foram as planícies dos rios Branco e Uaupés que mais foram afecta-
das pelos levantamentos, fugas em cadeia e, sobretudo, revoltas.
Quando tentamos averiguar as razões pelas quais os ameríndios
destas áreas geográficas se revoltavam, deparamos com a existência
simultânea de motivos imediatos e particulares, que despoletavam a
reacção das populações num momento específico, a par de razões
mais profundas, relacionadas com a presença e a política de coloni­
zação luso-brasileiras no Norte do Brasil de meados de Setecentos.
Consequentemente, e para além das deserções habituais e de
alguns levantamentos esporádicos, a capitania de São José do Rio
Negro contou com três grandes revoltas, duas delas ocorridos no
vale do rio Branco.
A primeira ocorreu em 1757 e envolveu as povoações de Camará
(Moreira), Bararoá (Tomar) e Lamalonga80. Foi iniciada quando o
padre da povoação de Camará separou o índio Domingos da sua con­
cubina. Aliado aos principais João Damasceno, Ambrósio e Manuel, o
ameríndio arrombou a casa do missionário e a igreja. Derramaram os
óleos sagrados e, largando fogo à povoação, caíram sobre o povoado
de Moreira, no que foram auxiliados pelos principais Manacaçari e
Mabé. Assassinaram o carmelita frei Raimundo Barbosa, o principal
Caboquena e muitas outras pessoas, e roubaram e queimaram a
igreja. Lançaram-se, igualmente, sobre Bararoá, degolando a imagem
de Santa Rosa e matando dois soldados. O descontentamento dos
índios destas povoações do rio Negro manifestava-se tanto pela des­
truição de símbolos como pelo ataque a pessoas e bens.
A revolta foi controlada pela tropa enviada por Francisco Xavier
de Mendonça Furtado e chefiada pelo capitão Miguel de Sequeira
Chaves. O ouvidor-geral da capitania, desembargador Pascoal de
Abranches Madeira Fernandes, instaurou uma devassa, na sequência
da qual se acharam culpados inúmeros índios. Os ameríndios Luís,
Miguel e João foram enforcados em Moreira e muitos outros indígenas
foram enviados para Belém, onde encheram a cadeia. Dizimados pelas
fomes e pela falta de socorro, «todos os dias se estavão enterrando
com o mayor escandalo de todo este Povo, hindo para a Cova amarra­
dos em hum pao, nuz pelas ruas desta cidade, como se forão qualquer
animal imundo e não homens baptizados como muytos deles erão»81.

80 Alexandre Rodrigues Ferreira, Viagem filosófica ao Rio Negro, pp. 55 e ss.


81 AHU, Pará, caixa 19 (739 H), Ofício de Manuel Bernardo de Melo e Castro a
Tomé Joaquim da Costa Corte Real, de 30 de Julho de 1759.

273
FO RM AS DE R ESISTÊN C IA

Da mesma forma, o que, aparentemente, provocou a deserção


das povoações do rio Branco, em 1780, foi a pressão exercida pelo
pároco de S. Filipe para que o índio Roque, casado com uma ame­
ríndia cristã da povoação do Carvoeiro, se separasse de uma pagã
com a qual era casado pela «lei dos gentios»82. Os rumores de uma
fuga próxima fizeram com que o comandante Pedro Maciel Parente
convocasse o principal para lhe pedir explicações, o que o índio teria
recusado fazer. Aproveitando a ausência do director da povoação,
os ameríndios retiraram-se integralmente para o mato. Algum
tempo mais tarde, o mal-estar surgiu também na povoação de N.a
Sr.a da Conceição: os principais Pavianás foram presos e enviados
para Barcelos. Libertos pelas autoridades da capitania, voltaram de
novo a Conceição, de onde fugiram com um grupo considerável de
gente. Pouco depois, e na mesma povoação, assistiu-se à requisição
de índios para serviços na cidade. A não colaboração dos chefes das
etnias levou a que o director prendesse um tio de Auaraconé, o qual
acabaria por morrer durante a sua libertação. O principal estava des-
gostoso por lhe ter morrido o familiar e, simultaneamente, a língua
da povoação, Joaquina Andrade, fazia «más práticas», dizendo que
todos teriam o mesmo fim, principalmente nas diligências das
demarcações e nas viagens para Mato Grosso8384. No sentido de con­
trolar a população das outras aldeias, Maciel Parente mandou pren­
der os principais e alguns índios e remetê-los a ferros para Barcelos.
Dez dias depois, chegou a notícia que os prisioneiros tinham fugido,
após terem assassinado o cabo de esquadra Domingos Serrão de
Castro, quatro soldados que os acompanhavam e mais dois da
canoa de mantimentos e um escravo de Pedro Maciel Parente.
Todos os aldeamentos foram abandonados, à excepção de N.a Sr.a
do Carmo, e na sua debandada os índios incendiaram Santo Antô­
nio e Almas e N.a Sr.a da Conceição34.
Apesar de João Pereira Caldas se ter pronunciado pelo severo cas­
tigo dos implicados, Martinho de Melo e Castro relembrou ao minis-
tro-plenipotenciário das demarcações que se devia regular pelo
«comportamento humanitário» que viu observar durante muitos

82 AHU, Rio Negro, caixa 4, doe. 3, Ofício de Pedro Maciel Parente a João Pereira
Caldas, de 20 de Agosto de 1781; para uma informação mais detalhada, veja-se Nádia
Farage, As muralhas do sertão. ..,p p . 131 ess.
83 AHU, Rio Negro, caixa 5, doc. 3, Ofício de Pedro Maciel Parente a João Pereira
Caldas, de 21 de Agosto de 1781.
84 AHU, Rio Negro, caixa 4, doc. 3, Ofício de Pedro Maciel Parente a João Pereira
Caldas, de 7 de Novembro de 1781.

274
F O R M A S DE R E S IS T Ê N C IA

anos85. Atribuía as revoltas ao desacerto na escolha da intérprete e às in­


justiças praticadas pelo comandante da fortaleza, Pedro Maciel Parente.
O poder colonial quis apaziguar a revolta com a substituição de
Pedro Maciel Parente e com a aplicação de um perdão geral, conce­
dido pela rainha86. Justificava-se a sua emissão pelo facto de se enten­
der que os ameríndios do rio Branco deviam ser dignos de «huma
benigna distinção entre as circunstâncias e qualidades daquellas Nas-
ções a respeito da fereza, e barbaridade dos Muras; e considerando
também outros motivos que se fizeram°dignos da Real Attenção e
Maternal Piedade, para permittir que se ganhe, e procure reduzir a
sobredita infeliz Gente, digna sempre da maior commizeração por
ser ordinariamente accuzada, sem que da sua parte se alegue Gênero
algum de defença». Para além dos evidentes motivos humanitários,
recorde-se as recentes pretensões espanholas expressas no Proyeto
Parimé, lembre-se que as demarcações decorrentes do Tratado Preli­
minar de Limites de Santo Ildefonso estavam no auge e refira-se que,
no projecto territorial da coroa portuguesa para o Norte do Brasil de
Setecentos, o rio Branco ocupava um lugar de relevância87.
Apesar da situação instável, as autoridades coloniais não aban­
donaram, obviamente, o projecto de colonização do rio Branco, ali­
ciando os ameríndios com o Perdão Real. Desta forma, pouco
tempo após esta revolta, desencadeou-se um novo processo de con­
tacto e aldeamento das etnias fugidas e de outros grupos ainda não
aldeados, como a etnia Macuxis88. O objectivo consistia em formar
um número mais pequeno de aldeias com uma população mais
numerosa, por forma a que a vigilância luso-brasileira se pudesse
processar com maior eficiência89. Paralelamente, criavam-se três

85 AHU, Rio Negro, caixa 3, doc. 10, Ofício de Martinho de Melo e Castro a João
Pereira Caldas, de 7 de Julho de 1783.
36 AHU, Rio Negro, caixa 9, doc. 1, Ofício de João Pereira Caldas ao comandante
da fortaleza de S. Joaquim do rio Branco, de 28 de Fevereiro de 1784; ibidem, doc. 1,
Bando lançado ao som de caixas por João Pereira Caldas em nome de D. Maria I,
estabelecendo o perdão geral aos índios revoltosos do rio Branco, de 28 de Fevereiro
de 1784; também em IHGB, lata 280, pasta 10, doc. 15.
87 Veja-se John Hemming, Roraim a: B razil's northemmost frontier, Londres, Institut
of Latin American Studies, 1990, pp. 2-4; idem, «How Brazil acquired Roraima», in
H ispanic American H istorical Review, vol. 70 (2), 1990, p. 318.
88 AHU, Rio Negro, caixa 9, doc. 6, Ofício de João Bernardes Borralho a João
Pereira Caldas, de 17 de Agosto de 1784; ibidem, caixa 10, doc. 7, Ofício de João Ber­
nardes Borralho a João Pereira Caldas, de 18 de Fevereiro de 1785.
89 AHU, Rio Negro, caixa 9, doc. 1, Ofício de João Pereira Caldas a João Bemar-
des Borralho, de 28 de Fevereiro de 1784.

275
F O R M A S DE R E S IS T Ê N C IA

grandes fazendas de gado, pertencentes à coroa, a Nicolau de Sá


Sarmento e a José Antônio Évora, morador do rio Negro90.
Alguns anos mais tarde, em 1790, as forças colonizadoras do rio
Branco viram-se de novo a braços com um outro levantamento,
desta feita encabeçado pelas povoações de S. Martinho e Macuxis.
Durante a revolta, os índios mataram cinco indivíduos: José Gomes
da Silva, director de S. Martinho, Manuel Vitoriano, director de
Macuxis, Duarte Antônio, Aluísio de Novais e um índio. Cerca de
157 ameríndios procuraram refúgio no sertão amazônico91.
Quanto ao motivo, este parecia não ter origem específica.
Tendo o director da povoação empurrado uma velha, veio o princi­
pal queixar-se do ocorrido a Nicolau de Sá Sarmento. Pouco tempo
depois, seguiu-se a requisição de alguns índios para o Pesqueiro
Real. O soldado José Gomes da Silva apercebeu-se que havia
alguma coisa anômala e voltou à fortaleza de S. Joaquim. No dia
seguinte, embarcou rumo a S. Martinho com o principal dos Ma­
cuxis que o assassinou e que, passando à sua povoação, acabaria por
matar o director e os outros soldados e por instigar a fuga dos índios
sob seu domínio92. As povoações que ficavam acima de Santa Maria
contagiaram-se com este espírito de revolta e houve algumas deser­
ções. Também no Pesqueiro Real não obedeciam às ordens do admi­
nistrador, chegando alguns ameríndios a oporem-se-lhe e a arma-
rem-se com facas e fugirem93.
Desta vez, a repressão colonial foi violenta. Manuel Gama Lobo
de Almada mandou uma tropa chefiada pelo tenente Leonardo José
Ferreira prender os assassinos. Quando o sargento Miguel Arcanjo
de Bettencourt cercou as serras onde os fugitivos se tinham refu­
giado, estes dispararam as suas armas. Foi o fim do principal dos

90 A fazenda pertencente à Coroa é descrita por Francisco José Rodrigues Barata,


«Diário da viagem que fez à colonia hollandeza de Surinam o porta-bandeira da
sétima companhia do Regimento da cidade do Pará, pelos sertões e rios d'este
Estado, em diligenciado Real Serviço», in Revista Trimensal de H istória e G eografia ou
Jo rn a l do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, tomo vni, 1846, p. 19.
91 AHU, Rio N egro, caixa 18, doc. 4, Ofício de Nicolau de Sá Sarmento a Manuel
Gama Lobo de Almada, de 11 de Janeiro de 1790; para uma informação mais deta­
lhada, veja-se Nádia Farage, As m uralhas do se rtã o ..., pp. 164 e ss.
92 AHU, Rio N egro, caixa 18, doc. 4, Ofício de Nicolau de Sá Sarmento a
Manuel Gama Lobo de Almada, de 17 de Fevereiro de 1790; ihidem, doc. 4, Ofício
de Leonardo José Ferreira a Manuel da Gama Lobo de Almada, de 2 de Abril de
1790.
93 AHU, Rio N egro, caixa 18, doc. 4, Ofício de Manuel da Gama Lobo de Almada
a Martinho de Melo e Castro, de 9 de Dezembro de 1790.

276
F O R M A S DE R E S I S T Ê N C I A

Macuxis e de dois dos seus aliados, bem como da segunda rebelião


das etnias do rio Branco94.
A população que, até aí, tinha constituído as povoações luso-
-brasileiras foi separada e fixada em outros locais afastados das regiões
de onde eram oriundas. Lobo de Almada justificava a tomada desta
atitude «não para os conservar em ódio, pois eu só procuro separá los e
espalha los por diversas Povoaçõens de sorte que não fação corpo;
porém com vistas tais de equidade para com elles, que não lhes
desuno, nem separo as Famílias e os mândo estabeleçer a todos em
Povoaçõens, nas quaes a fartura não seja menor do que a que podiam
ter nas suas terras»95. Os 16 principais e suas famílias encontravam-se
sediados em Barcelos; os ameríndios de Santa Maria foram conduzi­
dos para Alvelos, próximo do rio Solimões; os de S. Filipe para Borba,
no rio Madeira; os da Conceição para um novo aldeamento, Vila Nova
da Rainha (Parintins), a meio caminho entre Serpa e Óbidos96.
Para que o fértil vale do rio Branco não ficasse despovoado, o
governador mandou que as povoações fossem ocupadas por gente
recentemente saída do mato por livre vontade, a qual não podia ser
requisitada para serviços públicos ou particulares. Ao mesmo tempo
substituiu os soldados que exerciam a função de directores por indi­
víduos paisanos e casados97.
Não obstante estas precauções, as quase desertas povoações do
rio Branco voltam a revoltar-se em 1798. Os índios Peralvilhana e
Wapixana uniram-se para matar o director de uma povoação, alguns
soldados e colonos. Uma expedição punitiva foi enviada do Pará,
chefiada por Leonardo José Ferreira. O encontro dos contingentes
deu-se nas proximidades do lago Arauari, naquela que, desde então,
viría a ser chamada de Praia do Sangue ou da Desgraça. Os setenta
índios capturados foram reconduzidos para Borba e Parintins98.

94 AHU, Rio Negro, caixa 18, doc. 4, Ofício de Leonardo José Ferreira a Manuel
Gama Lobo de Almada, de 2 de Abril de 1790.
95 AHU, Rio Negro, caixa 18, doc. 4, Ofício de Manuel Gama Lobo de Almada
aos directores das povoações onde foram realojados os índios do rio Branco, de 14 de
Maio de 1794.
96 AHU, Rio Negro, caixa 18, doc. 4, Ofício de Manuel Gama Lobo de Almada a
Martinho de Melo a Castro, de 9 de Dezembro de 1790.
97 AHU, Rio Negro, caixa 18, doc. 4, Ofício de Manuel Gama Lobo de Almada ao
comandante do rio Branco, de 9 de Junho de 1790.
98 John Hemming, «How Brazil acquired Roraima», pp. 321-322; para uma pers­
pectiva da ocupação do vale do rio Branco, veja-se, também, Nádia Farage e Paulo
Santilli, «Estado de sítio: territórios e identidades no vale do rio Branco», in História
dos índios do Brasil, organizada por Manuela Carneiro da Cunha, pp. 267 e ss.

277
F O R M A S DE R E S IS T Ê N C IA

O que caracteriza estas revoltas é a constituição de alianças entre


várias etnias ameríndias contra o poder colonial luso-brasileiro. As ini­
mizades tradicionais, quando existiam (como era o caso dos grupos
Carib e Arawak do rio Branco), eram superadas e as forças das dife­
rentes etnias juntavam-se contra os inimigos comuns: os luso-brasilei-
ros e o projecto de colonização que tentavam implantar no Norte do
Brasil a partir de meados do século xvni, bem como os aliados amerín­
dios ao seu serviço. Era uma situação algo semelhante à que se pas­
sava no vizinho Império Hispanoamericano, tal como é descrita por
Carlos Lazaro Avila: a presença dos conquistadores tomou-se, por um
lado, num catalisador das lutas políticas internas agora canalizadas
para um novo inimigo comum e, por outro, actuou como factor de
coesão entre as sociedades ameríndias que adquiriram, assim, a cons­
ciência da sua autonomia, da sua cultura e da sua identidade".
A resposta encontrada pela coroa portuguesa para o vale do rio
Branco em finais do século xvni definiu-se pela quebra dos vínculos
sociais entre os diferentes grupos étnicos. As populações foram
transferidas das suas terras para áreas geográficas afastadas e os gru­
pos foram fragmentados, havendo unicamente a preocupação de
manter as famílias nucleares indivisíveis.
Estas revoltas não eram particularmente dirigidas contra a pessoa
do soberano e não expressavam a recusa destes grupos em pertencer
a um espaço nacional, como não eram exclusivamente provocadas
pelos motivos factuais que as despoletavam. Dirigiam-se contra alvos
mais abrangentes, que se resumiam ao problema da incorporação de
uma camada populacional maioritária de formação cultural não-
-europeia no sistema político colonial, e propagavam o medo e o ter­
ror por colonos e soldados da capitania do Rio Negro99100. Esta situação
tinha correspondência em território espanhol fronteiro ao rio Branco,
onde o aldeamento do rio Uraricoera e o destacamento do rio Tacutú
sofriam ataques duros por parte das etnias Paraviana e Caripuna101.

99 Carlos Lazaro Avila, «Un freno a la conquista: la resistência de los cacicazgos


indígenas...», p. 594.
100 Este terror e medo eram também uma constante nas áreas mais instáveis do
Império Hispanoamericano, com especial referência para as áreas circundantes do
território luso-brasileiro a Norte (Rabecca Earle Mond, «Indian rebellion and Bourbon
reform in New Granada: riots in Pasto, 1780-1800», in H ispanic American Historical
Review, vol. 73 (1), 1993, pp. 99 e ss.; AAW, Reform an d insurrection in Bourbon N ew
G r a n a d a a n d Peru, editado por John R. Fisher, Allan J. Kuethe e Anthony McFarlane,
Baton Rouge e Londres, Louisiana State University Press, 1990).
101 Nádia Farage, A s m uralhas do se rtão ..., p. 149.

278
F O R M A S DE R E S IS T Ê N C IA

O império colonial português no Norte de Brasil da segunda


metade de Setecentos debatia-se com uma contradição: enquanto
fazia todos os esforços para afirmar, a nível da política e da diplo­
macia internacionais, um determinado território como pertença
nacional, internamente debatia-se com alguns problemas que
punham em causa a soberania portuguesa sobre um espaço que
queria unificado e indivisível. Uma das áreas instáveis era a do vale
do rio Branco, onde habitavam etnias que eram alternadamente
amigas ou inimigas, pacificadas ou agressivas, e que, em determi­
nados momentos, atestavam a colonização luso-brasileira sobre o
território, enquanto em outros contestavam esse domínio e desafia­
vam as instituições que a queriam implantar; a outra era constituída
pelas terras habitadas por Muras e Mundurucús, povos «bárbaros e
nômadas», considerados pelos luso-brasileiros de Setecentos como
estando tanto à margem da civilização europei, como das «civiliza­
ções ameríndias».

« F e r o z e s , in d o m á v e is e fo r m id á v e is » :
M u ra e M u n du ru cú

Mura e Mundurucú constituíam um caso à parte na política


colonial luso-brasileira aplicada aos ameríndios do Norte do Brasil
durante a época em análise. Apesar da instabilidade constantemente
sentida no vale do rio Branco e não obstante se afirmar claramente
que estas duas etnias não eram as únicas que, na bacia hidrográfica
amazônica, se atreviam a atacar os colonos e as tropas, os Mura e os
Mundurucú eram considerados como os adversários mais bárbaros,
mais desumanos, mais temíveis.
Se os Jumá, os Purús e os povos do rio Jutaí e Juruá insultavam a
presença colonizadora ao ferirem, raptarem e matarem ameríndios
das povoações luso-brasileiras e ao assaltarem as roças dos aldea­
dos, os Mura e os Mundurucú constituíam o verdadeiro desafio ao
império colonial que se queria firmar em plena bacia amazônica
nesta altura102. A mera notícia da sua presença levava a que etnias
não-aldeadas procurassem a protecção dos núcleos colonizadores.

102 AHU, Rio Negro, caixa 19, doc. 1, Ofício de Manuel da Gama Lobo de
Almada a D. Francisco Maurício de Sousa Coutinho, de 23 de Novembro de 1793;
ibidem, caixa 15, doc. 8, Ofício de João Henrique Wilkens a João Pereira Caldas, de 7
de Dezembro de 1787.

279
F O R M A S DE R E S IS T Ê N C IA

A iminência dos seus ataques levava a que os aldeãos preferissem


passar fome ao invés de se aventurarem na recolha de alimentos das
suas roças103. A sua proximidade levava a que as autoridades reque­
ressem a mudança das povoações104. Constituíam uma ameaça
tanto para os viajantes em trânsito que se viam atacados pelas chu­
vas de flechas disparadas dos seus arcos, quanto para os negros e os
índios amocambados que voltavam para as povoações de onde
tinham fugido105.
Enquanto os ataques mura se fizeram sentir fundamentalmente
sobre as povoações dos rios Madeira, Negro e Solimões e nas
canoas que se dirigiam para Mato Grosso durante os anos 70 e 80,
os Mundurucú dirigiam a sua actividade contra os habitantes dos
rios Tapajós e Amazonas e contra a etnia Mura em finais de 80 e na
década seguinte.
Os dois grupos étnicos tinham uma origem geográfica comum:
o sistema fluvial composto pelos rios Madeira-Tapajós. Supõe-se
que os Mura provinham dos rios Maici e Manicoré, enquanto os
Mundurucú habitavam o rio Tapajós e a região intermediária106.
Estudos realizados por etno-historiadores, como Miguel Menéndez,
revelam que as primeiras movimentações dos Mura datariam dos
anos de 1723-1725. Partindo do núcleo originário, ter-se-iam di­
rigido para norte e para sul, ao longo do rio Madeira, e para oeste,
em direcção ao rio Purús, provavelmente devido à necessidade de
encontrar novos territórios107. As deslocações dos Mundurucú ini-
ciar-se-iam alguns anos mais tarde, registando-se a sua presença nos
rios Canumá-Mahué em 1768. Dois anos mais tarde encontrar-se-
-iam atacando moradores luso-brasileiros no rio Curuá e cerca de
dezasseis anos após, em 1786, dariam início às hostilidades com os

103AHU, Rio Negro, caixa 1, doc. 44, Ofício de Joaquim Tinoco Valente e Fernando
da Costa de Ataíde Teive, de 24 de Julho de 1764; APEP, códice 104, doc. 35, Ofício de
Belchior Henrique a Fernando da Costa de Ataíde Teive, de 2 de Março de 1770.
104 AHU, Rio N egro, caixa 1, doc. 44, de 24 de Julho de 1764.
105 APEP, códice 113, doc. 44, Ofício de José Henriques da Costa e Almeida a
João Pereira Caldas, de 20 de Abril de 1774; AHU, Rio N egro, caixa 7, doc. 1, Ofício de
Custódio Matos Pimpim, director de Olivença, a Teodósio Constantino de Cher-
mont, de 26 de Fevereiro de 1783.
106 Miguel Menéndez, «Uma contribuição para a etno-história da área Tapajós-

-Madeira», in Revista do M u se u Paulista, vol. 28, nova série, 1981-1982, pp. 322 e 333;
veja-se também «A área Madeira-Tapajós: situação de contato e relações entre coloni­
zador e indígena», in H istória dos índios do Brasil, organizada por Manuela Carneiro da
Cunha, pp. 281 e ss.
107 Ibidem, p. 353.

280

_
F O R M A S DE R E S IS T Ê N C IA

Mura que habitavam o lago Autazes, no rio Madeira, forçando a sua


pacificação108.
Os Mura dificilmente podem ser considerados como um grupo
étnico. Antes, aparecem nas fontes documentais da segunda metade
de Setecentos como «uma nação» que, devido à vasta área geográfica
que habitava, era composta por «muitas repúblicas» que não tinham
contactos directos entre si; e, por isso, enquanto uns grupos se come­
çavam a sedentarizar sob a protecção luso-brasileira, outros ainda
roubavam as povoações e atacavam os toldados e os moradores109.
Falavam línguas diferentes e tinham comportamentos civilizacionais
diversos, pelo que havia Muras que dormiam no chão, junto ao
fogo, «como porcos» e não usavam maquiras, casca de pau ou redes
de estopa, enquanto outros reprovavam esse comportamento110.
Chegava a haver grupos Mura que eram inimigos de outros grupos
com a mesma designação étnica, como acontecia com os da povoa-
ção de Manacapurá e os que habitavam o lago Codajás e se queriam
sediar próximo da fortaleza da Barra em 1786111.
Para além dessa profusão de indígenas nunca sujeitos à coloni­
zação, juntavam-se outros indivíduos levados de povoações luso-
-brasileiras durante os ataques Mura (sobretudo mulheres e crianças)
e índios fugitivos ou ladinos. A facilidade com que estes indivíduos
eram integrados nas comunidades de Mura talvez se explique pelo
que anteriormente foi referido: o facto de um Mura não se identifi­
car com uma etnia ou com um grupo restrito levaria a que houvesse
uma abertura da comunidade face a indivíduos a ela exteriores. Pro­
vavelmente, o Mura era o que adoptava os hábitos e costumes da
comunidade; era o indivíduo que se «murificava» e que tanto podia
ser o prisioneiro de guerra como o indivíduo que, voluntariamente,
procurava junto destas comunidades alternativas à colonização112.

108 Ibidem, pp. 353-354.


109 AHU, Rio Negro, caixa 14, doc. 18, Ofício de Henrique João Wilkens a João
Pereira Caidas, de 22 de Novembro de 1787; ibidem, caixa 15, doc. 7, Ofício de Henri­
que João Wilkens a João Pereira Caldas, de 12 de Novembro de 1787; ibidem, caixa
17, doc. 6, Ofício de Henrique João Wilkens a João Pereira Caldas, de 4 de Março
de 1789.
110 AHU, Rio Negro, caixa 15, doc. 8, Ofício de Henrique João Wilkens a João
Pereira Caldas, de 7 de Dezembro de 1787.
111 AHU, Rio Negro, caixa 12, doc. 15 A, Ofício de João Baptista Mardel a João
Pereira Caldas, de 1 de Julho de 1786.
112 Confronte-se algumas das nossas opiniões com as de Marta Rosa Amoroso,
«Corsários no caminho fluvial: os Mura do rio Madeira», in História dos índios do Bra­
sil, p. 309.

281
F O R M A S DE R E S IS T Ê N C IA

E, por isso, Ambrósio, que era chefe de um grande grupo, casado


com uma índia Mura e guerreiro prestigiado pelo seu grupo e por
outras etnias, era filho da índia Joana, raptado da povoação luso-
-brasileira de Paraguari durante a infância ou adolescência113.
Aos olhos dos luso-brasileiros da segunda metade de Setecentos
era esta multiplicidade de origens étnicas que englobava índios de
diversas proveniências, mamelucos, negros e mulatos, que definia
os Mura: «O Império destes mizeráveis hé grande, composto de
muitos de diferente lingua e muitos refugiados entre elles, e apanha­
dos das Povoações, sendo estes refugiados os mais dificultosos de
sugeitar e os que disuadirão alguns a que não se submetão à paz
como andando à sua vontade entre elles, e livres de remarem canoas
e mais diligências a que são nas Povoaçõens obrigados e em que
morrem em grande quantidade; os quaes não deixarão de fazer bas­
tante obstáculo mas [...] o tempo, o modo, as dádivas e o castigo
tudo sugeita»114. Resta salientar que, ao contrário do que ocorria fre­
quentemente em território hispano-americano, não havia referên­
cias a portugueses (tanto homens como mulheres) integrados nestes
grupos, mas unicamente a vassalos ameríndios das povoações luso-
-brasileiras115.
Os Mura tinham a ideia de que o seu grupo era numeroso e que
os luso-brasileiros se encontravam em número reduzido. Sabiam,
também, que estes estavam mal armados e vulneráveis fora das
povoações, nas roças ou em viagem116. Os ataques, numa primeira

113 Entre esses grupos salientem-se outros Mura do rio Madeira e Juruá e as
etnias Irury, Chumana, Curetú, Cueruna e Taboca. Ambrósio teve, ainda, um papel
fundamental na pacificação dos Mura (AHU, Rio Negro, caixa 15, doc. 8, Ofício de
Henrique João Wilkens a João Pereira Caldas, de 7 de Dezembro de 1787; ibidem,
caixa 17, doc. 6, Ofício de Henrique João Wilkens a João Pereira Caldas, de 4 de
Março de 1789; «Notícias da voluntária reducção de paz e amizade da feroz nação do
gentio Mura nos annos de 1784, 1785 e 1786», in Revista do Instituto Histórico e G eográ­
fico Brasileiro, tomo xxxvi, 1873, pp. 331 e ss.; Marta Rosa Amoroso, «Corsários no
caminho fluvial: os Mura do rio Madeira», in História dos índios do Brasil, pp. 306-307).
1,4 AHU, Rio N egro, caixa 11, doc. 2, Ofício de João Baptista Mardel a João
Pereira Caldas, de 26 de Julho de 1785.
115 Veja-se, por exemplo, o interessante artigo de Susan Migden Socolow, «Spa-
nish captives in Indian societies: cultural contact along the Argentine frontier, 1600-
-1835», in H ispanic American H istorical Review, 72 (1), 1992, pp. 73 e ss., onde a autora
aponta a existência de espanhóis capturados durante as guerras como escravos das
etnias ameríndias vencedoras, bem como de mulheres espanholas com famílias ame­
ríndias que preferiam viver entre os captores do que tornar à «civilização».
116 AHU, Rio N egro, caixa 15, doc. 8, Ofício de Henrique João Wilkens a João
Pereira Caldas, de 26 de Novembro de 1787.

282
F O R M A S DE R E S IS T Ê N C IA

fase circunscritos ao rio Madeira, alastraram-se, em finais da década


de 50, a Carvoeiro, Moura, Airão, Silves, Alvelos, Ega, Pedreira,
Poiares e Nogueira.
As vantagens dos Mura são, a nosso ver, aquelas que, segundo
outros autores como Marta Rosa Amoroso, constituiriam a sua «fra­
gilidade enquanto inimigos militares dos portugueses»117: os saques
feitos às embarcações e às aldeias permitiam aos Mura a obtenção
fácil de alimentos e ferramentas, bem como de mulheres e crianças;
as embarcações feitas de cascas de árvores davam-lhes uma maior
mobilidade do que a permitida pelas pesadas canoas coloniais; os
ataques de flechas, «à traição» (emboscada, diriamos), da copa das
árvores, do alto dos barrancos ou das margens arborizadas dos rios,
para além de permitirem ataques-surpresa e possibilidades de fácil
retirada, causavam a confusão nas povoações, que ficavam com o
seu sistema de comunicação e as suas capacidades de socorro ali­
mentar e militar condicionados pela presença Mura; e a tudo isto
juntamos o facto de os Mura não se intimidarem pelos toques de
caixa de guerra que diariamente se ouviam nas povoações, nem
pelos repetidos tiros das montarias118.
Com os ataques que empreendiam, os Mura faziam, por um
lado, perigar o esquema estratégico concebido para defender as liga­
ções entre o Estado do Pará e a capitania de Mato Grosso, baseado
na livre navegação do eixo-fluvial Madeira-Mamoré-Guaporé e na
fundação de povoados em locais tácticos, como Borba-a-Nova,
Serpa e Santo Antônio de Maripi. De facto, em 1781, um grupo
desta nação tinha cercado Maripi e, instigado por um mulato e um
preto inseridos entre os Mura, intentara incendiar o povoado que
tinha tão grande importância para as demarcações e para outros
interesses que Caldas «bem conhecia»119.
Punham em causa o sistema de abastecimento alimentar dentro
da capitania do Rio Negro porque intimidavam a população que não
ia cultivar as suas roças ou pescar nos rios e lagos com medo de ser
morta e aprisionada pelos Mura; e, depois, porque amedrontavam
os escassos soldados e os índios remeiros das canoas que transpor­
tavam os gêneros alimentares, destinados ao abastecimento das

117 Marta Rosa Amoroso, «Corsários no caminho fluvial: os Mura do rio


Madeira», in História dos índios no Brasil, p. 302.
118 AHU, Rio Negro, caixa 5, doc. 5, Ofício de Henrique João Wilkens a João
Pereira Caldas, de 5 de Julho de 1782.
119 AHU, Rio Negro, caixa 5, doc. 7, Ofício de Teodósio Constantino de Cher-
mont a João Pereira Caldas, de 16 de Agosto de 1782.

283
F O R M A S DE R E S IS T Ê N C IA

demarcações de limites e ao socorro das faltas alimentares de


povoados onde havia necessidade de produtos agrícolas120.
Consequentemente, os Mura surgiam como uma forma de resis­
tência ao poder colonial luso-brasileiro na bacia hidrográfica amazô­
nica da segunda metade de Setecentos e ofereciam aos ameríndios e
aos negros uma alternativa à vida nos aldeamentos coloniais. Cons­
tituíam uma ameaça pesadamente sentida por quem viajava pelos
rios da capitania de São José do Rio Negro e por quem habitava mui­
tas das povoações, tanto luso-brasileiras como ameríndias.
Eram considerados como responsáveis pela instabilidade que se
fazia sentir numa área circunscrita do território colonial brasileiro,
criando na capitania do Rio Negro uma situação semelhante à que
tinha ocorrido com os Timbira e Guegués, no Maranhão e Piauí, e
com os Payaguazes, em Mato Grosso. O facto de serem considera­
dos índios, ou seja, indivíduos civilizacionalmente inferiores, e,
ainda com mais precisão, «índios de corso», isto é, ameríndios
nômadas ou sem morada certa, direccionados para a pilhagem ou
para o saque feito pontualmente e sem carácter sistemático, levava
a que fossem encarados pela coroa como grupos não comparáveis
aos ameríndios do rio Branco e, portanto, mais «bárbaros e ferozes»,
mas incapazes de constituir uma ameaça real ao poder colonial luso-
-brasileiro no Norte do Brasil da segunda metade do século XVIII.
A oportunidade que as autoridades coloniais tiveram para con­
trolar esta instabilidade surgiu quando alguns grupos Mura manifes­
taram o desejo de se aldearem121. O processo iniciou-se em 1784 e
arrastou-se, com alguns incidentes, pelos dois anos seguintes. Foi,
assim, condicionado pela inexistência de um chefe ou um conselho
que coordenasse os diferentes grupos Mura. Foi limitado pelo
nomadismo que se fazia sentir mesmo nos grupos que já se tinham
aldeado. Foi, ainda, restringido pelos ataques dirigidos por etnias
inimigas, como os Mundurucú, e pelos confrontos esporádicos entre
ibero-americanos e indígenas, originados pela «inconstância e fereza»
dos índios ou pela necessidade de afirmação e medo dos europeus.
Os primeiros grupos surgiram, então, em Julho de 1784, manifes­
tando ao vigário de Maripi a sua vontade de estabelecerem paz e de

120 AHU, Rio Negro, caixa 5, doc. 5, de 5 de Julho de 1782.


121 Não é do nosso conhecimento, como também não é apontado por Marta
Amoroso, a existência de «guerras de extermínio» contra os Mura; confronte-se
Miguel Menéndez, «A área Madeira-Tapajós: situações de contato e relações entre
colonizador e indígenas», in História dos índios do Brasil, p. 291).

284
F O R M A S DE R E S IS T Ê N C IA

receberem ferramentas122. Seis meses depois, novo grupo apareceu,


trazendo tartarugas e salsa-parrilha. Receberam do director garganti-
lhas, espelhos e missangas, facas, berimbaus, anzóis, bicos de flechas e
sararacas e o conselho para se dirigirem a João Baptista Mardel, ao
tempo em Ega123. Em período quase simultâneo, surgiram outros gru­
pos que manifestaram, junto de outras autoridades luso-brasileiras, a
mesma intenção de aldeamento. Foi o que aconteceu com um grande
grupo de Muras que, comunicando através do ancião Antônio, contac­
taram o sargento-administrador do Pesqueiro do Caldeirão no sentido
de se fixarem próximo do local124. Também o director de Borba rece­
beu pedidos de principais Mura, Irury e Iarauary para promover o des-
cimento de índios dessas etnias para um local próximo à povoação125.
Assim, índios Mura, Chumana, Iruri, Iarauary e Turá deram iní­
cio a sete povoações mura difundidas pelos rios Solimões, Madeira
e Japurá: Imaripi, no lago Amaná; Manacapuru, próximo do Pes­
queiro Real; uma no lago Piaurini, um dos três lagos paralelos ao rio
Negro (que não se sabe se terá, de facto, existido); Mamiá, perto de
Alvelos, com 250 almas; Guatazes, no rio Madeira; Airão, depois
transferida para S. Sebastião da Pedreira; e Piraquequara, no lago
Japurá, próximo do Pesqueiro126. Ao contrário do que aconteceu
com outros locais e com outros grupos, de que é exemplo o rio
Branco e as suas etnias, os Mura não foram fixados compulsiva-
mente ao território de acordo com os desígnios dos luso-brasileiros,
mas foram consultados sobre os locais para onde queriam descer e
sobre as povoações a que queriam dar origem127.
Na origem da submissão destes tradicionais inimigos dos luso-
-brasileiros podem estar os ataques que Jumá e Mundurucú começa-

122 O processo encontra-se registado em «Notícias da voluntária reducção de paz e


amizade da feroz nação do gentio Mura nos annos de 1784, 1785 e 1786», pp. 323 e ss.
e descrito em Marta Rosa Amoroso, «Corsários no caminho fluvial...», pp. 306 e ss.
123 AHU, Rio Negro, caixa 10, doc. 1-B, Ofício de Manuel José Valadão a João
Baptista Mardel, de 14 de Janeiro de 1785; ibidetn, Ofício de João Baptista Mardel a
João Pereira Caldas, de 22 de Janeiro de 1785.
124 AHU, Rio Negro, caixa 11, doc. 5, Ofício de Sebastião Pereira de Castro a João
Pereira Caldas, de 28 de Setembro de 1785.
125 AHU, Rio Negro, caixa 12, doc. 15 A, Ofício de Antônio Carlos da Fonseca a
João Pereira Caldas, de 13 de Junho de 1786.
126 AHU, Rio Negro, caixa 12, doc. 15 A, Exame dos novos estabelecimentos
Mura que, por ordem de João Pereira Caldas datada de 25 de Abril, fez João Baptista
Mardel, s/d [cerca 1786]; Marta Rosa Amoroso, «Corsários no caminho fluvial...»,
p. 307; confronte-se AHU, Rio Negro, caixa 12, doc. 15 A, Ofício de João Baptista
Mardel a João Pereira Caldas, de 1 de Julho de 1786.
127 «Notícias da voluntária reducção...», pp. 330 e 365.

285
r
FO RM AS DE R ESISTÊN C IA

ram a fazer, na década de 80, aos grupos Mura. Este era um motivo
frequentemente invocado pelos principais que se pretendiam seden-
tarizar e, por vezes, relatado pelos contingentes Mura já aldeados128.
De facto, nas povoações recém-fundadas encontravam-se vestígios
da presença de Mundurucú e Jumá, «estes comendo e aquelles dego­
lando»129. Em 1786 noticiou-se o cerco de Borba pelos Mundurucú e,
no ano seguinte, Jumás atacaram os Mura de Airão130. Em 1789
dava-se conta de novos ataques mundurucú a Piraquequara, à aldeia
do rio Guatazes e a morte de algumas mulheres em ambas as po­
voações. Esta actividade mundurucú explicava-se como sendo de
retaliação a uma emboscada mura131. Autores contemporâneos,
como Adélia Engrácia de Oliveira e Ivelise Rodrigues, afirmam que
outras causas para a pacificação Mura consistiriam no facto de se
sentirem afectados por «expedições punitivas, adopção de traços
alienígenas e epidemias como sarampo e bexiga»132.
Aos Mura pacificados substituíram-se, nos anos 80 e 90 de Sete­
centos, os Mundurucú. As informações que dispomos sobre esta
etnia são escassas por comparação com a que temos para os Mura.
Surgem como um grupo numeroso, composto por alguns milhares
de indígenas, vocacionado para o ataque de outros grupos étnicos e
com capacidade para exercerem esta actividade por quase toda a
margem direita do rio Amazonas.
Assim, em 1786, deram início às investidas contra povoados
mura no rio Madeira e cercaram Borba; dois anos mais tarde, ti­
nham causado grandes estragos na povoação de Alter-do-Chão e
nas roças circundantes e atacaram Alvelos133. Nos anos seguintes

128 AHU, Rio N egro, caixa 12, doc. 15 A, s/d [cerca 1786],
129 Ibidem.
130 AHU, Rio N egro, caixa 12, doc. 20, Ofício do comandante de Borba a João
Pereira Caldas, de 26 de Novembro de 1786; ibidem, caixa 14, doc. 19, Carta de frei
José da Conceição a João Pereira Caldas, de 7 de Agosto de 1787.
131 AHU, Rio N egro, caixa 17, doc. 6, Ofício de João Pedro da Costa a João Pereira
Caldas, de 26 de Fevereiro de 1789; ibidem, doc. 6, Ofício de Antônio Vieira Correia da
Maia a João Pereira Caldas, de 1 de Abril de 1789; ibidem, Ofício de Antônio Carlos
da Fonseca Coutinho a João Pereira Caldas, de 27 de Maio de 1789.
132 Adélia Engrácia de Oliveira e Ivelise Rodrigues, «Alguns aspectos da ergolo-
gia Mura-Pirahã», p. 7; também em Adélia Engrácia de Oliveira, «A terminologia de
parentesco Mura-Pirahã», in Boletim do M u se u P araen se Emílio Goeldi, Antropologia,
Nova Série, 66, Fevereiro de 1978, p. 4.
133 AHU, Rio N egro, caixa 17, doc. 6, Ofício de Henrique João Wilkens a João
Pereira Caldas, de 20 de Janeiro de 1789; BNRJ, 7-3-30, Ofício de Martinho de Sousa
e Albuquerque a Martinho de Melo e Castro, de 17 de Agosto de 1788.

286
F O R M A S DE R E S IS T Ê N C IA

sucederam-se as emboscadas aos habitantes do lago Guatazes134; ao


Pesqueiro Real135; às povoações luso-brasileiras dos rios Tocantins e
Amazonas136; de novo a Borba e às povoações dos rios Tapajós,
Xingu, Pacajás, Jacundá e Mojú, chegando os habitantes da cidade
de Santa Maria de Belém a temer pela sua segurança137.
Face à amplitude dos ataques é compreensível que as retaliações
tivessem partido tanto da capitania do Rio Negro, como da do Pará.
Assim, para além da resistência que os directores das povoações
tinham capacidade de organizar em defesa das suas povoações ou
em socorro das que lhe eram vizinhas, no ano de 1794 foram envia­
das, por Manuel da Gama Lobo de Almada, uma expedição ao rio
Madeira sob a chefia do tenente Leonardo José Ferreira, e por
D. Francisco de Sousa Coutinho uma outra, comandada pelo
tenente-coronel José Antônio Salgado, ao rio Tocantins138.
Quer um quer o outro governador insistiam em declarar que o
objectivo último destas missões consistia na pacificação dos Mun­
durucú. O governador e capitão-general do Rio Negro, Manuel da
Gama Lobo de Almada, que devia ainda lembrar-se da recente paci­
ficação dos Mura, enviou um indivíduo com experiência em projec­
tos semelhantes: Leonardo José Ferreira.
Quanto a D. Francisco de Sousa Coutinho considerava que a
verdadeira culpa pelos ataques dos Mundurucú devia ser atribuída
aos moradores «pello estranho modo com que querem tratar aquel-
les Bárbaros [que] fez com que me não prestasse de forma alguma
às requiziçõens que se faziam de Escoltas para os castigar e unica­
mente mandei para onde aparecessem se afugentassem como de
principio se conseguiu facilmente com o simples estrondo das armas
de fogo pello muito medo que tinhão dellas. Elles porém que tinhão
começado por se fazerem temíveis a todas as outras naçõens de
índios Silvestres [...] passarão a ser de dia em dia mais atrevidos,
tomando por medo delles talvez o que era mero effeito de compai-

134 Ibidem, Ofício de Antônio Vieira Correia da Maia a João Pereira Caldas, de 21
de Fevereiro de 1789.
135 Ibidem, caixa 19, doc. 1, Ofício de Manuel da Gama Lobo de Almada a
D. Francisco de Sousa Coutinho, de 18 de Fevereiro de 1794.
136 Ibidem, Ofício de D. Francisco de Sousa Coutinho a Manuel da Gama Lobo
de Almada, de 31 de Julho de 1794.
137 BNRJ, 7-3-30, Ofício de D. Francisco de Sousa Coutinho a Martinho de Melo
e Castro, de 15 de Agosto de 1794.
138 AHU, Rio Negro, caixa 19, doc. 1, Ofício de Manuel da Gama Lobo de
Almada a D. Francisco de Sousa Coutinho, de 18 de Fevereiro de 1784; BNRJ, 7-3-30,
de 15 de Agosto de 1794.

287
F O R M A S DE R E S IS T Ê N C IA

xão e de dezejo de os reduzir por meios de brandura e de agazalho à


paz e ao dominio de Sua Magestade»139. Para o governador impor­
tava, fundamentalmente, que os Mundurucú optassem ou por se
colocarem sob a protecção da soberana ou, então, por regressarem à
floresta sem incomodarem os moradores nas roças e sítios.
A estratégia preconizada por Lobo de Almada teve os seus fru­
tos quando dois índios trazidos por Leonardo José Ferreira se retira­
ram para suas terras enviando, quatro meses depois, alguns paren­
tes seus. As «práticas com dádivas e bom tratamento para que
viessem comnosco em paz» começavam a dar os seus resultados e
os Mundurucú «Dizem abertamente que se conservarão pacificos
comigo e promettem restituir me algumas pessoas nossas que nos
tem apanhado, chegando ja athe a dizerem que não terão dúvida
em virem fazer povoaçõens aonde eu lhes destinar, mas sobre esta
última promessa não faço ainda muita firmeza», escrevia Lobo de
Almada140.
O processo de pacificação da temível etnia Mundurucú estava
iniciado e confirmava-se com a chegada constante de indivíduos à
fortaleza da Barra. Com a morte de Manuel da Gama Lobo de
Almada pareceu, no entanto, ser posto em risco.
De facto, em Dezembro de 1794, o novo governador e capitão-
-general do Rio Negro, José Antônio Salgado, informava Sousa Cou-
tinho que se aprontava para expedir uma tropa de ataque ao gentio
Mundurucú. O curso da tropa veio a ser alterado tanto por razões
de política externa como devido a movimentações indígenas. Se,
por um lado, se temia que, a qualquer momento, fosse despoletado
um incidente com os franceses de Caiena, por outro, os Mundurucú
tinham deixado de atacar as povoações luso-brasileiras e prepara­
vam-se para descer para Santarém e Pinhel141.
A paz com os luso-brasileiros celebrava-se no ano de 1795 mas
não limitou a expansão da etnia, que continuou a fazer-se até mea­
dos do século seguinte142. A integração de Mundurucú em povoa­
ções luso-brasileiras continuou a efectuar-se durante a administra-

139 BNRJ, 7-3-30, doc. de 15 de Agosto de 1794.


140 AHU, Rio Negro, caixa 19, doc. 1, Ofício de Manuel da Gama Lobo de
Almada a Martinho de Melo e Castro, de 21 de Novembro de 1794.
141 BNRJ, 7-3-30, Ofício de José Antônio Salgado a D. Francisco de Sousa Couti-
nho, de 29 de Dezembro de 1794; ibidem, Ofício de José Antônio Salgado a D. Fran­
cisco de Sousa Coutinho, de 1 de Abril de 1795.
142 Miguel Menéndez, «Uma contribuição para a etno-história da área Madeira-
-Tapajós», p. 358.

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ção do conde de Arcos143. Paralelamente exerciam a sua actividade


guerreira, desta vez ao serviço das tropas coloniais, utilizando-se os
luso-brasileiros de rivalidades interétnicas antigas144.

A lia n ç a s e m te m p o de g u e rra e de p a z

As lutas interétnicas entre Muras e Mundurucú são unicamente


um exemplo de que as guerras que ocorreram no Norte do Brasil da
segunda metade do século xvm não tinham todas como objecto único
os luso-brasileiros, nem que todas elas eram instigadas por interesses
colonizadores. As guerras entre as sociedades ameríndias da bacia
hidrográfica amazônica existiam antes da colonização luso-brasileira e
eram resultantes da dinânima dos diferentes grupos que tinham neces­
sidade de se expandir devido a pressões demográficas, à exigência de
novas terras de cultivo e de caça, ou por qualquer tipo de dissensões.
A presença dos luso-brasileiros teve, no entanto, consequências
no panorama dos conflitos interétnicos, na medida em que suscitou
o estabelecimento de novas alianças: de índios contra luso-brasilei­
ros e de índios e luso-brasileiros contra outros índios. Se, até aqui,
procurámos clarificar os meios utilizados pelos indígenas para resis­
tir à presença colonizadora, pensamos que é também importante
apontar que, por vezes, os luso-brasileiros foram avaliados como
aliados vantajosos pelas etnias ameríndias.
No cenário constituído pela bacia hidrográfica amazônica da
segunda metade do século xvill, os luso-brasileiros não surgiram
como uma alternativa a um grande poder indígena centralizado.
Enquanto para as sociedades andinas de Huamanga do século xvi
a celebração de alianças com os hispano-americanos significava a
obtenção de um aliado poderoso contra outra força igualmente
poderosa e relativamente à qual nunca teria tido capacidade de
rebelar-se (o Império Inca), para os grupos ameríndios da Amazônia
a amizade com os luso-brasileiros significava a captação de um par­
ceiro que os tomaria mais fortes nas suas rivalidades nativas145.

143 AUC, Colecção Conde de Arcos, VI-3.° 1-1-28, fls. 11 a 15, Ofício do conde de
Arcos a João Bemardes Borralho, de 25 de Outubro de 1803; AHU, P a rá , caixa 54
(766), Ofício do conde de Arcos ao visconde de Anadia, de 27 de Outubro de 1803.
144 Miguel Menéndez, «Uma contribuição para a etno-história...», pp. 358 e 361.
145Para uma comparação com as alianças hispano-americanas e as sociedades amerín­
dias dos Andes, veja-se Steve J. Stem, «The rise and fali of Indian-White alliances: a regional
view of “Conquest” History», in Hispanic American Histórica!Review, 61 (3), 1981, pp. 461 e ss.

289
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Assim, aos olhos dos Gamela do Maranhão, a amizade com os


luso-brasileiros era vantajosa «pois já tinham com quem matar e
comer ao seu inimigo Acroá que é todo o seu ponto e com que me
quebram continuadamente a cabeça»146.
Se para a capitania do Rio Negro a notícia de alianças deste tipo
não é tão clara, é óbvio que a pacificação dos Mura subentendia,
acima de tudo, a protecção dos luso-brasileiros contra os inimigos
Mundurucú. Deparamo-nos com uma «aliança» (tácita ou implícita
por parte dos Mura?) em que, a troco da paz nas vias de comunicação
e da fixação de um contigente considerável em aldeias sob tutela luso-
-brasileira, os Mura pediam a protecção militar dos luso-brasileiros.
Ambrósio empreendeu com o director de Maripi e com João
Baptista Mardel, «murixaba dos brancos», um «processo de negocia­
ção» no qual o chefe Mura tentava valorizar aos olhos dos luso-bra­
sileiros a importância desta «aliança»: prometeu-lhes a pacificação
de outros grupos da sua etnia, comprometeu-se a assegurar uma
navegação segura no rio Madeira, promoveu o aldeamento de Chu-
manas e de outros Mura e empreendeu incursões guerreiras ao rio
Puréus. Queria, consequentemente, aparecer como o aliado que tra­
zia consigo amigos índios e como o guerreiro valoroso capaz de
destruir os inimigos.
Tal como se pode deduzir da descrição que fazia João Baptista
Mardel, a sua figura contribuía para esta imagem: «Este indio Ambro-
zio que he de corpolenta e quazi gigantesca figura por ser mais alto,
mais fomido e musculozo do que eu, veyo enfim falar me trazendo
em sua companhia a Mulher, que hé Mura, com quem se cazou por
seu modo no Rio Madeira, segundo me explicou, no Lago Gautazes,
aonde em dilatadas campinas tem o Mura grande poder e por conse­
quência muitas roças de Mandioca, Milho e outras frutas de que
vivem com fartura, aliem da pesca de que os fornece o mesmo lago
de peixe boy e tartarugas com outros innumeráveis peixes»147.
Através desta descrição feita a Mardel, o chefe Mura parecia não
se querer colocar numa posição de subjugação, mas de dependência a
troco de uma protecção militar contra um inimigo que era mais nume­
roso, igualmente temível e que queria conquistar novos territórios.
Possivelmente, Ambrósio avaliava que a guerra contra os Mundurucú

146 BNRJ, 11-2*11, Breve narração do que tem sucedido na missão dos Gamelas
desde o anno de 1751 a 1753 pelo padre Antônio Machado.
147 AHU, Rio Negro, caixa 10, doc. 7, Ofício de João Baptista Mardel a João
Pereira Caldas, de 15 de Março de 1785.

290
F O R M A S DE R E S IS T Ê N C IA

não podería ser bem-sucedida porque os Mura, apesar de serem «fero­


zes, indomáveis e formidáveis», estavam intemamente fragmentados.
Tal como já afirmámos, o grupo de Ambrósio foi seguido por
outros grupos de Muras que pediam a protecção do poder militar do
«murixaba dos brancos» e de João Pereira Caldas contra os Mundu­
rucú. A entrega de rapazes Mura aos funcionários luso-brasileiros e a
restituição periódica de índios capturados nos aldeamentos em
tempo de guerra podiam ser considerados como rituais mura signifi­
cativos de que queriam entrar em negociações de paz. Podiam, tam­
bém, significar a firmação dessa paz. É Henrique João Wilkens quem
afirma claramente que os principais Mura deram, em 1785, «por sua
livre, spontanea Vontade, e moto proprio, sem preceder presuasão
alguma, nem sem hum particular toque da Mão do Omnipotente
Arbitro dos Coraçoens Humános, offerecerão Vinte innocentes
Muhuras, filhos dos dittos, pedindo o Santo Baptismo»148. O mesmo
facto é corroborado pelo comandante de Borba quando afirmava que
tinha mandado baptizar 163 crianças, todos com idades compreendi­
das até aos sete anos, «com muito gosto dos seus Pays»149.
Tal como os Mura, também os principais das nações Iruri e
Jarauary entregaram durante o mesmo processo de pacificação ao
comandante de Borba um índio capturado no tempo do comandante
Francisco de Borja e uma índia que tinham apanhado há 30 anos. Pos­
teriormente, o principal Iruri deu a Fonseca Coutinho um rapaz de
14-15 anos que permaneceu na vila com ele150. Resta afirmar que a
prática de entregar índios, sobretudo crianças, como «reféns» ou
penhores de uma aliança era uma prática corrente entre muitas das
etnias que queriam estabelecer ligações pacíficas com o poder colo­
nial; paralelamente, do lado luso-brasileiro, a aceitação ou o pedido
de «reféns» surgia como penhor de uma promessa de descimento e
como forma de precaução contra eventuais ataques ameríndios151.

148 Henrique João Wilkens, «Muhuraida ou o triumfo da fé na bem fecundada


esperança da enteira conversão, e reconciliação da grande, e feróz nação do gentio
Muhúra...», in Anais da Biblioteca Nacional, vol. 109, 1989, p. 91.
149 AHU, Rio Negro, caixa 15, doc. 8, Ofício do comandante de Borba a João
Pereira Caldas, de 17 de Agosto de 1787.
150 AHU, Rio Negro, caixa 12, doc. 15 A, Ofício de Antônio Carlos da Fonseca
Coutinho a João Pereira Caldas, de 13 de Junho de 1786.
151 AHU, Pará, caixa 41, Ofício de Manuel da Gama Lobo de Almada ao porta-
-bandeira Leonardo José Ferreira, de 23 de Julho de 1781; resta afirmar que a entrega
de reféns era uma prática seguida pelos índios da fronteira argentina como uma
forma de expressar a sua vontade de serem integrados em missões (Susan Migden
Socolow, «Spanish captives in Indian societies...», p. 82).

291
F O R M A S DE R E S I S T Ê N C I A

A celebração de uma aliança com os Mura apresentava-se van­


tajosa também para os luso-brasileiros. Para além das razões já
enunciadas, os Mura surgiam aos chefes das tropas portuguesas
como guerreiros valorosos e poderosos aliados em futuras ambições
e planos, tal como na guerra contra os Mundurucú ou outras etnias
não pacificadas152. A constituição de uma força armada composta
por Mura e por as outras etnias descidas por idênticas razões era
considerada pela administração colonial como a forma mais eficaz
de manter os Mundurucú nos matos sem que as tropas regulares
corressem o risco de ser sacrificadas153.
Paralelamente, também os Mundurucú, após a sua pacificação
em 1795, foram incorporados às forças luso-brasileiras, que soube­
ram aproveitar a vocação guerreira da etnia e a sua inimizade tradi­
cional com outras etnias para «“desinfestar” o Madeira de grupos
hostis» à presença colonial154.
A obtenção da protecção militar luso-brasileira voltou a ser pre­
tendida por outra etnia, os Apinagé, em 1803. No início do ano che­
gou um grupo pedindo o socorro do chefe do destacamento da foz do
rio Araguaia contra os Canoeiro e os Temembós. Estes tinham, havia
dois dias, morto quase cem índios e ferido ou aprisionado cerca de
dezoito ou vinte meninas com idade até sete anos155. A troco da con­
versão à religião cristã, os Apinagé pediam aos chefes das tropas por­
tuguesas que «lhe valeçemos pois nos reputavão de seos verdadeiros
amigos e como eu nas differentes práticas que lhe tinha feito sempre
lhe tenho prometido os socorreriamos em todas as suas neçessidades
chegando se elles para nós e abraçando a Religião Catholica por meio
do Baptismo me pareçeo ser açertado acudir-lhe nesta occazião»156.
Através do estabelecimento de uma aliança com os luso-brasi­
leiros, os Apinagé procuravam, para além de protecção, vingança
contra os seus inimigos. Desta vez, o processo não foi orientado por
um indivíduo em particular, mas pareceu exprimir o desejo da
comunidade. É o que se pode deduzir da afirmação de Joaquim José

152 AHU, Rio Negro, caixa 15, doc. 8, Ofício de João Henrique Wilkens a João
Pereira Caldas, de 26 de Novembro de 1787.
153 AHU, Rio Negro, caixa 19, doc. 1, Ofício de D. Francisco de Sousa Coutinho a
Manuel da Gama Lobo de Almada, de 29 de Agosto de 1793.
154 Manuela Carneiro da Cunha, «Introdução a uma história indígena», in Histó­
ria dos índios do Brasil, p. 18.
155 AHU, Pará, caixa 52 (766), Ofício de Joaquim José Máximo a D. Francisco de
Sousa Coutinho, de 11 de Março de 1803.
156 AHU, Pará, caixa 52 (766), Ofício de Joaquim José Máximo a D. Francisco de
Sousa Coutinho, de 7 de Janeiro de 1803.

292
F O R M A S DE R E S I S T Ê N C I A

Máximo quando reparava que, não tendo estes índios um com


mando superior, designou aquele que tomou o nome de Jacinto para
representar a etnia junto do governador157.
Os termos da «aliança» estabelecida com os Apinagé definiam
que estes se deviam aldear em povoações luso-brasileiras ou em
locais que estivessem próximo dos núcleos de colonização. A Fa­
zenda Real, à semelhança do que tinha acontecido com os desci-
mentos de Mura e Mundurucú, disponibilizava os seus limitados
recursos para providenciar o sustento dos recém-aldeados por tempo
indeterminado158. Por seu turno, o governador estipulava que os con­
tingentes Apinagé fossem organizados numa companhia índia desti­
nada a ser a principal força de combate contra os gentios Temembós
e intimava que também estes «se ponhão de paz, cessem todas estas
e outras barbaridades, entreguem toda a gente nossa que tiverem em
seu poder, seos Descendentes e aquelles prizioneiros Apinagés que
levarão e venhão formar Estabellecimento nas Situaçõens que Va.
Mcê. lhes indicar para receberem a Luz do Evangello e tomarem
vida christã e regular conforme as nossas Leys»159. Deixava-se claro
que, apesar dos Temembós serem culpados por atacar os Apinagés,
vassalos de Sua Majestade Fidelíssima, não eram responsáveis por
esta acção, uma vez que tinham sido instigados por gente portu­
guesa criminosa refugiada que os tinha enganado.
A atitude condescendente, protectora e tutelar das autoridades
coloniais do Pará em relação aos Apinagé e aos Temembó não era
isenta de interesse. No âmbito da política colonial luso-brasileira
para o Norte do Brasil de finais de Setecentos e princípios do centé-
nio seguinte pretendia-se a pacificação das «nações bárbaras» dos
rios Tocantins e Araguaia por forma a dar estabilidade à presença
portuguesa naquela área e, de igual modo, para assegurar as comu­
nicações da capitania com Goiás e Cuiabá160.

157 AHU, Pará, caixa 52 (766), de 11 de Março de 1803.


158 Para eludir a fome, Máximo ocupava os Apinagé na recolha de castanhas do
Pará e incentivava-os a comer palmitos porque a farinha fornecida pela Fazenda Real
não era suficiente (AHU, Pará, caixa 52 (766), Ofício de Joaquim José Máximo a
D. Francisco de Sousa Coutinho, de 11 de Março de 1803).
159 Ibidem, Ofício de D. Francisco de Sousa Coutinho a Joaquim José Máximo, de
13 de Abril de 1803.
160 IHGB, lata 281, pasta 4, doc. 2, Ofício de Feliciano José Gonçalves, Manuel
José da Cunha e Ambrósio Henriques comunicando ao governador do Pará o resul­
tado da viagem de Tomás de Sousa Vila Real, de 1 de Março de 1793; ibidem, doc. 4,
Ofício de D. Francisco de Sousa Coutinho a Joaquim José Máximo ordenando o esta­
belecimento de um registo no rio Tocantins, de 12 de Junho de 1797.

293
F O R M A S DE R E S I S T Ê N C I A

A pacificação das nações indígenas nessa área geográfica foi, de


novo, recomendada em 1811, quando D. Maria I aprovou um plano
destinado à regulamentação de uma sociedade comercial que visava
incentivar o comércio entre Pará e Goiás pelos rios Tocantins e Ara­
guaia. A soberana recomendava que as etnias habitantes da área fos­
sem tratadas com humanidade e moderação mas que, caso Canajás,
Apinagés, Chavante, Cherente e Canoeiros insistissem em correrías
e ataques, se mandasse uma força armada161.
As alianças não eram, apenas, uma consequência dos tempos de
guerra. Em tempos de paz e por motivos que podiam estar relaciona­
dos com doenças, fomes, apetência por manufacturas luso-brasileiras
ou com quaisquer outras razões, algumas etnias procuravam o apoio
e a protecção dos luso-brasileiros. Este foi o caso da etnia Jacundá,
habitante dos sertões em redor da cidade de Belém. No dia da
tomada de posse do conde de Arcos, o principal do grupo dirigiu-se
ao governador e capitão-general: «Este homem parece me sincero e
sincera a sua pertenção athe porque principiou offerecendo huma
índia de quatro annos, que foi logo baptizada ao official a quem pri­
meiro se aprezentou e que nos seus costumes he signal de lealdade,
virtude completamente desconhecida e nunca praticada por esta
gente.»162 O principal teria recebido, juntamente com as ferramentas
cedidas pela Fazenda Real, alguns presentes dados pelo governador.
Por seu turno, os luso-brasileiros viam nos pactos celebrados
com os indígenas uma forma de incentivar os descimentos, um
meio de acelerar o processo de aculturação e um processo para cap­
tar aliados e amigos. Apesar de serem sempre importantes, estas
alianças tinham um duplo valor se fossem efectuadas com etnias
residentes em áreas fronteiriças ou em zonas tornadas instáveis
devido à resistência movida pelos indígenas da região163.
Pretendemos neste capítulo apenas ilustrar algumas das formas
de resistência utilizadas pelas etnias ameríndias do Norte do Brasil à
presença colonizadora luso-brasileira ao longo do período estudado.
Poderá apontar-se que a permanência de costumes e ritos ancestrais

161 «Carta régia a Fernando Delgado Freire de Castilho, governador de Goiás, de


5 de Setembro de 1811», in Collecção d a s leis, alvarás, decretos, ca n a s régias tfíc. promul­
g a d a s no B rasil desde a feliz chegada de E l Rey N osso Senhor com hum Índice chronologico,
tomo II, annos 1811 a 1816, Rio de Janeiro, Impressão Régia, 1817.
162 AHU, P a rá , caixa 52 (766), Ofício do conde de Arcos ao visconde de Anadia,
de 28 de Setembro de 1803.
163 AHU, Rio N egro, caixa 8, doc. 1, Ofício de Teodósio Constantino de Cher-
mont a D. Francisco de Requena, de 2 de Novembro de 1783.

294
F O R M A S DE R E S I S T Ê N C I A

ameríndios em povoações luso-brasileiras é também uma forma de


resistência. Em nosso entender, e para além de também assim o con­
siderarmos, achamos que tal é, antes de mais, uma «forma de per­
manência» que revela a inabilidade das autoridades administrativas
e religiosas para lidar com os problemas criados pela aculturação das
etnias ameríndias na bacia hidrográfica amazônica de meados do
século xvni. Estas permanências revelam, primeiro que tudo, o desa-
justamento do programa civilizacional «ilustrado» que se pretendeu
implantar na Amazônia ao longo de toda a segunda metade do
século xviii, o qual resultou em rotundo fracasso em relação aos
objectivos que propunha164.
A grande distinção que fazemos em relação a «formas de resis­
tência» e «formas de permanência» reside no facto de, enquanto as
primeiras se expressaram como uma acção ou protesto contra o
poder colonial (requerimento, luta armada) e suscitaram da parte
deste uma reacção (retaliadora ou não), as segundas manifestaram-
-se de forma mais profunda, relacionada com ritmos quotidianos, e
podem ser desconhecidas, assentidas ou toleradas pelas autoridades.

164 Esta questão foi já abordada em devida altura, no capítulo iii «Em cumpri­
mento do real serviço: o reordenamento do território e a integração dos índios».

295
C A P Í T U L O VI

A C O N S T R U Ç Ã O DE IMAGENS
DEFINIÇÕES DE AMERÍNDIOS
NOS D IS C U R S O S COLONIAIS
Todas as monarquias europeias com domínios coloniais em
continente americano estabeleceram uríía correspondência entre a
visão que tinham dos índios e o discurso que sobre eles construí­
ram, tomasse este discurso a forma de diploma jurídico, de determi­
nação régia, de atitude política local ou, simplesmente, de contacto
directo entre colonos e indígenas. Esta afirmação é, consequente­
mente, válida para o caso português e, de forma mais específica,
para o discurso colonial que foi construído para a Amazônia da
segunda metade de Setecentos. As atitudes dos luso-brasileiros em
relação aos índios foram, portanto, determinadas pela concepção
que deles tinham.
Mas estes procedimentos foram também definidos pelo que as
sociedades europeias, reinóis e coloniais pensavam de si próprias.
Em pleno século xvm, Portugal, tal como qualquer país europeu, par­
tia do pressuposto da superioridade da sua civilização sobre todas
as outras e acreditava que a sua finalidade última consistia em
difundir junto de ameríndios, africanos, asiáticos as «luzes da ra­
zão». E, por isso, a intervenção do Estado Português junto das socie­
dades ameríndias era legítima porque pretendia transformar povos
bárbaros em civilizados, porque aspirava a implantar nas colônias,
através da instauração de um sistema governativo esclarecido e da
religião católica, a felicidade dos súbditos, o bem-estar dos vassalos
e a salvação dos povos1.
Estes são alguns dos conceitos fundamentais, junto com os de
«humanidade», progresso, prosperidade e bem comum, para se
compreenderem muitas das medidas políticas, econômicas, sociais e
«filantrópicas» tomadas pelo Estado Português já consideradas neste
estudo.
A questão que se coloca é a de que a imagem que o discurso
colonial construiu acerca dos ameríndios da bacia hidrográfica ama-

1 Veja-se, por exemplo, Eugênio dos Santos, «A civilização dos índios do Brasil
na transição das Luzes para o Liberalismo: uma proposta concreta», in Mare Liberum,
n.° 10, 1995, pp. 205 e ss.

299
A C O N S T R U Ç Ã O DE IM A G E N S

zónica na segunda metade do século xvni era influenciada por dois


tipos de pressupostos: os que lhe advinham dos contactos directos
estabelecidos entre colonos e índios no Norte do Brasil, de um lado,
e, do outro, os que derivavam das correntes intelectuais e políticas
pelas quais os Estados Iluminados da Europa setecentista definiam a
sua política colonial.
É pela relação dicotômica de referências culturais e ideológicas
tão díspares como estas que talvez seja possível vislumbrar um
aspecto tão importante como é o da evolução da política colonial no
Norte do Brasil durante a segunda metade do século xvill.

O E sta d o a b s o lu tis ta e o s p r in c íp io s
e s s e n c ia is à g o v e r n a ç ã o d o s s ú b d ito s :
u m a n o v a v is ã o d o s a m e r ín d io s

Apontámos já, ao longo deste estudo, as inúmeras reformas que


a coroa portuguesa implantou nos seus domínios coloniais durante a
SR D / FFLCH / USP]

segunda metade do século xvni, concedendo particular relevância ao


Norte do Brasil. Relacionámos estas mudanças com interesses de
ordem política, estratégica, econômica ou social, tais como a reafir­
mação do espaço colonial como reacção à partilha de poderes entre
potências ou a redefinição da autoridade da coroa nos domínios colo­
niais. Não obstante, pensamos que é ainda importante confrontar as
reformas ocorridas no Estado do Grão-Pará com as obrigações éticas
consideradas imperativas pelos Estados absolutistas de D. José I e
D. Maria I.
Na ideologia política imperante na época, o Estado surgia como
responsável pela prosperidade e pelo bem comum dos súbditos, por
um situação de abundância e prosperidade que devia beneficiar a
todos e a cada um dos súbditos do monarca2. Noções como as de
progresso, felicidade, bem comum e liberdade são evocadas cons­
tantemente na legislação emanada pelos governos josefino e
mariano e são apontadas como as razões legitimadoras das modifi­
cações que despoletariam, no Estado do Grão-Pará, a riqueza econô­
mica, o desenvolvimento artesanal e agrícola, a unidade política e a

2 Sobre o bem-estar e a felicidade dos povos como uma responsabilidade do


Estado, veja-se Guido Astuti, «O absolutismo esclarecido em Itália e o Estado de polí­
cia», in Antônio Manuel Hespanha, Poder e instituições na E uropa do Antigo Regime.
Colectânea de textos, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, pp. 264 e 266 -2 6 7 .

ann
A C O N S T R U Ç Ã O DE I M A G E N S

justiça administrativa. Assim, aos olhos dos estadistas e dos ideólo­


gos de Setecentos, se validavam as alterações que o Estado Portu­
guês implantou na bacia hidrográfica amazônica ao longo do
período estudado e, particularmente, aquelas que tocavam às comu­
nidades indígenas da região.
Neste aspecto, como em tantos outros, é possível notar um
paralelismo marcante relativamente às opções ideológicas seguidas
pela dinastia Bourbon para a Hispanoamérica3. Também aí, como
Colin MacLachlan apontou, a legitimidade do poder real advinha do
cuidado que os soberanos deviam ter com o bem-estar físico e espi­
ritual dos povos4. Esta autoridade paternal era delegada ao monarca
pelo poder divino e devia ser um dos objectivos de um governante
justo. A felicidade e o bem comum dos súbditos estavam dependen­
tes da acção pessoal do monarca e estes paradigmas do paterna­
lismo das monarquias absolutas confundiam-se com a personaliza­
ção do poder político5. Os monarcas ibéricos e, por consequência, o
soberano português, consideravam dever ter uma acção providencial
junto de povos que não tivessem sido agraciados pelas benesses da
civilização (europeia) e da religião (católica) e, em nome do pro­
gresso, da felicidade, do bem comum e da salvação dos povos, pre­
tendiam civilizá-los e convertê-los6.
Dessa forma, o domínio das coroas ibéricas sobre os ameríndios
justificava-se duplamente: primeiro, porque os monarcas tinham a
obrigação de civilizar os bárbaros, de os tomar felizes, prósperos
e úteis aos interesses públicos7; e, depois, porque as duas coroas
se consideravam responsáveis pela evangelização dos pagãos exis­
tentes nos seus domínios e pela salvação das suas almas8. Conse­
quentemente, tanto em Portugal quanto em Espanha procurou-se
ajustar as novas idéias ilustradas a uma sincera adesão à fé católica

3 Colin MacLachlan, S p a in 's Empire in the N ew World. The role o f id eas in institu-
Berkeley, Los Angeles e Londres, University of Califórnia Press,
tional a n d social change,
1988, p. 67.
4 Ibidem, p. 123.
5 Zília Osório de Castro, «Poder régio e os direitos da sociedade. O “Absolu-
tismo de Compromisso” no reinado de D. Maria I», in Ler História, 23, 1993, p. 13.
6 Sobre estas noções, veja-se, por exemplo, Peter Gay, The Enlightenment: an inter-
pretation. The Science o f Freedom, New York e Londres, W. W. Norton & Company,
1977, pp. 3 e ss.
7 Ibidem, p. 341.
8 Raúl Alcides Reissner, E l indio en los diccionários. E xegesis léxica de un estereotipo,
México, Instituto Nacional Indígena, 1983, pp. 93 e 103.

301
A C O N S T R U Ç Ã O DE I M A G E N S

no sentido de engrandecer os domínios dos respectivos soberanos.


E é à inserção das vertentes católica e nacionalista que alguns auto­
res, como Bemardino Bravo Lira, atribuem a originalidade da Ilus­
tração Ibérica católica9.
O discurso histórico-jurídico que definia o estatuto do amerín­
dio era semelhante nas duas monarquias com as maiores parcelas
territoriais na América10. A base jurídica das reformas iniciadas por
Francisco Xavier de Mendonça Furtado inspirou-se no direito ro­
mano, nas Ordenações do reino, mas também na legislação escrita
em língua castelhana, com especial destaque para Juan de Solórzano
Pereira11.
Com o fortalecimento da monarquia absolutista e com a conso­
lidação do poder nas mãos de um soberano absolutista, os índios
eram, como afirmámos em outro capítulo, vassalos livres da coroa
e súbditos do Estado. Mas uns vassalos especiais, como se pode
depreender do discurso de Francisco Xavier de Mendonça Furtado
ao padre Manuel dos Santos: «Espero da prudência, virtude e lettras
de V.a Paternidade, empregue toda a sua deligencia, em fazer com-
prehender a estes Barbaros, que a real intenção de S. Mag. he só
governa lios pelas suas Reaes Leys como a quaisquer outros vassa­
los.»12 Existiam, de facto, interesses específicos para o Estado Portu­
guês promover estes «bárbaros» a vassalos de um Estado civilizado,
interesses esses a que nos fomos anteriormente referindo. Mas, para
além das razões já evocadas, mencionam-se outras: o «interesse

9 Bemardino Bravo Lira, «Feijoo y Ia Ilustracion católica y nacional en el mundo


de habla castellana e portuguesa», in Jahrbuch für Geschichte von Staat, Wirtschaft und
G esellschaft Lateinam erikas, vol. 22, 1985, pp. 99 e ss.
10 Vejam-se, por exemplo, Don Alonso de La Pena Montenegro, Itinerário p a ra
párochos de Índios en que tratam Ias m atérias m as particulares, tocando a ellos p a r a su buena
administracion, compuesto p o r ..., Lião, A. Costa de Joan e Ant Huguetan y Comp.a,
1678 e René Ortiz Caballero, «Consenso de comunidad: Aproximación histórico-júri-
dica al Itinerário para Párrocos de índios (1668) de Alonso Penã Montenegro, Obispo
de Quito», in Boletín d ei Instituto Riva-Aguero, vol. 19, 1992, pp. 79 e ss.
11 Javier Malagón e José M. Ots Capdequí, Solórzano y la Política indiana, México,
Fondo de Cultura Econômica, 27 edição, 1983, pp. 46 e ss.; Marcos Carneiro de Men­
donça, A A m azônia na E ra Pom balina, 2.° tomo, s/1, Instituto Histórico e Geográfico
Brasileiro, 1963, pp. 545-546 e igualmente a nota (9); e ainda Carta de Sebastião José
de Carvalho e Melo a Francisco Xavier de Mendonça Furtado de 15 de Maio de 1753,
in João Abel da Fonseca, «A propósito do tratado de limites a Norte do Brasil: cartas
secretas de Sebastião José de Carvalho e Melo, 1752-1756», in M a r e Liberum, 10,
Dezembro de 1995, p. 295.
12 BN, Collecção de crimes e decretos..., p. 53.

302
A CONSTRUÇÃO de im a g e n s

público e as conveniências do Estado que hides governar», e a «de­


cadência e ruina do mesmo Estado e a infelicidade que nelle se tem
sentido», decorrentes do cativeiro dos índios e da inobservância das
ordens reais13.
A pobreza e a miséria que eram, até então, característica do
Estado do Grão-Pará resultavam directamente da escravidão dos
ameríndios, do desrespeito pelo Regimento das Missões e das convic­
ções errôneas de algumas pessoas, com particular destaque para os
regulares que «nem pretendem a liberdade dos índios, nem a felici­
dade dos mesmos povos, mas a ruína deles»14. Para além do signifi­
cado imediato do discurso, o que, a este ponto, queremos relevar
consiste na noção de que o monarca era responsável pela felicidade
e pelo bem comum e que só as decisões régias e a sua acertada exe­
cução guiariam os povos para esses objectivos15. Depois, importa
salientar que estes princípios estavam indissociavelmente ligados
à liberdade dos índios, não se alcançando uns se não se respeitasse
a outra. E, finalmente, é imprescindível apontar que a felicidade, a
riqueza e o bem-estar dos indivíduos estavam inseparavelmente
ligados à prosperidade da coroa.
Ao proclamar a liberdade dos ameríndios, a coroa propôs-se
promover a formação de mecanismos que, por um lado, permitis­
sem que a autoridade real fosse gradativamente introduzida junto
dos vassalos ameríndios e, por outro, que protegesse os ameríndios
não apenas da sua «barbaridade» como das exacções dos vassalos
luso-brasileiros.
Assim, enquanto homens livres, os vassalos americanos de Sua
Majestade Fidelíssima tinham o direito de possuírem bens de raiz
ou móveis e, consequentemente, eram objecto de tributação. As leis
reais impunham o pagamento do dízimo devido a Deus sobre todos
os habitantes do território e em relação a todas as produções da

13 Idem, Colecção Pombalina, códice 626, Eis. 7 e ss., Instruções régias a Francisco
Xavier de Mendonça Furtado, de 30 de Maio de 1751.
14 Carta de Sebastião José de Carvalho e Melo a Francisco Xavier de Mendonça
Furtado, de 15 de Maio de 1753, in João Abel da Fonseca, «A propósito do tratado de
limites...», p. 296.
15 De acordo com esta noção, a contestação das decisões reais era ofensa a Deus
e os soberanos deviam usufruir do respeito de todas as nações do mundo e do apoio
incontestável dos seus súbditos. Por isso, a inobservância das ordens do monarca
sobre a liberdade dos índios ou o pronunciamento de alguns moradores do Pará con­
tra o rei e o seu ministro Mendonça Furtado eram considerados crimes contra o
Estado e a religião (AHU, Rio Negro, caixa 2, doc. 1, Carta de frei Jerónimo de Jesus
Maria a frei José de Santa Úrsula, de 28 de Setembro de 1768).

303
A C O N S T R U Ç Ã O DE I M A G E N S

terra16. No entanto, enquanto o dízimo sobre os produtos cultivados


ou recolectados era uma imposição, isentavam-se os ameríndios do
pagamento de qualquer foro ou tributo sobre a terra porque eram
considerados como os «primários e naturaes senhores delia»17.
Os impostos que recaíam sobre as comunidades ameríndias
perdidas nos confins do sertão amazônico não pareciam ser signifi­
cativos para os cofres da Fazenda Real, sobretudo quando compara­
dos com as dízimas de embarque dos produtos que saíam dos por­
tos de Belém18. Apesar disso, as leis régias eram claras quanto à
imposição de tributação sobre a produção agrícola e o Directório esti­
pulava, de forma objectiva, os métodos que deviam ser utilizados
no cálculo da produção sobre a qual recaía o imposto.
A insistência nesta cobrança revestia-se de uma dupla razão.
Primeiro, porque surgia como uma estratégia utilizada pela coroa
como manifestação de autoridade. Os Jesuítas, por exemplo, eram
acusados de difundirem junto da população a ideia de que era lícito
transgredirem o pagamento dos dízimos a Deus19. Ora, querendo o
governo firmar a sua autoridade face aos missionários e à popula­
ção, iria insistir na necessidade da cobrança do tributo como uma
forma de pôr cobro à ruína espiritual dos povos e à grande pobreza
do almoxarifado20. Mais do que isso, através da tributação preten-

16 Apontam-se como os principais produtos do Pará o cacau, café, salsa, cravo,


açúcar, tabaco, algodão, mandioca, milho, arroz, feijão, legumes, pacovas, ananases,
laranjas, limões, melancias, frutas, couves, alfaces, hortaliças, gados, galinhas, patos,
perus, tartarugas, peixe, mel, queijos, leite e manteiga (AHU, P a rá , caixa 18 (739 F),
Pastoral de frei Miguel de Bulhões impondo o pagamento do dízimo devido a Deus
a todos os moradores, de 20 de Março de 1754); por pastoral de 11 de Julho de
1758 estipulava-se a cobrança de um catorzeavos da produção de azeites de jandi-
roba e jupati e um onzeavos para os azeites de ubacaba, castanha do Pará e gerge­
lim (ibidem).
17 AHU, Conselho Ultramarino, códice 336, fls. 53v-65, Carta régia sobre as provi­
dências a tomar para evitar o estado de ruína em que se encontrava o Estado do
Grão-Pará, de 6 de Junho de 1755.
18 Veja-se, por exemplo, o resumo total das receitas e despesas do ano de 1768
(AHU, P ará, caixa 29 (745), doc. de 1768); também AHU, P ará, caixa 59 (774), Ofício
de frei Miguel de Bulhões ao Secretário de Estado (?), de 16 de Agosto de 1755. Con­
fronte-se AHU, P ará, caixa 22 (742), Ofício de Martinho de Melo e Castro a D. Fran­
cisco de Sousa Coutinho, onde se afirma que o comércio e as culturas dos índios
eram de importância ínfima, de 22 de Abril de 1790.
19 A N /1 1, M anuscritos do Brasil, n.° 51, £1. 34, Ofício de Francisco Xavier de Men­
donça Furtado ao Bispo do Pará, de 17 de Junho de 1761.
20 AHU, P ará, caixa 54 (774), Parecer de frei Miguel de Bulhões sobre a pertinên­
cia de se levantarem devassas anuais para evitar descaminhos na cobrança dos dízi­
mos, de 5 de Agosto de 1755.

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A C O N S T R U Ç Ã O DE IM A GE NS

dia-se que as populações reconhecessem a autoridade real e o poder


divino21. O pagamento deste imposto era uma forma de expressar
o «reconhecimento a Deus Nosso Senhor em demonstração de ser o
Creador de tudo vivendo nellas [terras], a razão que temos de reco­
nhecer os benefícios que devemos à Omnipotência Divina dando
nos tantos e tão diversos fructos para nos sustentar e que em
demonstração de que reconhecemos hum tal beneficio devemos
separar aquella porção com que todos os christãos fazem seme­
lhante reconhecimento»22. •
Depois, e como contrapartida, o facto de estarem sujeitos à tri­
butação da coroa concedia aos ameríndios o benefício de um esta­
tuto jurídico específico. Ao constatar que os índios tinham uma
reduzida capacidade intelectual e maus costumes, que não se lhes
podia imputar a total responsabilidade dos seus actos, que eram
pobres, rústicos, simples e facilmente enganados, a coroa concedia-
-lhes o estatuto especial de pessoas miseráveis23. Com estatuto privi­
legiado, igualmente concedido a órfãos, viúvas, pobres e rústicos, os
miseráveis beneficiavam da compaixão, piedade e benevolência das
instituições e dos indivíduos. E, assim, embora sujeitos aos mesmos
tribunais que os comuns súbditos da coroa portuguesa, eram alvo
de mecanismos de protecção criados dentro desses organismos24.
Quando afirmámos que os ameríndios eram vassalos da coroa
lusitana iguais a quaisquer outros nascidos no reino ou na colônia é
preciso, no entanto, ter em conta que a promulgação desta liberdade
era recente e que, muitas vezes, não era mais que uma concessão
outorgada juridicamente. No empenho posto pela coroa para que a
lei de 1755 fosse respeitada de forma efectiva, de uma forma como
ainda não tinham sido obedecidas as leis promulgadas desde o
tempo de D. Sebastião, assistiu-se à criação de um mecanismo des­

21 A N /l I, M anuscritos do Brasil, n.° 51, fls. 94-94v, Ofício de Francisco Xavier de


Mendonça Furtado ao Bispo do Pará, de 17 de Junho de 1761.
22 BNRJ, 1-31-28-41 n.° 1, Instruções ao tenente Diogo Antônio de Castro para
estabelecer a vila de Borba-a-Nova, no rio Madeira, de 6 de Janeiro de 1756.
23 Veja-se, por exemplo, O rdenações Filipinas, liv. III, tit. V quando se consideram
privilegiados os órfãos e as viúvas. A equiparação dos índios aos órfãos do reino é
mencionada várias vezes na documentação; veja-se, por exemplo, AHU, Rio Negro,
caixa 1, doc. 30, Ofício de Lourenço Pereira da Costa a Francisco Xavier de Men­
donça Furtado, de 16 de Janeiro de 1761.
24 Talvez assim se explique a razão pela qual o Tribunal do Santo Ofício, ao jul­
gar a índia Florência, impôs uma pena moderada: tal como os outros ameríndios, era-
-lhe atribuída «falta de malícia no cometimento do delicto» (Rita Heloísa de Almeida,
O Directório dos Índios, p. 322).

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A C O N S T R U Ç Ã O DE I M A G E N S

tinado a vigiar o cumprimento e a fazer observar a legislação. Ao


contrário do que até então se tinha considerado, todos os amerín­
dios eram livres até prova em contrário. E, por isso, as reclamações
deviam ter lugar em tribunais de primeira instância. Uma junta,
composta pelo prelado diocesano, pelo governador, por missioná­
rios carmelitas, jesuítas, capuchos e mercedários, pelo ouvidor-geral,
pelo juiz de fora e pelo procurador dos índios, devia averiguar os
autos. A liberdade do indivíduo em questão dependia da igualdade
de votos e da decisão da junta não deveria haver recurso que tar­
dasse a sua execução25.
No entanto, no que a infracções ou crimes dizia respeito, os
ameríndios estavam sujeitos à tutela de tribunais eclesiásticos ou
civis, consoante a natureza do delito em julgamento. Era na aprecia­
ção da infracção, no decorrer do processo e na atribuição da pena
que a noção dos índios enquanto miseráveis ou pobres influía. Esta
pobreza era, antes de mais, financeira: a maioria dos índios não
tinha rendimentos para sustentar as suas famílias e, muito menos,
para sustentar os custos de um processo. Depois, era também moral
ou ética: grande parte dos ameríndios não possuía a capacidade de
avaliar com justeza as suas acções, bem como as de quem com eles
contactavam. Como o bispo do Pará definiu a Melo e Castro: «os
índios além de serem pobríssimos de bens de fortuna, o são ainda
pela maior parte de talentos de espírito e daquelas reflexões neces­
sárias para saberem discernir as patranhas e absurdos»26.
As infracções dos vassalos dos domínios norte-brasileiros do rei
fidelíssimo eram, assim, julgados numa junta com plena jurisdição
para sentenciar os infractores até à pena de morte e com poder para
decidir sobre todos os delitos sem ser necessário aguardar as deci­
sões da Casa da Suplicação sobre causas-crime. No domínio das
contravenções espirituais ou que envolvessem membros da igreja,
os súbditos eram alvo da jurisdição eclesiástica, que tinha poder
para multar e prender. No entanto, como toda a justiça dos homens
podia ser veículo de opressão, força e violência, o rei reservava aos
seus súbditos o direito de recorrerem ao Desembargo do Paço e ao
Conselho Ultramarino, em casos laicos, e ao Juízo da Coroa, em
casos eclesiásticos. O recurso fazia-se através de um procurador

25 AHU, Conselho Ultramarino, códice 336, fls. 53v-65, Carta régia sobre as provi­
dências a tomar para se evitar o estado de ruína em que se encontrava o Estado do
Grão-Pará, de 6 de Junho de 1755.
26 Idem, Pará, caixa 44 (758), Ofício de frei Caetano Brandão a Martinho de
Melo e Castro, de 14 de Janeiro de 1786.

306
A C O N S T R U Ç Ã O DE I M A G E N S

residente na corte, mas o procedimento não era considerado eficaz


porque muitos dos pleiteadores não tinham quem os representasse
e, sobretudo, porque os custos eram avultados27.
Os índios, enquanto «pobres homens», eram objecto de exac-
ções no Estado do Grão-Pará. Quando confiados à justiça temporal
eram maltratados e expostos a fomes e doenças, como aconteceu,
em 1757, aos revoltosos do rio Negro: presos na cadeia de Belém,
sem alimentos ou assistência de qualquer espécie, «todos os dias se
estavão enterrando com o mayor escandalo de todo este Povo,
hindo para a Cova amarrados em hum pão, núz pelas ruas desta
cidade, como se forão qualquer animal imundo e não homens bapti-
zados como muytos deles erão»28. Mesmo em relação a casos
menos graves que os motins que tinham levado a estas detenções, o
tempo de prisão aumentava porque não tinham com que pagar
devassas e autos de livramento. Foi este tipo de exacções que levou
a que Manuel Bernardo de Melo e Castro protestasse junto de Men­
donça Furtado a inobservância do «Direito e estillo da Coroa em
que as causas dos prezos pobres se não demorão, posto que não
tenhão com que pagar»29. Por isso, propunha que se conferisse juris­
dição no Pará para se proceder até decisão final nos ditos recursos e
agravos dirigidos ao Juízo da Coroa e, assim, se evitassem demoras
e vexações30.
Ao tempo em que lhes concedia o estatuto de miseráveis ou
pobres, a coroa não esperava que os súbditos ameríndios do Norte
brasileiro fossem capazes de instituir sobre si um governo próprio,
livre e justo, capaz de corresponder aos objectivos de felicidade,
progresso, bem-estar e prosperidade que os monarcas esclarecidos
consideravam que deviam imperar nos seus domínios. Daí, advinha
a necessidade da nomear tutores ou indivíduos que representassem

27 AHU, Pará, caixa 21 (739 I), Ofício de Manuel Bernardo de Melo e Castro a
Francisco Xavier de Mendonça Furtado, de 4 de Maio de 1761.
28 A citação refere-se aos presos nas revoltas do rio Negro em 1757 (AHU, Pará,
caixa 19 (739 H), Ofício de Manuel Bernardo de Melo e Castro a Tomé Joaquim da
Costa Corte-Real, de 30 de Julho de 1759.
29 Foi, por exemplo, o caso do principal D. Francisco de Sousa que, devassado
pelo vigário da Vigia, foi preso. Demorou-se-lhe o livramento e prisão porque não
tinha dinheiro com que pagar as exorbitantes custas dos autos (AHU, Pará, caixa 24
(739 D), Ofício de Manuel Bernardo de Melo e Castro a Francisco Xavier de Men­
donça Furtado sobre os abusos de D. Frei João de S. José Queirós, de 2 de Novembro
de 1762).
30 Ibidem, caixa 21 (739 I), Ofício de Manuel Bernardo de Melo e Castro a Fran­
cisco Xavier de Mendonça Furtado, de 4 de Julho de 1761.

307
A C O N S T R U Ç Ã O DE I M A G E N S

e governassem os índios, tal como o Directório determinava durante


os quase cinquenta anos da sua vigência no Estado do Grão-Pará.
Estes indivíduos deviam ser os responsáveis pela introdução do cris­
tianismo, mas também da racionalidade e da civilidade junto das
comunidades ameríndias. A sua função consistia em ensinar os indí­
genas a viver ordenada e inteligentemente, de acordo com noções
como razão, ordem e «polícia», aqui entendidos como o conjunto de
saberes que permitiam viver numa sociedade política e socialmente
ordenada31. A civilização far-se-ia sempre a partir dos núcleos urba­
nos, administrados pelos directores e visaria proceder à integração
dos ameríndios na sociedade colonial, colocando-os ao seu serviço.
Em última instância, a existência de uma tutoria dos luso-brasi-
leiros sobre os ameríndios tinha subjacente uma razão mais impor­
tante do que qualquer outra, a razão de Estado: é que, não obstante o
conhecimento mais ou menos exacto que existia dos grupos amerín­
dios da região amazônica, a administração reinol nunca reconhece­
ría que os índios eram capazes de se autogovemar; e não apenas
pela incapacidade indígena mas sobretudo porque a coroa queria
assegurar o domínio efectivo sobre as suas possessões32.
O êxito do projecto referente aos ameríndios do Norte brasi­
leiro, tal como era enunciado à luz do discurso colonial da época, só
podia resultar se houvesse uma reeducação dos luso-brasileiros. Só a
benevolência, a tolerância e a «humanidade» dos súbditos portugue­
ses é que podiam permitir a integração dos ameríndios na sociedade
colonial. Estas eram as qualidades exigidas pelo Estado aos indiví­
duos para que a liberdade dos índios fosse respeitada e, desta forma,
alcançados o bem-estar, a felicidade e o progresso dos povos e da
coroa.
Pretendia-se uma mudança comportamental da sociedade colo­
nial em relação aos ameríndios e, nesse sentido, a coroa lançou mão
de disposições legais para atenuar as diferenças que se faziam sentir
entre os vassalos do rei.
A promulgação do Alvará estipulando que os vassalos casados com
índios não sofrerão de infâmia mas se farão dignos da atenção real e serão
preferidos nas terras em que se estabelecerem para ocupações e postos; e os

31J. Leichner, «El concepto de «polida» y su presenda en las obras de los prirae-
ros historiadores de índias», in Revista de índias, XLI (165-166), 1981, p. 408. Con­
fronte-se este conceito com a definição que dele dá Pierangelo Schiera, «A “polícia”
como síntese de ordem e de bem-estar no moderno Estado centralizado», in Antônio
Manuel Hespanha, Poder e instituições na Europa do Antigo Regime, pp. 309 e ss.
32 René Ortiz Caballero, «Consenso de comunidad...», p. 92.

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A C O N S T R U Ç Ã O DE I M A G E N S

seus filhos e descendentes serão hábeis para quaisquer postos pode enten-
der-se, portanto, como uma medida protectora da coroa no sentido
de defender os súbditos ameríndios do rei fidelíssimo33. Ao equipa­
rar e favorecer os casamentos entre luso-brasileiros e ameríndias, as
determinações régias não só favoreciam a miscigenação como pro­
tegiam as mulheres da violência ou abandono dos maridos34. E, ao
mesmo tempo, instavam a que os europeus vissem com outros
olhos os índios, já não considerados como infamantes, mas como
um veículo de ascensão social e de obtenção de benefícios.
Mais uma vez, é interessante notar que, se durante a primeira
metade do século xviii se tentava por todos os meios evitar e proibir
a existência de contactos entre luso-brasileiros leigos e ameríndios,
em período imediatamente subsequente as instituições passaram a
incentivar permanências, casamentos e descendência. Os hábitos
que, até então, eram reprovados pela Igreja e punidos pelo rei passa­
ram a ser incentivados pela legislação real, conquanto fossem con­
trolados e usados para fortalecimento do poder soberano.
Assim, as ligações com ameríndias foram desaprovadas pelas
instituições enquanto as entidades administrativas viram nestes
«casamentos» uma formalização dos pactos entre luso-brasileiros e
índios e, assim, uma forma de fortalecer indivíduos e etnias. Desta
forma, em 1752, uma carta régia estipulava punições para os homens
brancos que, vivendo dispersos pelos sertões, se servissem do
hábito de «cunhamenas», isto é, pedissem e aceitassem dos princi­
pais as filhas e parentes a título de mulheres35. Na mesma época,
também o desagrado manifestado na legislação em relação às alian­
ças entre indivíduos dos dois grupos étnicos era extensível às ordens
religiosas. Antes de mais, porque a coabitação de indivíduos dos
dois sexos sem a aprovação da Igreja era considerada pecado mortal;
e, depois, porque a miscigenação era tida como algo indigno,
estando associada à falta de boa criação, à laxidão e à liberdade
sexual e de costumes. Por isso, o padre Aleixo Antônio protestava
junto do padre João de Gusmão no sentido de desaprovar a entrada
de indivíduos com sangue índio para a Companhia: «e para que nos
havemos de sujar se ainda nos achamos limpos? [...] e para que nós

33 BN, Reservados, 3610 V, alvará de 4 de Abril de 1755.


34 BNRJ, 1-31-28-41 n.° 1, Instruções régias ao tenente Diogo Antônio de Castro
para estabelecer a nova vila de Borba no rio Madeira, de 6 de Janeiro de 1756.
35 Por carta régia estipulava-se que os mecânicos fossem punidos com açoita-
mento no reino e degredo para as galés por cinco anos e os nobres com o degredo
para Angola por 10 anos (AHU, Pará, caixa 110 (825), de 4 de Dezembro de 1752).

309
A C O N S T R U Ç Ã O DE I M A G E N S

havemos de introduzir aquillo que também ao depois havemos de


sentir e chorar?». Recomendava, portanto, que os filhos da terra que
entrassem para a Companhia de Jesus fossem «totalmente limpos de
sangue de tapuia que he cousa feya e vergonhosa»36.
A inversão notória nesta política ocorreu, obviamente, com a
legislação publicada por Mendonça Furtado a partir de meados da
centúria. O sangue da mãe tapuia, até aí considerado «cousa feya e
vergonhosa», veiculava aos descendentes mestiços da povoação de
Borba-a-Nova a habilitação ao hábito de Cristo sem que necessitas­
sem de dispensa37. Também os benefícios dados aos indivíduos que
se casassem com índias justificava que, em 1760, 77 moradores do
rio Negro tivessem contraído este tipo de união e que, dos 200 sol­
dados chegados ao Pará, muitos já se tivessem livrado dos serviços e
destacamentos através da vinculação a cônjuges índias38. Instava-se
também para que as crianças índias, mestiças e luso-brasileiras
entrassem, desde tenra idade, em colégios e seminários e defendia-
-se a abolição de colégios especificamente destinados à educação dos
europeus39. É que, no discurso colonial da época, os contactos entre

36 AHU, P a rá , caixa 18 (739 F), Carta do padre Aleixo Antônio ao padre João de
Gusmão, de 3 de Outubro de 1755. Em um dos seus estudos sobre a presença jesuíta
no Norte brasileiro, Dauril Alden afirmava que «Although Jesuits devoted unrelenting
efforts to protect and convert the Amerindians, not even Antônio Vieira, the best
known Jesuit of the Portuguese Atlantic world during the seventheenth century, ever
advocated their admition to the Society nor for that matter, did any spokesman of
any other Order in Brazil or elsewhere in the Américas» (The m aking o f an elite entre-
frise : the Je su its in the Portuguese assistancy: ié th to i8th centuries, s/1, The Associates of
the James Ford Bell Library, University of Minnesota, 1992, p. 10).
37 Esta exigência era feita unicamente ao pai luso-brasileiro (BNRJ, I-3T28-41
n.° 1, Instrução ao tenente Diogo Antônio de Castro sobre o estabelecimento de
Borba-a-Nova, de 6 de Janeiro de 1756); é claro que uma coisa é o que se legisla e
outra o que se cumpre. Assim, em 1755, e não obstante o rei ter demonstrado von­
tade em conceder a uns principais índios, que o visitavam em Lisboa, um hábito de
uma ordem militar, as instituições centrais foram do parecer que tal distinção se não
fizesse por se considerar que estes vassalos estavam ainda muito sáfaros e destituídos
de meios para sustentar essa dignidade (AHU, Conselho Ultramarino, códice 1214,
fls. 235-239, Carta do Marquês de Pombal a Francisco Xavier de Mendonça Furtado,
de 14 de Março de 1755).
38 AHU, Rio N egro, caixa 1, doc. 24, Ofício de Joaquim de Melo Póvoas a Tomé
Joaquim Corte-Real, de 20 de Janeiro de 1760; idem, P a rá , caixa 19 (739 H), Ofício de
Feliciano Ramos Nobre Mourão a Francisco Xavier de Mendonça Furtado, de 10 de
Novembro de 1760.
39 AHU, P a rá , caixa 20 (739 G), Parecer de Luís Gomes de Faria e Sousa e de
Feliciano Nobre Ramos Mourão a uma consulta de Manuel Bernardo de Melo e Cas­
tro sobre a fundação de seminários, de 11 de Novembro de 1760.

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A C O N S T R U Ç Ã O DE I M A G E N S

colonos e colonizados eram um dos meios de propagar a igualdade


entre os súbditos do monarca português, de promover junto dos
ameríndios a fidelidade ao rei lusitano e de unificar um imenso
espaço sob a autoridade colonial.
As alterações determinadas nas leis reais tiveram ainda conse­
quências no âmbito religioso. Em 1761, frei João do Monte Carmelo
foi enviado pelo provincial da Província de Santo Antônio para o
reino devido à «escandalosa escusa» feita a um requerimento do
mameluco José Rodrigues de Afonseca'para ser admitido como
irmão da Ordem Terceira de S. Francisco40. De facto, era ordenado
que as candidaturas tanto de índios quanto de luso-brasileiro fos­
sem consideradas em paridade e as exclusões por razões rácicas não
eram toleradas pelas instituições centrais. No sentido de comprovar
o cumprimento das ordens reais foi enviada uma certidão onde se
testemunhava que, entre 21 de Janeiro e 27 de Setembro de 1759,
tinham sido admitidos como irmãos da Ordem Terceira 13 indiví­
duos com sangue índio41.
A promoção jurídica e social dos ameríndios proposta pela
coroa através da cedência deste tipo de privilégios só teria êxito se a
actividade legisladora do Estado fosse corroborada pela mudança de
atitude da sociedade colonial. A coroa exigia que a benevolência
expressa através dos órgãos do poder central encontrasse correspon­
dência na «humanidade» com que os súbditos luso-brasileiros de­
viam tratar os seus pares indígenas.
Desta forma, ao longo da segunda metade do século xvm, há um
pressuposto que se evoca insistentemente quando se fala na condi­
ção indígena: os índios não eram ferozes por natureza, mas pelas
más persuasões ou violências que os luso-brasileiros lhes faziam.
Esta afirmação é válida tanto em 1760, para justificar a agressividade
dos índios Timbira, atacados pelos moradores e industriados pelos
jesuítas42, como em 1783, para compreender as barbaridades come­

40 AN/ i I, Manuscritos do Brasil, n.° 51, £1. 86v, Ofício de Francisco Xavier de
Mendonça Furtado a Manuel Bernardo de Melo e Castro, de 5 de Junho de 1761.
41 AHU, Pará, caixa 19 (739 H), Representação dos Perpétuos Oradores da
Ordem Terceira da Penitência de S. Francisco a Francisco Xavier de Mendonça Fur­
tado, de 11 de Setembro de 1760. As recusas assentavam, fundamentalmente, na falta
de bens.
42 A N /1 1, Manuscritos do Brasil, n.° 51, fls. 36v-37, Ofício de Francisco Xavier
de Mendonça Furtado a Martinho de Melo e Castro, de 19 de Junho de 1760; BNRJ,
11-32-17-1, Carta régia ao governador da capitania do Maranhão, de 19 de Junho
de 1770.

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tidas pelos índios levantados do rio Branco, atribuídas ao excesso de


trabalho imposto pelos luso-brasileiros43; como, ainda, em 1794,
quando se explicava a belicosidade dos Mundurucú como reacção às
atrocidades e insultos dos habitantes das povoações da margem
esquerda do rio Amazonas44. A coroa considerava que o tratamento
duro, bárbaro e insolente dado aos índios tinha atraído a justiça
divina às capitanias do Norte do Brasil e que estas, tendo potenciali­
dades para serem prósperas e florescentes, se encontravam reduzi­
das a grande miséria45.
A inversão do processo baseava-se na caridade e na humani­
dade com que os ameríndios, enquanto «miseráveis e ignorantes»,
deviam ser tratados: «se virem que se reputão com os mais homens
que se tratão humanamente e que se lhes paga o seu trabalho tem
por certo não se hão de auzentar e hão de servir com préstimo e
proveito e ocupados não terão vícios que se lhes considerão»46.
O conceito de «humanidade» encontrava-se, pois, intimamente
relacionado com a aculturação. Esperava-se que os luso-brasileiros
nos seus contactos com os ameríndios os vestissem, alimentassem,
assistissem nas suas enfermidades com médicos, cirurgiões e remé­
dios de botica, educassem e instruíssem na religião católica, na língua
portuguesa e na sociabilidade e comportamento dos luso-brasileiros,
bem como na agricultura e em outros serviços47. Mas esta noção arti-
culava-se também com o respeito pela integridade física e pela vida
dos ameríndios e, sobretudo, das mulheres e crianças48. As disposi­

43 AHU, Rio Negro, caixa 3, doc. 10, Ofício de Martinho de Melo e Castro a João
Pereira Caldas, de 7 de Julho de 1783.
44 BNRJ, 7-3-30, Ofício de D. Francisco de Sousa Coutinho a Martinho de Melo
e Castro de 15 de Agosto de 1794.
45 AHU, Conselho Ultramarino, códice 209, fls. 270v-272v, Parecer do Conselho
Ultramarino sobre a representação feita pelos oficiais da câmara da vila da Vigia, de
19 de Maio de 1753. É interessante verificar que se a documentação refere que os
índios eram bárbaros, deixa também claro que os luso-brasileiros, apesar de o não
serem, podiam ter comportamentos bárbaros, expressos quer na rudeza e crueldade
com que tratavam os índios quer na adopção de costumes índios desapropriados,
como o de «cunhamenas» (AHU, Pará, caixa 110 (825), Carta régia proibindo o casa­
mento de luso-brasileiros com mulheres indígenas, de 4 de Dezembro de 1752).
46 AHU, Conselho Ultramarino, códice 209, fl. 270v-272v, Parecer do Conselho
Ultramarino sobre a representação dos oficiais da câmara de Vigia, de 19 de Maio de
1753.
47 AHU, Pará, caixa 69 (784), Condições com que são concedidos aos particula­
res os índios silvestres dos novos descimentos, de 1 de Julho de 1782.
48 AHU, Rio Negro, caixa 18, doc. 4, Instruções de Manuel da Gama Lobo de
Almada a Leonardo José Ferreira, de 1 de Fevereiro de 1790.

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A C O N S T R U Ç Ã O DE I M A G E N S

ções institucionais procuravam evitar que os luso-brasileiros respon­


dessem às ofensivas ameríndias com retaliações igualmente violentas
e, desta forma, instava-os a distanciarem-se «daquelles que por falta
de reflexão sejam capazes de violar as leis sagradas da fidelidade, às
quais nós estamos muito mais obrigados do que elles, pelas luzes da
catolicidade que professamos e pela grande differença que há de huns
poucos de homens silvestres e huma nação civilizada»49.
Tanto em tempo de paz quanto em tempo de guerra, a coroa
exigia aos seus súbditos luso-brasileiros cfüe, enquanto elementos de
uma civilização considerada superior, evitassem «as violências, os
assassínios e os massacres que se lem nas Historias com horror, dos
quaes esa capitania não he a mais innocente»50.

O E sta d o a b s o lu tis ta e a id e ia de p r o g r e s s o :
c iv iliz a ç ã o e a m e r ín d io s

O Estado colonial, na tentativa de levar junto dos súbditos do


Norte brasileiro a felicidade e o bem-estar, incorporou nestes objec-
tivos uma outra noção fundamental ao pensamento intelectual e
político da segunda metade de Setecentos: a noção de progresso,
intimamente relacionada com o pressuposto da superioridade da
civilização ocidental51.
Tal como acontecia em outros domínios, como, por exemplo,
no aspecto econômico e financeiro ou nas reformas educativas e
religiosas, no Portugal setecentista debatiam-se idéias que eram
comuns a vários países da Europa da época com a noção de que os
problemas colocados eram, no entanto, específicos ao reino e que as
soluções diziam respeito ao território português, reinol ou colo­
nial52. Embora conhecedores das novas correntes científicas, econó-

49 AHU, P ará, caixa 41, Instruções de Manuel da Gama Lobo de Almada a Leo­
nardo José Ferreira, de 16 de Junho de 1781.
50 Idem, Rio N egro, caixa 3, doc. 10, Ofício de Martinho de Melo e Castro a João
Pereira Caldas, de 7 de Junho de 1783.
51 Sobre esta noção, veja-se Fred W. Voget, «Progress, Science, history and evolu-
tion in eighteenth and nineteenth century Anthropology», in Jo u rn al o f the History o f
the Behavioral Sciences, vol. vni, 1967; Robert E. Bieder, Science encounters the Indian
182 0 -1 8 8 0 , The early years o f American Ethnology, s/l, The University of Oklahoma
Press, Norman e London, 1986, pp. 3-15.
52 Kenneth R. Maxwell, «Eighteenth century Portugal: faith and reason, tradition
and inovation during a Golden Age», in The A ge o f the Barrocjue in Portugal, editado por
Jay A. Levenson, Washington, The Nacional Gallery of Art, 1993, p. 111.

313
A C O N S T R U Ç Ã O DE IM A GE NS

micas, políticas, diplomáticas, pedagógicas, em voga na Europa, os


intelectuais e estadistas portugueses adaptaram estas idéias a situa­
ções concretas nacionais, dando origem ao que Kenneth Maxwell
considerou como uma corrente de pensamento importante especí­
fica a Portugal, onde o ceme das reflexões intelectuais dizia especifi­
camente respeito ao caso português53.
Implantaram-se programas reformistas em vários domínios, ten­
tando implementar as novas idéias com vista a modernizar o país.
O objectivo destes ilustrados de Setecentos era, antes de mais, o de
recuperar o antigo poder e a passada grandeza de Portugal. Tal como
o mesmo autor afirmou, o Iluminismo coincidiu com a vontade de
restaurar a grandeza passada, um objectivo que se baseou na adapta­
ção de técnicas que os portugueses acreditavam terem sido usadas
pelos seus concorrentes europeus para os ultrapassar54. E, uma vez
mais, o paralelismo com a Espanha dos Bourbon é notório.
É, pois, neste contexto que utilizamos, pela primeira vez, a
noção de progresso. Para os países ibéricos, as técnicas já utilizadas
com êxito nos países europeus serviríam como modelo a um plano
reformador que lhes permitiría recuperar o poder perdido enquanto
potências mundiais55. No sentido de progredir, por forma a igualar e
ultrapassar os países competidores, os Estados ibéricos propunham-
-se empreender, promover e controlar alterações no domínio cientí­
fico, econômico, político, social, diplomático e militar. E, enquanto
tal, pretendiam, em última instância, ser os principais beneficiados
com estas reformas56.
O que acabámos de dizer em relação aos princípios inspiradores
das reformas empreendidas pelo Estado é também válido para a
concepção dos índios no discurso colonial. Apesar de estarem ao

53 Ibidem, p. 111; «Pombal: State and individual in eighteenth century Portugal»,


in Portuguese Sludies Review, vol. 2 (2), Spring-Summer 1993 p. 37.
54 Ibidem, «Pombal: State and individual...», p. 33.
55 É de referir que, na mesma época, alguns pensadores e economistas, como por
exemplo Adam Smith, constroem a ideia de que este progresso civilizacional, téc­
nico, cultural, científico, que era uma conquista da Europa setecentista, tinha sido
permitido, pelo menos numa fase inicial, pelo descobrimento da América e pela sub­
sequente expansão de mercados (R. C. Simmons, «Savagery, Enlightenment, Opu-
lence», The University of Birmingham, 1989, p. 13).
56 As reformas ocorridas no domínio da ciência são disso exemplo. Veja-se
Ângela Domingues, «Um novo conceito de ciência ao serviço da R azão de Estado.
A viagem de Alexandre Rodrigues Ferreira ao Norte brasileiro», in Ciclo de conferências
sobre a Viagem Filosófica de Alexandre Rodrigues Ferreira, Lisboa, Academia de Marinha,
1992, pp. 17 e ss.

314
A C O N S T R U Ç Ã O DE I M A G E N S

corrente do que grande parte da elite intelectual europeia pensava


sobre os habitantes do Novo Mundo, os políticos, legisladores e
homens de ciência não aceitaram as definições que surgiam em
obras inglesas, francesas ou espanholas sem, sobre elas, impor o seu
juízo crítico. Este era formado, em grande parte, por uma experiên­
cia multissecular que advinha dos contactos e confrontos com as
inúmeras etnias habitantes do território brasileiro.
Desta forma, a ideia dos índios como homens selvagens, puros,
corajosos e bons encontra-se afastada, tal como não podia deixar de
ser, dos escritos dos estadistas portugueses da segunda metade do
século xviii. O triunfo do estado natural sobre o estado civil, princípios
paradigmáticos para alguns filósofos franceses, como Jean-Jacques
Rousseau ou Denis Diderot, não encontrava repercussões no discurso
político luso-brasileiro, mais influenciado pelas teorias progressistas
dos intelectuais escoceses57. O Novo Mundo não era o mundo que os
europeus tinham perdido, tal como os «selvagens» não correspondiam
ao conceito de como eram os homens no seu estádio mais puro e ao
qual os europeus tinham renunciado quando se tinham «domesti­
cado»58. Também as noções de progresso, ciência e evolução dos
povos não interessavam tanto como causas ideológicas e científicas
explicativas da história da Humanidade, mas fundamentalmente
como princípios legitimadores da interferência do Estado português
junto das comunidades ameríndias do Norte brasileiro. No pensa­
mento político da época, o Estado era o responsável e devia interferir
no processo evolutivo dos seus súbditos menos protegidos rumo à
civilização e à cristianização, à felicidade, ao bem-estar e ao pro­
gresso. Esta é, portanto, a segunda acepção do vocábulo progresso.
O argumento de que os índios não eram como os europeus do
século xviii, mas como estes tinham sido em épocas remotas, foi utili­
zado por Sebastião José de Carvalho e Melo em carta a seu irmão,
Francisco Xavier de Mendonça Furtado, para justificar as reformas
aplicadas, à época, no Estado do Grão-Pará. O estadista considerava

57 Sobre as diferentes correntes europeias acerca dos índios no século xviii, veja-se o
estudo magistral de Anthony Pagden, European Encounters with the N ew World. From Renais-
sance to Romattticism, New Haven e Londres, Yale University Press, 1993; Margaret Sankey,
«François-Auguste Peron: le mythe de 1’homme sauvage et Fécriture de la Science», in
C ahiers de Sociologie Classique et Culturelle (9), Julho de 1988, pp. 38 e ss.; Fred W. Voget,
«Progress, Science, history and evolution in eighteenth and nineteenth century. Anthro-
pology», inJou rn al o f the History o f the Behavioral Sciences, vol. vrn, 1967, pp. 132 e ss.
56 Anthony Pagden, European Encounters with the N ew World. From Renaissance to
Romanticism, p. 14.

315
A C O N S T R U Ç Ã O DE I M A G E N S

como um dever moral dos povos culturalmente superiores trazerem


da barbárie para a civilização outros homens racionais, à semelhança
do que tinha ocorrido com os portugueses: «Todos nos fomos bárba­
ros, como hoje são os Tapuyas, so com a differença de não comermos
gente [...]. Porem, porque no tempo em que nos invadiram e domina­
ram os Romanos, em vez de nos fazerem servos de penna ou servos
adscryticos, nos deixaram em plena liberdade, unindo se e alliando se
connosco, todos nos fomos civilizados; todas as nossas terras prospe­
raram em povoação e em lavoura e todos tivemos sempre quem nos
servisse em todos os ministérios sem haver falta de gente para eles.»59
O discurso do então conde de Oeiras inspirava-se na monogé-
nese, teoria explicativa do surgimento do homem como espécie
única criada por Deus. À época, esta corrente prevalecia entre os
pensadores cultos da Europa Ocidental60. Difundida entre os portu­
gueses pela leitura de David Hume, Buffon e, particularmente, Wil-
liam Robertson, procurava explicar a origem e as diferenças entre as
diversas espécies humanas61.
Reconhecidos como inferiores, os índios não eram dissociados
da história da humanidade, mas colocados no seu princípio62. Para o

59 Carta de Sebastião José de Carvalho e Melo a Francisco Xavier de Mendonça


Furtado, de 15 de Maio de 1753, in João Abel da Fonseca, «A propósito do tratado de
limites...», p. 297; também em Marcos Carneiro de Mendonça, A A m azônia na Era
Pom balina, vol. i, pp. 385-395 e em Colin MacLachlan, «The Indian Directorate: for-
ced acculturation in Portuguese America (1757-1799), in The Am éricas, vol. xxviii, (4),
Abril de 1972, p. 358.
60 Sobre a formação científica, política e econômica do conde de Oeiras e acerca
da influência que tiveram as suas estadas em Londres e Viena, veja-se Kenneth R.
Maxwell, «Eighteenth century Portugal: faith and reason, tradition and inovation
during a Golden Age», pp. 107-108.
61 Confronte-se esta afirmação com, por exemplo, alguns dos livros que constituíam
a biblioteca de Carvalho e Melo em Londres. Veja-se Kenneth R. Maxwell, «Pombal and
the nacionalization of the Luso-Brazilian economy», in H ispanic American Histórica!Review,
48 (4), November, 1968, p. 609); para uma breve referência às teorias monogenista e poli-
genista aplicadas ao debate intelectual europeu setecentista sobre os africanos, veja-se
Maria do Rosário Pimentel, Viagem ao fundo d a s consciências. A escravatura na época moderna,
Lisboa, Edições Colibri, 1995, pp. 183-184. Acerca destes conceitos, veja-se, igualmente,
Jill R. Dias, «Um contributo oitocentista para a divulgação em Portugal do debate europeu
sobre a Raça», in Ethnologia, nova série, 3-4, Maio-Outubro de 1995.
62 Veja-se Alexandre Rodrigues Ferreira, «Observações gerais e particulares sobre
a classe dos mamíferos observados nos territórios dos três rios, das Amazonas,
Negro, e da Madeira: com descrições circunstanciadas que quase todos eles deram os
antigos, e modernos naturalistas, e principalmente, com a dos tapuios», in Viagem
Filosófica p e la s capitan ias do C rão -P ará, Rio Negro, M a to C rosso e C u iab á, M em órias. Zoo­
logia e Botânica, Rio de Janeiro, Conselho Federal de Cultura, 1972, pp. 67 e ss.

316
A C O N S T R U Ç Ã O DE I M A G E N S

marquês de Pombal, tal como para outros pensadores portugueses, os


ameríndios tinham, pois, a mesma origem ou «criação» que os eu­
ropeus, apesar de não serem tão evoluídos ou de não terem «progre­
dido» no mesmo sentido e ao mesmo ritmo que os luso-brasileiros.
Tal como repara Jill Dias num artigo sobre o debate de raça, a crença
na unidade biológica do Homem não impedia o reconhecimento da
diversidade empírica, e até de desigualdades físicas e mentais, entre
os diferentes grupos humanos63. A «degeneração» das raças era ex­
plicada por circunstâncias históricas ou geôgráficas; era, também,
atribuída ao clima, hábitos alimentares e sociais e meio ambiente.
No entanto, e à luz da mesma ideologia, os homens americanos
podiam ser recuperados por meio de alterações no meio ambiente,
pela educação e civilização. Era nesse sentido que Carvalho e Melo
justificava a intervenção do Estado Português. A concepção de que a
evolução social humana consistia numa caminhada da barbárie para
a civilização deixava os cientistas e os políticos da época convictos
de que era possível fazer com que os ameríndios transpusessem os
vários estádios evolucionais até chegar à civilização. Ou, tal como
Robert Bieder sintetizou, ao serem considerados como seres racio­
nais, os ameríndios estavam habilitados a melhorar e progredir para
além da fase rudimentar em que se encontravam, tal como os euro­
peus o tinham feito64. Deixados a si próprios, os índios progrediríam
lentamente. Uma evolução mais rápida seria possível pela interven­
ção dos Estados e dos indivíduos «civilizados».
Pombal não era, no entanto, o único estadista português a con-
textualizar a situação dos ameríndios do Norte do Brasil na coloni­
zação luso-brasileira e a justificar a intervenção colonial portuguesa
como uma forma de acelerar o progresso dos índios rumo à civiliza­
ção, utilizando explicações científicas e morais. Outros políticos,
como Francisco Xavier de Ribeiro Sampaio, D. Francisco Maurício
de Sousa Coutinho ou D. Marcos de Brito e Noronha, eram influen­
ciados pela produção científica europeia quando apontavam crité­
rios culturais e ambientais como factores da desigualdade humana,
determinantes do baixo nível civilizacional dos índios. Enquanto
o ouvidor explicava a inércia dos índios como uma consequência
da fertilidade da terra e da benignidade do clima, o governador

63 Jill R. Dias, «Um contributo oitocentista para a divulgação em Portugal do


debate europeu sobre a Raça», p. 128.
64Robert E. Bieder, Science encounters the Indian 18Z0-1880, The early years ofAmerican
Ethnology, s/l, The University of Oklahoma Press, Norman e London, 1986, pp. 8 e ss.

317
A C O N S T R U Ç Ã O DE IM A G E N S

afirmava que entre índios e brancos não havia outras diferenças que
as climatéricas e de educação e Brito e Noronha defendia que a
legislação emanada tinha que considerar o carácter dos povos a que
se destinava e as dependências estabelecidas entre o seu estado
social e o clima65.
As noções implícitas de que o meio ambiente era determinante
no comportamento humano ou de que os homens, apesar das dife­
renças «rácicas» ou «nacionais», pertenciam a uma mesma espécie e
eram igualmente capazes, revelavam que estes altos funcionários
estavam ao corrente da produção científica europeia sobre a história
natural da humanidade e que confrontavam esse conhecimento com
a situação deparada no Norte brasileiro66.
Tal como os cientistas e filósofos ingleses, norte-americanos,
espanhóis e franceses, estes luso-brasileiros que viveram e viajaram
no Estado do Grão-Pará da segunda metade de Setecentos conce­
biam que o clima, a alimentação, as condições de vida e a organiza­
ção social determinavam o nível civilizacional dos ameríndios67. Per­
cebiam que o facto de os índios viverem próximo dos trópicos
condicionava o seu temperamento, a sua capacidade inventiva e a
sua habilidade para se organizarem socialmente. Mas a experiência
pessoal destes luso-brasileiros permitia-lhes afirmar que estes eram
também afectados por doenças, pela coacção dos contratadores,
pelo desmantelamento das famílias e pela opressão dos luso-brasi­
leiros.
O discurso colonial indígena beneficiou, também, do envolvi­
mento de algumas instituições de carácter científico, de que a mais
notória foi a Academia Real das Ciências. Assim, Maria Beatriz
Nizza da Silva, num seu estudo sobre o panorama científico nacio­
nal, constatou que a «política a ser seguida em relação aos índios do
Brasil constituía ainda no fim do período colonial um tema de refle­

65 AHU, Rio N egro, caixa 19, doc. 62, Parecer de Francisco Xavier Ribeiro de
Sampaio à carta régia de 19 de Maio de 1798 extinguindo o Directório, de 19 de Junho
de 1805; Conselho Ultramarino, códice 342, fls. 194-196v, Ofício de D. Francisco de
Sousa Coutinho sobre o sistema mais próprio para se civilizarem os índios do Pará,
de 22 de Novembro de 1797; Rio N egro, caixa 19, doc. 52, Parecer de D. Marcos de
Noronha e Brito sobre a aplicabilidade do alvará régio de 17 de Dezembro de 1802
aos índios do Norte do Brasil.
66 Sobre as correntes progressistas, veja-se Fred W. Voget, «Forgotten forerun-
ners of Anthropology», in Budenell Review, pp. 78 e ss.
67 Veja-se, por exemplo, Marisa González Montero de Espinosa, L a Ilustración y
el hombre americano. Descripciones etnológicas de Ia expedición M a la sp in a , Madrid, Con-
sejo Superior de Investigaciones Científicas, 1992, p. 31.

318
A C O N S T R U Ç Ã O DE IM A GE NS

xão para os sócios da Academia»68. A potencialização econômica do


território, afinal um dos objectivos prioritários deste organismo
científico, só podia ser alcançada pelo aproveitamento e rentabiliza-
ção da mão-de-obra ameríndia69. Ora, tal era possível, segundo
defendia o matemático e astrônomo Antônio Pires da Silva Pontes
na sua «Memória sobre os homens selvagens da América meridio­
nal, que serve de introdução às viagens», pela educação dos índios70.
No discurso colonial centrado no Norte do Brasil durante a
segunda metade de Setecentos, o progresso' social e moral dependia
das alterações do meio ambiente e da educação, tal como dependia
de medidas de natureza política e social. Por isso, a superioridade da
cultura e da civilização europeias tomava lícita a interferência portu­
guesa junto das comunidades ameríndias no sentido de as introduzir
numa nova ordem política. Tal como escreveu John Elliott, nenhum
cristão podia aceitar uma explicação totalmente determinística
sobre a diversidade humana como um facto inalterável da existên­
cia. A religião e a educação eram consideradas como factores que
transformavam todos os homens, mesmo os que viviam nas condi­
ções climatéricas mais desfavoráveis. Contudo, a consciência da
diversidade e a necessidade de ajustar o discurso político às caracte­
rísticas ambientais e sociais das áreas a que se aplicavam reflectiam
a percepção que os europeus setecentistas possuíam da complexi­
dade da natureza humana71.
A crença de que os índios eram capazes de progredir com a
ajuda dos portugueses não era, no entanto, a única. Outras opiniões
surgiam no panorama político nacional, talvez decorrentes do con­
tacto com a obra de Comélio de Pauw72. Em princípios do século xix,
o procurador da Fazenda despachava o seguinte: «Já em outros offi-

68 Maria Beatriz Nizza da Silva, «Cultura luso-brasileira (1778-1808)», in Arquipé­


lago, História, 2 .‘ série, II, 1997, p. 200.
69 Sobre a «instrumentalização» do conhecimento científico e da curiosidade dos
viajantes como actividade fundamental da Real Academia das Ciências e sobre a sua
utilização como uma das formas de obter o bem-estar individual e a felicidade dos
povos, veja-se Nuno Gonçalo Monteiro, «Os poderes locais no Antigo Regime», in
História dos municípios e do poder loca! (dos finais d a Id ad e M é d ia à União Européia), direc­
ção de César de Oliveira, Lisboa, Círculo de Leitores, 1996, pp. 91-92; e Maria Beatriz
Nizza da Silva, «A História Natural no Brasil antes das viagens do príncipe Maximi-
liano», in O ceanos, 24, Outubro-Dezembro de 1995, pp. 12 e ss.
70 Ibidem, pp. 201-202.
71 J. H. Elliott, «The discovery of America and the discovery of man», in Raleigh
Lecture on History, Oxford University Press, Ely House, Londres, 1972, p. 25.
72 Anthony Pagden, European encounters with the N ew W orld..., pp. 102-103.

319
A C O N S T R U Ç Ã O DE I M A G E N S

cios ponderei que a estúpida sensibilidade dos índios, conhecida por


uma continuada experiência de mais de dois séculos, desmanchava
todos os raciocínios filozóficos sonhados na comodidade dos gabi­
netes; os mesmos que os formarão se tivessem visto que hum índio
não tem ambição, que hum Aymoré unico tomado aos paes na
idade de dous annos se não pode crear entre os brancos mudarião
de opinião e conhecerião que a vida social he hum meio de os extin-
guir quando he muita stricta e dirigida por coacção que esta grande
porção da espécie humana jamais se costumará ao trabalho por utili­
dade própria e que se não pode formar sobre o seu serviço plano
algum de utilidade e boa ordem [...]• Não obstante isto, convem
adoçar a sua desgraça, obstando quando for pocível à sua brutali­
dade, o que só depende do carácter moral dos directores e de quem
os nomear.»73 A incapacidade indígena no sentido de caminhar ru­
mo à «civilização», aqui apresentada como resultado de uma expe­
riência directa, podia perfeitamente inspirar-se na leitura do filósofo
francês que, levando ao extremo a teoria de Buffon, considerava que
a degradação dos índios era tão grande que quaisquer esforços
empreendidos pelos europeus só podiam redundar em fracasso74.
Esta ideia de que as sociedades ameríndias não podiam ser
transformadas na sua essência redundou, segundo Manuela Car­
neiro de Mendonça, na corrente imperante da política indigenista
durante o século seguinte. Todavia, não é a única. Tal como foi
constatado para a segunda metade de Setecentos, também no Portu­
gal e no Brasil oitocentistas o debate sobre a possibilidade de trazer
os índios para a civilização e para a felicidade continuava a ser per­
tinente e actual. Um dos seus defensores era José Bonifácio de
Andrada e Silva que defendia que «embora falto de razão apurada
[...] não se deve concluir que seja impossível converter estes bárba­
ros em homens civilizados»75.
Não obstante o que temos vindo a afirmar, Carneiro da Cunha
é de opinião que a questão sobre a humanidade dos índios só foi
verdadeiramente colocada em Oitocentos, relacionando-se com a

73 AHU, Rio N egro, caixa 19, doc. 52, Parecer do procurador da Fazenda a um
parecer de Francisco Xavier Ribeiro de Sampaio sobre a extinção do Directório, de 19 de
Junho de 1805.
74 Robert E. Bieder, Science encounters the In d ia n ..., p. 4; Jill R. Dias, «Divulgação
em Portugal do debate europeu sobre a Raça», p. 130.
75 José Bonifácio de Andrada e Silva, Apontam entos p a r a a civilização dos índios bár­
baros do reino do Brasil, edição crítica de George C. A. Boehrer, Lisboa, Agência Geral
do Ultramar, 1963, pp. 49-51.

320
A C O N S T R U Ç Ã O DE I M A G E N S

preocupação que o cientificismo do século xix teve em demarcar


claramente os antropóides dos humanos. A autora explica que, até
por uma questão de orgulho nacional, a humanidade dos índios era
afirmada oficialmente, mas oficiosamente e para uso interno do país
a ideia da bestialidade, da fereza, ou seja, da animalidade dos ín­
dios, era usual76.
Quer usufruindo de um papel importante no progresso de
outras nações quer desempenhando uma função atenuante da sorte
dos índios (diriamos humana), a interferência redentora dos luso-
-brasileiros junto das sociedades ameríndias da Amazônica de Sete­
centos reflectia, à semelhança do que legitimava a intervenção espa­
nhola em território sul-americano, a mentalidade ilustrada daqueles
que, sabendo-se depositários da razão e das luzes, acreditavam ter
por missão redimir o mundo da superstição e da barbárie77.
As linhas de pensamento expressas por estadistas e políticos portu­
gueses repercutiam as tentativas europeias de explicar o lugar do
homem americano na história da humanidade. Definidos nos dicioná­
rios setecentistas como cruéis, inumanos, rudes, grosseiros, primitivos,
pagãos e selvagens, os índios encontravam-se desprovidos de tudo o
que definia as referências paradigmáticas europeias78. Confrontados
com as civilizações ameríndias, os europeus afirmavam que os índios
não eram civilizados porque não viviam em núcleos urbanos; desco­
nheciam o significado de propriedade privada; eram caçadores-recolec-
tores; praticavam uma agricultura de subsistência, não produzindo
excedentes; não utilizavam moeda e, por isso, não eram dados à activi-
dade mercantil; eram iletrados; e não tinham noção de história, porque
não havia registos do passado. Não tinham religião, lei ou «polícia».
Tinham, para além do mais, uma outra forma de se relacionar com
o meio ambiente. Esta caracterizava-se pelo estabelecimento de um
equilíbrio ecológico que permitia que as sociedades ameríndias depen­
dessem inteiramente dos rios e da floresta equatorial, da fauna e flora
da bacia hidrográfica amazônica, sem que se desenvolvessem técnicas

76 Legislação indigenista no século xix. U m a compilação (1 8 0 8 -1 8 8 9 ), o r g a n iz a d a p o r


M a ria M a n u e la C a rn e iro d a C u n h a , S ã o P aulo, C o m is s ã o P ró-ín d io d e S ã o P aulo,
ED U SP, 1 9 9 2 , p. 5.
77 A n to n io L a fu e n te e A n to n io M a z u e c o s , «L a a c a d e m ia itin e ran te: la e x p e d ic ió n
fra n c o -e sp a n o la al R e in o d e Q u ito d e 1 7 3 6 », in C arlos III y la ciência de la Ilustración,
c o m p ila ç ã o d e M a n u e l S e llés, J o s é L u is P e se t e A n to n io L a fu e n te , M a d r id , A lia n za
E d itorial, 1 9 8 8 , p . 3 0 3 .
78 R a u l A lc id e s R e issn e r, E l indio en los diccionarios. E xegesis léxica de un estereotipo,
M é x ic o , In stitu to N a c io n a l In d íg en a, 1983, p p . 4 4 e ss.

32 1
A C O N S T R U Ç Ã O DE IM A GE NS

para dominar e controlar a natureza79. A estas culturas adaptadas ao


ecossistema, opunha-se a vontade dos habitantes do Velho Mundo em
transformar o meio ambiente, por forma a responder às necessidades da
sociedade e da economia coloniais80. Para os luso-brasileiros da segunda
metade do século xvrn, tal como para qualquer outro europeu da época,
o progresso dos povos dependia da capacidade de transformar o Mundo
Novo à imagem do Velho e de potencializá-lo e explorá-lo em benefício
próprio, graças à aplicação da ciência e da técnica. Tal como refere Pag-
den, aqueles que utilizavam a ciência para controlar e natureza eram
civis ou civilizados, os que o não faziam eram selvagens ou bárbaros81.
As conquistas alcançadas pelos europeus — na educação, nave­
gação, comércio, tecnologia de combate, imprensa e liberdade polí­
tica assegurada pelo direito de propriedade — asseguravam, por­
tanto, a superioridade da civilização europeia e legitimavam a
colonização, a evangelização e a espoliação dos indígenas82. Tal
como o afirmaram Mazuecos e Lafuente, a intervenção dos euro­
peus devia fazer-se no sentido de levar as «luzes da civilização» a
outros povos mais indolentes, menos inventivos e sem comércio
por forma a transformá-los e dominá-los.
A ideologia do progresso legitimava esta interferência que, nos
domínios coloniais, era uma atribuição dos Estados nacionais. Era
graças a essa intervenção que os poderes centrais se propunham
levar aos súbditos americanos não a escravidão ou a servidão mas a
civilização e o esclarecimento.

I m a g e n s d e ín d io s e d is c u r s o c o lo n ia l

O discurso colonial que os luso-brasileiros da segunda metade


de Setecentos construíram sobre os índios é formado por uma plura­

79 Ju a n d e O n is a fir m a : « A m a z ô n ia w a s n o t, a n d is n ot, a n e m p ty q u a rte r w ith o u t


a cu ltu ral p a st . It h a s b e e n a h a b ita t fo r m illio n s o f h u m a n s w h o h a v e m a d e th e ir living
in th e fo r e s t a n d w e r e a b le to m a in ta in a n d re p ro d u c e th eir so c ie tie s o v e r cen tu ries
u n til th e y w e r e o v e r c o m e b y in v a d e rs w h o carn e n o t o n ly w ith stro n g e r w e a p o n s bu t
w ith a cu ltu re b a s e d o n d o m in a tio n o f n a tu re » ( The green calhedral. Sustain able develop-
ment o f A m azôn ia, N e w Y o rk e O x fo rd , O x fo r d U n iv e rsity P ress, 1992, p. 40).
80 A n th o n y P a g d e n , European encounters with the N ew W orld..., p p . 6 e ss.
81 Ibidem.
82 D a v i d A r m it a g e , « T h e N e w W o r ld a n d B r it is h h is t o r ic a l th o u g t h : fro m
R ic h a rd H a k lu y t to W illiam R o b e r tso n », in America in Euroyean consciousness, Í4 9 3 -
-'1750, e d ita d o p o r K a re n O rd a h l K u p p e rm a n , W illiam sb u rg , C h a p e ll H ill e Lon dres,
In stitu te o f E arly A m e ric a n H isto r y e U n iv e r sity o f N o rth C a ro lin a P ress, 1995, p. 63.

322
A C O N S T R U Ç Ã O DE I M A G E N S

lidade de testemunhos, frequentemente contraditórios: dóceis, há­


beis, infelizes, pobríssimos, miseráveis, ignorantes, rústicos; vassa­
los, súbditos, gentios, bravos, pacíficos; preguiçosos, sediciosos,
insolentes, assassinos, malévolos, ferozes, miseráveis, cruéis, desu­
manos, insignificantes, venais, inconstantes e bárbaros. Como se
justificam estas contradições? Será que residirão na incoerência da
natureza indígena, na ambivalência da linguagem, onde um vocá­
bulo pode ter dois significados, ou na interferência dos luso-brasilei­
ros enquanto transmissores da imagem dos ípdios?
Antes de mais, é preciso atentar que esta percepção é feita com
base em discursos coloniais de várias proveniências e com diferentes
finalidades. Este problema foi já magistralmente enunciado por John
Eliott quando afirmou que os relatos do que os europeus viram quando
chegaram ao outro lado do Atlântico dependiam intrinsecamente de
quem eram, da sociedade em que viviam, da sua formação cultural e
religiosa, dos seus objectivos pessoais e profissionais83. Derivavam,
também, do tipo de informação que os índios queriam prestar, do grau
de compreensão da linguagem, das dificuldades na conclusão dos diá­
logos. «Even where Europeans in the New World had the desire to look
and the eyes to see, there is no garantee that the image which they pre-
sented itself to them — wheter of people or of places — necessarily
accorded with the reality. Tradition, experience and expectation were
the determinant of the Vision.»84 Esta afirmação é tanto válida para os
depoimentos escritos quanto para os documentos iconográficos e etno­
gráficos preservados em arquivos, bibliotecas e museus, e que obede­
ciam à especificidade de pedidos e aos critérios de escolha85.

83 Jo h n H u x ta b le E lio tt, The O ld World a n d the New, 149 2 -1 6 3 0 , C a m b r id g e ,


C a m b r id g e U n iv e r sity P ress, 19 7 0 , p. 18; a c o m p le m e n ta r id a d e q u e se e s ta b e le c e
entre o s re la to s d e d ife re n te s a u to r e s é u m a q u e st ã o ta m b é m p o n d e ra d a p o r N u m a
B roc, «V o y a g e s e t g é o g ra p h ie a u xvine siè c le », in Revue d'Histoire d es Sciences et de leurs
applications, to m o x x ii (2), A b ril-Ju n h o d e 1 9 6 9 , p p . 137 e ss.
84 Ihidem, p. 20.
85 P ara a lé m d o s a lb ú n s d e g ra v u r a s e c a t á lo g o s d e e x p o s iç õ e s q u e d ifu n d e m
d e s e n h o s e a r te fa c to s , h á a in d a m u ito m a te r ia l in é d ito e x is te n te e m b ib lio te c a s,
m u s e u s , la b o r a tó r io s e a c a d e m ia s . S a lie n ta m o s, p a r a a r e g iã o e m a n á lise , A le x a n d re
R o d r ig u e s F erreira, Viagem filosófica à s capitan ias do G rão -P ará, Rio Negro, M a to G rosso
e C u iab á, d e se n h o s c o lig id o s p o r E d g a rd d e C e rq u e ir a F alcão , S ã o P au lo , E d . G r á ­
fic o s Brunner, L .da, 1 97 0 ; Viagem filosófica p etas capitanias do G rão -P ará, Rio N egro,
M ato G rosso e C u iab á, s/1, C o n s e lh o F ed eral d e C u ltu ra , 19 7 1; A A W , N a s vésperas do
mundo moderno. Brasil, L isb o a , C o m is s ã o N a c io n a l p a r a a s C o m e m o r a ç õ e s d o s D e s ­
c o b r im e n to s P o r tu g u e s e s , L is b o a , 1 9 9 2 ; M . L . R o d r ig u e s A r e ia , M a r ia A r m in d a
M ir a n d a e T e k la H a rtm a n , M em ória d a Am azônia. Alexandre Rodrigues Ferreira e a via­
gem philosophica p e la s capitan ias do G rão -P ará, Rio Negro, M a to G rosso e C u iab á, 1783-

323
A C O N S T R U Ç Ã O DE IM A G E N S

Depois, pensamos que há que confrontar a imagem abstracta,


muitas vezes ideal, que as instituições centrais faziam dos amerín­
dios, bem como os princípios jurídicos e morais que queriam
implantar, e a ideia reflectida por quem convivia com eles no dia-a-
-dia e se deparava com uma multiplicidade de situações e de reac-
ções, muitas vezes resultantes de conflitos culturais. O que quere­
mos afirmar é que a designação índio não teve um significado único
para os portugueses do século xvni, variando em função de estarem
no reino ou de viverem na colônia e, possivelmente, de habitarem
os centros urbanos ou os confins do sertão amazônico. As distâncias
geográficas influenciavam o discernimento, tal como as proporções
entre o número de luso-brasileiros e índios. E, por isso, os princípios
filosóficos e éticos enunciados na primeira parte deste capítulo mui­
tas vezes não fariam sentido nas relações quotidianas luso-amerín-
dias no Norte brasileiro durante a segunda metade de Setecentos.
Os habitantes do Estado percebiam que conceitos como os de
felicidade, bem comum, riqueza e progresso não tinham aplicabili­
dade quando se tratava das etnias ameríndias do Norte do Brasil,
porque reconheciam que estes objectivos eram diferentes para luso-
-brasileiros e para índios. Noções como as de lucro ou ambição nada
significavam para estes: «Os índios já Va. Exa. os terá conhecido em
conssequencia comprehenderá o pouco que elles (de modo ordiná­
rio) estimão o dinheyro e como os jomaes hão de ser sem dúvida
mais acrescentados do que tinhão antigamente se não houver
alguma providência a seu respeito não tirarão do seu trabalho mais
do que darem mayor conssumo a caxassa nas tavemas do Pará e
ficarão as suas pobres famílias tão nuas como andavão quando elles
herão tiranizados pelos Padres.»86 No mesmo sentido, e alguns anos
mais tarde, Matias José Ribeiro alertava que, para os ameríndios,
felicidade significava viver ociosamente, sustentando-se do que a
natureza e o acaso lhes dava e que nada tinha a ver com riqueza ou
comodidade87. Tal como os luso-brasileiros, os índios eram capazes

- 1 7 9 2 , C o im b r a , M u s e u e L a b o r a t ó r io A n tr o p o ló g ic o , U n iv e r sid a d e d e C o im b r a ,
1 9 9 1 ; A A W , História dos índios do Brasil, o r g a n iz a ç ã o d e M a n u e la C a rn e iro d a C un ha,
S ã o P au lo , F a p e s p , C o m p a n h ia d a s L e tras, Se cre ta ria M u n ic ip a l d a C u ltu ra , 1992;
v e ja -se o a r tig o d e C h r istia n F. F eest, «T h e c o llectin g o f A m e ric a n a rtifa c ts in E urope
1 4 9 3 -1 7 5 0 », in America in European counsciousness, p p . 3 2 4 e ss.
86 A N /T T , M anuscritos do Brasil, n .° 5 1 , fl. 5 2 , O fíc io d e F ran cisco X a v ie r d e M e n ­
d o n ç a F u rta d o a M a n u e l B e rn a rd o d e M e lo e C a str o , d e 2 2 d e A b ril d e 1761.
87 A N R J, c ó d ic e 9 9 , v o l. 5 , fls. 1 1 8 e s s ., O fíc io d e M a t ia s Jo s é R ib e iro a M arti-
n h o d e M e lo e C a s tr o , d e 15 d e M a r ç o d e 1784.

324
A C O N S T R U Ç Ã O DE IM A G E N S

de ser felizes. Só que, para eles, a felicidade consistia, unicamente,


na capacidade de satisfazer as necessidades mais básicas88.
Esta última afirmação é particularmente reveladora da forma
como os luso-brasileiros procuravam compreender as sociedades
ameríndias com quem conviviam e do modo como os esquemas
mentais europeus direccionavam as suas observações. De facto, é
importante considerar que os luso-brasileiros de Setecentos eram
produto de uma sociedade unida por ideais claramente definidos:
catolicismo, superioridade civilizacional, organização hierárquica e
corporativa.
Confrontados com os ameríndios, a questão que lhes era colo­
cada consistia em saber que tipo de seres eram, que diferenças
tinham em relação a si, como essas desigualdades podiam ser expli­
cadas e até que ponto deviam ser toleradas. Dos vários discursos
sobre os ameríndios fica claro que não questionavam a natureza
humana dos índios, mas o seu grau de humanidade89. Enquanto por­
tugueses e católicos, como podiam considerar iguais a si indivíduos
nômadas, pagãos e bárbaros que requeriam um tratamento especial
determinado pelo seu estatuto jurídico e pela sua organização social
e econômica? Viciosos, preguiçosos, melancólicos, covardes, mal-
-intencionados, ingratos, inconstantes, idólatras, fracos, lascivos,
valentes, corajosos e simples foram alguns dos atributos utilizados
para descrever os ameríndios da bacia hidrográfica amazônica da
segunda metade do século xvni. A medida era, obviamente, a dos
europeus da época90.
O discurso colonial sobre os ameríndios durante a segunda
metade de Setecentos foi sendo construído desta forma. E, assim, as

88 Anthony Pagden, European encoutiters with the N ew World, p. 151.


89 Confronte-se com a afirmação de frei João de São José Queirós quando refere
que não era «necessário o recurso a Roma para nos declararem que os indios são da
mesma espécie racional, como em alguns dias se duvidou de alguns», in «Viagem e
visita em o bispado do Grão-Pará em 1762-1763», in Revista do Instituto Histórico e G eo­
gráfico do Brasil, tomo IX, 1847, p. 333; e J. H. Elliott, «The discovery of America and
the discovery of man», p. 9.
90 A visão que se tinha do índio foi uma réplica da autocompreensão do euro­
peu. O índio e a civilização indígena são vistos como diferentes numa comparação
em que as concepções de europeu e de civilização ocidental são as referências (Horst
Pietschmann, «Vision dei indio e historia latinoamericana», in L a im agen d ei indio en Ia
Europa M oderna, Sevilha, Escuela de Estúdios Hispano-Americanos, Consejo Superior
de Investigaciones Científicas, Fundacion Europea de la Ciência, 1990, p. 3. Com-
pare-se com João Rocha Pinto, «O idealismo alemão e os índios do Brasil», in O cea­
nos, 24, Outubro-Dezembro de 1995, p. 64.

325
A C O N S T R U Ç Ã O DE IM AGENS

descrições sobre os índios da bacia hidrográfica amazônica divergem


entre a sua descrição como elementos do mais baixo estrato de entre
todos os ameríndios do território brasileiro e como indivíduos tão
destros e hábeis como qualquer luso-brasileiro em todos os tipos de
tarefas91. São simultaneamente retratados como capazes de atacar
atraiçoadamente as tropas luso-brasileiras porque esse era o seu modo
de operar, como dignos de grande lealdade e bom comportamento na
condução de descimentos para as povoações luso-brasileiras92.
Não obstante se socorrerem de critérios de julgamento inerentes
à sua identidade cultural, os luso-brasileiros cedo se aperceberam de
que a realidade com que deparavam era complexa. Se a distinção
entre índios selvagens, índios mansos e índios domésticos se expli­
cava pela sua reacção à colonização e, mais exactamente, pelo tipo
de relações que se estabeleciam entre índios e luso-brasileiros, reco­
nhecia-se que não era suficiente para descrever a multiplicidade das
culturas com que eram confrontados.
Os luso-brasileiros em contacto com as diferentes etnias da
bacia hidrográfica amazônica sabiam que os índios deste imenso
espaço geográfico não tinham o mesmo nível civilizacional e que
entre as diferentes etnias havia diferenças culturais e comportamen-
tais notórias: os Mura, os Macuná e os Mundurucú eram mais fero­
zes e bárbaros; os Curutús eram humanos e dignos e considerados
tão hábeis e civis como os ameríndios já aculturados93; os Cambeba,
como mais civilizados e razoáveis94; os Juri, Chumana e Vasari, «de
maior fidelidade, robustes e promptidão»95.

91 Confronte-se a descrição do padre Aleixo Antônio ao padre João de Gusmão


quando apontava que os índios aceites para membros da Companhia tinham outras
famílias e pertenciam a outro tipo de nobreza não existente no Norte brasileiro com a
seguinte afirmação de João Baptista Mardel: «Farei a recomendação por Va. Exa. orde­
nada a respeito dos índios os quaes também devo segurar a Va. Exa. que não são tão
desprezíveis como se imagina, porque tendo estado entre os nossos, a mayor parte são
igualmente hábeis e destros para qualquer empreza» (AHU, Pará, caixa 18 (739 F) de 3
de Outubro de 1755; Rio Negro, caixa 11, doc. 7, de 29 de Maio de 1785).
92 AHU, Rio Negro, caixa 4, doc. 3, Ofício de João Pereira Caldas a Pedro Maciel
Parente, de 18 de Novembro de 1781; ibidem, caixa 12, doc. 2, Ofício de João Bernar-
dino Borralho a João Pereira Caldas, de 6 de Janeiro de 1786.
93 AHU, Rio Negro, caixa 7, doc. 12, Ofício de Teòdósio Constantino de Cher-
mont a João Pereira Caldas, de 17 de Julho de 1783.
94 Vejam-se as observações antropológicas do naturalista Alexandre Rodrigues
Ferreira em Viagem filosófica pelas capitanias do Grão-Pará, Rio Negro, Mato Grosso e
Cuiabá, Memórias. Antropologia, s/1, Conselho Federal de Cultura, 1974.
95 AHU, Rio Negro, caixa 5, doc. 5, Diário da segunda entrada no rio Japurá, rio dos
Enganos/Cumiari ou Jari porTeodósio Constantino de Chermont, de 5 de Julho de 1782.

3 26
A C O N S T R U Ç Ã O DE IM AGENS

O tipo de vestuário, a sua relação com o meio ambiente, a prá­


tica de rituais endofágicos ou antropofágicos, bem como a tolerân­
cia ou a reacção armada à presença luso-brasileira e a existência de
deformações físicas no grupo, eram alguns dos elementos avaliado­
res do grau civilizacional das etnias ameríndias.
Se as descrições sistemáticas destes grupos surgiram, pela pri­
meira vez, com as observações do naturalista Alexandre Rodrigues
Ferreira, as peculiaridades dos costumes e da aparência dos indíge­
nas foram, quer antes quer depois da'viagem científica, objecto de
interesse de muitos viajantes e alvo de descrição de funcionários,
soldados, moradores e eclesiásticos96. Assim, os relatos dos bispos
frei João de São José Queirós e D. Frei Caetano Brandão, em viagem
pelo Norte brasileiro nos anos de 60 e 80 do século xvill, referem
detalhadamente alguns dos costumes de Maués, Barés e Mura97.
Também Teodósio Constantino de Chermont, primeiro comissário
das demarcações estabelecidas pelo Tratado Provisório de Santo
Ildefonso, efectuou observações de «carácter antropológico» para
descrever as etnias Mahuá e Taboca98.
Apesar das diferenças notórias postas em evidência a todo o
momento pela documentação, os luso-brasileiros apercebiam-se,
gradualmente, que os ameríndios eram pessoas, umas vezes pareci­
das, outras vezes diferentes dos colonizadores. Ou, nas palavras do
naturalista Alexandre Rodrigues Ferreira, deviam desenganar-se os
que julgavam que os índios são «menos gente que nós»99. Tal como

96 Ângela Domingues, «Os índios da Amazônia nas impressões de um natura­


lista d o século xviii», in Ler História, 23, 1992, p. 4; «A importância das visitações para
o conhecimento das etnias ameríndias...», pp. 461-464.
97 Frei João de S. José Queirós, «Viagem e visita do sertão em o bispado do Grão-
-Pará em 1762-1763», pp. 188, 189 e 363; Frei Caetano Brandão, Diário das visitas pas­
torais do Exmo. e Rmo. Senhor D. Frei Caetano Brandão, arcebispo e senhor de Braga,
primaz de Espanha no seu Bispado do Pará. Ajuntam-se algumas cartas que escreveu
estando em Braga, Copiado no anno de 1806 (BN, cód. 6321, fl. 55). Uma outra versão
deste manuscrito encontra-se publicada em Luís Antônio de Oliveira Ramos, Diários
das visitas pastorais no Pará de D. Fr. Caetano Brandão, Porto, Instituto Nacional de
Investigação Científica, Centro de História da Universidade do Porto, 1991.
98 AHU, Rio Negro, caixa 5, doc. 7, Ofício de Teodósio Constantino de Cher­
mont a João Pereira Caldas, de 22 de Junho de 1782. A informação constante no ofí­
cio viria a ser utilizada por Alexandre Rodrigues Ferreira, que nunca teve contacto
directo com a etnia (Alexandre Rodrigues Ferreira, Viagem filosófica p elas capitanias do
G rão -P ará, Rio N e g ro ..., Antropologia, Memória IV, pp. 31 e ss.); ibidem, caixa 5, doc. 5,
Diário da segunda entrada no rio Japurá, rio dos Enganos-Cumiari ou Juri por Teo­
dósio Constantino de Chermont, de 5 de Julho de 1782.
99 Alexandre Rodrigues Ferreira, Viagem filosófica p e la s c a p ita n ia s..., M em órias.
Zoologia e Botânica, Memória IX, p. 89; a mesma ideia encontra-se já expressa num

327
A C O N S T R U Ç Ã O DE IM A G E N S

os luso-brasileiros, gostavam de ser bem tratados, bem alimentados


e de festas, bailes, música e divertimentos100. Paralelamente, e como
resultado de um contacto mais circunstanciado com os ameríndios,
ocorreu o reconhecimento da sua «humanidade», considerada agora
numa acepção ética e moral. Para lá da incivilidade e da barbari­
dade, os indígenas podiam revelar comportamentos dignos e huma­
nos, como tinha sido o caso dos Coretús, que tinham auxiliado as
partidas demarcadoras no rio Apaporis e que tinham sido contagia­
dos pelas doenças do Velho Mundo, «sendo serto que se fazem dig­
nos de commizeração de Va. Exa. por lhe havermos cauzado a sua
infelicidade, e nos haverem tractado como crivei se não faria de cria­
turas que ignoram a Excellencia da virtude da caridade que con-
nosco exerceram»101. Chegavam, nalgumas situações, a sobreporem-
-se moralmente aos índios aldeados em povoações luso-brasileiras.
E, desta forma, dizia Henrique João Wilkens dos Mura que tinham
demonstrado «um brio não próprio da sua fereza e barbaridade, mas
sim da innocencia» quando esclareceram que muitos dos roubos de
farinha e ferramentas, até então atribuídos ao grupo étnico, eram
feitos por índios desertados das povoações do monarca102. Esta rec-
tidão era confrontada com as iniquidades e os vícios dos colonos do
rio Solimões, considerados pelo sargento-mor como o maior obstá­
culo à civilização e à conversão dos povos do sertão.
O discurso da época descrevia os indígenas utilizando, também,
uma perspectiva utilitária, sendo orientado de modo a apreciar o
índio enquanto fonte de mão-de-obra ou prestador de serviços.
Desta forma, aparecem como «estes mizeráveis índios (que outra
gente não tem estas aldeias) se achão em hum estado de abatimento
tal e tão perseguidos de trabalho que he precizo muita suavidade
para os não pôr em dezespero»103; ou, então, como «malévolos» que
Miguel Arcanjo não podia suportar porque todos os dias desertavam

parecer da administração central, onde se afirma claramente que os índios eram


homens como todos os outros (AHU, Rio Negro, caixa 1, doc. 44, Parecer do Conselho
Ultramarino sobre a govemação da capitania do Rio Negro, s/d [post. a 26 de Julho
de 1764]).
100 AHU, Pará, caixa 54 (766), Ofício do conde de Arcos ao visconde de Anadia,
de 27 de Outubro de 1803.
101 AHU, Rio Negro, caixa 7, doc. 12, Ofício de Teodósio Constantino de Cher-
mont a João Pereira Caldas, de 5 de Abril de 1783.
102 AHU, Rio Negro, caixa 14, doc. 18, Ofício de Henrique João Wilkens a João
Pereira Caldas, de 18 de Setembro de 1787.
103 AHU, Rio Negro, caixa 8, doc. 7, Ofício de Manuel da Gama Lobo de Almada
a Martinho de Melo e Castro, de 13 de Julho de 1784.

328
A C O N S T R U Ç Ã O DE IM AGENS

e faltavam às promessas feitas104; ou, ainda, como detentores de


uma «humanidade digna», cedendo alimentos e remédios às debili­
tadas partidas de limites que exploravam o rio Cumiari105. Revela­
vam-se, também, no elogio de Antônio, barão de Schonberg, como
artesãos hábeis, detentores de grande primor e habilidade106.
Os contactos que quotidianamente se estabeleciam levavam a
que os luso-brasileiros os considerassem ora como «homens sem
barba, sem honra e sem vergonha» que desertavam ao menor sinal
de trabalho107; como indivíduos poucò fiáveis com o costume de
negarem informações que tinham anteriormente prestado108; ou
como miseráveis e ignorantes, «vechados extranhamente [do que]
veio a disgostar-se huma classe de operários que antes o Estado
interessaria em favorecer e animar a tão arduas emprezas»109.
Muitos dos medos que afectavam as comunidades índias foram
percebidos na medida em que interferiam nos objectivos da socie­
dade colonial. Por exemplo, atestava-se frequentemente a dificul­
dade que havia nas comunicações com Mato Grosso porque os
índios tinham medo das fomes, doenças e mortes que caracteriza­
vam estas viagens. Durante a exploração do rio Uaupés, em 1785, e
não obstante todos terem sido tratados com mimo e brandura, de os
mantimentos serem abundantes e de não ter adoecido ou morrido
ninguém, os índios fugiam ou andavam «esmoreçidos, pasmados e
insolentes». A explicação para este facto residia no temor causado
pelas feitiçarias lançadas pelos «donos do rio» caso decidissem pros­
seguir com a viagem110.
A política indígena colonial foi afectada por estas percepções.
De facto, definiu-se não apenas em função de razões ideológicas
como se adaptou consoante as áreas geográficas em questão e os

104 Ibidem, caixa 11, doc. 6 e 7, Ofício de Miguel Arcanjo de Bettencourt a João
Bemardes Borralho, de 8 de Outubro de 1785.
105 Ibidem, caixa 16, doc. 9, Ofício de João Pereira Caldas a Henrique João Wil­
kens, de 6 de Fevereiro de 1787.
106 AHU, Pará, caixa 22 (742), Carta de Antônio, barão de Schonberg, à Con­
dessa de Oeiras, de 24 de Novembro de 1761.
107 AHU, Rio Negro, caixa 10, doc. 5, Ofício de Manuel Carvalho dos Santos a
Marcelino José Cordeiro, de 21 de Maio de 1785.
108 Ibidem, caixa 11, doc. 6, Ofício de Manuel da Gama Lobo de Almada a João
Pereira Caldas, de 13 de Setembro de 1785.
109 BNRJ, 1-28, 25, 30, Ofício de S. Francisco de Sousa Coutinho a D. Rodrigo de
Sousa Coutinho, de 20 de Setembro de 1797.
110 AHU, Rio Negro, caixa 10, doc. 5, Ofício de Manuel Carvalho dos Santos a
Marcelino José Cordeiro, de 21 de Maio de 1785.

329
A C O N S T R U Ç Ã O DE IM A G E N S

grupos étnicos envolvidos. Se o discurso colonial se definiu através


do Directório, aqui considerado como um projecto político e institu­
cional para tomar os miseráveis índios do Norte brasileiro em felizes
e úteis vassalos do rei, a política indígena caracterizou-se por uma
adaptação notória a casos particulares111.
Alguns dos princípios considerados como incontestáveis na
administração de Mendonça Furtado e de governadores imediata­
mente subsequentes deram lugar a uma maleabilidade e a uma tole­
rância consideráveis a partir dos anos 80. As autoridades passaram a
considerar a estabilidade e a pacificação do território como uma
prioridade no projecto civilizacional indígena. Deste modo, a fixa­
ção de grupos étnicos recém-descidos em locais designados por
luso-brasileiros substituiu-se, em alguns casos, pela escolha dos ter­
renos pelos próprios ameríndios112; a alimentação e alojamento das
etnias recentemente descidas era, em situações particulares, encargo
da Fazenda Real, evitando-se assim que os índios fossem obrigados
a trabalhar nas terras ou na construção das casas113; a pesca devia ser
a principal ocupação dos recém-aldeados porque era considerada
como mais aproximada ao anterior modo de vida114; também o
pagamento obrigatório dos dízimos devia ser introduzido com
moderação por forma a evitar descontentamentos115.
Em conformidade com esta atitude, Pereira Caldas recomen­
dava ao comandante de Borba que «no mesmo ordenado arrancha-
mento dos Mura haja toda a prudência e que de forma nenhuma se
escandalizem nem se pretenda delles por agora trabalho que
repugne aos seus costumes, para que aborrecidos e disgostozos se

111 AHU, Pará, caixa 45 (763), Determinações do Conselho Ultramarino sobre


vários assuntos mencionados em cartas de D. Francisco de Sousa Coutinho, de 11 de
Fevereiro de 1791.
112 Foi o caso dos Mura, a quem foi permitido escolher os locais de fixação e os
grupos com quem se queriam aldear (AHU, Rio Negro, caixa 11, doc. 6, Ofício de João
Pereira Caldas a Sebastião Pereira de Castro, de 8 de Outubro de 1785; ibidem, caixa
12, doc. 15 A, Exame dos novos estabelecimentos Mura inspeccionados por João
Baptista Mardel, s/d [cerca de 20 de Junho de 1786]).
113 AHU, Rio Negro, caixa 12, doc. 15 A, Ofício de João Pereira Caldas ao coman­
dante de Borba, de 28 de Junho de 1786; ibidem, caixa 14, doc. 3, Ofício de João
Pereira Caldas ao comandante da fortaleza de S. Joaquim do rio Branco, de 5 de Feve­
reiro de 1787; Pará, caixa 54 (766), Ofício do conde de Arcos ao visconde de Anadia,
de 27 de Outubro de 1803.
114 AUC, Cotecção Conde de Arcos, cód. 27, fls. 46v-48, Instruções do conde de
Arcos a José Pedro Cordovil, de 1 de Março de 1804.
115 AHU, Pará, caixa 52 (766), Ofício de D. Francisco de Sousa Coutinho a Joa­
quim José Máximo, de 13 de Abril de 1803.

330
A C O N S T R U Ç Ã O DE IM A G E N S

não tornem à vida licencioza que acabam de largar»116. No sentido


de aliciar a etnia, a Fazenda Real abastecia-a de alimentos e ferra­
mentas e os directores limitavam-se a vigiá-los e presenteá-los.
Relembremos que, à época, corriam as demarcações de limites entre
os territórios ibéricos e que havia divergências entre as duas coroas
quanto ao regime de navegação do rio Madeira. No âmbito da estra­
tégia colonial importava, acima de tudo, manter a região interna­
mente controlada mesmo que, para o efeito, as autoridades tives­
sem que fazer cedências e, também, algumas despesas.
Pensamos que é, precisamente, o desejo de estabilizar intema-
mente o território e de preservar a paz a todo o custo que permite
entender, até certo ponto, as divergências políticas existentes entre
os diferentes órgãos governamentais. Um dos casos mais notórios
foi o das revoltas no vale do rio Branco durante os anos 80. En­
quanto João Pereira Caldas sugeria uma forte acção repressiva con­
tra «estes inúteis comedores de farinhas», a coroa imporia uma ati­
tude condescendente em relação aos revoltosos, considerados como
dignos da real piedade e vítimas da incompreensão e da brutalidade
de soldados e colonos117. É claro que nesta decisão procuravam con­
ciliar-se tanto motivos de natureza filantrópica como interesses de
natureza estratégica e geopolítica. Lembremos que os espanhóis já
tinham pretendido fundar um projecto de colonização sobre a área e
os holandeses podiam candidatar-se à sua ocupação.
Não obstante a divergência das decisões políticas que diziam
respeito à questão indígena, a validade do Directório enquanto pro­
grama civilizacional nunca tinha sido questionada pelas entidades
administrativas que o deviam fazer cumprir118. Considerava-se que
os índios estavam mais perto da liberdade natural do que da ordem
civil e que, abandonados a si próprios, rapidamente regressariam ao
seu estádio civilizacional originário. Era premente manter-se uma

116 AHU, Rio Negro, caixa 12, doc. 15 A, Ofício de João Pereira Caldas ao coman­
dante de Borba, de 28 de Junho de 1786.
117 AHU, Rio Negro, caixa 3, doc. 10, Ofício de Martinho de Melo e Castro a João
Pereira Caldas, de 7 de Julho de 1783; ibidem, caixa 14, doc. 3, Ofício de João Pereira
Caldas ao comandante da fortaleza de S. Joaquim do Rio Branco, de 5 de Fevereiro
de 1787.
118 Contudo, Matias José Ribeiro afirmava que era posto em causa por «huns
tantos Arbitristas [que querem] contra a experiência de todos os dias persuadir se que
os índios são por si capazes de se conservarem em huma sociedade civil, porém
quem delles tenha conhecimento verdadeiro reconhece o contrário» (ANRJ, cód. 99,
vol. 5, fls. 118 e ss., Ofício de Matias José Ribeiro a Martinho de Melo e Castro, de 15
de Março de 1784).

331
A C O N S T R U Ç Ã O DE IM A G E N S

autoridade directiva e tutelar que administrasse e protegesse os vas­


salos mais miseráveis e ignorantes de Sua Majestade Fidelíssima.
As instituições entendiam, unicamente, que era mal executado
devido, numa primeira fase, à interferência sediciosa dos missioná­
rios que «perdidas as esperanças que os regulares têm de tornarem
ao antigo estado, que he hua das maximas que introduzem na
cabeça dos índios, [os põem] em discórdia e disgosto com o novo
Systema e com os novos Parrochos e Directores»119.
Depois, aperceberam-se que a sua aplicabilidade e, consequente­
mente, a prosperidade das povoações e o bem-estar dos índios depen­
diam do empenho pessoal dos directores e das suas capacidades de
gestão120. Estes eram, na maior parte dos casos, definidos como igno­
rantes, ambiciosos, iníquos, bêbados, desleixados e lascivos. Nos anos
80, Matias José Ribeiro apresenta deles a seguinte descrição: «Os
homens [directores] são poucos e por consequência o número dos
bons muito diminuto, estes quando queirão, têm vários modos por
que se possão interter, e passar, e não se sujeitarem com facilidade à
tenuidade do que lhe pode resultar do lucro de huma pequena Povoa-
ção e aos incômodos terríveis da Praga e susto do gentio bravo de que
ela está cercada. E este he o motivo por que muitas vezes naquellas
remotas distâncias se suporta hum Director menos hábil apezar de se
reconhecer que elle para o ser não tem toda a aptidão.»121
A formalização de um projecto político alternativo surgiu, pela
primeira vez, com D. Francisco Maurício de Sousa Coutinho, gover­
nador e capitão-general do Estado do Grão-Pará. Apontado, junta­
mente com as doenças, a coacção dos contratadores, os baixos sa­
lários e a separação das famílias, como sendo uma das causas da
decadência das povoações, o Directório era considerado pelo gover­
nador como o principal responsável pela escravidão dissimulada em
que viviam os ameríndios das capitanias do Norte brasileiro na
segunda metade de Setecentos122.

119 AHI, 340/04/02, doc. 39, Ofício de Francisco Xavier de Mendonça Furtado a
Tomé Joaquim da Costa Corte-Real, de 4 de Julho de 1758.
120 AHU, Pará, caixa 24 (739 D), Ofício de Luís Gómes e Faria Sousa a Francisco
Xavier de Mendonça Furtado, de 15 de Setembro de 1762.
121 ANRJ, cód. 99, vol. 5, fl. 118, Ofício de Matias José Ribeiro a Martinho de
Melo e Castro, de 15 de Março de 1784; Ângela Domingues, «A importância das visi­
tações para o conhecimento das etnias ameríndias da Amazônia e do Pará em mea­
dos de Setecentos», p. 463.
122 AHU, Conselho Ultramarino, cód. 342, fls. 194-196v, Ofício de D. Francisco
de Sousa Coutinho sobre a causa da decadência das povoações indígenas, de 22 de
Novembro de 1797.

332
A C O N S T R U Ç Ã O DE IM A G E N S

Para Sousa Coutinho, a criação de um sistema tutelar conduzia


à exacerbação das diferenças entre índios e luso-brasileiros, na
medida em que fomentava a existência de dois sistemas de governo
para os vassalos de um mesmo soberano. Para além disso, o Directó­
rio ignorava a divagem produzida pela educação e pela aculturação
entre os índios e não considerava que alguns estratos ameríndios
se identificavam com a sociedade colonial, enquanto outros manti­
nham uma dependência ancestral da natureza123124.
Das observações do governador poderemos supor que a polí­
tica implementada ao longo da segunda metade do século xviii
tinha alcançado resultados ao ponto de a sociedade colonial in­
tegrar alguns índios, ainda que nas suas camadas mais baixas, e,
assim, as medidas preconizadas pelo governador não seriam mais
do que o reconhecimento de uma situação de facto? Ou de que
forma é que as medidas advogadas pelo governador pretendiam
acelerar o processo de integração dos índios na sociedade colo­
nial?
Apesar de se pronunciar a favor da sua abolição, D. Francisco de
Sousa Coutinho reconhecia os méritos do Directório quando afir­
mava que a colonização luso-brasileira no Grão-Pará dependia das
alianças e contactos entre colonos e índios, da educação destes e da
«humanidade» daqueles.
O certo é que o Directório foi derrogado por decreto real de
12 de Maio de 1798, criando-se um vazio legislativo que só seria
preenchido em 1845 com o Regulamento acerca das Missões de cate-
chese e civilização dos Indiosm . No período de tempo que mediou os
dois regimentos, os índios passaram a ser considerados vassalos
com os mesmos direitos que os luso-brasileiros, isto é, sem necessi­
tarem de um sistema específico ou tutelar que os administrasse125.
Tal como era estabelecido por carta régia de 25 de Julho de 1798, o
estatuto de miserável restringia-se unicamente aos índios recente­
mente aldeados ou àqueles que, não estando aldeados, fossem con­
tratados pelos moradores. Estavam colocados sob tutela dos juiz dos

123 Ibidem.
124 AHU, Conselho Ultramarino, códice 588, fls. 181-195, Carta régia pela qual
D. Maria I extingue o Directório e apresenta um plano de civilização dos índios com
base no parecer de D. Francisco Maurício de Sousa Coutinho; também em idem, Rio
N egro, caixa 19, doc. 52; o Regulamento encontra-se publicado em Legislação indigenista
no século XIX, pp. 9 e 191-199.
125 Mathias C. Kieman, «The status of the Indian in Brazil after 1820», in The
Am éricas, vol. XXI (3), January, 1965, pp. 266 e ss.

333
A C O N S T R U Ç Ã O DE IM A G E N S

Órfãos, que devia zelar pelo cumprimento dos contratos, pelo paga­
mento dos salários e pela conversão e educação dos índios.
A esta integração jurídica correspondia, também, o desejo de
incorporação econômica dos índios. Pretendia-se que estes fossem
integrados na economia de mercado através da introdução de novos
padrões de consumo, com vista a estimular não só uma nova ética de
trabalho como a dependência de bens produzidos ou comercializados
pela sociedade luso-brasileira. Havia que gerar novas necessidades no
seio das comunidades ameríndias, de forma a que «convertendo se
lhes insensivelmente em precizoens aquelas couzas que até agora lhes
erão desconhecidas e desnecessárias; dado este grande passo com
facilidade se encaminharão aos differentes serviços a que já não
repugnarão, e voluntariamente praticão os índios civilizados»126.
É sempre interessante sublinhar que o processo desencadeado
pelo irmão do futuro conde de Linhares no Pará encontra paralelo
em território colombiano. Também na vizinha Hispanoamérica, a
elite administrativa tentou a incorporação dos índios na sociedade
colonial, pela determinação da paridade de direitos e deveres entre
todos os súbditos do rei católico, tal como tentou proceder à assimi­
lação genética e econômica da população nativa, quer pelo incentivo
à miscigenação quer pela instigação de novas necessidades de con­
sumo127.
Mas, contrariamente ao que ocorreu na Colômbia de finais do
século xvni, a integração ameríndia no Norte do Brasil não se proces­
sou à custa da inalienabilidade das terras comunais indígenas128. Aí,
os índios guardaram sempre direitos de posse e propriedade sobre
as terras em redor das povoações. Tal como Manuela Carneiro da
Cunha afirma, o título dos índios sobre as suas terras era um título

126 AUC, Colecção Conde de Arcos, cód. 27, fls. 46v-48, Instruções do conde de
Arcos a José Pedro Cordovil, de 1 de Março de 1804.
127 Frank Safford, «Race integration and progress: Elite attitudes and the Indian
in Colombia, 1750-1870», in Hispanic American Historical Review, vol. 71 (1), Fevereiro
de 1991, pp. 1 e ss.
128 Na Colômbia assiste-se à repartição das propriedades comunais em proprie­
dades individuais. Considerava-se que «The Indians were unproductive because they
were denied the economic stimulus of self-interest that came from individual pro-
perty holding. New Granadan agriculture, [Miguel de] Pombo argued, had not been
able to prosper, because it had been left in the hands of men kept «in a perpetuai
childhood who without any property at all» had been obligated to farm common
land and [had] been deprived of the stimulus of self interest and the attraction of pro-
fit», in ibidem, p. 8. É interessante confrontar com o que foi dito sobre os índios da
bacia hidrográfica amazônica neste capítulo.

334
A C O N S T R U Ç Ã O DE IM A G E N S

originário, que decorria do simples facto de serem índios: esse título


do indigenato, o mais fundamental de todos, não exigia legitima­
ção129. A única excepção dizia respeito ao território tomado aos
índios que eram alvo de guerra justa: as suas terras eram considera­
das devolutas e repartidas por colonos que as deviam explorar em
regime de sesmaria130.
A chave para a civilização dos índios continuava a ser consti­
tuída pela conversão e pela educação dos povos e, ainda, pela intro­
dução de novos estímulos econômico? e de consumo. Era assim que
se pretendia atrair um grande número de almas «prezentemente
embrutecidas no meio das trevas do Paganismo e da ignorância,
senão ainda para engrossar a porção de vassalos úteis que com o seu
trabalho e com huma vida regular e conforme às Leys da sociedade
possam ajudar os outros meus vassalos que já vivem sujeitos aos
princípios por que se governam os homens civilizados e participem
do meu Paternal disvelo». Era assim que se conseguia «aldear os
índios bravos e selvagens, domestica-los e mudar-lhes o natural, tor­
nando-o de feroz e indolente, em dócil e laboriozo»131.

129 Legislação indigenista no século xix, p. 16.


130 O princípio de guerra justa foi recuperado pela actividade legisladora durante
a regência de D. João que, substituindo D. Maria I em 1792, veio a ser formalmente
nomeado como regente em 1799. Após a morte da rainha, em 1816, foi aclamado no
Rio de Janeiro como D. João VI.
131 AHU, Pará, caixa 50 A (760), Instruções régias para o governador do Pará,
D. Miguel Pereira Forjaz Coutinho, de 7 de Julho de 1800.

335
IMAGENS DE ÍNDIOS E LUSO-BRASILEIROS NO DISCURSO COLONIAL

E tn ia D e sc riç ã o D e sc riç ã o
D a ta T ip o P ro v en iên cia D e stin a tá r io ou do do C o ta
re g ião ín d io b ra n co

3 0-5-1751 In stru ção R ei Fra n cisco X a v ie r L ib e rd a d e In ju stiça B N , C ol. P om balin a,


d e M e n d o n ç a F u rtad o In te re sse p ú b lic o e d o E sta d o M o d o b á rb a ro c o m q u e c ó d . 6 2 6 , fls. 7 e ss .
H u m a n id a d e tra ta o ín d io

A C O N S T R U Ç Ã O DE IM A G EN S
21-11-1751 O fício Fra n cisco X a v ie r M a r q u ê s d e P o m b al D ó c e is C o n v e rte m -se a o s u so s d o s ín d io s M a r c o s C arn eiro
d e M e n d o n ç a F u rtad o F á c e is d e p e rsu a d ir H o m e n s se m leis d e M e n d o n ç a, A E P
H á b e is p a ra o fíc io s t o m o 1, p . 63
M ise rá v e is
G e n tio s
In fe liz e s
In fin ito s h o m e n s n o s se rtõ e s
3 0 -11-1751 O fício Fra n cisco X a v ie r D io g o d e M e n d o n ç a V a ss a lo s d o rei Ib id em , p. 83
d e M e n d o n ç a F u rtad o C o r te R eal
11-2-1752 O fício Fra n cisco X a v ie r P.e M a n u e l d o s S a n to s U tilid a d e P ru d ên cia p a ra lid a r c o m ín d io s B N , 13 4 5 7 V
d e M e n d o n ç a F u rtad o B á rb a ro s V irtu de
V a ssa lo s L e tra s
2 3-4-1752 O fício P.' A n tô n io M a c h a d o P ro v e d o r d a F a z e n d a G e n tio P a cifica çã o B N , Col. P om balin a,
E v itar d e se rç õ e s C ó d . 6 2 1 , fl. 4
12-8-1752 O fíc io Fra n cisco X a v ie r Fra n cisco X a v ie r R io N e g ro G e n tio b ra v o /g e n tio p a cífic o B N , C ol. Pom balin a,
de A n d rad e d e M e n d o n ç a F u rtad o c ó d . 6 2 3 , fls. 123-
-124v

4-12-1752 C a rta rég ia Fra n cisco X a v ie r H o n e s to s c o m d e sc im e n to s A H U , P ará,


d e M e n d o n ç a F u rtad o B á rb a ro in ten to d e cativ a r ín d io s cx . 1 1 0 (8 2 5 )

19-5-1753 P arecer C o n s e lh o U ltram a rin o C â m a r a d a V igia R ig o r in ju sto T r a ta m e n to d u ro , b á rb a ro A H U , C on selho


e in so len te U ltram arino, cód. 209,
E s. 270 v -2 7 2 v

I
2 4-8-1753 O fício P.e A n tô n io M a c h a d o P.e B e n to d a F o n seca G a m e la s B á rb a ro s p o b r íss im o s B P A D E , C X V -2 - 1 4 ,
d o c . 266-2 6 7
29-5 -1 7 5 4 O fício P.e A n tô n io M a c h a d o G a m e la s B á rb a ra g e n tilid a d e B N , Col. Pom balin a,
P re g u iç o so s c ó d . 6 2 5 , E s .l7 9 v -1 8 0 v
14-3-1755 O fício M a r q u ê s d e P om b al F ran cisco X a v ie r A ru ãs S á fa ro s (b rav io s) p a ra A H U , C on selho
d e M e n d o n ç a F u rtad o re c e b e re m h á b ito U ltram arino, có d . 121 4 ,
d e O rd e m M ilitar fls. 2 3 5 -2 3 9

A C O N S T R U Ç Ã O DE IM A G E N S
8-5-1758 C a rta rég ia C o n d e d e A rco s, L ib e rd a d e de b e n s, C a r g o s p ú b lic o s en tre g u e s B N R J 1-33-21-51
v ice-rei d o B rasil c o m é rc io , p e s s o a s ; d ireito a p e s s o a s id ô n e a s
d e p ro p rie d a d e p riv a d a
4-7-1758 O fício Fra n cisco X a v ie r T o m é Jo a q u im M an au s S e d ic io s o s A H I, 3 4 0 - 04-02,
de M e n d o n ça F u rtad o d a C o st a C o rte -R e a l P re g u iço so s doc. 39
R o u b o s e escra v a tu ra
d e p a ren te s
M a n ip u la d o s p o r p a d re s
D e s g o s t o s o s d e a c tu a ç õ e s
d o s b ra n co s
1-8-1758 O fício T o m é Jo a q u im Fra n cisco X a v ie r M agués A se d e n ta riz a r IH G B , lata 278,
d a C o st a C o rte-R ea l d e M e n d o n ç a F u rtad o A civ iliza r liv. 1, d o c . 5 a)
15-1-1760 O fício Jo a q u im d e M e lo Fra n cisco X a v ie r M u ra s In so le n te s e a ss a s s in o s A H U , R io N egro,
P óvoas d e M e n d o n ç a F u rtad o cx . 1, d o c . 24
19-6-1760 O fíc io Fra n cisco X a v ie r G o v e rn a d o r T im b ira F e r o z e s n ã o p o r n a tu re z a m a s A N /T T , M anuscritos
d e M e n d o n ç a F u rtad o d o M a ra n h ã o p e la v io lê n c ia e p e r su a sõ e s d o B rasil, n .° 51,
d e je su íta s fl. 3 6 v
2 5 -6-1760 O fício Fra n cisco X a v ie r M a n u e l B ern ard o V a ss a lo s e m ig u a ld a d e A N /T T , M anuscritos
de M e n d o n ç a F u rtad o d e M e lo e C a str o c o m b ra n co s d o B rasil, n .° 51,
M is e rá v e is h o m e n s in c a p a z e s fls. 3 3 v -3 4
d e s e reg erem
A e d u c a r e m c rista n d a d e A m b ic io so s A N /T T , M anuscritos
30-6 -1 7 6 0 O fício Fra n cisco X a v ie r M a n u e l B ern ard o
e p o lícia E x p lo ra d o re s d e ín d io s d o B rasil, n .0 51,
d e M e n d o n ç a F u rtad o d e M e lo e C a str o
V ira d o s p a ra c o n v e n iê n cias fls. 4 3 v -4 4

te m p o r a is

P a ra le lism o c o m o s ó r fã o s Fa lta d e p a la v ra A H U , R io N egro,


16-1-1761 O fício L o u re n ço P ereira Fra n cisco X a v ie r
d o rein o ; « p e ss o a s m ise rá v e is» E x p lo ra m o s ín d io s cx . 1, d o c . 30
d a C o st a d e M e n d o n ç a F u rtad o
d e stin a d a s a o ex e rc íc io de

A C O N S T R U Ç Ã O DE IM AGEN S
o fíc io s m e c â n ic o s e à agricu ltu ra
P ro p e n so s à b e b id a A N / 1 1, M anuscritos
2 2-4-1761 O fíc io F ra n cisco X a v ie r M a n u e l B ern ard o
N ã o a m b ic io so s ; n ã o d o B rasil, n .0 51 , fl. 52
d e M e n d o n ç a F u rtad o d e M e lo e C a str o
a c u m u la m d in h eiro
P o b re s h o m e n s A H U , P ará ,
4-5-1761 O fício M a n u e l B ern ard o Fra n cisco X a v ie r
cx . 21 (7 3 9 1 )
d e M e lo e C a stro d e M e n d o n ç a F u rtad o
V a ssa lo s reais; h á b e is p a ra P risã o d e fí. Jo ã o d o M o n te A N / 1 1 , M anuscritos
5-6-1761 O fício Fra n cisco X a v ie r M a n u e l B ern ard o
se re m Ir m ã o s T e rce iro s C a rm e lo p o r recu sa r d o B rasil, n .° 51,
d e M e n d o n ç a F u rtad o d e M e lo e C a str o
d a O rd e m d e S. Fra n cisco a c a n d id a tu ra de m a m e lu c o s fl. 86 v

ín d io s b r a v o s e se lv a g e n s A H U , P ará ,
O fício B isp o d e L eiria Fra n cisco X a v ie r A c o ro á
14-6-1761
c o m o in im ig o s c o m u n s d o s cx. 2 2 (742)
d e M e n d o n ç a F u rtad o
in te r e sse s d e P ortu ga l; ín d io s
m a n so s c o m o a lm a s p a ra
o g rê m io d a Ig reja e p a ra
a v a s sa la g e m e p o d e r d o rei
D e v e m - se e s tim a r tal A H U , P ará ,
28-6-1761 D iá rio F elicia n o R a m o s
c o m o e u ro p e u s cx . 21 (7391)
d a v ia g e m N o b re M o u rã o
T ê m a m e sm a a u to rid a d e
d o g o v e rn a d o r
q u e o s e u ro p e u s
D e te n to r e s d e p á tria s A H I, 3 40-04-04
2-9-1762 O fício L o u re n ço P ereira Fra n cisco X a v ie r
d a C o st a d e M e n d o n ç a F u rtad o R e p u g n a -lh e s sa ir d e la s
| e p o r is s o re v o lta m -se

I
15-9-1762 O fício L u ís G o m e s Faria Fra n cisco X a v ie r Ig n o ra n te s e rú stic o s N ã o e n sin a m o s ín d io s, se n d o A H U , P ará ,
e S o u sa d e M e n d o n ç a F u rtad o
c u lp a d o s p ela su a ig n o rân cia cx . 2 4 (7 3 9 D )
e ru stic id a d e ; c o m e te m a b u so s
24-5 -1 7 6 4 P etição A m c e to F ran cisco ín d io s b á r b a ro s a in d a A H U , P ará,
d e C a rv a lh o
n ã o a ld e a d o s cx. 6 0 (775)
2 6-7-1764 P arecer C o n se lh o U ltram a rin o G o v e rn a d o r H o m e n s c o m o o s o u tro s D e v e m fa zer-lh es b o a s p rá tic a s A H U , R io N egro,
e c o m é rc io c o m bo a -fé
6-8-1 7 6 9 O fício Jo a q u im T in o c o V alen te

A C O N S T R U Ç Ã O DE IM A G E N S
Fra n cisco X a v ie r M ise rá v e is; a r e d u z ir A H U , R io N egro,
d e M e n d o n ç a F u rtad o à v e rd a d e ira fo rm a d e v iv er
19-6-1770 C a rta rég ia G o v e rn a d o r H o m e n s b á rb a ro s, cruéis, M o tiv a m c o m p o r ta m e n to B N R J, II-32-17-1
d o M a ra n h ã o d e su m a n o s; o b jecto d e caridade f e ro z d o ín d io
2 9-7-1773 O fício Jo ã o P ereira C a ld a s M artin h o d e M e lo M ise rá v e is v a s sa lo s A H U , P a r á , cx. 34
e C a str o d e S u a M a je sta d e
2 3-2-1778 P etição M a n u e l de P o u ra t G e n tio s
A H U , P ará , cx. 103
M o r a is A g u ia r e C a stro
16-6-1781 O fício M an uel da G am a L e o n a rd o J o sé H o m e n s silv estres, N a ç ã o civ iliza d a A H U , P ará , cx . 41
L o b o d e A lm a Ferreira fa lh o s d e lu z e s; a tra tar N ã o d e v e d e sr e sp e ita r a s le is
c o m h u m a n id a d e ; g e n tio R e sp e ito p o r c a to licism o
6-8-1781 O fício T e o d o ro C o n sta n tin o Jo ã o P ereira C a ld a s G en te G e n te in sig n ifican te , v e n a l A H U , R io N egro,
d e C h e rm o n t d o c a p itã o e in co n stan te cx. 4 , d o c . 3
In á cio
22-8-1781 C a rta rég ia G o v e rn a d o r d o Pará D e v e m se r c h a m a d o s à v id a A H U , C on selho
c iv il e m so c ie d a d e U ltram arino, có d . 2 7 3 ,
fls. 18 -1 8 v
18-11-1781 O fício Jo ã o P ereira C a ld a s P ed ro d e M a c ie l B árb a ra g e n te , tra iço eira D e v e m a ca u te la r-se A H U , R io N egro,
P aren te
19-11-1781 O fício J o s é N á p o le s T elo M artin h o d e M e lo T a p u ia s silv e stre s B N R J, 4-3-13
de M e n e se s e C a stro
T e rm o d e C o m iss á r io s C u re tú A m ig o d o E sta d o ; se m B N K J, 7-2-40
2 6 -3-1782
co n ferên cia d e m a rc a d o re s d e E sp an h a id e ia d e e s ta d o civil

e P ortu gal
T e o d ó s io C o n sta n tin o M ise rá v e is; e n g a n á v e is A H U , R io N egro,
1782 D iá rio de
d e C h e rm o n t a o in g re ssa r n o g rê m io da cx. 3 , d o c . 3
v ia g e m
Igreja e n a v a s sa la g e m d o rei

T e o d ó s io C o n sta n tin o T o cu n a In fern al n a ç ã o A H U , R io N egro


2 4-9-1783 O fício Jo sé M a n u e l d e M o ra is

A C O N S T R U Ç Ã O DE IM A G E N S
d e C h e rm o n t cx. 8, d o c . 1

Jo ã o P ereira C a ld a s ín d io s d o rio B ran co M u ra F e re z a e b a rb a rid a d e ; D e v e m tra ta r ín d io s A H U , R io N egro,


28-2 -1 7 8 4 B an d o
p ro m u lg a n d o e o u tra s a c u s a d o s, m a s n ã o d e fe n d id o s c o m h u m a n id a d e cx . 9 , d o c . 1

o p e r d ã o g eral e tn ia s In fe liz g en te

M an uel G am a Lobo M artin h o d e M e lo rio N e g ro M ise rá v e is ín d io s e m g ra n d e A H U , R io N egro,


13-7-1784 O fício
d e A lm a d a e C a str o e s ta d o d e a b a tim e n to cx . 8, d o c . 7

e p e rse g u iç ã o d e tra b a lh o

Fra n cisco X a v ie r L is M arcelin o Jo sé rio B ran co P ru d ên cia, su a v id a d e , b ra n d u ra A H U , R io N egro,


10-3-1785 O fício
C o rd e iro cx . 10, d o c . 1

M an uel G am a L o b o Jo a q u im J o sé M á x im o T ratam e n to ben ig n o ; d e m o n stra ç ão A H U , R io N egro,


7-4-1785 O fício
de A lm e id a d e h u m a n id a d e , m a s n ã o te m o r cx . 10, d o c. 4

M an u e l C a rv a lh o M arcelin o Jo sé rio V a u p é s H o m e n s se m b a rb a , T r a ta m e n to c o m b ra n d u ra e m im o , A H U , R io N egro,


2 1 -5-1785 O fíc io
d o s S a n to s C o rd e iro se m h o n ra, se m v e rg o n h a c o m o Jo ã o P ereira C a ld a s o rd e n o u cx . 10, d o c . 5

Jo ã o B a p tista M a rd e l Jo ã o P ereira C a ld a s N ã o s ã o d e sp re z ív e is, A H U , R io N egro,


2 9 -5-1785 O fício
ig u a lm e n te d e st r o s e h á b e is cx. 11, d o c. 7

Jo ã o B a p tista M ard el Jo ã o P ereira C a ld a s M u ra M ise rá v e is a re d u z ir p e lo te m p o , A H U , R io N egro,


2 6 -7-1785 O fíc io
m o d o , d á d iv a s e c a stig o cx. 11, d o c . 2

Jo ã o B a p tista M a rd e l Jo ã o P ereira C a ld a s M u ra A d im in u ir a su a fero cid ad e D iz e m « fo g o a e s te s c ã e s» A H U , R io N egro,


2 0-8-1785 O fício
M ise rá v e is a tr a sa n d o o p r o c e s so cx. 11, d o c. 8

de a ld e a m e n to
M edo

I
2 1 -8-1785 O fício M a n u e l C a rv a lh o M arc e lin o Jo sé e tn ia s A p a re n te m e n te a m ig o s, A H U , R io N egro,
d o s S a n to s C o rd e iro d o rio m a s d e facto n ã o c o n fia m cx . 11, d o c . 5
V a u p és n o s b ra n c o s
3-9-1785 O fício M a tia s F ern an d es Jo ã o B a p tista M ard el M u ra B ru to s A H U , R io N egro,
cx . 11, d o c . 8
8-10-1785 O fício Jo ã o P ereira C a ld a s S e b a s tiã o P ereira M u ra N ã o se d e v e m co n stra n g e r A H U , R io N egro,
d e C a str o n a se d e n ta r iz a ç ã o cx . 11, d o c . 6

A C O N S T R U Ç Ã O DE IM A G E N S
8-10-1785 O fício M ig u e l  n g elo Jo ã o B e m a rd e s m a to M a lé v o lo s A H U , R io N egro,
B etten co u rt B o rra lh o cx. 11, d o c . 6 e 7
2 9 -1 2 -1 7 8 5 O fíc io Jo ã o P ereira C a ld a s M a rtin h o d e M e lo rio Iça, M ise rá v e l, m a s m u ito ú til g en te A H U , R io N egro,
e C a stro N e g ro , cx. 11, d o c . 11
Issa n a
14-1-1786 O fício fr. C a e ta n o B ra n d ã o M a rtin h o d e M e lo P o b ríssim o s d e fo rtu n a e de A H U , P ará ,
e C a str o ta le n to s d e e sp írito ; c rêem em cx . 4 4 (758)
to d a s a s p a tra n h a s e a b su r d o s
5-2-1 7 8 7 O fício Jo ã o P ereira C a ld a s c o m a n d a n te ín d io s «In ú teis c o m e d o re s» d a farin h a
o A H U , R io N egro,
d a F o rtaleza r e b e la d o s d a F a z e n d a R eal cx . 14, d o c . 3
d o R io B ran co e a ld e a d o s
d o rio B ran co
6-2-1787 O fício Jo ã o P ereira C a ld a s H en riq u e Jo ã o P rin cip al «H u m a n id a d e d ig n a » n o C o n ta m in a m C u ru tú s c o m d o e n ç a s A H U , R io N egro,
W ilk en s C u ru tú so c o r ro d a p a rtid a d e lim ites c x . 16, d o c . 9
12-11-1787 O fíc io H en riq u e Jo ã o W ilk en s Jo ã o P ereira C a ld a s M acu n á F e r o z e s e b á rb a ro s A H U , R io N egro,
N u n ca tin h a m v is to b ra n co s cx. 16, d o c . 9
17-8-1788 O fício M artin h o d e S o u sa M artin h o d e M e lo M u n d u ru c ú O s m a is te m ív e is p o r se rem P risõ e s e n ã o m o rte s B N R J, 7 .3 .3 0
e A lb u q u e rq u e e C a str o n u m e r o so s; b a rb á rie ilim ita d a
1-2-1790 In stru çõ es M an uel G am a L o b o L e o n a rd o Jo sé R e v o lto so s F e ro c id a d e d e c o m p o rta m e n to ; S e n tim e n to s d e h u m a n id a d e A H U , R io N egro,
d e A lm a d a Ferreira d o rio B ran co tê m o d ireito d e se d e fe n d e re m cx . 18, d o c . 4
11-2-1791 P arecer C o n se lh o U ltram a rin o D . Fra n cisco de M ise rá v e is e ú te is v a s sa lo s; O p re s so r e s, u su rp a d o re s A H U , P ará ,

S o u sa C o u tin h o o b je c to d e m a u s tra to s cx. 4 5 (763)


e e x to r s ã o

10-7-1793 O fíc io M an uel G am a Lobo D . Fra n cisco d e S o u sa «P o rção d o E s ta d o a m a is A H U , R io N egro,

d e A lm a d a C o u tin h o n e c e ssá ria e a m a is cx. 18, d o c . 2


p e rse g u id a »

2 1 -11-1794 O fíc io M an uel G am a Lobo M a rtin h o d e M e lo M u n d u ru cú s B á r b a r o s q u e se te n ta m T o le râ n c ia , b o m tra tam e n to , A H U , R io N egro,

A C O N S T R U Ç Ã O DE IM A G E N S
d e A lm a d a e C a str o p a c ific a r c o m d á d iv a s p re se n te s cx. 19, d o c . 1
e b o m tra ta m e n to

7-7-1800 In stru çõ es ín d io s b á rb a ro s e se lv a g e n s, A H U , P ará ,

reais a lm a s e m b ru te cid a s p o r cx. 5 0 -A (760)


p a g a n ism o e ig n o rân cia;
d e v e m tra n sfo rm ar-se e m
342

v a s sa lo s ú te is a v iv e r de
a c o r d o c o m le is d a so c ie d a d e

2 7 -1 0 -1 8 0 3 O fíc io co n d e d e A rc o s v isco n d e d e A n a d ia M u n d u ru cú s A p e s a r d a su a b a rb a rid a d e A H U , P ará ,


re sse n te m -se c o m a p o u c a fé, c x . 5 4 (7 6 6 )
d u re z a d e tra to e v ício s
lu so -b ra sile iro s

12-2-1805 P arecer D . M a r c o s d e N o ro n h a M a is p e rto d a in d e p e n d ê n c ia A H U , R io N egro,

e B rito, 8 .° co n d e n a tu ra l d o q u e d a so c ie d a d e cx. 19, d o c . 5 2

d e A rco s civil

19-4-1805 O fício co n d e d e A rco s o u v id o r d o R io N e g ro ín d io s D e slig a d o s d e q u a lq u e r N a ç õ e s cu ltas d a E u ro p a A U C , C ol. C on de


e sp a n h ó is so c ie d a d e ; g o z a m de d e A rcos, 27 , fl. 1 15v
in d e p e n d ê n c ia n a tu ra l

19-6-1805 P arecer p ro cu ra d o r d a F a z e n d a Fra n cisco X a v ie r E stú p id a in se n sib ilid a d e A H U , R io N egro,

R ib e iro d e S a m p a io d e ín d io s d e stró i racio cín io s cx. 19, d o c . 52


filo s ó fic o s d e g a b in e te s

n
o
n
on
>'
0

i
A este ponto, importa avaliar o êxito de um projecto que se
implantou em território amazônico dilrante cinquenta anos e que se
estruturou em tomo da reformulação das relações entre a coroa e os
ameríndios, mas também entre estas duas entidades e a sociedade
colonial estabelecida no Norte brasileiro. Ou, reformulando a ques­
tão, qual foi o resultado obtido pelas reformas desencadeadas a par­
tir de Mendonça Furtado para transformar os índios da Amazônia
em vassalos devotos e leais de Sua Majestade Fidelíssima?
O sucesso da colonização portuguesa nessa área ao longo do
período em análise fundava-se no estabelecimento de vínculos
directos entre o monarca e os seus súbditos, mediante a intervenção
de uma cadeia de poder organizada hierarquicamente e em estrita
dependência dos organismos centrais. Assim se explica, em parte, a
política agressiva da coroa em relação às ordens religiosas e aos
régulos do sertão. Desta forma se justifica o poder que se delegava,
de modo controlado, a directores e câmaras.
Foi com base neste objectivo que se constituiu um discurso de
poder que legitimava a interferência e controlo do Estado sobre os
seus súbditos, sobretudo os «mais desfavorecidos», para os trazer
rumo ao progresso, à felicidade e ao bem comum. Este discurso
definia-se no pensamento político da época em função de três gran­
des vectores: os casamentos mistos, a educação dos índios e o
ensino da língua portuguesa. Consequentemente, o seu cumpri­
mento era garantia do êxito do projecto colonial português tal como
tinha sido definido para o Norte do Brasil da segunda metade de
Setecentos.
Um dos meios considerados mais eficazes para assegurar a colo­
nização dos indígenas consistia, portanto, numa política de miscige­
nação. Era esperado que, em relação à sua família ameríndia, os
luso-brasileiros a desvinculassem de costumes ancestrais e a educas­
sem com vista à sua integração num «nível civilizacional superior» e
no serviço do rei, do Estado e de Deus. No entanto, nada garantia
que o processo decorresse desta forma. Na Amazônia da segunda
metade de Setecentos era frequente o súbdito reinol ou crioulo con­

345
CONCLUSÃO

verter-se a alguns padrões comportamentais da cônjuge ameríndia, à


sua alimentação, à cultura material e língua indígenas e a estabelecer
ligações de fidelidade, protecção ou dependência com o grupo a que
a mulher pertencia1.
Uma outra questão era a da língua, afinal um dos aspectos mais
relevantes na política de colonização, definida por Francisco Xavier
de Mendonça Furtado como o meio pelo qual se incutia junto dos
povos a veneração, respeito e obediência ao soberano. Constata-se
que, não obstante as várias determinações e muitos esforços, o tupi
continuava, em finais desse século e nos princípios do seguinte, a
ser a língua predominante utilizada por todos os habitantes no seu
dia-a-dia. Este fenômeno era, aliás, confirmado pela publicação de
vocabulários, dicionários e gramáticas em língua geral, ocorrida a
partir de finais do século e destinada a comerciantes e cientistas em
viagem, mas também a servir de base àqueles que, idos do reino,
quisessem contactar com grande parte da população paraense e rio-
negrina. Contrariamente à intenção presente na lei, a língua portu­
guesa não veio conferir um sentimento de identidade e unificação à
vasta bacia hidrográfica amazônica e a sua implantação ainda não é
absoluta em pleno século xx2.
Quanto à educação dos índios, entendida como literacia mas
também como ensino dos valores mais importantes da cultura luso-
-brasileira, parece ser, também, um objectivo fracassado. Como
vimos já em lugar oportuno, faltavam os mestres, os materiais esco­
lares e, também, os alunos. Para além de não serem figuras tutelares
reconhecidas pelas comunidades nem, como pretendiam os polí­
ticos, moralmente irrepreensíveis, os «professores» concorriam ainda
em desigualdade com a imposição de um trabalho necessário ou
forçado, mas sobretudo com a cultura ancestral sempre presente na
vida quotidiana e transmitida pelos pais, companheiros, anciãos.
Este teria sido, provavelmente, um dos factores que teriam ini­
bido a integração de indígenas na administração do Estado do Grão-
-Pará. Se alguns índios desempenhavam cargos na administração
das suas povoações na qualidade de principais, sargentos e capitães-

1 Esta situação era, tal como o constatou Stuart Schwartz, uma constante em
regiões periféricas como os sertões amazônico ou paulista, onde «the colonists conti-
nued to live among, like and off the Indians that surrounded them» (Stuart Schwartz,
«The formation of a colonial identity in Brazil», in Colonial identity in the Atlantic World,
1 5 0 0 -1 8 0 0 , editado por Nicholas Canny e Anthony Pagden, p. 31).
2 Carlos de Araújo Moreira Neto, índios d a A m azônia. D e maioria a minoria (1750-
-1 8 5 0 ), p. 44.

346
CONCLUSÃO

-mores, juizes ordinários e vereadores, não encontrámos, até ao


momento, ameríndios em exercício de funções nos órgãos centrais
da capitania. Esses continuavam nas mãos dos luso-brasileiros que
eram, com mais probabilidade mas com todas as reservas, mais
«instruídos» e abastados, para além de se considerarem mais capa­
zes, habilitados e, enfim, «superiores».
Contudo, dificilmente concluiriamos que o projecto colonizador
do Norte brasileiro ao longo de meados de Setecentos foi um fra­
casso3. A ocorrência de epidemias e deserções ou o «deve e haver»
da acção civilizadora não podem ser o ponto de partida para afirma­
ções desse tipo. Diriamos antes que, a partir de Francisco Xavier de
Mendonça Furtado, se implantou um programa de colonização cui­
dadosamente concebido e planeado, com repercussões a nível polí­
tico e administrativo, econômico, estratégico e militar, social e
demográfico, religioso, científico, cultural e mental. O seu sucesso
dependia da conjugação de uma série de factores relacionados, na
sua maioria, com o fortalecimento do aparelho de Estado, tanto
mais que em jogo estava a preservação da soberania territórial, tal
como era concebida pela coroa portuguesa de finais do Antigo
Regime.
Abrangendo aspectos tão diversos e sendo implantado numa
área tão vasta como o Norte do Brasil, o programa político colonial
globalmente definido teria forçosamente que ter resultados desi­
guais. O mesmo aconteceu em relação à política ameríndia, que foi
pautada pela mesma capacidade de adaptação a circunstâncias con­
cretas, determinada pelas estratégias e as prioridades do momento.
Não obstante, duas linhas de força parecem estar sempre presentes
ao longo de todo o período estudado, a maior parte das vezes em
tensão, raras vezes em consonância: uma valorizava os ameríndios
enquanto elemento estratégico de ocupação do território e que
importava preservar e ligar à terra; a outra punha a tônica nos índios
enquanto fonte de trabalho imprescindível para os serviços do
Estado, de particulares e das comunidades.

3 Esta é a opinião de Rita Heloísa de Almeida, O Diretório dos índios. Um projecto


de ((civilização» no Brasil do século xvtit, pp. 325 e 330.

347
S 3 J.N O J

1. F o n t e s m a n u s c r it a s

1.1. Arquivo Histórico do Itamarati


340/04/02; 340/04/04.
1.2. Arquivo Histórico Ultramarino
Pará: caixas
3 (729), 13 (735), 15 (736), 17 (733), 18 (739 F), 19
(739 H), 20 (739 G), 21 (739 I), 22 (742), 23 (739 C),
24 (739 D), 25 (739 J), 26 (741), 27 (740), 28 (743),
29 (745), 30 (744), 32 (746), 33 (748), 34 (747), 37
(753), 40 (754), 41 (757), 42 (756), 43 (759), 44 (758),
45 (763), 46 (762), 47 (764), 48 (761), 49 (765), 50
(760), 50 A (760), 51 (767), 52 (766), 53 (768), 53 A
(768), 54 (769), 54 A (769), 59 (774), 60 (775), 61
(776), 62 (777), 64 (779), 65 (780), 66 (781), 67 (782),
69 (784), 73 (788), 74 (789), 75 (790), 77 (792), 78
(793), 79 (794), 81 (796), 89 (804), 91 (806), 92 (807),
93 (808), 94 (809), 95 (810), 97 (812), 99 (814), 102
(817), 103 (818), 104 (819), 110 (825), 111 (826), 112
(827).
Rio Negro: caixas
1, 2, 3, 4, 5, 6, 7, 8, 9, 10, 11, 12, 13, 14, 15, 16, 17,
18, 19, 20.
Conselho Ultramarino: códices
2, 3, 4, 5, 209, 271, 272, 273, 336, 337, 342, 485,
588, 912, 1213, 1214, 1275.
1.3. Arquivo Nacional do Rio de Janeiro
Códices:
66, vol. 1; 99, vols. 1, 2, 3, 4 e 5; 101, vol. 1; 807,
vol. 1.
1.4. Arquivo Público do Estado do Pará
Códices:
101, 102, 103, 104, 106, 107, 108, 110, 113, 114,
115, 116, 588, 589.

35 l
FONTES

1.5. Arquivo da Universidade de Coimbra


Colecção Conde dos Arcos
VI-3-I-1-27; VI-3-I-1 -28; VI-3-I-1-29; VI-3-I-1-30;
VI-3-I-1-38.
1.6. Biblioteca da Ajuda
50-V-34.
1.7. Biblioteca Nacional
Códices:
469, 2298, 4489, 8396, 11415, 11570, 11750.
Reservados:
Res. 2434 A; Res. 2960 V; Res. 3610 V; Res. 3609 V;
Res. 2434 A
Alcobacense:
CCCLXVI
319
Pombalina:
617, 621, 622, 625, 626, 630.
1.8. Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro
Manuscritos:
2-2-21, 2-3-1, 4-3-13, 7-1-19, 7-2-15, 7-2-40,
7-3-14, 7-3-29, 7-3-30, 7-3-39, 7-4-19, 7-4-22,
7-4-75, 7-4-82, 11-2-8, 11-2-11, 12-2-3, 12-2-6, 12-
-3-11, 13-4-18, 15-4-8, 21-2-10, 21-2-12, 21-2-27,
22-1-45;
1- 17-12-2, 1-28-25-30, 1-28-28-33, 1-28-31-40, 1-28-
-32-24, 1-31-24-10, 1-31-28-41, 1-31-30-33, 1-32-9-
-14,1-32-21-1,1-33-30-4;
11-30-32-30, II-31-3-19, II-32-17-1, 11-32-18-14, II-
-33-21-51, II-33-23-8, 11-33-29-71.
1.9. Biblioteca Pública e Arquivo D istrital de Évora
cxv
2- 14
1.10. Instituto dos Arquivos Nacionais/Torre do Tom bo
Manuscritos do Brasil
n.° 51; n.° 1116.
Brasil. Avulsos
n.° 1.
Ministério dos Negócios Estrangeiros
Livro 127.

352
FONTES

1.11. Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro


(Rio de Janeiro)
Códices:
1.3.8
Latas:
51, pasta 18; 107, pasta 12; 195, pasta 32 e 37; 278,
pasta 1 e 3; 280, pasta 10; 281, pasta 4; 283, pasta
10; 343, pasta 29.
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Brazil desde a feliz chegada de El Rey Nosso Senhor com hum Índice cro­
nológico, tomo II, anos de 1811 a 1816, Rio de Janeiro, Impressão
Régia, 1817.
Colecção das leis, decretos e alvarás que comprehende 0 feliz reinado
dei rei fidellissimo D. José 0 I nosso senhor desde 0 ano de 1 750 até ao de
1760 e a pragmática do Senhor Rei D. João V do ano de 1749, tomo I,
Lisboa, Officina de Antônio Rodrigues Galhardo, 1797.
Collecção dos breves pontifícios e leys régias que forão expedidos desde
0 anno de 1741 sobre a liberdade e comércio dos índios do Brazil, dos
excessos que naquelle Estado obraram os Regulares da Companhia deno­
minada de Jesu das Representações que S.M. Fidelissima fez à Santa Sede
Apostólica sobre esta matéria até à expedição do Breve que ordenou a
reforma dos sobreditos regulares; dos procedimentos que com elles praticou 0
eminentíssimo e reverendissimo Reformador; dos absurdos em que se preci­
pitaram os mesmos regulares com 0 estimulo da sobredita reforma até ao
horroroso insulto de 3 de Setembro do anno de 1758; das sentenças que
sobre elle se proferiram; das Ordens Reaes que depois da mesma Sentença
se publicarão; das Relaçõens que a Filial veneração de El Rei Eidelissimo
fez ao Papa de tudo 0 que havia ordenado sobre 0 mesmo insulto e suas
consequências; e da participação que 0 mesmo monarca fez ao Eminentís­
simo e Reverendissimo Cardeal reformador e mais Prelados Diocesanos des­
tes Reinos, das últimas e finais Resoluções que havia tomado para expulsar
dos seus Reinos e Domínios os ditos Regulares, Lisboa, Impressão da
Secretaria de Estado [posterior a 1760],
Collecção dos crimes e decretos pelos quaes vinte e hum jesuítas forão
mandados sahir do Estado do Grão-Pará e Maranhão antes do esterminio

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Diccionário Portuguez e Brasiliano, obra necessária aos ministros do
altar que emprehendem a conversão de tantos milhares de almas que ainda
se achão dispersas pelos vastos certões do Brazil, sem o lume da fé e do
baptismo. Aos que parocheão missões antigas pello embaraço com que nel-
las se falia a lingua portugueza para melhor poder conhecer o estado inte­
rior das suas consciências. A todos os que se empregarem no estudo da His­
tória Natural e da Geografia daquelle Paiz; pois conserva constantemente
os seus nomes originários e primitivos, Lisboa, Oficina Patriarcal, 1795.
Directório que se deve observar nas povoações dos índios do Pará e
Maranhão enquanto Sua Magestade não mandar em contrário, Lisboa,
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lharão todas as deficuldades, escrita por..., Lisboa, s/d [posterior a 1753],
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Razão; expostas a favor dos homens pretos em hum diálogo entre hum
letrado e hum mineiro, Lisboa, Officina de Francisco Borges de Sousa,
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Relação abbreviada Da Republica, que os Religiosos Jesuítas das Pro­
víncias de Portugal e de Hespanha, estabeleceram nos Domínios Ultramari­
nos das duas Monarchias, e da Guerra, que nelles tem movido, e susten­
tado contra os Exércitos Hespanhois e Portuguezes; formada pelos registos
das Secretarias dos Dois Respectivos Principaes Comissários e Plenipoten-
ciarios; e por outros documentos authenticos, s/l, 1758.
Relação curioza do sitio do Grão-Pará terras de Mato-Grosso bondade
do clima e fertilidade daquellas terras escrita por um curiozo experiente
daquelle Paiz, Lisboa, s/d [175...].
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tado, corregido, instruído e libertado. Discurso theologico-jurídico em que se
propõe o modo de comerciar, haver e possuir validamente quanto a hum e
outro foro os Pretos cativos Africanos e as principais obrigações, que correm
a quem delles se servir, Lisboa, Officina Patriarcal de Francisco Luís
Ameno, 1758.
S a m p a i o , Francisco Xavier Ribeiro de, Diário da viagem que em
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ouvidor-geral e intendente da mesma no ano de 1774-1775, Lisboa, Aca­
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fundada esperança da enteira conversão, e reconciliação da grande e
feróz nação do gentio Muhura. Poema heroico composto e compe-
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lentissimo senhor Joam Pereira Caldas, do concelho de Sua Mages-
tade Fidelissima, Alcaide-mór, commendador de S. Mamede de
Troviscózo na ordem de Christo; governador, e cappitão-general,
que era do Estádo do Grão Pará, e agora nomeádo das cappitanias
de Matto Groço, e Cuyabá; e nos districtos dellas, e deste Estádo do
Pará, encarregádo da execução do tractádo preliminar de páz e limi­
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X a v i e r , Angela Barreto, H e s p a n h a , Antônio, «As redes clientela-
res», in História de Portugal, dirigida por José Mattoso, vol. iv, Lisboa,
Círculo de Leitores, 1993.
Z o r r a q u i n B e c ú , Ricardo, «La movilidad dei indígena y el mesti-
zaje en la Argentina colonial», in Jahrbuch für Geschichte von Staat,
Wirtschaft und Gesellschaft Lateinamerileas, vol. 4, 1967.

385
ÍNDICE
o

Apresentação .............................................................................. 7
Agradecim entos .......................................................................... 9
Lista de abreviaturas ................................................................. 11

In tro d u ção .................................................................................... 13

Capítulo I — A prom oção dos am eríndios a vassalos:


as contradições da lib e rd a d e ............................ 23
As leis da escravidão: guerra justa e resgates ...................... 26
Os mecanismos de captura.................................................... 29
As leis da liberdade: a promoção dos índios a vassalos . . . 37
A liberdade indígena e as suas contradições........................ 41
Uma mão-de-obra alternativa: os escravos african os......... 51

Capítulo II — A transform ação dos índios em vassalos:


um plano de c o lo n iz a ç ã o ................................. 63
Um código legislativo como expressão da política colonial:
o Directório ..................................................................... 67
Aldeias, vilas e fortificações .................................................. 76
A coroa e as ordens religiosas................................................ 89
Colonos, soldados e degredados........................................... 98
O fim de régulos e de quilom bos......................................... 106
A difusão da língua portuguesa e o ensino dos meninos
índios................................................................................. 115
Os executores do plano de colonização.............................. 126

Capítulo III — Em cumprimento do real serviço:


o reordenam ento do território
e a integração dos v a s s a lo s ............................ 133
Interesse e persuasão: os descimentos ................................ 136
A aplicação do Directório e a dinâmica de p o d e re s........... 151

387
A constituição de uma elite indígena ................................... 169
Repartições de índios e trabalho indígena .......................... 177
Entre duas culturas: a permanência como forma
de resistência p a ssiv a ...................................................... 189
!
Capítulo IV — «As m uralhas do sertão»: os am eríndios
na defesa da integridade territorial
lu so -b ra sile ira .................................................... 199
Instabilidade fronteiriça: uma via com dois sentidos ......... 203
O valor estratégico dos índios na ocupação das fronteiras .. . 211
A permeabilidade das fronteiras: um entrave aos projectos
expansionistas dos Estados coloniais............................ 226
Os intérpretes em zonas de limites: o seu papel como
intermediários ................................................................. 237

Capítulo V — Form as de resistência: um a reavaliação


das relações entre «dom inantes»
e «d o m in a d o s» .................................................... 247
As sementes da d iscórdia...................................................... 251
A geografia da resistência...................................................... 263
1. Formas de resistência em áreas de colonização
im plantada................................................................... 265
2. Deserções e revoltas como forma de resistência
em áreas de implantação colonial dim inuta............. 270
«Ferozes, indomáveis e formidáveis»: Mura e Mundurucú . . . 279
Alianças em tempo de guerra e de p a z ................................ 289

Capítulo VI — A construção de im agens: definições


de am eríndios nos discursos coloniais . . . . 297
O Estado absolutista e os princípios essenciais à governação
dos súbditos: uma nova visãodos am eríndios............. 300
O Estado absoluto e a ideia de progresso: civilização
e ameríndios..................................................................... 313 __
Imagens de índios e discurso colonial................................... 322 C
J
Conclusão ..................................................................................... 343 u.
h;
Fontes ........................................................................................... 349 IQ
CQ
Bibliografia .................................................................................. 359 | Cfl
(
SBD/FFLCH/USP
Bib. Florestan Fernandes Tombo: 297423
Aquisição: DOAÇÃO /____________ _
Proc. / INTITUTO PORTUGUÊS DO LIVRO
N.F. / U$ 14,64 25/9/2008
A
s edições de literatura histórica - quer de fontes quer de
estudos - ocupam lugar de relevo nos interesses do público.
Que é preciso satisfazer, prezando a qualidade. Não poucos
leitores querem conhecer o passado, e não se limitam a convencionais
interpretações. Há muitos que se embrenham afoitamente em novas
perspectivas e em novas problemáticas. Que podem contribuir para
esclarecer os dias que vivemos. Novas margens, outras margens.
Com este conjunto de publicações, a Comissão Nacional para as
Comemorações dos Descobrimentos Portugueses iniciou, em 1997,
uma nova colecção que se designou Outras Margens: assim mesmo.
Onde têm saído alguns títulos de importância para alargar o número
de leitores do que tem vindo a ser investigado e escrito em Portugal.
Em que cabem também reedições de obras fundamentais, que se
encontravam esgotadas. Sobre o passado de um Povo que pelo Mundo
se espalhou.

Joaquim Romero Magalhães


Comissário-Ceral da CNCDP

PORTUGAL

■o
BRASIL

a
1500 2000

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