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UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ

DEPARTAMENTO DE FILOSOFIA
CENTRO DE HUMANIDADES

A FILOSOFIA MORAL E POLÍTICA NA UTOPIA DE


THOMAS MORUS

Mark Ian Collins

Fortaleza
2010
MARK IAN COLLINS

A FILOSOFIA MORAL E POLÍTICA NA UTOPIA DE


THOMAS MORUS

Dissertação submetida à Coordenação do


Curso de Pós-Graduação em Filosofia, da
Universidade Estadual do Ceará como
requisito parcial para obtenção do grau de
mestre em Filosofia.

Orientador: Prof. Dr. Regenaldo Rodrigues da Costa

Fortaleza - Ceará
2010
AGRADECIMENTOS

Pela oportunidade concedida Sobre o meu orientador


a este humilde peregrino tenho muito que falar
sou grato a Deus e à vida foi muito mais que professor
que investiram neste menino. enquanto estava a me lapidar.
Espero poder sempre retribuir Foram cincos anos de união
dando apenas o que há de melhor em mim onde de aluno, e amigo, virei irmão
todo esse aprendizado que tenho vivido. diante disso não há mais o que acrescentar.

Agradecer não é tarefa fácil À FUNCAP eu devo muito


quando há tantos para lembrar pelo seu apoio financeiro
quantas vivências que mudaram minha vida provendo-me de recursos
quanta coisa consegui alcançar. neste período passageiro.
Isso foi graças a quem chamo de amigo Por isso sou tão agradecido
que esteve sempre comigo por ter ajudado e favorecido
e cuja estima não consigo disfarçar. mais este pesquisador brasileiro.

Amigos são muitos que me mostraram Para cada conquista teve mãos que ajudaram
que distância não é medida conduziram cada vez mais adiante
seja na falta ou na presença quando um largava outro segurava
sinto que sou uma pessoa querida. e assim eu seguia para frente
Espero um dia alcançar o poder Para aqueles que não foram citados
de conseguir a todos devolver eu garanto que serão sempre lembrados
este carinho que me deu tanta guarida. pois não se esquece algo tão forte que se sente.

Me conduzindo pela filosofia Há quinze anos atrás,


destaco aqui os meus professores Quando a minha mulher me conheceu
instruindo enquanto eu crescia eu era um singelo rapaz
sobre os sábios e os seus amores. com nada que pudesse chamar de meu,
Se hoje conheço a sabedoria mas meu sentimento era tão forte
a ponto de ter uma autonomia e o dela também para a minha sorte
isso foi graças a todos esses doutores. casei com a mulher que Deus me deu

A família, entre os presentes, Diante dos seus sábios conselhos


colaboravam para o meu progresso que eu tive o juízo de seguir
mesmo os que se encontravam ausentes graduei-me e agora me torno mestre
ficavam torcendo para o meu sucesso. com muitas oportunidades ainda por vir.
A todos posso garantir Se eu me tornei professor
que se dependesse somente de mim foi graças ao seu amor
o resultado teria sido totalmente avesso. e tudo que ela investiu em mim.

Aos meus colegas e companheiros, Como eu disse o assunto é vasto


desta ciência que abraçamos, com muita coisa para falar
sem sua ajuda não teria conseguido tanta gente para agradecer
alcançar tudo que conquistamos. e muitos outros para agradar,
Lembrarei sempre com carinho mas fica aqui a minha gratidão
daqueles que não me deixaram sozinho por todos que me encaminharam na retidão,
mesmo que se passem muitos anos. algo do qual sempre vou lembrar.
A todos aqueles que acreditam que a
Utopia é possível e necessária.
A “Teoria da Reciprocidade” Utopiana

[A razão] convida-nos e impulsiona-nos a


levarmos uma vida com o mínimo de
ansiedade e com o máximo de satisfação, e,
por afinidade de natureza, a prestarmos
assistência aos outros todos para alcançarem o
mesmo.

MORVS
RESUMO

Partindo-se do princípio de que o método utopiano de filosofar se desenvolve como uma


narrativa, na qual seus interlocutores dialogam na busca do conhecimento, desenvolveu-se a
presente dissertação. Com base em autores da monta de Goodwin (2001), Baker-Smith
(1991), Logan (1983), Surtz (1957), dentre outros que versam sobre o tema, o presente
trabalho dissertativo, de cunho qualitativo-descritivo, busca tão-somente mostrar que, para
muito além de uma obra literária, há uma filosofia moral e política contida na Utopia de
Thomas More. Mostra-se como os conceitos contidos na estória desenvolvida no livro em
comento se encaixam em categorias que pertencem à filosofia moral, tanto no plano
individual quanto no coletivo. A pesquisa é apresentada em três capítulos. No primeiro,
apresenta-se a crítica como ponto de apoio para alavancar o processo filosófico. No segundo
capítulo, são descritos a sua fundamentação e seus princípios. A seguir, é revelado o dever-
ser, o qual é explorado no terceiro e último capítulo. Conclui-se, portanto, afirmando que a
Utopia de Thomas More foi cunhada em um gênero literário que caracterizou grandes obras
que a antecederam, e se perpetuou até os dias atuais, presente inclusive nas ficções científicas,
quando estas projetam civilizações futuras. Ressalta-se que, seja no início da modernidade ou
no final da contemporaneidade, a filosofia moral e política de Thomas Morus continua sendo
uma opção lúcida diante das enormes diferenças e dos desafios vividos pela humanidade.

Palavras-chave: Thomas More. Utopia. Filosofia moral e política utopiana.


ABSTRACT

This dissertation was developed based on the principle that the utopian method of philosophy
develops as a narrative in which its interlocutors use dialogue in the search for knowledge. It
is based on authors such as Goodwin (2001), Baker-Smith (1991), Logan (1983), Surtz (1957)
among others who write on the theme of this dissertation in a qualitative-descriptive manner,
seeking exclusively to show that in addition to being a literary work, there is a moral and
political philosophy contained in Thomas More's UTOPIA. It shows how the concepts
contained in the story developed in this book fall into categories that belong to moral
philosophy on an individual as well as collective level. The research is presented in three
chapters. In the first, the critique is presented as a support from which to lever up the
philosophical process. In the second chapter the foundation and its principles are described.
Next the idealization is revealed, which is explored in the third and last chapter. It can be
concluded that UTOPIA by Thomas More was created in a literary style characterized in great
works that preceded it and continues today, even in science fiction (writing) where future
civilizations are projected. It should be noted that whether it be in the beginning of modernity
or in the end of the contemporary period, the moral and political philosophies of Thomas
more continue to be lucid options for confronting the enormous differences and challenges
experienced by humanity.

Keywords: Thomas More. Utopia. Moral and political utopian philosophy


SUMÁRIO

INTRODUÇÃO .......................................................................................................................... 8 

1 A CRÍTICA: IMPEDIMENTOS DA VIGÊNCIA DA FILOSOFIA MORAL E


POLÍTICA .......................................................................................................................... 18 

1.1 Vícios decorrentes dos falsos prazeres ........................................................................... 22 


1.2 Vícios dos governantes ................................................................................................... 24 
1.3 Vícios da nobreza e da plebe .......................................................................................... 28 
1.4 A questão social da moralidade ...................................................................................... 32 

2 A FUNDAMENTAÇÃO DA FILOSOFIA MORAL E POLÍTICA UTOPIANA ............... 37 

2.1 A Razão .......................................................................................................................... 39 


2.2 A natureza, a base da moral utopiana ............................................................................. 40 
2.3 O prazer, a felicidade e a virtude .................................................................................... 42 
2.4 A igualdade e o comunismo utopiano ............................................................................ 51 
2.5 A matéria do prazer ........................................................................................................ 55 

3 O DEVER-SER: EFETIVAÇÃO DA FILOSOFIA MORAL E POLÍTICA ........................ 58 

3.1 O governo ....................................................................................................................... 58 


3.2 O dever-ser da nobreza meritocrática ............................................................................. 67 
3.3 O dever-ser da plebe ....................................................................................................... 73 
CONCLUSÃO .......................................................................................................................... 84 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ..................................................................................... 86 


INTRODUÇÃO

A cada obra filosófica investigada, devemos empenhar-nos em considerar sua


importância para a tradição, bem como a viabilidade para reflexões sempre recorrentes.

Apresentamos neste trabalho1 a obra de Sir, Santo, Martir da fé, Chanceler do reino,
Thomas More (T.M.): Sermonis quem Raphael Hythlodaeus vir eximius de optimo
reipublicae statu habuit liber primus, per illustrem virum Thomam Morum inclutae
britanniarum urbis Londini et civem et vicecomitema2, conhecido mundialmente pela singela
palavra, de sentido tão controverso quanto profundo, cunhada pelo próprio autor, Utopia.

A criação de uma sociedade perfeita é a resposta para o mundo de seu tempo, um


Estado decadente, carente de reformas, soerguidão. Por isso, a controvérsia inicia-se logo no
nome com o qual ficou conhecida, Utopia. Termo que parece significar “lugar nenhum” (ou +
topia), mas também “bom lugar” (eu + topia); ou talvez tenha havido a intenção de nomear a
ilha de Utopia de “um bom lugar em lugar nenhum” (u + topia), visto que é repetidas vezes
elogiada durante o texto. No entanto, sabemos que este lugar ainda está por existir.

Condenar a Utopia por se tratar de algo não verificável e irreal deriva da visão
ortodoxia empirista e positivista das ciências sociais, incluindo a ciência política, dentro da
academia inglesa, e que explica a pouca atenção que foi dedicada ao pensamento utópico na
Inglaterra, berço do fundador do gênero.3 Em estudo sobre a obra em comento, Goodwin e
Taylor 1982, com base no conceituado estudo de R.Ruyer: L’Utopie et lês Utopies,
argumentam que utopias são, apesar da sua apresentação às vezes fantasiosa, estritamente
racionais e que constituem teoria especulativa.

Apesar da ideia, criada na segunda metade do século XX, de que o utopianismo é


associado a pensamentos e práticas totalitaristas, a leitura da obra mostra que isto é

1
A correção ortográfica deste trabalho obedece às novas regras gramaticais, no entanto, as citações permanecem
na grafia original.
2
Título original da obra: Relato que Rafael Hitlodeu, homem eminente, fez acerca da melhor forma de governo,
por Thomas Morus homem ilustre, cidadão da ínclita cidade inglesa de Londres e seu magistrado.
(NASCIMENTO, 2006).
3
Sobre esse assunto verificar em: Goodwin e Taylor 1982.
9

equivocado. A primeira prova pode ser vista na própria Utopia, em que existe impeachment
para governantes tirânicos. Goodwin et al (2001) defendem que o modo de pensar utopiano4
transforma os parâmetros de pensamento moral, social e político.

Outra razão de uma obra tão popular ter sido tão pouco estudada, ou talvez tão pouco
levada a sério, estaria na sua natureza e conteúdo revolucionários, o que tem provocado nas
autoridades políticas e religiosas desde então o desprezo por uma obra radical e
transformadora. Talvez seja esse o motivo pelo qual a Igreja Católica, principal autoridade
religiosa ocidental desde então, apesar de ter elevado o autor ao status de Santo da sua Igreja,
insiste em afirmar que a Utopia consiste apenas em uma obra literária para mero
entretenimento; um paradoxo, em se tratando da principal obra do autor, e por haver uma farta
evidência de que os princípios colocados na Utopia se encontram presentes nas suas demais
obras, destacando ou separando, assim, um homem da sua obra literária.

A Utopia é a única obra em Latim escrita por um Inglês que, traduzida nos mais
diversos idiomas, é ainda lida por pessoas fora da academia e seus estudiosos. Desde a sua
publicação, há quase meio milênio, não se têm passado vinte e cinco anos sem uma
reimpressão num idioma europeu. Entre 1868 e 1940, quando o bibliógrafo parou de contar,
nestes setenta e dois anos, a obra foi reimpressa noventa e duas vezes. As reimpressões em
muitos idiomas pelo mundo, desde então, não pararam.5

Principal obra de um autor executado pelos seus conterrâneos por traição6, não é de se
admirar que tenha recebido pouca atenção no seu país de origem, mesmo que este ato o tenha
transformado num mártir da fé e santo, pelos princípios que defendia, ainda mais diante do
fato de que a situação que gerou a sua discórdia e o levou à Torre de Londres e, em seguida, à
execução perdura até a presente data na figura do monarca britânico como chefe da Igreja
Anglicana da Inglaterra. Somente a partir de 1960, mais de quatro séculos após a sua morte,
foi que o estudo da Utopia surgiu na academia de uma forma mais evidente.7

A importância do utopianismo na atualidade se reflete no interesse gerado pelo evento


em 2000, intitulado A Busca pela Sociedade Ideal no Mundo Ocidental, realizado na

4
No decorrer do texto, usaremos aleatoriamente o termo utopiano e utopiense.
5
Vide Yale 1965 p.cv
6
Por determinação do Rei Henrique VIII, no dia seis de julho de mil quinhentos e trinta e cinco, em Londres, aos
cinquenta e sete anos.
7
Vide Levitas 1990, p.09.
10

Biblioteca Nacional em Paris e, posteriormente, na Biblioteca Pública de Nova York. Sabe-se


que períodos de transição atiçam o interesse em utopias.

A pergunta que se coloca em todo o presente trabalho é se a obra Utopia demonstra que
os utopianos, habitantes de uma ilha imaginária, conseguem desenvolver uma política social
plena, e invejável a qualquer cristão da Europa. E o alcance dessa condição se dá por meios
racionais, tendo a própria razão como sentido. Entretanto, ainda não se conhece claramente a
intenção de T.M.: se esta é uma chamada de atenção aos católicos de sua época ou apenas
uma proposta social e política da vigente até então. Ainda persiste a dúvida: seria o livro
somente uma peça literária ou o caminho da racionalidade para o alcance de uma sociedade
perfeita?

O nosso trabalho revelará outra face deste autor e sua obra, não como um mártir da fé
ou santo8, o qual promove a autoridade eclesiástica de Roma ao negar o reconhecimento do
segundo matrimônio de Henrique VIII e a imposição do rei como chefe supremo da Igreja na
Inglaterra, tampouco como uma obra literária, mas antes como um teórico político, cuja
preocupação foi a de estabelecer uma sociedade cujos princípios eram pautados na justiça, na
moral e nos valores humanos.

Homem de grande influência e cultura em sua época, T.M. era, como Erasmo, um
cristão e humanista, porém, adepto do verdadeiro cristianismo, aquele que existiu em tempos
remotos e foi se deteriorando até se tornar não mais espiritual e humilde, mas mercenário,
político e suntuoso. No início do século XVI, época em que viveu T.M., a Igreja tinha
alcançado níveis absurdos de exigências e deturpação da mensagem cristã original, abusos
esses que acabaram por gerar as reformas protestantes. No livro A Utopia, percebemos o
quanto a ironia de T.M. ataca as falhas e os erros em que estava envolvida a Igreja.

Assim sendo, o presente trabalho tem a finalidade de apresentar a perspectiva de um


discurso sobre filosofia moral e política nas reflexões contidas na Utopia, de T.M. Essa
proposta se dá pelo reconhecimento de que o autor se mantém presente nas discussões

8
No ato de canonização, o Papa Pio XI, em 1935, o declara como modelo aos ingleses, como diplomata a ser
seguido e estadista perfeito. Venerado pelos católicos, é declarado, por João Paulo II, como padroeiro dos
políticos e estadistas, em atenção aos fiéis ingleses que viam um interesse especial em referenciá-lo. Esse
interesse se deu por conta do interesse que os comunistas dispensavam por sua obra, enquanto tratado de uma
sociedade política em que os valores são igualitários e a comunidade humana, um retrato do bem comum.
11

filosóficas pela inovação de uma sociedade racional e pelo olhar visionário de uma
humanidade da razão.

A perspectiva de uma humanidade racional se compreende na instauração de um Estado


em que o comportamento de seus cidadãos seja um reflexo de como se mantêm diante de si,
dos demais e das prescrições de uma sociedade ideal.

A sensibilidade à sociedade de seu tempo faz com que T.M. crie antagonismos. A uma
sociedade em que se evidencia o vício, ele apresenta o modelo de uma sociedade virtuosa. A
um privilégio direcionado a poucos, ele constrói uma sociedade em que todos têm acesso aos
mesmos direitos e cumprimento dos deveres recíprocos.

Para entender a filosofia por detrás desta história, iremos separar todos os conceitos
contidos dentro do texto. Desmontaremos a história, ou se quiser, podemos dizer que estamos
decodificando uma obra de filosofia moral e política utopiana.

A raridade analítica em T.M. conduziu a um desejo de investigar mais profunda e


reflexivamente seu pensamento, contexto e perspectivas filosóficas medievais. Assim, o
contato com versões do livro Utopia, nas suas diversas traduções, possibilitou uma
aproximação ao pensamento deste filósofo, do seu sentimento utopista e das questões
inovadoras levantadas por ele, dentre outras, a de uma filosofia moral e política, já
mencionada anteriormente.

O desafio de T.M. é o de apresentar em A Utopia uma sociedade pautada nos critérios


exigíveis para o gênero humano, os da moral e da política. Moral, porque os debates
encontrados nesta obra se concentram em questões semelhantes que ainda vigoram: o bem da
alma e do corpo e os bens exteriores que o homem enfrenta e reconhece como prazer. Discute
igualmente sobre a felicidade humana, onde se situa, e como atingi-la. Política, porque trata
de uma reflexão sobre como organizar melhor a vida coletiva, tanto em nível individual
quanto institucional, perpassando pelas esferas social e econômica.

Portanto, o livro apresenta a alegação da melhor forma de organização política, já que a


obra revela uma abstração e reflexão sobre um determinado momento histórico e, por outro
lado, uma idealização, ou dever-ser social. No entanto, o livro também parece referir-se a uma
situação da Europa do século XVI, à Inglaterra, de forma específica, numa crítica à sociedade.
O fechamento da crítica se dá na idealização de um novo Estado e sua dinâmica de vida.
12

Dessa maneira, na Utopia, pode-se encontrar uma síntese sobre moral e política, dentre
outros assuntos, não menos relevantes, mas que são destacados aqui pela sua igual
abrangência.

Como toda filosofia moral e política, seja utópica ou não, há a necessidade de um ponto
de apoio, como se fosse uma alavanca para gerar o movimento filosófico. Este ponto se
encontra na crítica. A partir de uma visão crítica se pode projetar o dever-ser que constitui o
trabalho filosófico.

Stillman 9afirma que: “Utopias podem ser vistas como uma filosofia política prática que
considera e acessa ideais, meios e circunstâncias, a fim de facilitar sábias ações humanas.”
Para o pesquisador, trata-se de uma filosofia política inusitada, não só em conteúdo como em
forma, bem diferente das demais filosofias políticas a que estamos acostumados até a presente
data.

O gênero filosófico utópico promove uma reflexão crítica a respeito dos ideais e
práticas da sociedade e permite conduzir a ações racionais. A despeito dos estereótipos
criados a respeito de Utopias como sendo fantasiosas e irrealizáveis, o cerne do pensamento
utopiano se concentra em levantar e oferecer alternativas e, à luz destas, iluminar o atual
quadro e agir onde se deve.10

Hertzler11, na sua história sobre o pensamento utopiano, afirma que “Utopia não é um
estado social, é um estado da mente”. Nesse mesmo sentido é o entendimento de Reis12, que
defende a relação entre o idealismo filosófico e o utopianismo e também enfatiza o papel do
utopianismo como um estado da mente13.

Perceba-se, pois, que os autores supracitados chamam a atenção para o predomínio da


razão na Utopia, como também para a necessidade de se alcançar um estado de ser, a fim de
poder desfrutar do que a Utopia possa oferecer. Infelizmente, a Utopia não seria possível a
todos. O predomínio da razão implica uma condição moral predominante em detrimento dos
contextos sociais tradicionais e ultrapassados que permeavam a sociedade europeia do Sec.
XVI.

9
STILLMAN 2001,p.10
10
Idem
11
HERTZLER, 1922, p.314.
12
REIS, José Eduardo P. Barreiros Professor do Dep. Letras - Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro.
13
GOODWIN et al (2001).
13

Já afirmamos que o discurso de A Utopia é uma nova forma de expressão da filosofia


política. A fala do texto não se constrói nos moldes de preceitos lógicos articulados numa
argumentação que visa à demonstração. É um discurso que se articula através da imaginação,
utilizando, conforme a expressão de Baczko, “ideias-imagens”.14

O discurso de A Utopia elabora-se, um pouco, como as artes cênicas e plásticas, isto é,


pela visualização e imagística. A inovação desse discurso consiste em que, com ele, o
discurso filosófico torna-se mise-en-scène15. Uma das grandes características do discurso de A
Utopia é que ele procura demonstrar mostrando. Conforme Stieltjes (2005, p. 18), Moreau
observa que: “é próprio de A Utopia visualizar seus conceitos, não de explicá-los”. Por este
motivo, a maioria das utopias está situada em outros lugares para fazer um paralelo com o
aqui.

Nas utopias, a visão, a imagem, impõe-se à fala, à articulação da palavra. Prévost


observa que em A Utopia a realidade apresenta-se inicialmente como coisa; é apanhada na
imagem, antes de ser transmitida pelo vetor das palavras. A imagem tem uma força expressiva
superior às palavras e é esse poder que T.M. coloca em sua obra. Prévost afirma que A Utopia
torna-se uma maiêutica pela imagem. A realidade é apresentada através de um jogo de
imagens contrastantes.16

Para Mumford17, o método essencial da Utopia consiste neste retrato de vida cotidiana
dentro das instituições utópicas, seguindo seus princípios próprios. Eticamente, uma proposta,
para se tornar utópica, deve antes ser universal e oferecer benefícios a todos dentro do seu
escopo.

Mesmo quando estamos diante de um conto juvenil aparentemente inocente, como as


Viagens de Gulliver, temos questões utópicas sendo tratadas. É claro que existem contos que
se tornam brincadeiras pela sua falta de seriedade, mas onde houver uma praticidade, uma
possibilidade sendo exposta, estamos diante de uma Utopia séria e quem sabe até possível.

O que quer dizer filosofia utopiana? Nesta área filosófica, os conceitos não estão
abstraídos do contexto social, como nas demais áreas de filosofia, mas apresentados como

14
STIELTJES, 2005, p.18.
15
“Colocar num palco” descreve os aspectos presentes numa cena de teatro ou filme.
16
PREVOST, 1978.
17
MUMFORD, 1922.
14

seriam se fossem aplicados na sociedade. Um texto utópico representa uma experiência


filosófica mostrando o resultado da aplicação de um princípio filosófico utópico. Com isto em
mente, toda a história passa a ser um código moral aplicado na prática, e o papel de Rafael, na
Utopia de T.M., é o de contar o resultado desta aplicação. Esta foi a primeira vez que isto se
apresentou como tal, inaugurando, assim, uma linha de estudo filosófico chamada de utopiana
ou utópica.18

Não são ideais diferentes que distinguem utopias de outras formas de filosofia moral e
política, mas a sua exposição. Ao invés de apresentar conceitos abstraídos da sociedade, a
Utopia mostra como conceitos filosóficos são aplicados na sociedade e, através do relato da
mesma, como uma sociedade regida por aqueles princípios funciona. Trata-se de uma
experiência filosófica colocada em prática através de uma história mostrando como seria se
aquela teoria fosse colocada em prática. As reflexões derivadas da história vão mostrando a
sua viabilidade ou não.19

Ao invés de elaborar uma teoria filosófica correta para depois oferecê-la para a
sociedade, o pensamento utopiano simula a sociedade de posse daquela teoria e analisa como
seria se fosse verdade a sua aplicação. Trata-se de uma experiência do pensamento, uma
espécie de “jogo” filosófico.20

Uma Utopia torna-se verdade e possibilidade a partir do momento em que uma


quantidade suficiente de pessoas que a lê é capaz de absorver seus princípios e promover esta
transformação através das suas práticas. A diferença entre sonhar e filosofar é que, se o
sonhador consegue detalhar seu sonho, adequá-lo à vivência humana e expô-lo de forma que
outros possam seguir os princípios, ele terá se transformado num utopiano. O que transforma
sonhos em Utopia é a educação, que o transforma em pensamento social, convertendo o
abstrato em concreto e permitindo o compartilhar dos demais através da sua convicção e
ações de acordo com os princípios utópicos.21

18
Vide The Philosophy of Utopia e The Politic of Utopia de Barbara Goodwin.
19
STILLMAN in GOODWIN 2001.
20
STILLMAN in GOODWIN 2001, p.14.
21
STILLMAN in GOODWIN 2001.
15

Muitos comentadores citam Oscar Wilde: “Um mapa mundi que não inclua Utopia nem
vale a pena olhar, pois omite o único país no qual o homem está sempre chegando, olhando e
vendo um mundo melhor, partindo. Progresso é a realização de Utopias”.22

Uma das interpretações que brotam na leitura da Utopia é a sua comparação com a
imagem de um espelho. Seria, portanto, um reflexo de um mundo novo, outra possibilidade,
mesmo que seja distante, servindo como espelho para a crueldade da realidade. De acordo
com Stieltjes (2005, p. 18), é importante observar a imagem da Utopia como sendo um
espelho da realidade:

A imagem do espelho é mágica, pois é ao mesmo tempo fiel e invertida. É


um símbolo conveniente para A Utopia, pois esta espelha a loucura e
devolve por inversão uma imagem de sabedoria. As imagens do mundo
invertido não são raras durante a Renascença.23

Aquele que desejar um empenho maior nos estudos das obras medievais encontrará
alguns empecilhos; a estrada se fará árdua e o esforço hermenêutico será uma constante. Da
mesma forma, o estudioso de T.M. não se deparará com um percurso ameno, mas com a
aridez de estudos, com poucas interpretações sobre sua obra “Utopia”.

Com fito em ampliar a literatura sobre o tema, fornecendo material para futuras
pesquisas, sem embargo das demais obras de T.M, delimitou o objeto da pesquisa a obra da
Utopia.

Entre todas as traduções, foi escolhida para o trabalho de pesquisa a tradução do latim
para o inglês, da Cambridge University Press, a mais recente e que possui uma ortografia
mais moderna, visto que trabalha com parágrafos e pontuações mais fáceis para aqueles não
versados no latim.24 No entanto, ao citarmos os trechos da obra neste trabalho, optamos pela
tradução do latim para o português, do Prof. Dr, Aires do Nascimento, publicado pela
Fundação Calouste Gulbenkian, garantindo assim uma fidelidade na citação no nosso
vernáculo. As demais traduções foram usadas para elucidar os trechos mais obscuros. A
versão publicada pela Yale University Press, considerada até a publicação da versão de

22
LEVITAS 1990, p.05.
23
Claude-Gilbert Dubois e Sabine Melchior-Bonnet explicam como o espelho de vidro, revestido de mercúrio,
invenção da Renascença, excita a imaginação da época. (STIELTJES 2005, p.18).
24
Embora estudiosos e pesquisadores mais tradicionais criticassem esta versão justamente pela sua
modernização ortográfica.
16

Cambridge como a melhor tradução, continua sendo até a presente data a que possui o mais
rico comentário a respeito do texto.

Outra tradução utilizada na interpretação do trabalho foi a francesa de André Prévost,


publicado pela Nouvelles Éditions Mame. Por este motivo, no decorrer do trabalho, todas as
citações feitas em português terão as referências da localização no idioma original (latina),
como também nas traduções inglesa e francesa, situadas no rodapé.25

Apesar de certa profusão de textos sobre a Utopia, são muito raros os que possuem um
enfoque filosófico. A predominância consiste na sua interpretação literária. Mas, dentro de
uma perspectiva filosófica, só foram encontrados dois textos, envolvendo uma mesma autora:
Barbara Goodwin.26

Esta autora reconhece o débito que a academia inglesa tem com um dos primeiros e
mais destacados autores da renascença. Barbara Goodwin chamou a atenção para a falta de
estudos filosóficos pertinentes a um assunto tão profundo e cujas consequências se fizeram
tão presentes na história, pois esta obra é considerada como o berço do socialismo e do
comunismo contemporâneos e tem servido de inspiração para anarquistas e diversas correntes
de pensamento, manifestando-se inclusive em ficções científicas, com as suas projeções de
futuro.

O pesquisador contatou com o maior especialista vivo em literatura utópica, Prof.


Eméritus Lyman Tower Sargent, do Departamento de Ciência Política da Universidade de
Missouri – St Louis, indagando-o a respeito da existência de livros que tratassem da Utopia
de T.M., e que tivessem um foco filosófico. Os poucos livros encontrados e recomendados
estão presentes nesta pesquisa. Os livros de Barbara Goodwin tratam da Utopia como gênero,
e não especificamente a Utopia de T.M.

Os principais autores recomendados pelo Prof. Sargent se situam em dois opostos


quanto à finalidade da obra Utópica: Surtz, como membro da Companhia de Jesus, mesma
instituição que publicou os seus dois livros27 utilizados nesta pesquisa, insiste em afirmar que

25
a numeração após o código "LAT" e "ING" correspondem a paginação do livro da Cambridge University Press
contendo a versão original latina e a inglesa e a numeração após o "FRA" da paginação do livro de Prévost.
26
The Philosophy of Utopia e The Politics of Utopia, ambos editados pela Barbara Goodwin, e a segunda em
parceria com Keith Taylor.
27
The Praise of Wisdom e The Praise of Pleasure.
17

a obra se trata de uma peça literária e nada mais; do outro lado, defendendo uma profundidade
muito maior da obra, no âmbito da filosofia, encontramos Logan28 e Baker-Smith.

Sendo assim, na busca de aprofundar o conhecimento da obra, enquanto filosofia moral


e política, desenvolveu-se a presente dissertação. Trata-se de um trabalho descritivo, de cunho
qualitativo, com base em textos e livros que versam sobre o tema. Para tanto, dividiu-se o
estudo em três capítulos, a saber:

No primeiro capítulo, aborda-se a crítica da filosofia moral e política utopiana. Esta


crítica está focalizada na contemporaneidade moreana do Séc. XVI, com os seus vícios e a
perseguição dos falsos prazeres pelos europeus e especialmente pelos ingleses. Destacam-se
os principais pontos presentes na sua crítica no que se refere aos falsos prazeres como um
todo, mas detalhando certos aspectos, como: vícios decorrentes dos falsos prazeres, vícios dos
governantes, da nobreza, da plebe e a questão social da moralidade.

No segundo capítulo, apresentam-se os fundamentos desta filosofia moral e política,


alicerçados no conceito de natureza e razão herdado dos estoicos; na busca do prazer e
felicidade no hedonismo epicuriano; e num conceito fundamental religioso próprio de T.M.,
herdado obviamente da sua fé inabalável de uma crença em Deus e nas consequências pós-
vida das ações humanas.

No terceiro capítulo, é descrito o dever-ser, como se efetiva a filosofia utopiana


moreana. Inicia-se pelo governo, mostrando-se como T.M. recomenda que deve agir um
governante que busca o bem-estar do seu povo. A seguir, passa-se a dissertar sobre a nobreza,
que representa o serviço público; a educação, fator de suma importância na utopia; o sistema
jurídico, o qual, para T.M., necessita de poucas leis quando se tem um povo bem instruído.
Continuando nessa mesma linha, fala-se da população, mostrando-se como esta deve ser e
agir na Ilha de Utopia.

28
The Meaning of More’s Utopia.
18

1 A CRÍTICA: IMPEDIMENTOS DA VIGÊNCIA DA FILOSOFIA


MORAL E POLÍTICA

Uma leitura aprofundada de T.M. conduz à compreensão de que suas ideias e


perspectivas civilizatórias caracterizam uma pré-defesa do comunismo e a instauração de um
mundo novo, sob a ótica humanista. Também se pressupõe a presença de suas profecias nos
movimentos socialistas europeus do século XIX.

Pode-se dizer que T.M. escreve uma obra de reforma política, na condução de uma
sociedade cujos valores humanos são evidenciados, tanto em nível individual quanto coletivo.
Valores que reclamam respostas, visto serem ainda cobrados presentemente.

T.M. vive um período de transição e de crise, o que explica a intenção de uma


reformulação política e social. Representa, sua visão, a passagem do homem medieval ao
homem moderno, o que pode implicar ser sua escrita a superação de seus conflitos pessoais:
subsidiar uma nova civilização, superando as fracassadas política e governança de sua época
com uma sociedade da razão.

É importante salientar que não há uma crítica específica a nenhum personagem


histórico, não estamos nos referindo especificamente a Henrique VIII ou a qualquer outro
soberano de sua época. Ironicamente, se tivéssemos que usar um exemplo histórico, nenhum
outro se encaixaria tão bem quanto Henrique VIII, que até o fim do seu reinado provou ter se
tornado o monarca mais absolutista da Inglaterra. O motivo é que, se tratarmos de personificar
os protagonistas da Utopia, a obra se torna de fato literária ou até histórica, permanecendo
assim dentro de sua camuflagem proposital.

Assim, o autor percebeu a necessidade de uma reforma na Inglaterra, e a desejou de


uma forma global, ou, como esclarece De Silva (1992, p. 206): “no terreno privado e na
administração pública, na vida secular e na eclesiástica, na educação e na economia”. Como
se vê, reconhecia que a reforma social englobava todas as esferas que a humanidade vivia.
Esse pode ser um sinal de que o humanismo de T.M. se via extensivo não somente ao seu
19

tempo, mas seria amplamente direcionado aos homens. As ideias-chaves de seu escrito podem
conduzir à compreensão de ser seu pensamento uma revolução, e de que a tarefa de constituir
um novo mundo para ele era clarividente. Sem reformas profundas, não seria viável
estabelecer um estado da razão.

Observam-se, pois, na construção da Utopia, os elementos que T.M. utiliza para a


fundação de uma nova civilização cristã-europeia, em vista do desgaste e da decadência
espiritual, política e intelectual ao longo do final da Idade Média. Da mesma maneira,
podemos ver a influência do Novo Mundo, que inspirava os europeus, ajudados pelas
descobertas científicas e geográficas. Ficar alheio aos acontecimentos que balançavam a
Europa não era próprio de T.M.; tampouco deixar de contribuir com algum argumento teórico
sobre a edificação de uma nova realidade. Desse modo, pode-se, erroneamente, supor que
Utopia é um tratado particular para a sociedade inglesa. Uma leitura mais aprofundada
permite reconhecer que se dirige a todo o contexto humano. O texto de T.M é de uma
perspectiva medieval e moderna, porque é uma crítica às instituições medievais que não
apresentavam mudanças, e, por outro lado, é uma literatura inovadora de um mundo em seu
alvorecer. Daí afirmar-se não haver ruptura alguma entre o renascimento humanista e a
condição medieval que se efetivara historicamente.

Além de oferecer uma ponte entre o antigo medieval e o novo moderno que se
descortinava diante dele, T.M. procurava uma harmonia entre a ciência filosófica humana e a
teologia, enquanto ciência divina. Como seria, então, entender essa postura moriana à luz dos
conhecimentos veiculados em seu tempo? De Silva (1992, p. 210) esclarece:

A fé cristã recebe respeitosa homenagem, mas, ao mesmo tempo, a


inteligência humana avança audaz até as fronteiras mais distantes de uma
verdade cuja essência é mistério insondável e que permanecerá sempre
misteriosa por muito que se estude (de fato, quanto mais se estuda, mais
misteriosa). A fé não pode caminhar sem a companhia do intelecto, e a
inteligência somente encontra descanso, de alguma forma, na fé.

Há uma concepção, no tempo de T.M. de uma afinidade29 e, ao mesmo tempo,


separação entre fé e inteligência. O empenho de T.M. reside na proposta da instauração de
uma civilização em que esses distanciamentos sejam unificados. Desse modo, haveria um
lugar onde seria possível a vivência plena da idealidade enquanto pura e total realidade. Vê-

29
Enquanto em Agostinho prevalecia a fé nos assuntos confrontados com a razão, Tomás de Aquino acreditava
que se a razão não “concordava” com a fé era por insuficiência racional ou uma falta de entendimento.
20

se, pois, a perspectiva de uma filosofia moral e política, com ênfase na efetivação de valores e
conselhos viáveis ao homem moderno. Este, não mais convencido de uma moral eclesiástica
deísta, mas de novos impasses, que se levantam com a ciência experimental e com os avanços
no campo da observação e da dedução empírica.

Uma postura significativa da filosofia política de T.M. é que, em seu tratado utópico,
ele busca reunir a primazia da razão e da revelação, o seu equilíbrio, possível a uma nova
humanidade, na observância das ordens criadas, evidenciando a perspectiva do pensamento
cristão, num recorte humanista de seu tempo.30

Ao pensar numa comunidade perfeita, T.M. sabia que seu ponto de partida seria a
antropologia, a compreensão da criação humana. O estudo da criação humana seria
fundamental para a formação da pessoa e da sociedade utopianas. A criação humana seria a
predisposição do próprio homem de se ver criatura de Deus, reconhecendo sua existência, sua
razão natural, a ordenança da natureza e a construção de uma conduta moral pactuada pela
convivência e pela efetivação da razão natural.

Partindo do pressuposto antropológico, o tratado político redigido por T.M. demonstra


que o melhor funcionamento de uma civilização se daria no fato de que a razão não é um
poder que por si só leva à perfeição. É a convicção de que esta se obtém juntamente com
critérios religiosos, ou seja, a razão seria incompleta sem os princípios obtidos pela religião. A
perpetuação da sociedade, por exemplo, se daria na busca da verdadeira felicidade, pela
imortalidade da alma, cujo fim é a visibilidade de Deus. A mensuração dessa condição de
cada habitante se revelaria segundo suas obras e virtudes. Nas palavras de Prevost (1969, p.
106): “um humanismo são era a condição de uma sã teologia”.

T.M já reconhecia o projeto da Modernidade, e isso era presente no humanismo da


baixa Idade Média do século XVI. Participando assim dos avanços de seu tempo, o que
constituiria mais tarde o chamado “espírito moderno”, o autor, ao mesmo tempo, não abre
mão da herança medieval presente no seu objetivo transcendental. Expressa, assim, a unidade

30
Os utopianos, se existissem de fato e não fossem apenas personagens literários, não se caracterizariam como
racionalistas, nem tampouco, pode-se dizer deles, precursores do Iluminismo. Apenas se servem da razão, mas
sem pô-la no lugar mais alto de suas vidas. A razão, para eles, era a faculdade de os tornarem sempre abertos à
realidade. Seria aquela condição de fazer com que se alcançasse algo que não era obtido pelos sentidos.
21

natural do homem e Deus. Assim, o tratado utopista é um tratado humanista político porque,
conforme De Silva (1992, p. 217) ressalta:

Deus e homem não se excluem, porque tampouco se excluem as obras de um


e de outro. Não são adversários, e é dada ao homem a cooperação com o seu
criador (a pessoa é participens creatoris). Ambos, criatura e criador,
encontram nessa cooperação seu respectivo orgulho.

A reforma política de T.M. se revela na sua descrição de uma sociedade que carece, não
apenas de reforma, mas de uma nova forma. Baseia-se no humanismo que está a cargo das
ações de cada habitante, pelos usos e costumes que se coordenam na vivência dos valores
sociais e na revelação cristã. Assim, a Utopia é uma reflexão sobre os fundamentos e
condições em que se pode levar a cabo uma sociedade moderna. Aquela, que via nos valores
medievais os pressupostos de uma comunidade que se conceitua racional, que conhece nos
acontecimentos o presságio de um novo alvorecer.

Portanto, a razão seria a faculdade-guia dos utopienses, o que seria exemplo não
somente para os ingleses cristãos, mas também para os demais cristãos de sua época. Seria,
igualmente, a razão, a condutora de uma comunidade humana, a condição de uma reforma
social.

Uma questão que se colocava à mente de T.M era a viabilidade de uma reforma da
Inglaterra, e acreditava que isso não seria possível sem uma reforma da Igreja. A Utopia é
uma reflexão sobre a Cristandade e sobre os pilares evangélicos.

De Silva (1992, p. 224) afirma que T.M. constrói, na Utopia, “um programa ideológico-
político, sociológico, artístico, etc.”. Isso, porque toda civilização proposta apresenta uma
beleza sobre-humana. O utopiense é aquele homem prudente, que conhece os limites, os
ideais ou ilusões sobre as possibilidades de vida temperadas de experiência.

Assim, segundo Surtz (1957b, p. 13), o termo que representa a crítica dentro da filosofia
moreana é o vício, que abrange todos os segmentos da sociedade. A obra de T.M. busca
expor e descrever os vícios que prejudicam o Estado e as virtudes que o exalta e o faz
florescer.

No que tange aos vícios, Guilherme Budê, no prefácio de Utopia, deixa claro que a raça
humana possui desde o seu nascimento um apetite que parece um parasita presente na carne e
22

que a preda durante a sua vida toda (MORVS, 2006). Serão estes apetites que iremos
descrever no decorrer desse primeiro capítulo.

1.1 Vícios decorrentes dos falsos prazeres

Segundo Baker-Smith (1991, p. 75), há uma série de experiências prazerosas, a que se


designam virtuosas ou verdadeiras, que são fundamentadas na natureza em si; mas existe
também uma série artificial, a que se designa vício ou falsa, fundamentada em convenções
sociais, o que representa uma decepção autoimposta ou, como mostra o autor: “a sociedade é
a conspiração para virar a natureza de ponta cabeça”.

Surtz (1957a, p. 40), por sua vez, relaciona as quatro causas mencionadas na obra no
tratamento de falsos prazeres: doenças corporais, satisfação desmedida de desejos básicos,
também compreendidos como desejos desonestos, opiniões falsas e, sobretudo, hábitos
pervertidos.

As doenças corporais são compreendidas no seu sentido físico e não moral. Têm como
causa um julgamento corrompido em relação ao prazer derivado da sua moléstia.31 Os desejos
desonestos derivam dos encantos perversos e maliciosos que causam muitas coisas que são
desagradáveis por si, mas são confundidas como desejos superiores, pois possuem como
objeto não só prazeres sensuais, como comida e bebida em quantidades imoderadas, ou delícia
excessiva, mas, também, ligações perversas com riquezas e honras.

As opiniões falsas decorrem de desejos de uma natureza imoral e perversa, e quando


sucumbidas sem reservas, enganam a mente com a falsa opinião de prazer. Na perspectiva
moreana, o resultado é que homens que são enganados dessa forma escolhem prazeres falsos,
como se eles ultrapassassem outros prazeres pela sua natureza, e não pelo seu engano.

Para Surtz (1957a, p. 40): “Erros intelectuais, ou pensamentos errôneos, causam aos
mortais a escolha de falsos prazeres”. Assim, ao ser seduzido a erros de julgamento pelos
desejos que surgem, o homem se torna vítima de hábitos ou costumes corruptos. Ao olhar
para prazeres falsos, como se eles fossem verdadeiros, faz-se com que a gratificação seja

31
Um exemplo seria a obesidade que pode criar falsos prazeres quando na verdade a vítima estaria apenas se
subjulgando aos desejos errôneos de comer desmesuradamente. O alcoolismo é outro exemplo de doença que
promove uma necessidade confundida com prazer autêntico, quando apenas se satisfaz um vício.
23

derivada destes. Porém, não é a natureza da coisa, mas a sua perversidade que é a causa de
aceitar coisas amargas, ou azedas, ao invés das coisas doces.

Segundo More (1995)32, o vício possui não só uma responsabilidade individual daquele
que se ilude, mas também uma questão social, que é cabível dentro de uma sociedade que não
tem medida social, que não se constrói a partir de critérios morais.

De acordo com Surtz (1957), isso é perceptível na crítica social moreana quando
Raphael fala do costume como fonte de erro em relação ao prazer. Para o autor, T.M. está se
referindo não somente aos hábitos corruptos dos homens enquanto indivíduos, mas, também,
às falsas considerações e vícios das classes sociais, pois a sociedade fornece o ambiente no
qual uma opinião errônea pode surgir e crescer.

Surtz (1957) percebe essa crítica quando T.M. se refere aos costumes cegos dos
homens. Esses costumes são preservados nos prazeres torpes de todos os deleites desmedidos
da carne, e os mantêm ignorantes e sem cuidado ou preocupação com a doçura do prazer
espiritual. T.M. é bastante explícito quando se refere aos mortais que, em exercício de
fantasia, como se estivesse ao alcance deles poder transformar a realidade como mudam de
palavra, imaginam prazeres que ultrapassam a natureza, cheios de amargor, perversidade e
prazeres ilícitos.

A esse respeito, declaram os utopienses que tudo isso nada tem a ver com a felicidade,
antes, na maior parte das vezes, lhe serve de empecilho, porque, uma vez assentes, essas
ilusões do prazer não deixam lugar para os deleites autênticos e verdadeiros, uma vez que daí
por diante ocupam todo o espírito. T.M. prossegue afirmando que estes desvarios, embora o
comum dos mortais os tome como prazeres, não são instituídos pela natureza como
agradáveis.

Para Surtz (1957, p. 42), entre os prazeres falsos destacados pelos utopianos, existem: a
noção errônea de que quanto melhor a roupa, melhor aquele que a veste; o orgulho tolo por
honras inúteis, especialmente por uma nobreza desprovida de bens; um deleite pueril por
pedras e gemas preciosas; ouro armazenado ou riquezas guardadas para simples
contemplação; e, por fim, um entusiasmo enlouquecido por jogos de dados, falcoaria e caça.

32
LAT246/ING247/FRA629.
24

O falso prazer derivado de falsa honra é particularmente repudiado pelos utopianos, pois
consideram tolos e ignorantes aqueles que exigem reverência e respeito como um direito
decorrente de seus trajes e que possuem orgulho por honras vãs e desnecessárias. Para T.M
apud Surtz (1957, p. 47): “o prazer que surge da satisfação de um desejo incomum por sinais
de respeito, quando independe da honra. Trata-se de um engodo e não é natural nem
verdadeiro”. Já que os utopianos julgam o valor de todas as coisas de acordo com sua
natureza e já que roupas, por sua natureza, visam apenas à proteção e à modéstia do corpo, o
que estiver acima disto não é natural. Dessa forma, o deleite nos exageros apenas demonstra o
falso prazer. Os utopianos defendem que uma sociedade deve pautar-se no valor que seja
compensável a cada cidadão, e o que acontece contra esse princípio é prejudicial para a
sociedade.

Esse entendimento fica claro quando T.M faz uma crítica à classe dos governantes. Esta
crítica possui duas funções, visto que, ao exteriorizar as suas dúvidas a respeito da viabilidade
da sua função como conselheiro, cargo que viria a ocupar em breve, torna-se incisivo na
explanação dos vícios próprios dos governantes.

1.2 Vícios dos governantes

T.M., na preocupação em localizar e citar os vícios, os exageros desmedidos e a


manutenção do estado de falso prazer pelos governantes, apresenta, nos últimos parágrafos do
segundo livro, um antagonismo entre seus personagens.

Em seu discurso sobre os vícios dos governantes, T.M mostra que, enquanto Rafael
acredita no sucesso de um governo destituído dos falsos prazeres, o personagem More afirma
que assim se procedendo: “cai por terra toda a fidalguia, a magnificência, o esplendor, a
majestade, que, como sustenta a opinião pública, é o verdadeiro ornamento e glória do
Estado” (MORVS, 2006, p. 673).33 Desta forma, pode-se ver como as aparências do Estado,
na figura e esplendor dos seus governantes, são edificadas sobre os falsos prazeres e os vícios
dos monarcas.

33
LAT246/ING247/FRA630. Vale recordar o trecho em que quando se fala de falso prazer. A população dá
condições para o cultivo de falsos prazeres [...] É esta multidão que apóia o conceito falso de nobreza, baseada
em um culto de ostentação que, na verdade, vira as coisas ao avesso, chamando coisas más de boas e
confundindo coisas amargas com doces. [BAKER-SMITH p.178]
25

Para Surtz (1957a), o primeiro ponto que T.M. destaca na crítica aos governantes é a
falta de interesse no estudo e no conhecimento. T.M questionava como governar sem dispor
de um conhecimento sobre a sua função de governante. Essa questão é de fato pertinente, pois
o que prevalecia era o desdém para com o estudo, uma característica dos nobres e dos
cavalheiros tanto na Inglaterra como na Europa. Ser chamado de erudito ou estudioso era uma
ofensa para um nobre.

Nesse sentido, T.M não conseguia entender porque os governantes não liam os livros
que já haviam sido escritos pelos filósofos. Para T.M., era relevante o rei ou governante
dispor de acesso à cultura e ao saber, como referência para um bom governo.34 É uma
condição de lucidez para aquele que pretende governar com o crivo da razão. Assim sendo,
T.M. propõe uma reforma radical da sociedade de seu tempo, e a Utopia é uma prova cabal
desse intento (MORVS, 2006).35

No entanto, T.M. tem consciência do grande desafio que isso significa ao ponderar:
“Porventura não estás tu ciente de que, se eu propuser a algum rei decisões sensatas e tomar a
peito arrancar-lhe as sementes perniciosas do mal, serei imediatamente escorraçado e posto a
ridículo?” (MORVS, 2006, p. 453).36

Depois de tecer uma crítica severa aos governantes quanto a seus vícios, T.M. sugere
conselhos que viabilizam a instauração de uma sociedade racional, mantida pela nova ordem
de racionalidade e pelos ensinamentos cristãos. No entanto, segundo Logan (1983, p. 56),
T.M. reconhece que se trata do mais relevante e sério de todos os problemas sistêmicos, em
vista do que “os conselhos bons ou maus possam acarretar, através dos governantes, em toda
uma sociedade”.37 Por isso que, em a Utopia, a objeção de Rafael para ocupar um posto no
corpo de conselho de um governante se resume a uma rejeição fundamental deste modo de
expressão política, pois ele acredita que isso na prática não funciona.38 “O ambiente da corte
corrompe o cortesão. O problema é institucional.” (BAKER-SMITH 1991, p. 101).

34
Assim, também propunha Aristóteles, a Alexandre, a cultura.
35
LAT082/ING083/FRA417.
36
LAT082/ING083/FRA417.
37
Podemos ver claramente como esta influência atua nos dias de hoje no exemplo do papel que lobistas, como
“conselheiros”, exercem no nosso executivo e legislativo.
38
Para Baker-Smith (1991, p.101): “A função do conselho, de acordo com Castiglionoe, é usar a persuasão para
guiar o príncipe em direção a políticas virtuosas.”
26

Para Logan (1983, p. 68), em T.M., a função do conselho corrompido tem uma
finalidade de atender aos interesses individuais em detrimento dos interesses comuns. Isso se
faz presente em todos os exemplos citados por Raphael no primeiro livro da Utopia, que
reforçam a inutilidade de conselhos a governantes. Rafael menciona a preocupação dos reis
mais com as guerras do que para com a paz; a condição de bajulação que norteia o rei, que,
por sua vez, aprecia esse clima; e a conduta da corte que é regida por precedentes, o que não
permite inovação.

No primeiro livro, faz-se um exemplo do tipo de conselhos que um rei receberia dos
seus conselheiros. Uma análise de cada opção mostra conselhos nada virtuosos, embora
representassem um quadro bastante realista do cenário europeu. Rafael pede para imaginar
que está junto a um governante e que possui assento no seu conselho, em que, no mais secreto
dos aposentos, sob a presidência do próprio governante, se discutem superiores opiniões de
homens altamente sabedores dos meios e das estratégias de fazer alianças para recuperar o
que lhes escapara, tentar arruinar inimigos, conquistar e anexar territórios, contratar
mercenários, distribuir subornos de dinheiro, entregar para outros o que não lhes pertence e
atrair cortesãos. Isso, sem contar com atos de falsidade com que se trata o inimigo como
amigo e o instigam por detrás. T.M. faz uma descrição da condição que prevalece entre os
conselheiros de um governante europeu do séc. XVI:

[...] de todos aqueles que pertencem ao conselho dos reis, não há ninguém
que procure aconselhar-se, seja porque alguém é de verdade altamente
competente, seja porque lhe parece que é tão competente que não lhe apetece
confrontar-se com o conselho de outrem, a não ser dos que aplaudem as
opiniões mais que absurdas e vivem do parasitismo daqueles que procuram
apenas ganhar para si as boas graças do príncipe com o seu aplauso. A
analogia está na natureza, por certo: cada um elogia o que inventa, da mesma
maneira que o filhote do corvo sorri para o progenitor e que ao macaco
39
agrada a sua cria. (MORVS, 2006, p. 411).

Mais adiante, T.M. observa que mesmo aqueles providos de boa fé estão arriscados a
cair nas tramas nefastas do poder:

[...] quem quer que seja ou ficará pervertido pelo seu comportamento
depravado ou ele próprio, na sua integridade e inocência, servirá de
cobertura à malícia e a estultices alheias, de tal modo que muito dificilmente
alguém poderá, por via indireta, levar alguma coisa a tornar-se melhor.
(MORVS, 2006, p. 473).40

39
LAT052/ING053/FRA374.
40
LAT098/ING099/FRA434.
27

Quanto à guerra e à conquista, T.M. observa que a sociedade vê impedimento à prática


dos valores cristãos e à vivência da justiça no desejo da prática bélica por parte dos príncipes
e governantes. Nosso autor, sobre o assunto, assim observa:

[...] os próprios príncipes, na sua maior parte, estão todos mais que
comprazidamente ocupados em estratégias militares [...] e preferem-nas a
ações de paz ou passam muito mais tempo a congeminar de que modo, lícito
ou ilícito, conseguiriam conquistar novos reinos do que a administrar bem os
que lhes couberam. (MORVS, 2006, p. 411).41

De acordo com Baker-Smith (1991, p. 59), na invasão da França, em 1513, por


Henrique VIII, constata-se como jogos de guerra ainda dominavam a vida aristocrática. “Dos
quarenta e dois nobres diretamente ligados a operações militares do reino, trinta e três
estavam envolvidos diretamente nesta invasão e a metade de todas as tropas, quinze mil, eram
compostas de seus subordinados”. Para TM e Erasmus, a lição mais óbvia desta campanha são
os perigos de uma aristocracia criada para a guerra e por um príncipe determinado a superar
seus antecessores.

Sobre a guerra, T.M. é enfático, ao dizer: “A acção bélica (bellum) é algo de


verdadeiramente bestial (belluinum), mesmo que não haja qualquer tipo de bestas para quem
ela seja tão frequente, como para o homem, o recurso a ela”. (MORVS, 2006, p. 605).42

E quando decide criar a Utopia, um dos delitos e condições que deseja banir dessa
civilização é exatamente a guerra, e a proposta bélica de governo. Assim, T.M. diz que: “é
rotundamente proscrita pelos utopianos e, ao invés do que se passa em todas as nações, a
custo se encontrará coisa tão desqualificada como a glória que se busca na guerra.” (MORVS,
2006, p. 605).43

T.M. critica o governante que, na busca de um reino cada vez maior, maiores também
serão os seus problemas. O fascínio bélico próprio dos governantes corruptos e interessados
apenas em expansão e conquista acaba por proporcionar uma série de males e desavenças no
seu próprio país, como cita T.M. quando relata a respeito de um governante que havia se
apoderado de outro país.

41
LAT052/ING053/FRA374.
42
LAT200/ING201/FRA566.
43
LAT200/ING201/FRA566.
28

[...] havia que fazer gastos, ver sair o dinheiro para fora, dedicar o sangue
próprio (da população) a uma vaidade alheia; paz e segurança eram sem
perspectivas, os bons costumes no país tinham decaído em razão da guerra,
havia uma cupidez desenfreada de pilhagem, vivia-se um desaforo de
assassínios a toda a prova, as leis eram deitadas ao desprezo porque o rei se
dispersava a cuidar de dois reinos e menos era capaz de voltar a atenção para
qualquer um deles. (MORVS, 2006, p. 457).44

Desse modo, como aplicar um governo justo, a prática dos valores, a implantação de
uma civilização moral e politicamente viável, se a atenção do governante estava voltada para
a guerra e sua manutenção?

1.3 Vícios da nobreza e da plebe

T.M. deixa clara em seus escritos a condição política e moral de sua época. Relata a
pauperização das instituições, a nomeação de cargos públicos como algo vergonhoso e propõe
uma crítica severa a esse contexto. Segundo Surtz (1957a, p. 49)

[...] os cargos políticos, tanto na Igreja quanto no Estado, eram sempre


ocupados por membros escolhidos por sua linhagem e nobreza, e não pela
sua virtude, aprendizado e prudência. O resultado era a nomeação de homens
estúpidos, tolos e corruptos.45

Na Utopia, T.M. se refere especificamente a este problema de designar incompetentes a


funções públicas, causando uma inversão de valores, na qual aqueles que sustentam a
sociedade com seu trabalho e dedicação são renegados a uma classe sofrida, enquanto os
parasitas que se aproveitam dos esforços alheios são beneficiados:

Não será que é iníqua e ingrata uma nação que proporciona tantos regalos a
fidalgos, como lhes chamam, a traficantes de dinheiro e a outros do mesmo
gênero, que vivem na ociosidade ou que passam a vida a adular e assegurar
vãos prazeres, quando, em contraste, para agricultores, carvoeiros, serviçais,
condutores de carros e artesãos, sem os quais a organização pública não se
aguenta, nada prevê que lhes seja favorável? (MORVS, 2006, p. 665).46

T.M. enxerga a corrupção institucional quando explica a conduta dos ricos e fidalgos
que estabelecem a “fraude privada”, e ainda adotam leis que os apóiam e que garantem que
condutas corruptas serão aprovadas por lei. E acrescenta:

44
LAT084/ING085/FRA418.
45
Erasmus, escrevendo para Faber, em 1532, declara que TM e seu pai, que não pertenciam à nobreza, mereciam
os favores do rei pela sua virtude, a verdadeira origem de toda a nobreza. George Lily também diz que TM foi
chamado aos cargos mais honrados do Estado apenas por recomendação da sua virtude.
46
LAT242/ING243/FRA625.
29

É por isso que, quando olho para todos os Estados que hoje se apresentam
em prosperidade, dou comigo a pensar (Deus me é testemunha) se não está a
ocorrer uma conspiração de ricos que usurpam o nome e a autoridade do
Estado para tratarem dos seus próprios interesses, congeminando e
maquinando todos os modos e todas as estratégias para, primeiro, ficarem
com os bens que desonestamente açambarcaram, sem medo de os perderem,
depois, para pagarem o mínimo possível de mão-de-obra aos pobres e para
deles abusarem. (MORVS, 2006, p. 665).47

A seguir, temos a sua crítica ao parasitismo e à exploração:

Há um número grande de fidalgos que não só passam a vida na ociosidade,


como zangões atidos ao trabalho de outros, mas ainda por cima, para
aumentarem os seus rendimentos, sugam os seus trabalhadores até ao sangue
vivo. É de fato o único tipo de frugalidade que conhecem, pois, quanto ao
resto, são tão esbanjadores que caem na mendicidade; de verdade, trazem à
sua volta uma grande multidão de parasitas48, sem terem nada para fazer já
que nunca aprenderam qualquer ofício para ganharem a vida. Dê-se o caso
de o seu patrão morrer ou de eles caírem doentes: imediatamente são postos
fora, pois se prefere alimentar ociosos a dar de comer a doentes; bastas vezes
o herdeiro de alguém que acaba de morrer não tem logo o suficiente para
sustentar a clientela paterna, pelo que eles terão de passar fome deveras, a
não ser que se ponham a roubar. (MORVS, 2006 p. 419).49

O maior ataque que TM faz à Igreja está contido no primeiro livro, no episódio do
Cardeal Morton, e, de uma forma mais velada, no segundo, que relata a vida na ilha de
Utopia. A semelhança da vontade de Cristo exposta na sua revelação, contida na Bíblia, com a
racionalidade e propostas da religião Utópica é muito grande. E somente através da razão, os
ilhéus alcançaram o estado político desejado e idealizado pelo próprio Filho de Deus nas
escrituras sagradas. Ao mostrar que a fé cristã é lógica, ele mostrou que para ser divino tudo
tinha que fazer sentido. Deus, de acordo com T.M. não realizaria alguma coisa que não fizesse
sentido.

Na incoerência religiosa que predominava na Europa, onde os ditames do fundador da


religião cristã eram incompatíveis com os atos que vigoravam ate então, foi preciso: “[...] a
tempestade da Reforma Protestante para trazer os católicos ao juízo, reforma e reparação.
Acreditava-se que, entre os maiores males na Igreja, estavam a avareza e a ganância por
dinheiro.” (SURTZ, 1957b, p. 144). E essa era a crítica que Lutero expunha em seus
argumentos. Mesmo sem ter a ideia da dimensão de sua postura, acabou por conduzir a

47
LAT242/ING243/FRA625.
48
Nota do pesquisador: lembra-se de que um dos sinais de poder na época feudal era ter “muitos amigos”, que
acompanhavam os poderosos.
49
LAT056/ING057/FRA381.
30

Cristandade a uma revisão de suas bases evangélicas. Da mesma forma, T.M. chama a
atenção para os mesmos males e, diferentemente de Lutero, a quem T.M. passaria a deplorar
posteriormente, ofereceria a sua reforma nos moldes dos habitantes da Utopia.

A condição interna da Igreja, no contexto de T.M., não era diferente da condição civil
da Inglaterra e Europa. Havia uma paridade de governo. De acordo com Surtz (1957b), o
próprio Papa Urbano I (222-230) foi o primeiro a decretar que padres poderiam receber
propriedades oferecidas por devotos. No entanto, ele estipulou que nada podia se tornar
propriedade privada, mas tudo visava ao bem comum. Assim, moradias eram comuns a padres
e a hospitalidade, aberta aos laicos. No entanto, o bem comum foi substituído pelo “meu” e
“teu”, e o clero era agora visto como renda, legado e propriedade. Como não conduzir esse
contexto a uma condição de crítica, de análise política e moral?

O pior pecador não resistira à graça se todos entre o clero vivessem como
deveria. O Bispo Fisher dizia que no tempo de São Paulo não havia cálices
de ouro, mas havia padres dourados. Agora, existem muitos cálices de ouro e
quase nenhum padre dourado. (SURTZ, 1957b, p. 146).

Um dos temas de relevância na análise de filosofia moral e política em T.M. diz respeito
à justiça que lhe é inerente. Nosso autor chega a desejar apreciar essa condição e diz que daria
a vida por descobri-la, até mesmo em lugares longínquos. Esse desejo para ele tornou-se um
anseio, porque a realidade experimentada por ele não lhe dava a devida condição para tal.50

T.M. critica veementemente a valorização dos bens materiais. Isso fica explícito em seu
discurso sobre o valor do ouro, mais aquilatado do que o próprio homem, tornando a criação
superior à criatura.51 Sua crítica torna-se tenaz, quando diz:

[...] que justiça é essa que faz com que alguém, por ser fidalgo ou por
transaccionar dinheiro ou por se entregar à usura (enfim, seja ele quem for
daqueles que ou nada fazem ou aquilo que fazem é como se nada fizessem
em favor da comunidade), consiga uma vida lauta e esplêndida sem fazer
nada ou em actividade supérflua [...]. (MORVS, 2006, p. 665).52

Como já fora dito anteriormente, a conduta do governante recai para a população. Daí a
ênfase para uma postura coerente e justa para quem governa. T.M. toma esse direcionamento,

50
Para Logan (1983, p.51) “A política jurídica inglesa não pode ser justificada por princípios morais ou
religiosos e também não pode ser justificada nas vantagens que deveria gerar (não se justifica nem pela religião,
nem pela moral, tampouco pelos resultados).” O próprio Estado Inglês permitiu que a doutrina cristã se
rebaixasse a seus caprichos e a tirania ganhasse o seu indevido espaço.
51
LAT154/ING155/FRA509.
52
LAT242/ING243/FRA622.
31

visto que a população, igualmente, apresenta vícios, fraquezas e se mostra sujeita a delitos.
Como o nosso autor mesmo expressa, quando no prefácio questiona se vale a pena se
empenhar em publicar a Utopia diante da postura dos seus concidadãos. A instabilidade da
conduta dos homens é preocupante para o nosso autor. Observa que essa condição se dá pela
ignorância das letras; pela rejeição do que é novo; pelo apego ao que lhes agrada; e pela não
aceitação a algo diferente. A instabilidade é tanta que T.M. diz:

Entretanto, para dizer a verdade, nem eu próprio ainda decidi bem comigo
mesmo se irei por fim empreender a publicação. Na realidade, tantos são os
gostos humanos, tão remissos os intelectos de alguns, tão ingratos os
sentimentos, tão irracionais os juízos, que me parece bastante mais cordato
pôr-me do lado dos que vivem despreocupados e satisfeitos, dão largas à sua
natureza, sem se matarem com cuidados de publicar algo que pudesse ser de
utilidade ou de recreio para outros, que ou desdenham ou são mal
agradecidos. Há muitos que ignoram as letras, muitos que as menosprezam.
Um bárbaro rejeita como difícil tudo aquilo que não é completamente
bárbaro. Os presumidos de sábios menosprezam como trivial tudo o que não
cintila com palavras fora de uso. Alguns apenas gostam de velharias, à maior
parte só lhes agrada o que é deles. Este é tão carrancudo que não admite um
gracejo, aquele é tão insípido que não suporta uma ironia; tão entupido têm
alguns o nariz que qualquer odor lhes causa receio, como teme a água aquele
que foi mordido por um cão raivoso; tão instáveis são outros que aprovam
uma coisa, se estão sentados, e outra, se estão de pé. (MORVS, 2006, p.
383).53

A crítica moreana decorre, igualmente, da ociosidade, que se percebe claramente contra


aqueles que optam por esse modelo de vida. De acordo com o nosso autor, é um prejuízo
social, um desgaste político e um ônus para o país em que poucos produzem o que muitos
necessitam.

T.M. denomina esses homens de “parasitas”, porque sobrevivem do esforço alheio, da


má conduta de se fazerem vítimas do seu próprio delito. Faz uma crítica àqueles que se
apoderam da boa vontade dos que trabalham e determinam a vida deles a partir de sua própria
preguiça. Além de uma contundente crítica civil, tece igualmente um comentário aos que, na
Igreja, se servem dessa condição: “E quem poderá contar a multidão de sacerdotes e de
religiosos (tal nome lhes dão) que a isso acresce?” (MORVS, 2006, p. 507).54

Direciona sua crítica aos abastados, os grandes proprietários de terras que garantem sua
vida sobre as costas dos trabalhadores, daqueles que derramam o suor para manter o fausto de

53
LAT036/ING037/FRA353.
54
LAT128/ING129/FRA473.
32

seus dominadores. T.M. faz uma crítica a esse modelo social, oneroso para os desfavorecidos
e privilegiados para os que detêm o poder. E conclui: “Com isso descobrir-se-á que são menos
do que se pensara aqueles cujo trabalho produz todos os bens de que os mortais se servem.”
(MORVS, 2006, p. 507).55

O tecido social vivido por T.M. é de esperteza de quem toma o poder às mãos, em
detrimento dos que mantinham a nobreza e a realeza como fardo socioeconômico. A sua
perspectiva utopiana de uma nova civilização não integra em seu interior essa condição
nefasta e nem admite uma postura de parasitismo de nenhum de seus habitantes. Assim, ele
acrescenta: “observe-se agora entre todos estes, quão tão poucos desempenham profissões
indispensáveis.” (MORVS, 2006, p. 507).56

1.4 A questão social da moralidade

Uma vez que a Utopia é uma obra de restauração social, T.M. tenta construí-la à
imagem dos valores cristãos. Soma, aos valores e critérios racionais, aqueles inerentes a
Cristo. Por isso, ele propõe uma interpretação mais fiel possível aos preceitos cristãos, haja
vista que foram muitos os que, distorcendo a mensagem cristã, acabaram por “permitir os
homens a se sentirem mais seguros nas suas maldades” (SURTZ, 1957a, p. 177). Isso se
conceitua, na perspectiva moreana, como sinal de hipocrisia social.

Há de se obter o ajustamento das perversões, tudo no molde das palavras de Cristo, pois
somente assim se obtém a garantia de uma sociedade purificada da maldade, pelo esforço e
pela ascese espiritual. Morvs (2006, p. 473)57 assim prescreve:

[...] quando os homens só a grande custo conseguem adequar os seus


procedimentos à norma de Cristo, ajustam eles a sua doutrina aos
comportamentos, como se ajusta uma régua de chumbo, para assim, ao
menos de algum modo, ficarem nas proximidades.

T.M. faz essa reflexão em vista do que reconhece de seu contexto histórico-político.
Para ele, segundo Surtz (1957a), os poderosos não medem sua devoção religiosa pela regra de
Cristo, mas pela sua própria predileção emocional. Aqui ele indica um ensinamento que vai
de encontro ao governo corrupto, ilícito, e diz que, para esses governantes, “viver

55
LAT128/ING129/FRA473.
56
LAT128/ING129/FRA473.
57
LAT098/ING099/FRA434.
33

sobriamente, castamente ou com complacência, é demasiadamente árduo e difícil.” (SURTZ


1957a, p. 178).58

Na perspectiva de Baker-Smith (1991, p. 44), T.M.59 não possuía simpatia para com os
mitos predominantes de então, envolvendo honra e cavalheirismo. O ideal de cavalheirismo
estava se tornando um ideal cada vez mais literário, preocupado mais com brincadeiras de
guerra do que com as verdadeiras condições de um campo de batalha. Ou seja, T.M. tece uma
crítica aos ritos, sinais e simbolismos quando estes assumem a pretensão de essenciais à fé
estabelecida no sacrifício e na memória daquele que foi ao extremo da dor e doação. Segundo
Baker-Smith (1991, p. 44), a sociedade estava “no caminho rumo à esclerose institucional, ou
seja, o parecer estava se tornando mais importante do que o ser”.60

Para Baker-Smith (1991), T.M. foi o primeiro a destacar o “elemento social da


moralidade”. Isso é perceptível quando Rafael Hitlodeu conversa com o Cardeal e propõe
uma análise sobre a criminalidade da época. Para Rafael, as injustiças sociais são a fonte das
posturas imorais da população, graças à falta de direcionamento moral dos governantes e da
nobreza. Assim, é dada uma conotação coletiva do crime, ao invés de uma perspectiva
individual.

Na pessoa de Raphael, T.M. reconhece o elemento social na moralidade, e a sua


proposta na disputa com o Cardeal Morton tem como preocupação principal o espírito de
igualdade que estaria muito presente na sua prática como juiz e chanceler.

Segundo Baker-Smith (1991, p. 105), o princípio da moralidade se mantém intrínseco


ao da igualdade, que “representava para TM a liberdade de moderar a letra da lei à luz da
consciência”. A grande questão da reforma proposta por T.M. consiste numa mudança que
teria que ser tanto moral, modificando o ser, a individualidade; como política, mudando o
coletivo, o social.61 Um traço da filosofia moral em T.M. é o trecho seguinte, onde se lê:

58
A crítica que se faz é que as paixões e os vícios dos que governavam estavam acima dos valores cristãos e as
verdades da fé sucumbiam diante dos interesses pessoais e obscenos. Erasmo de Roterdã também tece uma
crítica a respeito, e desde suas primeiras publicações era radicalmente contra o absurdo das pessoas que tentavam
dobrar a moralidade de Cristo para a vida dos homens e não o inverso. (SURTZ 1957a p.178)
59
Como também Erasmus.
60
Ou talvez o “parecer” só fosse possível através do “ter”, pois “tendo” se parece “ser”, assim se antecipa a
dualidade que vivemos hoje em que questionamos o “ter” do consumismo predominando sobre o “ser”.
61
Na análise de Baker-Smith (1991, p.216): “A natureza humana não pode ser mudada sem uma reforma das
instituições, mas instituições não podem ser reformadas até que a natureza humana mude”. Isso serve de base
para uma reflexão feita posteriormente pela revolução social feita por Durkheim e Weber, que admitiam a
34

Em verdade, quando consentis que se dê uma educação má e que o


comportamento moral se degrade desde tenra idade, para o punirdes apenas
em momento terminal, quando os adultos revelam os vícios que eram de
prever desde a infância, que estais a fazer, dizei-me, por favor, senão a criar
ladrões e vós mesmos a aplicar castigos? (MORVS, 2006, p. 431).62

Uma condição inalienável de todo homem é o amparo legítimo de sua formação


integral. Somente a ação do Estado eficaz pode garantir ao homem acesso aos bens de direito,
como frisa T.M. quanto à educação. Destarte, T.M. enfatiza:

Na realidade, condenam o ladrão a castigos pesados e até horrendos quando


seria preferível providenciar a que houvesse algum modo de subsistência, de
forma que ninguém tivesse de enfrentar, primeiro, a cruel necessidade de ter
de roubar e, seguidamente, a inevitabilidade de perder a vida. (MORVS,
2006, p. 417). 63

Nesse trecho, T.M. dá ênfase à sua perspectiva política e moral de sua sociedade
nascente. A garantia de sobrevivência e de manutenção da vida é de direito no Estado,
instituição legítima de amparo ao homem.

Na perspectiva de Surtz (1957a, p. 176), essa observação de T.M. é rica porque permite
uma compreensão sobre as causas dos problemas sociais que estão no campo da moralidade:

A avareza e a ganância impõem a falta sobre a abundância da natureza, pois,


o que a natureza liberal tem dado para ser comum a todos, os homens
maliciosamente transformam em privado; o que ela tem feito visível e
acessível é carregado, trancado, guardado e mantido longe dos demais por
portas, paredes, ferrolhos, ferro, armas e leis. Dessa forma, a ganância e
maldade de uma minoria impõem a falta e a fome diante da abundância da
natureza e causa pobreza no meio das riquezas de Deus.

Essa crítica sobre o elemento social da moralidade está presente em toda a tradição
filosófica, nos discursos posteriores a T.M.

A hipocrisia social também se manifesta pela desigualdade. Baker-Smith (1991) destaca


que o cerne do argumento de T.M., na pessoa de Raphael, é que não pode haver uma
sociedade justa onde exista a propriedade privada. Isto se justifica porque alguns ganharão
vantagens que assegurarão posteriormente seus próprios interesses, e toda a concepção de
comunidade será subvertida. Desse modo, uma vez que a propriedade privada é admitida,

validade da instituição sobre o sujeito e do sujeito sobre as instituições. Desse modo, uma análise moderna das
questões sociais que preocupavam esses cientistas sociais expressava uma herança sobre o destino dos homens.
62
LAT066/ING067/FRA394.
63
LAT054/ING055/FRA378/POR417.
35

todas as coisas serão medidas em termos de valor monetário, e a justiça será distorcida para
gratificar o pequeno número de cidadãos ricos.64

A desigualdade é tratada como consequência do paradoxo do dinheiro, que foi


desenvolvido para assegurar acesso às necessidades da vida, mas que na verdade funcionou
para impedir que a maioria as obtivesse. (BAKER-SMITH, 1991). T.M. é muito claro quando
expõe na Utopia o seguinte pensamento: “Seria tão fácil arranjar alimento, se o afortunado
dinheiro, engenhosamente inventado para abrir as portas ao alimento, não fosse ele a barrar-
nos o caminho para ele!” (MORVS, 2006, p. 669).65 No estado de natureza, todo mundo
assegura o uso das dádivas da natureza de acordo com suas necessidades e ninguém
reclamava propriedade. Foi somente com o desenvolvimento de organizações sociais que o
sistema de direitos de propriedade foi formulado na lei. (BAKER-SMITH, 1991).

A postura de T.M. quanto à desigualdade é a seguinte:

É minha convicção firme que uma distribuição segundo critérios de equidade


ou uma planificação justa das coisas humanas não é possível sem eliminar
totalmente a propriedade privada. Enquanto ela subsistir, estou convencido
de que há de continuar sempre a haver, entre grandíssima parte da
humanidade e entre a melhor parte dela, o fardo angustiante e inelutável da
pobreza e da miséria. (MORVS, 2006, p. 479).66

Morvs (2006, p. 477)67 continua defendendo o seu argumento, consciente de que o


grande empecilho para a igualdade entre os homens é que se “[...] em toda parte em que há
propriedade privada, em que todos medem tudo por dinheiro, dificilmente alguma vez aí se
poderá chegar a promover a justiça de Estado ou a prosperidade”. E ainda acrescenta,
afirmando que: “[...] não há prosperidade quando tudo é repartido entre um pequeno número
de indivíduos, que com nada se sentem saciados, enquanto os outros são condenados à
miséria”.

64
Na Política de Aristóteles, o homem, quando perfeito, é a melhor das criaturas, mas, se ele estiver isolado da
lei e da justiça, ele é a pior de todas. (LOGAN 1983, p.153). Para Platão, governantes egoístas predariam sobre o
resto da comunidade, o que os obriga a terem tudo em comum. T.M. compartilha a mesma visão pessimista da
natureza humana que Aristóteles e Platão, e sugere também a remoção da oportunidade de acúmulo egoísta que é
um dos motivos do comunismo utopiano ser universal. Para Logan (1983, p. 209), o argumento platônico para a
inibição do egoísmo de uma classe governante é relançado na Utopia como um argumento para a necessidade de
comunidade da propriedade, a fim de assegurar justiça distributiva. T.M. afirma que com a igualdade de
distribuição todos os homens têm a abundância de todas as coisas, trazendo ordem para a sociedade, enquanto,
onde houver propriedade privada, haverá o desmando.
65
LAT244/ING245/FRA626.
66
LAT102/ING103/FRA (texto não encontrado no Francês).
67
LAT100/ING101/FRA437.
36

O interesse próprio se sobrepõe aos interesses coletivos. T.M. o afirma claramente:


“quando o homem se prevalece de certos títulos para avocar a si tudo o que pode, seja qual for
a quantidade de bens, e não reparte o que cabe aos outros, deixando-os na miséria” (MORVS,
2006, p. 477).68

Logan (1991, p. 133) acrescenta que, na perspectiva de T.M., “uma das grandes
patologias sociais é o luxo e o desperdício, pois o excesso pode ser tão danoso quanto a
deficiência”.

68
LAT100/ING101/FRA438.
37

2 A FUNDAMENTAÇÃO DA FILOSOFIA MORAL E POLÍTICA


UTOPIANA

Para uma fundamentação da filosofia moral e política, na perspectiva moreana, torna-se


imperativo perceber os contrastes existentes na sociedade europeia de seu tempo. T.M.
reconhece a fragilidade institucional e entende a necessidade de uma reforma, que deve
ocorrer nos moldes da condição divina de emancipação humana, nos critérios da cristandade.
Por isso, para Surtz (1957a, p. 169), de acordo com Guilherme Budé, a Utopia pagã, ao
contrário do ocidente cristão, tem se apegado tenazmente a três instituições divinas: primeiro,
a absoluta igualdade entre todos os cidadãos; segundo, um amor inabalável à paz e à quietude;
e terceiro, um desprezo por ouro e prata. Estas três instituições foram direcionadas contra os
males gritantes da Europa que lhe era coetânea. A primeira, contra a enorme desigualdade
entre ricos e pobres, nobres e comuns e entre pessoas cristãs; a segunda, contra as guerras
ininterruptas dos príncipes cristãos; e a terceira, contra a ganância por riqueza que estava
corrompendo os países cristãos.

Para Logan (1983, p. 134), a intenção de T.M. é demonstrar que existem meios para
“facilitar o alcançar da felicidade pelos seus cidadãos, [e que este] deve ser uma organização
política que possibilita a todo tipo de homem estar o seu melhor e viver felizmente.” Ou seja,
a nobreza da vida no desfrute da reputação, do prazer, erradicando toda existência de dor e do
mal. Baker-Smith (1991, p. 203) acrescenta que é uma tentativa de concentrar os homens no
estabelecimento do bem comum, constituindo uma das características próprias dos utopianos.

Para Logan (1983), T.M. assegura, em todos os aspectos da constituição utopiana,


conclusões da sua filosofia moral, pois T.M. inaugura uma nova forma de pensar, dando uma
explicação científica para as causas de pobreza, crime e injustiça. Para ele, as causas desses
males não são inerentes ao ser, mas podem ser encontradas nas condições materiais, na
apropriação da propriedade, como valor privativo, quando deve ter um caráter público.
Inauguram-se então uma jurisdição moral de sociabilidade e os critérios práticos de ordem
moral.
38

Desse modo, Logan (1983, p. 51) diz que: “a política jurídica inglesa não pode ser
justificada por princípios morais ou religiosos e nem pelos resultados.” Pode-se dizer que
princípios, morais e religiosos é que dão resultados, é que justificam uma política jurídica.
Assim, a proposta jurídica moral é da vivência prática dos critérios que T.M. determina como
válidos para a comunidade utopiana. Ele comenta que: “a forma mais prática, ou como se
diria na atualidade, científica de se curar sintomas sociais como crime ou guerra é assumir as
ações realísticas necessárias para aliviar ou eliminar as suas causas”. (LOGAN, 1983, p. 57).

Na análise do tema em evidência, para Logan (1983, p. 55), Raphael encontra as causas
básicas do roubo (criminalidade), não no mau caráter dos ladrões (criminosos)
individualmente, mas nos defeitos do sistema social. A Utopia mostra claramente que não se
pode trabalhar com a parte sintomática dos problemas sociais sem enfrentar as causas; as
verdadeiras soluções assumem a forma de mudanças legais e institucionais designadas a
eliminar as causas. Compreende-se, portanto, que questões delituosas não podem ser
enfatizadas na ordem individual. Problemas sociais são decorrentes de injustiças sociais e
podem ser percebidos através de uma análise racional. Todo o Livro I da Utopia mostra
claramente as origens dos graves problemas sociais que acometem a Europa.

Para Logan (1983, p. 54), a proposta de todo Livro I revela a origem dos graves
problemas que acometem a Europa do Séc. XVI e que, por sua vez, não devem ser vistos de
forma isolada, mas dentro de um contexto maior, mais social.

Baker-Smith (1991, p. 105) esclarece que a característica dessa proposta se encontra na


resposta de Raphael ao advogado no caso do Cardeal Morton. Segundo ele, é inovadora
porque reconhece o elemento social na moralidade. Nesse contexto, o crime passa a ser visto
também no âmbito social e não se resume apenas ao pecado individual. A proposta de
Raphael na disputa com o Cardeal Morton tem como preocupação primordial o espírito de
igualdade, tema marcadamente presente na prática de TM como juiz e chanceler. Para T.M., a
igualdade representava a liberdade de moderar a letra da lei à luz da consciência e
circunstância. Há até uma cláusula na Lei canônica, que permite acesso comum a bens
essenciais em condições de grande necessidade. Por esse motivo, fome ou desespero podem
até justificar o roubo.
39

2.1 A Razão

A compreensão de uma fundamentação moral e política propõe, igualmente, o


entendimento de seu embasamento, ou seja, de seu suporte reflexivo. Logan (1983, p. 04)
explica que a Utopia pode ser compreendida como “princípios que podem ser aplicados na
prática política”.

Na análise de Surtz (1957a, p. 06), “a Utopia é uma cidade filosófica. Uma criação da
razão humana sem a ajuda da revelação divina”. E os utopianos acreditam na possibilidade da
revelação divina, apesar de terem conquistado a cidade perfeita somente através da razão. A
distinção entre a razão e a fé não é tão gratuita quanto se pressupõe, pois T.M. deixa clara a
distinção explícita entre a razão natural e a religião revelada. Os utopianos acreditam que, a
não ser que uma religião seja mandada do céu e possa inspirar no homem uma opinião mais
sacrossanta, não há nenhuma que seja superior às buscadas pela razão humana. (SURTZ,
1957a).

Baker-Smith (2006) afirma que a temática sobre a formação de uma civilização racional
é institucional. A Utopia incorpora a consciência de que na política princípios gerais
normalmente operam através de estruturas institucionais específicas, e as recomendações
reformadoras de TM são dirigidas a uma mudança institucional. Encontra-se, nesse sentido, a
compreensão de que uma sociedade construída pela razão deve incorporar em suas
instituições critérios morais e políticos no mesmo nível da dimensão racional.

Desse modo, a prescrição de uma sociedade moral e política, segundo T.M., perpassa
pela harmonia não só do que é prudente e moral, mas, também, do que é prudente e cristão,
cujas instituições devem ser tanto prudentes quanto santas. Somente pela razão, é que os
utopianos são levados a princípios éticos, e a Utopia é construída extrapolando estes mesmos
princípios para o âmbito da política. Em alguns aspectos importantes, a comunidade
puramente racional de T.M. age como se fosse uma comunidade perfeitamente cristã.

A constituição de uma comunidade racional, segundo T.M., somente é aceitável quando


segue os critérios dos preceitos cristãos, que encontram sentido na práxis social, preceitos
esses vivenciados pelos utopianos em sua magnitude e excelência.
40

2.2 A natureza, a base da moral utopiana

A análise da moral utopiana tem início, igualmente, na herança grega de natureza


(physis). O termo é utilizado na Utopia para dar ao termo crucial “natureza” uma base firme
na vida dos sentidos, para que possa ser estendida para uma esfera abrangente de atividades
humanas, do biológico ao teológico.69

Permite à filosofia do prazer incluir não só serviço aos outros, mas até sacrifício, já que
estes trazem os prazeres elevados de benevolência moral e esperança de uma recompensa
após a morte. (BAKER-SMITH, 1991).

De acordo com Baker-Smith (1991), o ideal de viver de acordo com a natureza é a


essência da moralidade utopiana, um amálgama deste esquema ético. T.M. apresenta ao leitor
uma filosofia do prazer70, com todas as ambiguidades que isso possa criar, e destaca a
verdadeira austeridade que governa a vida dos utopianos. Estes possuem também uma ideia
central de agir ou escolher de acordo com a natureza71, junto com outra obrigação importante,
a de assistir outros por camaradagem natural.

T.M. designa essa condição de vida de prazer de “apetência natural”, aquela que permite
tornar viável tudo o que é agradável, no usufruto dos sentidos e na reta razão. Nas palavras de
T.M., apetência natural “designa por prazer todo o movimento ou todo o estado de corpo, ou
de alma nos quais o homem, guiado pela natureza, se delicia em viver”. (MORVS 2006, p.
551).72 A “apetência natural”, como tudo o que é agradável por natureza, não se busca apenas
pelos sentidos, mas também pela reta razão.

Para os utopianos, segundo Surtz (1957a, p. 20), a natureza é atraída ao prazer e à


virtude. E as argumentações são as seguintes:

A virtude é a vida vivida de acordo com a natureza. Mas, a vida vivida de


acordo com a natureza é a seleção e rejeição de coisas de acordo com a
razão. Portanto, a virtude é a seleção e rejeição de coisas de acordo com a
razão. Mas, a razão nos aconselha e nos incita a levar uma vida o mais livre
de cuidados e o mais cheio de alegria quanto possível, e nos mostrar solícitos
em vista da solidariedade que surge da natureza em obter o mesmo para

69
T.M. proporciona aos utopianos uma crença estoica na solidariedade humana e uma crença platonista numa
divindade beneficente.
70
De cunho epicurista.
71
Herdado dos estoicos.
72
LAT166/ING167/FRA521.
41

todos os outros seres humanos. Portanto, a virtude aconselha e nos incita a


levar uma vida o mais livre de cuidados e o mais feliz possível.

Segundo T.M., os habitantes da Utopia definem a virtude como sendo viver segundo a
natureza, que é o mesmo que dizer que o homem foi ordenado por Deus a viver de acordo
com a forma do qual foi criado. Deixa-se conduzir pela natureza todo aquele que no desejar
ou no repudiar as coisas obedece à razão. A razão, por seu lado, antes de mais e em primeiro
lugar, inflama os homens ao amor e à veneração da divina majestade, e proporciona ao
homem a aptidão para a felicidade. Para T.M., a natureza convida e impulsiona o homem a
levar uma vida com o mínimo de ansiedade e com o máximo de satisfação, e, por afinidade de
natureza, a prestar assistência aos outros para alcançarem o mesmo. (MORVS, 2006).

Para Surtz (1957a, p. 37), T.M. afirma que todo prazer é, portanto, bom ou mal por
natureza e permanecerá assim para sempre. E observa que os utopianos chegam a essa
concepção mediante a aplicação de três normas negativas. Um objeto só pode ser prazeroso
por natureza se não: envolver a perda de um prazer maior; ter como consequência dor ou
arrependimento a terceiro: causar dor e sofrimento ao próximo. Dos três, os primeiros dois
são de importância especial e valor para o indivíduo, e o terceiro, para a sociedade.

Dessa forma, os utopianos determinam que, ou em parte ou no todo, a felicidade do


homem reside no prazer. A felicidade, para a sociedade utopiana, reside naquele prazer que é
bom e honesto por natureza, tornando-se praticamente uma norma a ser vivida, a de buscar
prazeres bons e honestos para se alcançar a felicidade. Prazer é considerado por eles como
toda noção ou estado do corpo ou mente em que o homem tenha naturalmente deleite.
(SURTZ, 1957a).

Nas palavras de T.M., os utopianos consideram que a felicidade não se situa num prazer
qualquer, mas apenas no prazer bom e honesto. Todo prazer efetivamente se direciona para
esta felicidade como sumo bem. É através desta natureza, que na Utopia se considera virtuoso
seguir seus ditames, que se chega à meta final, que é a felicidade. (MORVS, 2006).

Para Surtz (1957a), os homens devem respeitar a natureza como a sua mãe, e jamais
recusar ou desprezar uma dádiva que ela colocou no mundo para o seu uso e deleite. Os
utopianos são insistentes a respeito do natural, e desprezar a beleza não é natural, como
também usar meios artificiais para aumentá-la. Os utopianos não se servem de meios
artificiais para expressar a beleza contida em cada homem. Como orienta T.M.:
42

[...] já que a natureza predispõe todos os mortais a prestarem-se apoio mútuo


a fim de obtermos uma vida de maior satisfação (coisa que certamente ela
faz com boas razões, pois, por mais elevado que alguém se encontre na
condição humana, para sozinho atrair a si o cuidado da natureza, que a todos
sem excepção presta os seus favores, e a todos os que são da mesma espécie
ela abraça solidariamente) é de admirar que ela nos mande uma e muitas
vezes tomar cuidado em não procurarmos tanto as nossas vantagens que
causemos prejuízos aos outros. (MORVS, 2006, p. 547).73

Para a vida em Utopia é preciso compreender, segundo Surtz (1957a, p. 152), que a
natureza convida e impulsiona o homem a levar uma vida com o mínimo de ansiedade e com
o máximo de satisfação, ou seja, afinidade de natureza. Ela convida a prestar assistência aos
outros para alcançarem o mesmo; nunca, efetivamente, terá havido seguidor tão severo e tão
estrito da virtude e inimigo do prazer que aponte aos outros trabalhos, vigílias e austeridades,
sem ao mesmo tempo ordenar que se dediquem a aliviar a pobreza e os sofrimentos dos
outros.

A natureza permite ao homem o exercício das virtudes que conduzem a sociedade à


vivência do modelo da civilização da cristandade.

A vivência de uma sociedade moralmente efetivada se instaura, segundo Surtz (1957a),


na visão dos utopianos sobre ouro, prata e pedras preciosas. Está sempre ligada à natureza.
Cada utopiano valoriza coisas preciosas não mais do que a natureza que elas merecem. Por
isso, existe o desprezo ao ouro que possui pouca utilidade, em comparação ao ferro, que é tão
fundamental quanto o fogo e a água. A validade do objeto encontra sentido pragmático,
viabilidade utilitarista, cabendo apenas emprego social.

2.3 O prazer, a felicidade e a virtude

A própria vida na Utopia já caracteriza a vigência do prazer. O utopiano pratica


vivamente o hedonismo, sendo essa uma das características sociais. Daí, Surtz (1957a) diz
que a sociedade utopiana, enquanto sistema comunista, está intimamente ligada a uma
filosofia, e intrinsecamente relacionada ao hedonismo utopiano.

De acordo com T.M., todas as ações conduzem ao prazer, e considera que todas as
nossas ações, e nelas as próprias virtudes, têm no ponto de mira o prazer como seu objetivo e
felicidade. (MORVS, 2006)

73
LAT162/ING163/FRA517.
43

Para Surtz (1957a), os utopianos consideram o prazer como toda noção ou estado do
corpo ou mente, em que o homem tenha naturalmente deleite. Mas deve-se atentar para o fato
de que muitas coisas que, embora sejam consideradas prazerosas, pela sua própria natureza,
não contêm prazer algum.

Na perspectiva de uma sociedade hedonista, pautada na vivência do prazer, Surtz


(1957a) afirma que um dos grandes obstáculos para a aceitação da interpretação humanista da
Utopia tem sido a filosofia do prazer endossada pelos utopianos. Eles parecem
excessivamente inclinados à opinião que defende o prazer como a principal parte responsável
pela felicidade do homem. Entretanto, embora a parte que trata dos verdadeiros prazeres seja
a menos organizada e não siga uma sequência lógica, aqueles são divididos em prazeres do
corpo e da alma.

De acordo com Surtz (1957a), T.M. demonstra habilidade retórica acima de tudo no seu
uso do termo prazer (Uoluptas). Uoluptas no senso literal da palavra sempre tem transmitido
a ideia de gratificação do corpo ou dos sentidos. Na Utopia, uoluptas é atribuído a um tipo de
prazer muito elevado, e é definido como todo movimento e estado do corpo ou da mente em
que o homem tenha naturalmente deleite.

Surtz (1957a) afirma que T.M. usa, na obra, vários sinônimos para uoluptas, como:
iucunditas (pleasantness) delectatio (delight), laetitia (joyfulness), suauitas (sweetness) e até
commoda (interesses). Tanto fazendo o seu prazer (uoluptas) abraçar os prazeres do corpo e
da alma, e identificando-o com seus sinônimos indiscriminadamente, T.M. astutamente torna
mais fácil corroborar que prazer é a essência da felicidade humana. Por isso, na atribuição do
termo prazer, para os utopianos, só pode haver ou prazer ou dor. Não há nenhum estado
neutro de sensação intermediária entre prazer e dor, ou uma coisa ou outra. A natureza do
prazer como bom ou mal é imutável.

É possível pensar numa deontologia do prazer, adotando, como agir racionalmente, o


agir prazerosamente? De acordo com Surtz (1957a), é próprio dos homens agirem movidos
pelo prazer, já que este deve satisfazer suas necessidades. E cultivar o prazer significa cumprir
as regras da natureza.

Para Logan (1983), o governo verdadeiro seria aquele que buscava os verdadeiros
prazeres, no estabelecimento de que as leis educacionais, por exemplo, deveriam contemplar
44

nas crianças o repúdio aos falsos prazeres e o acesso ao verdadeiro saber, adquirido por bons
livros.

O projeto educacional dos utopianos inclui o exercício dos prazeres, em que um menor
não seja obstáculo para alcançar uma maior, e que não haja arrependimento ou dor como
consequência. Da mesma forma, nenhum utopiano deve comprometer o outro ao perseguir um
prazer que é almejado.

Na percepção de Logan (1983, p. 153): “deve se dar ao homem uma educação correta
para que esses instintos o conduzam a virtude, mas se educá-lo mau ele acaba no outro
extremo”. A satisfação dos desejos é algo inerente ao ser e pode ocupá-lo pela vida inteira.

Percebe-se que a aplicabilidade do prazer encontra-se nos âmbitos individual e social,


porque é própria da civilização utopiana a vivência deste na dimensão da alteridade. A
alteridade social é respeitada nos três conceitos anteriormente citados, e este princípio
caracteriza um preceito social de que o prazer deve ser obtido “sem erro ou dano a outro ser
humano.” (SURTZ, 1957a, p. 30).

T.M. exemplifica a alteridade dos utopienses que agradecem à mãe natureza pelo prazer
de dar aos filhos o comer, o beber, o coçar e o esfregar. Tais ações derivam dos favores da sua
própria natureza. A isso pode ser acrescido o conselho moreano que diz: “aquilo que não pode
ser transformado em benefícios, que tenha os seus malefícios reduzidos o máximo possível.”
(LOGAN, 1983, p. 116).

Para Morvs (2006, p. 549)74, não pode haver na comunidade utopiana nenhum benefício
particular que entre em choque com o estado e a condição da maioria:

Cuidar do interesse de cada um, sem violar essa lei, é sensatez; cuidar, além
disso, do interesse público é próprio da solidariedade. Mas apressar-se a
impedir o prazer alheio para garantir o seu é, em contrapartida, uma
iniquidade; pelo contrário, privar-se a si mesmo de alguma coisa, para juntá-
la à de outros é, em fim de contas, prática de humanidade e de benignidade,
que, nunca como nesse gesto, tanto compensa quanto dispensa. De fato, há a
compensação da reciprocidade; além disso, a própria consciência de ter
agido bem e a recordação do afeto e do bem-querer daqueles a quem se
prestou um benefício trazem ao espírito maior prazer do que teria o corpo
com aquilo que lhe foi retirado. Enfim (e aqui a religião facilmente
encontrará adesão em espíritos de bom assentimento), Deus compensa com
gozo imenso, que nunca terá fim, a troca de um prazer exíguo e sem duração.

74
LAT164/ING165/FRA518.
45

É desta maneira que, depois de terem analisado cuidadosamente e sopesado


a matéria, consideram que todas as nossas ações, e nelas as próprias virtudes,
têm no ponto de mira o prazer como seu objetivo e felicidade.

A condição de uma civilização pautada na racionalidade admite-se quando os interesses


entre os homens devem ocorrer para o bem comum. Na perspectiva de T.M., o homem que
despreza os prazeres corporais em favor de interesses alheios, e com vistas a receber maior
prazer de Deus em recompensa as suas dores, age racionalmente e tudo está bem. Mas aquele
que se maltrata sem beneficiar a ninguém é considerado um louco. (SURTZ, 1957a).

A deontologia do prazer para os utopianos passa a ser mais rigorosa do que qualquer
outro modelo. De acordo com as observações de Surtz (1957a), os resultados práticos desses
padrões de moralidade estabelecidos para os devotos do prazer acabam se tornando mais
rigorosos e elevados do que os estabelecidos pelos cristãos. Assim, a sociedade utopiana
apresenta-se por um lado austera, mas por outro hedonista. Veremos adiante como essa
concepção parece ser uma tradição reconhecida como forma de sociabilidade.

Como devotos da razão e do senso comum, os utopianos seguem um raciocínio lógico e


valorizam os prazeres da alma como os mais importantes. Tais podem ser divididos em três
classes:

A primeira classe origina-se do exercício autogratificante das virtudes; a


segunda constitui as recompensas da virtude, a serena consciência da nossa
própria excelência moral no presente, a doce memória da nossa conduta
virtuosa no passado e a inabalável esperança de alegria no futuro, nestas
estando inclusas as recompensas prazerosas de atos de sacrifício, a
consciência de um ato bom, a lembrança da satisfação dos beneficiados e a
compensação na forma de felicidade abundante na eternidade; e a terceira
classe de prazeres da alma nasce da contemplação da verdade.75 (SURTZ,
1957a, p. 62).

Para Surtz (1957a, p. 32), a relação entre prazer e virtude é decorrente da faculdade
racional pela qual um homem escolhe e evita prazeres e dores, que é a maior das suas
virtudes. É também a fonte de todas as demais virtudes, pois ensina que não podemos levar

75
Da mesma forma que Platão, os utopianos desprezam os falsos prazeres de riqueza e honra em comparação
com o deleite de conhecer a verdade e a realidade. (SURTZ, 1957). Reconhecendo que o hedonismo apresenta-se
como uma peculiaridade para a sociedade utopiana, é imperativo perceber como o prazer pode direcionar toda
uma comunidade. Dessa forma, é preciso reconhecer a herança que T.M. admite ter recebido da tradição
filosófica.
46

uma vida de prazeres que não seja também uma vida de prudência, honra e justiça. E também
não levar uma vida de prudência, honra e justiça que não seja também uma vida de prazer. A
maior parte de um prazer mental surge do exercício da virtude e consciência de uma boa vida.
O sacrifício de um prazer a fim de beneficiar o seu vizinho é mais que recompensado por uma
recompensa maior e tripla: “a aprovação da nossa consciência, a lembrança da gratidão de
quem recebe o favor e a firme esperança de uma recompensa futura”.76

Para Surtz (1957a), na perspectiva de T.M são três os prazeres do corpo: dois
relacionados à saúde e o terceiro a um deleite que inunda os sentidos com uma doçura
facilmente perceptível.

Quanto aos prazeres relacionados à saúde, o primeiro ocorre na restauração do corpo,


através do alimento e da bebida. O segundo surge da desincumbência destas coisas (fezes,
urina ou sêmen). Tal prazer é o prazer sentido na excreção ou na relação sexual, ou no alívio
de qualquer coceira ao esfregar ou coçar.

Na primeira variedade de prazer sensorial, damos ao corpo o que ele anseia; e na


segunda, aliviamos o corpo daquilo que o incomoda77. A terceira variedade nem satisfaz um
desejo e nem remove uma dor, mas, no entanto, afeta nossos sentidos com um movimento
oculto, porém, bem definido, atraindo a nossa atenção para o assunto. Um exemplo é a
música. Inclusos nesta terceira categoria estão os prazeres recebidos pelos sentidos.

A respeito da felicidade, os utopianos constroem seu sistema ético reunindo razão e


religião. Eles não entendem a possibilidade de separação de Deus, ou a sua religiosidade com
a vida em sua prática diária. Na perspectiva de Baker-Smith (1991), a teologia utopiana
propõe certas crenças mínimas que se relacionam à alma individual e a seu destino post

76 Na perspectiva de Logan (1983, p.170), é relevante perceber que aí finalmente TM deriva de Platão e
Aristóteles a ideia importante de que os vários prazeres podem ser classificados de acordo com a sua
importância, pois, na comunidade utopiana, há também uma hierarquia dos valores. Sobre os verdadeiros
prazeres e a melhor vida, Platão e Aristóteles compartilham com os utopianos a divisão de prazeres em diversas
categorias. A Ética, de Aristóteles, distingue entre os prazeres da mente e a dos sentidos e, como Platão, ele
acredita que ambas as formas de prazer são necessárias para a boa vida. A herança utopiana de Platão e
Aristóteles é a contemplação filosófica, para eles é o maior dos prazeres. T.M. reconhece que, enquanto em
Platão a contemplação filosófica da verdade é o prazer supremo, os utopianos asseguram que a principal parte do
prazer mental surge da prática das virtudes e da consciência de uma boa vida. Aristóteles, na sua Ética, afirma
que os vários prazeres podem ser hierarquizados de acordo com a dignidade da faculdade a que pertencem. O
que se oportuniza em Aristóteles é que se antecipa aos utopianos fazer a distinção entre prazeres naturais e não
naturais e também se explica que a doença e os hábitos podem fazer com que as pessoas achem que o não natural
é prazeroso.
77
No entendimento dos utopianos aqueles que acreditam que uma vida feliz está focalizada na satisfação da
fome, da sede e da coceira, com o alimento, a bebida e a coçação, vivem uma vida miserável.
47

mortem. Assim, a imortalidade da alma é mantida como uma fundação essencial para a
dignidade humana. Para os utopianos, a crença de Deus tem destinado a alma para a
felicidade, e depois da morte recompensas serão concedidas a feitos virtuosos e castigos serão
impostos para atos vergonhosos. A postura prática da felicidade dos utopianos é de que não só
projetam suas preocupações com a felicidade numa pós-morte, mas pressupõem o íntimo
envolvimento do divino com o humano; isso, por conseguinte, leva à crença de que o mundo é
regido por essa força divina, e não pelo acaso. A sociedade utopiana é a expressão da regência
da fé e da razão, num sistema ético sistemático.

A concepção social de Deus é uma condição de busca da felicidade dos utopianos. Para
eles, o conceito de Deus como o fim último que o humano alcança foi tratado aqui porque é
essencial para a compreensão da ideia utopiana de felicidade.

De acordo com a reflexão de Surtz (1957a), os utopianos discutem virtude e prazer, mas
o ponto principal da disputa é no que consiste a felicidade de um homem, se derivado de uma
única coisa ou de diversas coisas mais. A predisposição utópica é a de que o fim do homem é
a alegria ou beatitude. O ponto em questão aqui é: qual é o objeto dessa felicidade ou
beatitude? Salienta-se que toda essa controvérsia está centralizada e confinada a apenas dois
objetos: virtude e prazer. A escatologia dos utopianos é a perspectiva de que o homem já
alcançou na Terra os elementos para a beatitude, resumo de sua condição terrena.

Vemos isso quando nos deparamos com a própria perspectiva de T.M (2006, p. 585),78
que diz: “Os princípios [da religião] são do tipo seguinte: a alma é imortal e por benevolência
de Deus foi feita para a felicidade; depois desta vida, à virtude e às boas ações estão
destinados prêmios, aos crimes estão destinados castigos”.

Todos os temas em ordem moral podem ser discutidos dentre os utopianos,

[...] mas primária e suprema é a questão sobre a felicidade humana: em que é


que se situa, se numa única coisa se em muitas. Ora, quanto a isto, parecem
mais propensos do que seria razoável para a corrente que defende o prazer,
enquanto procuram definir a felicidade humana no seu todo ou na parte
principal. (MORVS, 2006, p. 543).

78 LAT160/ING161/FRA514.
48

A busca da felicidade, para os utopianos, está intrinsecamente relacionada com os


preceitos religiosos, porque é neles que todo o conjunto de elementos para alcançá-la está
contido. Como o próprio T.M. explana:

Nunca eles discutem sobre o problema da felicidade sem tirarem alguns


princípios da religião e sem os associarem com a filosofia que se serve do
raciocínio, pois sem os primeiros consideram que a razão só por si é falha e
sem forças para indagar a verdadeira felicidade. (MORVS, 2006, p. 543).79

A Filosofia Moral e Política está presente no pensamento de T.M. quando da busca e


alcance da felicidade, pois isto se relaciona com a prática social do bem. Para ele, os
utopianos acreditam que a felicidade não se refere a um prazer qualquer, “mas apenas ao
prazer bom e honesto. Efetivamente, é para esta felicidade, como sumo bem, que a nossa
natureza é conduzida pela virtude e é a ela que a corrente contrária atribui a felicidade.”
(MORVS, 2006, p. 547).80

Desse modo, de acordo com Surtz (1957a, p. 36), os utopianos afirmam que, ou em
parte ou no todo, a felicidade do homem se encontra no prazer. As características que eles
exigem para o tipo correto de prazer são as seguintes: “A felicidade reside somente naquele
prazer que é bom e honesto por natureza, esta é a norma positiva”.81

Os utopianos mantinham a ordem social mediante a prática da virtude e do prazer. Isso,


eles assumiam por acreditarem que a própria natureza atrai o homem à virtude e ao prazer.
Para eles, segundo Surtz (1957a, p. 20): “A virtude é a vida vivida de acordo com a natureza.
Mas, a vida vivida de acordo com a natureza é a seleção e rejeição de coisas de acordo com a
razão. Portanto, a virtude é a seleção e rejeição de coisas de acordo com a razão”.

79
LAT158/ING159/FRA513.
80
LAT162/ING163/FRA517.
81
Para Logan (1983), T.M. tem uma referência clássica grega quando lê que na Política de Aristóteles, a
felicidade, não importando se os homens a encontram no prazer, na bondade ou em ambas, pertence àqueles que
têm cultivado o seu caráter e mente ao máximo e mantido a aquisição de bens externos dentro de limites
moderados. Aristóteles expressa mais uma vida de ação virtuosa do que na sua Ética, e tal ação aparenta-se como
um componente importante quanto à contemplação filosófica. Aristóteles, na Ética, reforça que uma verdadeira
vida feliz é uma vida de bondade vivida na liberdade dos impedimentos e, enquanto na Ética a felicidade perfeita
é uma atividade contemplativa, na Política a quantidade de felicidade que cabe a cada indivíduo é igual à
quantidade da sua bondade e sabedoria e dos atos bons e sábios que ele efetua. Desse modo, a exemplo da
tradição filosófica grega, “a vida de maior prazer que, de acordo com os utopianos é a melhor vida, é, portanto, a
vida da virtude.” (LOGAN, 1983, p.174).
49

Desse modo, a própria natureza possibilita uma vida livre de cuidados, permeada de
alegria, na prática da solidariedade, em que todos vivem a virtude de viver com todos e para
todos. Nas palavras de T.M. se observa:

Importa não ser menos benevolente para si do que para os outros [...].
Efetivamente, quando a natureza nos convida a que sejamos bons para os
outros, ela mesma não iria mandar depois que fôssemos cruéis e falhos de
clemência para nós próprios. É, pois, dizem eles, uma vida agradável, ou
seja, o prazer, que a natureza nos prescreve como fim de todas as nossas
atividades; viver segundo este preceito da natureza, tal é a sua definição de
virtude. (MORVS, 2006, p. 547).82

Como a sociedade utopiana pautava-se na vivência e exercício da ascese dos valores,


mediante o uso da hierarquia axiológica, Surtz (1957a) orienta que o melhor exercício é o da
virtude e consciência da boa vida. Esta é a verdadeira liberdade e desenvolvimento da alma, e
mesmo buscas intelectuais sempre devem tender a uma maior pureza da consciência e
aquisição da virtude nobre83. A ênfase em boa conduta, ao invés de preocupação intelectual,
como fonte de prazer da alma é característica do caráter e forma de pensar do utopiano.

Há entre os utopianos uma relação entre virtude e prazer. Entretanto, em que consiste
essa relação? A resposta é que a virtude é subordinada ao prazer. Todas as nossas ações,
incluindo as virtudes em si, se referem enfim ao prazer como sua finalidade e alegria. Mas
isso não é uma subordinação no sentido grosseiro. Ao contrário, a principal parte dos prazeres
da mente surge do exercício da virtude e da consciência de uma boa vida. Os utopianos
praticam a virtude porque eles presumem que o prazer está associado à realização de feitos
virtuosos e que uma boa consciência é fonte de gratificação84. Por isso, no ensino e na
instrução85, as palavras de T.M. são incisivas:

82
LAT162/ING163/FRA517
83
Erasmus, no seu Enchiridion, exclamava que o verdadeiro e único prazer (voluptas) é felicidade (gaudium)
numa consciência limpa.
84
Na relação entre a vida mais justa e a vida mais prazerosa, os utopianos pensam semelhantemente a Platão em
seu livro Leis, em que ele diz: [...] o ensino que recusa a separar o prazeroso do justo ajuda a induzir o homem a
viver uma vida justa e sagrada, de forma que qualquer doutrina que negue esta verdade se torna vergonhosa e
detestável, pois ninguém consentiria voluntariamente ser induzido a cometer um ato a não ser que envolvesse
como consequência mais prazer do que dor. (SURTZ 1957a, p.19).
85
Essas palavras do autor reforçam a ideia de que a educação utopiana, tal como proposta pelos teóricos gregos,
“tem uma preocupação tanto pela moral e virtude quanto pelos avanços no aprendizado.” (LOGAN 1983, p.200).
Para Surtz (1957a, p.48), T.M., inspirado nos escritos de Pico della Mirandola, afirma que o aprendizado e a
virtude são as coisas que se consideram e possuem mais valor do que a nobreza dos antepassados. E que “a honra
é a recompensa da virtude, e segue a virtude como uma sombra segue um corpo”.
50

[...] a prioridade é conferida não às letras, mas à moral e à virtude, pois


colocam o máximo de diligência em incutir desde cedo no ânimo das
crianças, ainda tenras e moldáveis, bons princípios que sejam úteis para
manter a comunidade humana; se esses princípios tomarem assento em
profundidade nas crianças, hão-de acompanhá-los, quando homens, por toda
a vida e hão-de ser de grande utilidade para o Estado (cuja ruína começa
com os vícios que surgem de princípios deturpados). (MORVS, 2006, p.
651).86

A honra, de acordo com Surtz (1957a, p. 47), pode ser definida como “uma
manifestação externa de estima pelo valor de outro, seja por sua virtude ou sua autoridade.” A
honra só é derivada da virtude. Assim, uma pessoa pode ser honrada por conta da sua própria
virtude, como no caso de homens virtuosos, ou por conta da virtude de outro, como
governantes e sacerdotes, a que são dadas honras porque representam Deus e a comunidade.
Da mesma forma, homens ricos são honrados não por conta de suas riquezas, mas pela sua
posição destacada na comunidade. “O prazer que surge da satisfação de um desejo incomum
por sinais de respeito, quando independe a honra, trata-se de um engodo e não é natural nem
verdadeiro.”

Os utopianos têm uma reverencia significativa para com aqueles que ocupam cargos
públicos porque, para eles, “primeiro, honra é a recompensa da virtude; segundo, honra é um
incentivo à virtude, por isso, levantam estátuas de homens notáveis para prestar-lhes honras
pelas suas virtudes e que servem para incitar em todos a virtude.” (SURTZ, 1957a, p. 47).

A honra para os utopianos serve como uma função social de incentivo aos demais. A
imitação dos nossos antepassados virtuosos e nobres é o meio mais eficaz ao perseguir a
virtude. (SURTZ, 1957a, p. 49).

Por isso, de acordo com Surtz (1957a, p. 39), os utopianos encontram na honra e no
cuidado coletivo a verdadeira dignidade. Os utopianos consideram correto cuidarem de seus
próprios interesses e, mais ainda, cuidar dos interesses públicos também. Mas consideram
totalmente injusto privar o prazer de outrem em prol do seu próprio. Privar a si mesmo de
algo para entregar a outrem é um serviço amigável de humanidade e gentileza, e pode ser
considerado um ganho maior do que uma perda, porque: “a compensação se faz na forma de

86
LAT230/ING231/FRA606.
51

retorno de favores, oferecendo maior prazer à alma do que ao corpo que foi privado, e a
recompensa dada por Deus, em que um pequeno prazer é trocado pela alegria eterna”.87

2.4 A igualdade e o comunismo utopiano

Reconhecer que a sociedade utopiana pauta-se na igualdade, na vivência dos prazeres e


no exercício das virtudes, é uma tarefa não muito difícil, haja vista estar explícito na obra
Utopia, de T.M. Desse modo, é imperativo perceber que não é apenas a vivência que constitui
o cerne da civilização utopiana. A igualdade representa o salto, a novidade, o inusitado para
constituir toda uma reflexão na Filosofia Moral e Política.

Logan (1983, p. 182) explicita que a Utopia é uma referência à vivência do preceito da
igualdade entre os homens, pois a equidade social é veementemente reiterada. No entanto, o
sistema social, que na concepção de Surtz (1957a, p. 152) é um sistema comunista, parece
estar intimamente ligado a uma filosofia que se traduz no hedonismo utopiano.

De acordo com Baker-Smith (1991, p. 178), a prática de dispor tudo em comum


caracteriza-se como o princípio transformador que conduz à vivência e à prática da igualdade
entre os homens. Entretanto, T.M., da mesma forma que articula sua civilização com a
perspectiva grega a respeito dos valores e da honra, também encontra nos registros clássicos
dos gregos pressupostos para os princípios comunistas.88

Baker-Smith (1991, p. 166) reconhece que há uma grande divergência da proposta


platônica na República, em que a comunhão dos bens inclui a comunidade de parceiros. Os
utopianos, no entanto, praticam a monogamia e o seu código legal apóia essa prática de forma
enfática. Isso não é surpresa, visto que a unidade familiar é a base da sociedade utópica. O

87
Epicuro mesmo disse “que não é só mais bonito conferir do que receber um benefício, mas também mais
prazeroso, pois nada produz alegria tanto quanto a beneficência”. (SURTZ, 1957a, p.39)
88
Na leitura de Utopia, Surtz (1957a, p.151) afirma que, de todos os grandes autores gregos, o nome de Platão é
o que encabeça a lista de Raphael. É a República que os utopianos acham mais estimulante e proveitoso para os
seus princípios comunistas. Uma grande diferença entre a República e a Utopia é a forma de governo. No
primeiro caso, o sistema instituído é a aristocracia e no segundo, temos uma democracia livre de castas. (SURTZ
1957a, p.152). Para Logan (1957a, p.208) “as conexões mais interessantes entre a Utopia e os trabalhos teóricos
gregos estão na alteração ou rejeição do que seja a Polis ideal.” Uma dessas questões bastante marcante é a que
trata do comunismo. O comunismo platônico, citado na Republica, dos guardiões é bastante abrangente, pois,
além da propriedade, mulheres e crianças também são comuns. As demais classes citadas não são comunistas.
No livro Leis Platão ainda admite que o melhor estado seria completamente comunista, embora essa visão se
refira somente a uma classe pequena de cidadãos plenos. O comunismo é, na prática, demasiadamente exigente
para pessoas criadas e educadas como seus conterrâneos. De acordo com o livro Leis, as únicas instituições
comunistas são: as mesas em comum e as leis requerendo a distribuição gratuita de dois terços de toda a
produção agrícola para cidadãos e escravos.
52

adultério é severamente castigado e faz parte de uma campanha legal para apoiar a
monogamia.

De acordo com os estudos de Logan (1983, p. 209), o comunismo econômico utopiano é


tão abrangente quanto o que se propõe para os guardiões platônicos, em que não há nenhuma
propriedade privada, além do que a estritamente essencial. T.M. ainda acrescenta que todos os
utopianos trocam as suas casas a cada dez anos. A grande diferença entre ambos (platônicos e
utopianos) é o fato de que o que é para os guardiões na República, o é para todos os habitantes
da ilha de Utopia.89

Logan completa (1983) que, para alguns pesquisadores, T.M. não leva em consideração
a natureza humana como ela é, mas, sim, uma imagem idealizada, pois o comunismo só
funcionaria de fato se os homens fossem cristãos perfeitos. Baker-Smith (1991, p. 140)
acrescenta que:

No estado de natureza, todo mundo assegura o uso das dádivas da natureza


de acordo com suas necessidades e ninguém reclamava propriedade; foi
somente com o desenvolvimento de organizações sociais que o sistema de
direitos de propriedade foi formulado na lei. Assim, a lei como um sistema
convencional, o ius gentium em contrapartida ao ius naturale, é um acordo
entre homens para o seu benefício mútuo, mas, junto vem uma série de
arranjos – propriedade, escravidão, comércio, o estado, e a guerra – que
modifica as liberdades da lei natural.

A posição de TM a esse respeito, segundo Surtz (1957a), é que nem o direito natural e
nem o direito positivo divino (o Evangelho de Cristo) são a base da propriedade privada. Mas
a razão humana vê prontamente que a posse em comum é o sistema melhor adaptado à
natureza do homem. Os homens, portanto, dividem os bens do mundo por meio de acordos,
que são nada mais que a lei humana ou a lei pública.

89
Para Logan (1983, p.209) graças à natureza humana os homens são egoístas, e a propriedade privada é a maior
propensão ao egoísmo. Para Platão, por sua vez, governantes egoístas predariam sobre o resto da comunidade, o
que os obriga a terem tudo em comum. Nesse mesmo horizonte T.M. compartilha a mesma visão da natureza
humana que Aristóteles e Platão e sugere também a remoção da oportunidade de acúmulo egoísta, que é um dos
motivos de o comunismo utopiano ser universal. O argumento platônico para a inibição do egoísmo de uma
classe governante é relançado na Utopia como um argumento para a necessidade de comunidade da propriedade,
a fim de assegurar justiça distributiva. No final do Livro I, T.M. afirma que com a igualdade de distribuição
todos os homens têm a abundância de todas as coisas, trazendo ordem para a sociedade, enquanto, onde houver
propriedade privada, haverá o desmando. De acordo com Baker-Smith (1991, p.140): [...] a compreensão do
comunismo utopiano pressupõe conhecimento sobre o estado primitivo da natureza e da humanidade. Existe
uma distinção clássica romana entre o estado primitivo da natureza e a ascensão da vida humana civilizada.
53

Por outro lado T.M., segundo Surtz (1957a, p. 176), compreende que a avareza e a
ganância impõem a falta sobre a abundância da natureza, pois

[...] o que a natureza liberal tem dado para ser comum a todos, os homens
maliciosamente transformam em privado; o que ela tem feito visível e
acessível é carregado, trancado, guardado e mantido longe dos demais por
portas, paredes, ferrolhos, ferro, armas e leis.

Dessa forma, a ganância e maldade de uma minoria impõem a falta e a fome diante da
abundância da natureza e causa pobreza no meio das riquezas de Deus. Isso era condenável e
impraticável para a civilização utopiana.

Para Surtz (1957a, p. 50), à primeira vista, a Utopia pode fazer concluir que TM está
atacando aqueles que possuem títulos vazios de nobreza. No entanto, uma leitura cuidadosa
revela que o seu alvo é a riqueza, o que leva a um problema central da Utopia, que é o
binômio riqueza/pobreza. O sistema utopiano de comunismo envolve a abolição de dinheiro,
que costuma ser, por opinião pública, os verdadeiros ornamentos e honras de uma
comunidade.90 Na Utopia, todos satisfazem seus desejos contanto que trabalhem. Até
viajantes contribuem, com suas habilidades, antes de comparecer às refeições. Assim, “o
trabalho é a base do valor e a vida está de tal forma ordenada que o trabalho em tarefas
essenciais, como a agricultura, possui alta estima.” (BAKER-SMITH, 1991, p. 202)

A leitura da Utopia conduz à compreensão de que os utopianos vão preferir sempre a


posse pública à privada, a fim de assegurar a divisão dos bens entre os seus cidadãos, para que
todos possam atingir o máximo de prazer e o mínimo de dor na sua vida terrena. Todas as
coisas estarem em comum proporciona a abundância a todos os homens. Por isso, já que
existe uma abundância de todas as coisas, nenhum homem consegue ser pobre ou necessitado.
Somente na Utopia pode-se designar o “commonwealth”, ou “bem-estar público”. (SURTZ,
1957a, p. 155)

O surgimento da postura igualitária em relação ao trabalho e ociosidade, na ilha de


Utopia, foi logo depois da vitória do Rei Utopus, quando a primeira ação tomada pelo
conquistador foi convocar todos, vencidos e vencedores, a uma mesma tarefa, isolar a
península do continente, criando assim uma ilha para facilitar a defesa do recém-conquistado
território:

90
TM anuncia que na Inglaterra de sua época a nobreza era nada mais do que uma classe de ricos.
54

Para fazer tal obra requisitou não apenas indígenas, mas (para eles não
considerarem que o trabalho era forma degradante) associou-lhes também
todos os seus soldados e por isso, com a repartição do trabalho por tanta
gente, a obra foi realizada com uma rapidez inacreditável; aos vizinhos (que
no início se riam por considerarem que era desvario) cativou-os pela
admiração e acabou com eles pelo terror. (MORVS, 2006, p. 489).91

A divisão do trabalho e o envolvimento de todos garantem que cada um trabalha o


mínimo possível, obtendo-se o máximo de rendimento, visto que ninguém trabalha pelo outro.
T.M. acrescenta: “[...] fácil é perceber-se quão poucas horas sejam necessárias para a
quantidade e a qualidade do trabalho que leva a produzir as coisas que mencionei.” (MORVS,
2006, p. 509).92

A distribuição equitativa visa aliviar o máximo possível as obrigações para cada


cidadão. Não há quem esteja isento de trabalhar, pois mesmos aqueles não envolvidos em
tarefas manuais comuns a todos estão comprometidos com outras tarefas do qual prestam
contas quanto a sua produtividade. Aos sifograntos cabe a fiscalização do trabalho, para
garantir que as necessidades solicitadas ao setor produtivo estão sendo bem atendidas.
Quando se tem uma superprodução, “se declare oficialmente a redução das horas de trabalho”.
(MORVS, 2006, p. 513).93 Quando se busca produzir o que realmente possui valor de uso,
evitando assim o desperdício ou futilidade,

[...] se pode produzir muito e eliminar a necessidade. [...] Se eles fossem


postos a trabalhar e se isso se fizesse em coisas úteis, facilmente nos
daríamos conta do pouco tempo que seria necessário para produzir tudo o
que racionalmente se poderia prever como indispensável ou que o conforto
postula (ou até mesmo uma parte de prazer que seja admissível e natural);
nessas condições haveria abundância e haveria sobras. [...]. Se todos
trabalhassem, a carga horária diminui para todos. Havendo seis horas apenas
para trabalhar, [...] esse tempo é suficiente para produzir bens abundantes
que bastem para as necessidades e que cheguem não apenas para remediar,
mas até sobrem. (MORVS, 2006, p. 507).94

Outro detalhe peculiar que Logan (1983, p. 214) destaca diz respeito à agricultura da
Ilha. Tendo em vista a rudeza e as privações enfrentadas pela classe de agricultores, ela possui
uma rotatividade a cada dois anos. Assim, ninguém é privado da vida na cidade, e a produção
agrícola é garantida.

91
LAT110/ING111/FRA450/POR489.
92
LAT130/ING131/FRA474.
93
LAT132/ING133/FRA478.
94
LAT128/ING129/FRA473.
55

O que garante que todos trabalhem o mínimo possível é que todos contribuem. Assim,
não se sobrecarrega ninguém. A questão da ociosidade possui limites na Utopia e existe uma
eterna fiscalização para evitar a preguiça. Outra questão á a inexistência de lugares dedicados
aos vícios, como tabernas, prostíbulos, entre outros lugares de corrupção e de encontros
secretos. Toda atividade misteriosa, oculta e fora do conhecimento de todos é mal vista, pois
“cada um sente necessidade de ficar à mercê dos olhares de todos, de se entregar ao trabalho
costumado, ou de admitir uma folga de trabalho que seja repouso honesto.” (MORVS, 2006,
p. 527)95

T.M. afirma que, ao aplicar esta forma de distribuição de trabalho, em que havendo
mais pessoas trabalhando se trabalha menos, a consequência é a abundância de todos os bens,
distribuídos equitativamente, condição esta longe da sua realidade do século XVI.

No que se refere à igualdade entre gêneros, o que diferencia o trabalho entre homens e
mulheres se encontra limitado principalmente pelas suas condições físicas.96 A autonomia da
mulher utopiana é considerável e não há distinção quanto à educação de meninos ou meninas.
“Na Utopia os sexos não são apenas duplicatas, e suas funções são cuidadosamente distintas.
Mas, nas áreas mais importantes da vida, naquelas conectadas com realização moral, existe
absoluta igualdade.” (BAKER-SMITH, 1991, p. 167).

2.5 A matéria do prazer

O estabelecimento da ordem social, bem como a equidade na justiça dos bens,


caracteriza, para os utopianos, a matéria do prazer como designação de todos iguais diante dos
bens, direitos e deveres. Desse modo, a vida do prazer inclui a política da partilha dos bens. O
sistema utopiano para a distribuição de comodidades foi implantado por Útopos, que
transformou o povo rude e selvagem em uma excelência maior que os demais povos do
mundo, e, ratificado pelo próprio povo, criou uma lei para impedir que os políticos mudassem
o estado do bem-estar público. (SURTZ, 1957a).

95
LAT144/ING145/FRA494.
96
Mais uma vez, notamos características platônicas, referentes à igualdade sexual, estendidas aos guardiões no
campo de batalha, cujo efeito é aumentar a resistência ao inimigo, pois se trata de uma grande desgraça retornar
sozinho sem o companheiro ou companheira do campo de batalha.
56

De acordo com as considerações de Surtz (1957a, p. 39), T.M. reconhecia que as leis
que devem ser observadas cuidadosa e escrupulosamente são aquelas que tratam com a
partição e as comodidades da vida, ou seja, a substância do prazer. T.M. considera

[...] que há que respeitar não só os contratos celebrados entre privados, mas
também as leis públicas que por comum acordo foram aprovadas, tenham
elas sido promulgadas segundo a justiça por um príncipe ou tenha sido o
povo a fazê-lo, contanto que não seja sob a opressão de um tirano nem
devido a processo fraudulento, desde que esteja em causa a repartição de
facilidades de vida, que o mesmo é dizer, matéria de prazer. (MORVS, 2006,
p. 549).97

Assim sendo, o prazer tem sua matéria no bem-estar dos habitantes. Para Surtz (1975a,
p. 153), o fato de que os utopianos visualizarem as comodidades de vida como matéria do
prazer é extremamente importante para a compreensão da sua adoção e manutenção da forma
comunista de governo, já que aconselham e incentivam os homens a viver uma existência
feliz e livre de preocupações e a ajudarem os demais a uma existência similar.

Numa sociedade utopiana não há falta que caracteriza valor numa sociedade
capitalista. Onde não há propriedade o bem público assume o controle. Aqui,
pelo contrário, como nada existe que seja particular, é o bem público que se
toma a peito. Ora, aqui, em que tudo é de todos, até porque há o cuidado
de manter os celeiros públicos abastecidos, ninguém tem dúvidas de que não
virá a faltar nada do que seja necessário na vida privada. De facto, não há
distribuição malevolente das coisas nem alguém passa necessidade nem anda
na mendicidade e, embora ninguém seja dono de coisa alguma, nem por isso
deixam todos de ser abastados. (MORVS, 2006, p. 549).98

A falta da matéria do prazer pode criar egoísmo, porque toda preocupação torna-se
egoísta. “Certamente [...] quantos são os que não sabem que, se não se puser alguma coisa de
lado que lhes venha a ser útil, mesmo que o Estado viva em prosperidade, ficarão sujeitos a
morrer de fome”. (MORVS, 2006, p. 665).99 Assim, a preocupação consigo se torna mais
imperativa do que o bem-estar comum100.

Essas questões são tratadas por T.M., que diz que, seja na cidade ou mesmo no campo,
onde os habitantes vivem distantes uns dos outros, “nada falta para sua subsistência, tanto

97
LAT164/ING165/FRA518.
98
LAT240/ING241/FRA621.
99
LAT240/ING241/FRA621.
100
Estabelece-se aqui, a lei da autossuficiência utopiana que, segundo Logan (1983, p.194), se deve mais à
indústria dos seus habitantes do que às vantagens naturais do seu território. Estes defeitos sérios no território, que
não encontram precedentes nos exercícios gregos de melhor governo e que também não se encontram nos
análogos utópicos de Novo e Velho Mundo, foram incluídos, provavelmente, por considerações teóricas e podem
refletir uma consciência aristotélica de T.M. sobre as limitações que o fato coloca na teoria.
57

mais que é dos campos que vêm os viveres com que se alimentam os da cidade.” (MORVS,
2006, p. 525).101 Há uma ordem social, com a contribuição de todos, dos citadinos aos
campesinos.

Para Surtz (1957a, p. 39), contanto que leis justas sobre a distribuição e propriedades
sejam observadas e invioladas, os utopianos consideram correto cuidarem de seus próprios
interesses e, mais ainda, cuidar dos interesses públicos também. Mas consideram totalmente
injusto privar o prazer de outro em prol do seu próprio.

Delegam a si, mutuamente, os utopianos, o cuidado do que é de todos, e o sentimento de


participação da comunidade e dos bens e serviços que lhes são oferecidos. A comunidade
utopiana não perfaz o seu percurso e apresenta historicidade por interesse de uma elite ou
nobreza, mas pelo desejo de todos, pela vivência da partilha e da compreensão da condição
social do outro.

Desse modo, a matéria do prazer encontra sua vertente no campo social, na prática das
leis justas e no entendimento de que uma sociedade racional acontece na equidade social,
fazendo de todos responsáveis por todos.

101
LAT142/ING143/FRA493.
58

3 O DEVER-SER: EFETIVAÇÃO DA FILOSOFIA MORAL E


POLÍTICA

O “dever-ser” político utopiano inova as formas anteriores de sistema político.


Curiosamente, incorpora uma série de modelos diferentes dentro de um único contexto. A
pergunta que se compartilha com o leitor é: qual o sistema político que podemos atribuir aos
utopianos? Seria democrático, pela eleição direta de funcionários públicos? Ou republicano,
pela eleição indireta dos governantes? Ou aristocrático, pela meritocracia, em que somente os
mais destacados pela sua erudição é que são escolhidos para ocupar posições de destaque? Ou
ainda monárquico, pelo mandato vitalício dos seus governantes? Essas questões não são
esclarecidas pelo autor, entretanto, ele parte do princípio de que é no governo que se
estabelece a civilização da razão.

Para T.M. “é do príncipe que promana, como de fonte inesgotável, o caudal de bens e de
males para todo o seu povo”. (MORVS, 2006, p. 663).102 Sendo assim, cabe à autoridade
moral e política, bem como à integridade dos seus funcionários, o bem-estar ou a ruína de
uma comunidade. (MORVS, 2006).

3.1 O governo

Uma questão extremamente perturbadora para T.M. se encontra logo no início do Livro
Dois103, que trata da gênese da sua sociedade perfeita.

O autor deplorava a violência, mas reconheceu que a sua Utopia só seria iniciada pela
ação violenta de um conquistador, representado na obra pelo monarca Utopus. Dessa forma, é
difícil de determinar como implantar uma utopia sem a imposição da vontade individual na
coletividade. A desculpa de que seria para o bem dos habitantes conquistados não se justifica
em T.M. e representaria um argumento ético muito consequencialista para a filosofia moral
Utopiana. Se a implantação de uma sociedade utópica só se faz através da guerra, então a

102
LAT052/ING053/FRA373.
103
MORVS p.489//LAT110/ING111/FRA450.
59

conquista e a implantação desta nova sociedade seguem o consequencialismo utopiano, que só


se faz presente nos assuntos militares, ou seja, a única circunstância em que os utopianos
praticam o consequencialismo, ou uma espécie de utilitarismo, que só viria a ser justificado
por Stuart Mills104 séculos depois, o qual se daria quando se procurasse diminuir os agouros
relacionados à atividade bestial que é a guerra. Dessa forma, um utopiano jamais declararia
guerra a uma nação para implantar a sua filosofia política, mas, já tendo declarado-a por
outros motivos, a implantação de um novo sistema político seria apenas uma consequência
natural do vencer e da sua conquista.

Sendo assim, aquele que implanta um novo governo deve ser um oportunista, um líder
militar que aproveita a sua chance e obtém uma vitória militar, como a de Utopus sobre os
Abraxans, enquanto eles estavam distraídos pelas suas próprias discussões religiosas. Ao
invés de ser um rei no sentido tradicional, ele usou seu poder absoluto de conquistador para
impor um sistema político que impede qualquer atitude que leve à tirania.

O seu exercício de poder é de autonegação, pois ele libera o Estado para atender e
cuidar do coletivo, ao invés dos interesses elitistas minoritários para que um novo início seja
possível. “Na verdade, ele mistura o papel de autocrata e legislador105 para o estabelecimento
bem sucedido de um estado ordenado.” (BAKER-SMITH, 1991, p. 152). Ele afirma que
quando o poder supremo é combinado em uma pessoa com sabedoria e temperança, somente
aí a natureza gera a melhor das constituições com a melhor das leis.

Se há dissonância entre as ideias cristãs de governabilidade e a perspectiva política


racional da Utopia, necessário compreender o processo de mudanças, o que não ocorrerá
pacificamente. A melhor cidade só pode ser realizada por um governante absoluto (correto),
que iniciaria por erradicar a ordem existente, instaurando uma nova perspectiva política. A
primeira coisa que precisaria ocorrer era renovar a sociedade humana com seus hábitos e
torná-la idônea para proporcionar uma República. Uma vez que este homem tenha poder e
institua todas as leis e costumes necessários para o bem-estar social, estará promovendo uma
revolução com o consenso popular.106

104 Expoente moderno do pensamento utilitarista ou consequencialismo.


105 Combinação que Platão reconheceu nas Leis como essencial.
106
Nas Leis, Platão afirma que qualquer forma de governo em que o poder supremo em um homem se une a um
julgamento sábio e autolimitado, ter-se-á o nascimento do melhor sistema político, com as leis compatíveis.
60

Quanto à dinâmica da vida política social, a perspectiva moreana é de uma unidade


federativa autônoma, mas interligada em sentido de cooperação. O governo central de Utopia
é formado pela reunião de três delegados provenientes de cada uma das suas 54 cidades, que
se reúnem em Amauroto,107 para tratarem dos interesses coletivos da Ilha. A finalidade desta
reunião é tratar dos assuntos coletivos e promover a equidade econômica entre as regiões.
Nessa perspectiva, T.M. acredita fazer da ilha uma só família, já que toda a comunidade
mantém-se responsável pelo bem-estar dos demais. Na compreensão de governo republicano
moreano, os funcionários públicos devem submeter-se a um processo seletivo que os
perfazem como representantes dos demais:

Cada trinta famílias elege, todos os anos, um representante que designam na


sua primitiva língua por sifogranto e em língua mais recente filarco. A cada
dez sifograntos, com as suas famílias, preside um traníboro na língua de
antigamente, hoje chamado protofilarco. Finalmente, todos os sifograntos,
que são duzentos, depois de jurarem que escolherão aquele que considerem
mais útil, em votos secretos elegem como príncipe um de entre quatro que o
povo tiver designado. De fato, cada um dos quatro bairros da cidade escolhe
um representante para fazer parte do Senado. O cargo de príncipe é vitalício,
e não pode ser destituído senão em caso de haver suspeita de propender para
a tirania. Os traníboros ficam sujeitos à eleição anual, mas não são
substituídos senão por motivo sério. Os restantes magistrados todos são
anuais. (MORVS, 2006, p. 497).108

Outra característica do governo no horizonte da Utopia é a valorização dos


conselheiros. T.M. afirma as vantagens de se ter um bom conselheiro que incite o governante
a ter atitudes boas e justas para o benefício da população. Afinal, de um governante pode
jorrar, como uma fonte inesgotável, tanto benefícios como malefícios para a sua população.

De forma sutil, ele deixa entender que as pessoas providas de conhecimento e sabedoria
deveriam ser os conselheiros de governantes. Esta posição fica clara depois de Rafael falar a
respeito das suas viagens ao redor do mundo109 e da experiência que obteve de todas as suas
vivências. Dessa forma, ele faz uma espécie de modelo para o conselheiro, uma pessoa
conhecedora da diversidade humana pelo mundo e que saiba separar os conhecimentos sábios.

107
Amauroto foi estrategicamente escolhida por estar no centro da Ilha, porém, ela não é entendida como a
“capital”, visto que todas as cidades são rigorosamente iguais, inclusive em importância.
108 LAT118/ING119/FRA462.
109
O livro insinua que o primeiro a fazer a circunavegação do globo seria Rafael Hithloday.
61

(MORVS, p. 407).110 T.M dá uma rica orientação neste sentido ao expor o pensamento de
Rafael:

[...] se eu me levantar mais uma vez e porfiar em dizer que se dão ao rei
todos estes conselhos, mas que eles são desonestos e perniciosos e que não
só a sua honra, mas até a sua segurança está mais nas riquezas do povo do
que nas suas, se eu demonstrar que os cidadãos escolhem um rei para seu
bem e não para bem do rei, ou seja, com o objectivo de viverem
tranquilamente no seu trabalho e nas suas preocupações, livres de serem
maltratados, e que por isso ao príncipe pertence, sobretudo, cuidar que o seu
povo esteja em bem, mais do que ele mesmo, como é próprio do ofício de
pastor que, como tal, deve apascentar as ovelhas mais do que a si mesmo.
(MORVS, 2006, p. 465).111

Nos conselhos de como governar, T.M. (2006, p. 465)112 expõe que “a majestade de um
rei exige que ele exerça o poder não sobre mendigos, mas sobre um povo de homens
abastados e felizes”. Como já foi exposto, T.M. define o prazer e a felicidade como formas
citadinas de vida.

Por isso alguém nadar em prazeres e em delícias enquanto outros só vêem


gemidos e lamentações à sua volta, não é próprio de um reino, mas de uma
prisão. [...] assim aquele que não sabe corrigir a vida dos cidadãos senão
tirando-lhe o conforto da vida, está a confessar que não sabe mandar em
homens livres. (MORVS, 2006, p. 465).113

Sobre o governo, tendo como base critérios de governabilidade no âmbito da filosofia


moral e politica, T.M. assim se expressa:

[..] havia o rei de dedicar-se ao reino dos seus pais, criar nele a maior
prosperidade possível, torná-lo o mais florescente de todos; ter amor pelos
seus e ser por estes retribuído, viver em unidade com eles, exercer o poder
com brandura e deixar os outros reinos prosperarem, uma vez que aquilo que
agora lhe coube é já mais que suficiente. (MORVS, 2006, p. 459).114

Assim, a ganância do rei seria não o de ampliar desmesuradamente o seu reino, vindo a
escorraçar-se depois, mas de possibilitar qualidade e excelência aos seus súditos. Dispor de
povo numeroso demais para ser governado não é uma lição idônea para provar a força e o
poder daquele que governa, mas, sim, as condições que garanta a todos uma mesma condição
social.

110
LAT048/ING049/FRA369.
111
LAT090/ING091/FRA426.
112
LAT092/ING093/FRA426.
113
LAT092/ING093/FRA426.
114
LAT086/ING087/FRA421.
62

Superados os empecilhos de um bom governo, quando este compreende a razão como


elemento imprescindível para estabelecer o bem-estar entre os súditos, T.M. determina o
equilíbrio e a manutenção financeira na sociedade utopiana.

A denotação comunista de T.M. garante a sobrevivência de todos os cidadãos, como


também a prosperidade financeira. É uma inovação no campo da colheita, do mercado e da
política de crédito, que é determinada pela administração transparente e pelo estabelecimento
do patrimônio social.

Outra designação financeira é a que T.M. apresenta quando garante ao cidadão um


mercado econômico que não suprime o bem-estar, mas afiança a todos as condições
necessárias para sobreviver. Assim expõe T.M.:

Existe o costume de deixar parte dos recursos na própria cidade, pois


consideram que não seria justo retirar a quem se serve daquilo que para eles
não teria qualquer utilização. Quanto ao mais, se a situação o exigir, como é
quando há que emprestar essa parte a outro povo, então, exigem-na, ou, pelo
menos, quando há que desencadear uma guerra, pois é só para esta situação
que guardam em casa todo esse tesouro que possuem e que lhes serve de
apoio em casos extremos ou imprevistos, sobretudo para contratar
mercenários [...]. (MORVS, 2006, p. 529).115

T.M. orienta o rei a não acumular riqueza pessoal quando isto trouxer miséria para o
povo. Ele insiste em dizer que “de fato, este capital afigurava-se bastar, quer ao rei para se
opor a qualquer rebelião, quer ao reino para combater incursões inimigas. De resto, era
insuficiente para incentivar ambições alheias.” (MORVS, 2006, p. 469).116 Garantindo a
circulação de dinheiro para as transações diárias dos seus súditos e sendo obrigado a
compartilhar com a população o excedente do que possuía acima do estipulado pela lei, “não
haveria ele de buscar violar a lei. Tal rei seria odiado pelos maus, mas apreciado pelos bons.”
(MORVS, 2006, p. 469). 117

A orientação observada é que a questão financeira não deve levar a destruição, mas
proporcionar a todos segurança e comodidade. Por outro lado, T.M. (2006, p. 469)118
admoesta a fim de que o armazenamento de ouro e prata seja para a finalidade de gastar com

115
LAT146/ING147/FRA497.
116
LAT094/ING095/FRA429.
117
LAT094/ING095/FRA429.
118
LAT206/ING207/FRA574.
63

gastos emergenciais e para financiamentos bélicos, de modo que a política de


aprovisionamento não deve ser o empenho vital, impossibilitando a viver mais à vontade.

O acumulo de riquezas em ouro e prata pelo Estado, numa sociedade que é praticamente
autossuficiente e possui um sistema comunista, parece fora de propósito, mas é facilmente
compreendido que os metais valiosos representam uma segurança nacional, pois é livremente
usado para a guerra quando o Estado precisa defender seus interesses, seja para corromper
inimigos ou contratar mercenários. Os utopianos não se importam empenhá-los, tanto mais
que não passariam a viver menos à vontade, mesmo que aplicassem todo o aprovisionamento.
(MORVS, 2006, p. 469). 119

A guerra, no contexto utopiano, é exceção à sua regra moral em geral. Longe de seguir a
teoria da virtude, eles antecipam o consequencialismo que só viria séculos depois.120 Baker-
Smith (1991, p. 183), analisando a Utopia, acrescenta que é no seu trato com a guerra que os
utopianos são mais problemáticos. Apesar de desprezarem o ouro e a riqueza, eles fazem farto
uso destes bens contra o inimigo. A guerra, eles a consideram uma atividade subumana; não
há glória na guerra. Existe uma atitude anticavalheiresca, pois, sob todos os aspectos, a prática
de guerra utopiana viola todas as convenções mantidas pela ideologia do cavalheirismo. Nos
seus estratagemas mais sutis, eles usam a mais incavalheiresca de todas as armas: o dinheiro.

Na perspectiva consequencialista de Utopia, no trato da guerra, T.M. orienta que os


utopianos visem apenas a uma coisa na sua ação bélica:

[...] obter aquilo que pretendem; aliás, se o tivessem antes conseguido, isso
teria evitado a declaração de guerra. Quando a natureza do conflito não
permite composição com os inimigos, eles reclamam vingança tão cruel
sobre aqueles a quem imputam o acontecido que o terror lhes retira

119
LAT206/ING207/FRA574.
120
Logan (1983, p. 215) chama a atenção para o fato dos utopianos serem radicalmente diferentes dos teóricos
gregos, especialmente de Platão, na sua visão sobre a guerra. Platão considerava a guerra entre as cidades gregas
como uma infeliz briga interna e doméstica [...]. Todos os que não eram gregos eram considerados inimigos
naturais a serem conquistados. Em qualquer tipo de guerra, quem se destacar na batalha merece recompensas
gloriosas. Aristóteles, por sua vez, no livro Politica, não possui o entusiasmo de Platão para a guerra, e observa
que ela não é um fim em si mesmo, mas um meio para a boa vida. Os motivos gregos que levam um homem a se
tornar um soldado, Logan (1983, p. 215) explica: “O treinamento militar não é feito para escravizar homens que
não merecem tal fatalidade e os seus objetivos deveriam ser: primeiro, impedir homens de um dia eles mesmos
serem escravizados; segundo, colocar homens numa posição de exercer a liderança. Liderança esta, direcionada
aos interesses dos conduzidos, e não o estabelecimento de um sistema geral de escravatura; e, terceiro,
possibilitar homens a se tornarem senhores daqueles que naturalmente merecem ser escravos (i.e. não-gregos)”.
Logan lembra outro teórico de cidade-estado chamado Maquiavel, que diz: “quando é absolutamente uma
questão de segurança do nosso país não há consideração de justo ou injusto, piedoso ou cruel, de elogios ou
desgraça.” (LOGAN 1983, p.235).
64

capacidade de voltarem a cometer ousadia semelhante. Tais são os


objectivos que se propõem e que procuram obter rapidamente, sem, no
entanto, descuidarem evitar perigos inúteis, de preferência a andarem atrás
de loas e de fama. (MORVS, 2006, p. 611).121

Para Logan (1983, p. 221), mesmo detestando a guerra, os utopianos guerreariam para
proteger seu próprio território, expulsar um inimigo da terra dos amigos, livrar um povo da
tirania e obter território para colonização. Os utopianos justificam suas guerras coloniais com
as leis naturais. Eles consideram uma causa justa para a guerra a recusa de promover a
reforma agrária por parte de nações vizinhas.122

Baker-Smith (1991, p. 184) nos revela uma questão muito controvertida que envolve
tanto a guerra quanto os recursos financeiros: o uso de mercenários pelos utopianos. Ao
contrário da sua valorização pela vida, os utopianos desprezam completamente a vida dos
mercenários que contratam para a guerra. Outro ponto significativo, levantado por Logan
(1983, p. 197), é que nos assuntos militares a República apresentou um precedente quanto ao
costume dos soldados utopianos de serem acompanhados pela sua família no campo de
batalha, uma prática justificada pelo fato de que qualquer animal luta melhor na presença de
sua cria.

Baker-Smith (1991, p. 184) completa descrevendo as forças utopianas, as quais são


compostas por uma milícia civil, que comporta ambos os sexos, e organizadas em grupos
familiares para aumentar a intensidade da resistência.123 Até mesmo a criação de grupos de
extermínio, que visam a autoridades estrangeiras durante a guerra, mostra claramente como
eles incorporam o poder da razão nas aplicações bélicas, perseguindo um objetivo coerente
por todos os meios ao seu poder, até alcançá-lo. Os utopianos fazem um contraste com o
modo de guerra europeia, por este ser baseado em exércitos, na sua maior parte, profissionais,
repleto de elementos cavalheirescos. Para os utopianos, que não possuem nenhum senso de
honra nos assuntos de guerra, o sucesso é a única preocupação. Tirando todos os elementos
cavalheirescos, o que sobra é a vontade inquebrantável de conquistar o inimigo.

121
LAT204/ING205/FRA573.
122 Postura que justificaria hoje as invasões de terra promovidas pelo MST, no Brasil, buscando uma reforma
agrícola.
123
O ideal socrático, presente na República, de pais, irmãos, filhos e mulheres, moldados juntos numa força
irresistível, é, certamente, a origem do arranjo utopiano.
65

T.M. defende que não há sentido numa guerra para o enriquecimento, visto que o preço
seria excessivo. Os utopianos consideram loucura, como também vergonhoso, qualquer
vitória cruenta, preferindo a astúcia derivada da razão, pois,

[...] se alcançam uma vitória encurralando os inimigos por habilidade e


engano, então celebram o acontecimento a grandes gastos e organizam um
triunfo público, levantando os troféus como se nisso estivesse envolvido um
acto de bravura. Só nessas circunstâncias se gabam de terem actuado como
homens e terem procedido com valor; fazem-no todas as vezes que vencem
desse modo, dado que nenhuma criatura, com excepção do homem, o
poderia fazer, já que implica forças de inteligência. De facto, explicam, com
as forças do corpo, lutam os ursos, os leões, os javalis, os lobos, os cães e
outras feras, que na sua maior parte nos ultrapassam pela força e pela
ferocidade, mas todas são vencidas pela inteligência e pela razão. (MORVS,
2006, p. 611).124

Para Logan (1983, p. 222), a Utopia mostra que todo assunto referente à guerra foge de
todo e qualquer sistema moral de igualdade e parece que, por se tratar de algo tão bestial,
envolve outro sistema moral: o consequencialismo, que visa aos resultados. Observa-se que os
resultados que são buscados seguem rigorosamente o princípio de que, se não há como
impedir o mal, que se minimizem os seus danos o máximo possível. Há, portanto, um caso de
confronto entre a deontologia do cavalheirismo europeu e o consequencialismo utopiano.
Atos impensados aos cavalheiros numa guerra seriam feitos tranquilamente pelos utopianos
visando a alcançar os resultados buscados. Como já citado, os utopianos em geral são
extremamente desprovidos de cavalheirismo medieval125, e mesmo a contragosto atribuem um
valor inferior à vida de todos os demais povos, inclusive a dos seus aliados.126

Na hierarquia bélica dos combatentes envolvidos nas contendas dos utopianos, os


mercenários serão os primeiros sacrificados. Havendo necessidade de mais soldados, eles

124
LAT204/ING205/FRA570.
125
Chivalry.
126
Talvez seja mais adequado afirmar que os utopianos colocam a vida dos seus acima de todos os demais. Para
Logan (1983, p. 215), os utopianos desconhecem os conceitos de inimigos e escravos naturais e consideram que
a guerra é uma atividade boa somente para animais e a encaram com a mais absoluta aversão. Eles consideram
infame a glória alcançada em guerra. Estas atitudes, que derivam dos estoicos, seguem o conceito de uma
fraternidade humana universal que os utopianos, tanto quanto os estoicos, derivam da razão. Quando os
utopianos são obrigados a guerrear, suas táticas são governadas por considerações humanitárias que os estoicos
aplicariam a todas as guerras, mas que Platão restringe a disputas internas e domésticas. Platão se opõe à prática
de devastar as terras e queimar as casas de inimigos gregos; da mesma forma, os utopianos não arrasam o
território do inimigo ou queimam sua colheita. Assim como os guardiões platônicos não consideravam a
população como seus inimigos, mas somente a minoria responsável pela briga, os utopianos sabem que gente
comum não vai para a guerra por sua própria escolha, mas pela loucura dos governantes. T.M. aceita alguns
princípios dos teóricos gregos, mas refina estes princípios formulando mais precisamente a relação entre as
metas do indivíduo e as metas da comunidade e, por reconhecer a inevitabilidade destes conflitos, aplica o
método do cálculo de prazer da ética epicuriana para a solução de tais conflitos.
66

chamam aqueles para quem estão lutando a favor e, depois, as forças armadas dos demais
aliados. Somente em última instância, adicionam um contingente de seus próprios cidadãos.

[...] nem por isso os tomam à sua parte, a não ser para protegerem as suas
fronteiras ou para escorraçarem os inimigos que tenham invadido os
territórios dos aliados ou bem assim, quando levados por sentimento de
comiseração, se propõem libertar da servidão e do jugo de qualquer tirano
algum povo oprimido pela tirania (fazendo-o, aliás, por filantropia).
(MORVS, 2006, p. 605).127

Os motivos que levam ao combate vão da defesa à retaliação, inclusive respondendo a


ataques. Após minucioso estudo do caso e esgotados todos os recursos para uma solução
pacifica e diplomática, a guerra é declarada.

Tal decisão, porém, é tomada não somente de cada vez que uma pilhagem se
fez mediante incursão armada, mas também, e nesse caso com sentimentos
mais hostis, quando os seus homens de negócios, em qualquer povo, seja em
razão de leis iníquas, seja por violação imperdoável de leis boas, são objecto
de ataque, sob capa de justiça. (MORVS, 2006, p. 605).128

Buscando evitar a todo custo o envolvimento dos seus próprios cidadãos na contenda,
quando se torna imperativa a participação de utopianos, esses se mostram inimigos intrépidos
e determinados. A força do seu ataque aumenta com o passar do tempo, tornando-se mais
obstinada.

Apesar de valorizarem a vida, o sacrifício no campo de batalha só visa a um resultado: a


vitória ou a morte. Isso se deve à absoluta tranquilidade que possuem em relação aos seus
entes queridos que ficaram em casa, pois nenhum combatente se preocupa com os seus filhos,
por saber que nada faltará caso um ou os dois genitores sejam abatidos no campo de batalha.
“A sua perícia da disciplina militar gera intrepidez; enfim, a mentalidade em que foram
formados (com doutrinas com que se foram imbuindo desde a infância e com boas práticas
coletivas) acrescenta maior coragem” (MORVS, 2006, p. 623).129

O preparo de um combatente utopiano vem de muitos anos de treinamento, cada um,


especializado na sua arma. Diferentemente dos europeus da sua época, os utopianos
naturalmente investem parte do seu tempo livre em exercícios marciais, preparando-se para a
remota possibilidade de se envolverem em combate.

127
LAT200/ING201/FRA566.
128
LAT200/ING201/FRA566.
129
LAT212/ING213/FRA581.
67

Os camponeses Ingleses também eram estimulados no período medieval a se


exercitarem em atividades marciais; a diferença é que eles tinham quase certeza de que iriam
participar de excursões militares tão logo chegassem a primavera e os campos semeados.

Os governantes e nobres europeus usavam livremente seus próprios cidadãos no campo


de batalha, a ponto de que a mortandade decorrente de guerras, que duravam décadas, acabava
por comprometer o fornecimento de mão de obra camponesa para as atividades agropecuárias.
O contraste entre o alto preparo de um combatente utopiano e a remota possibilidade de
participar de um conflito armado se faz com o camponês europeu, pouco preparado
militarmente e com grandes chances de se envolver de fato num conflito.

A visão utopiana sobre a guerra é o inverso da ética cavalheiresca do seu tempo, que
desprezava a estratégia e honrava o derramamento de sangue.130 A arte da guerra utopiana,
não cavalheiresca, tem como premissa a ideia de que a honra e a glória cavalheiresca e os
métodos de guerras falsamente heroicos servem aos interesses de uma pequena classe de
homens decadentes, todos corrompidos por costumes violentos, príncipes tirânicos e alguns
dos seus nobres apoiadores.

A estratégia utopiana segue um humanismo racional e o ódio à tirania, e usa qualquer


meio que a razão pode criar para terminar uma guerra com vitória, mas com o mínimo de
baixas tanto do inimigo quanto de si próprio. Só há um conflito nesta ética consequencialista
utopiana quanto à minimização dos efeitos da guerra, pois sempre há

[...] a intenção de eliminar a maior quantidade de mercenários possíveis,


pois, há uma política de genocídio contra todos os mercenários, pois, não
importa quantos eles perdem e consideram que seriam da maior utilidade
para a raça humana se o mundo fosse aliviado desse povo abominável e
ímpio. (LOGAN, 1983, p. 226).

3.2 O dever-ser da nobreza meritocrática

T.M. reconhece a estrutura nobiliárquica de Utopia. Assim, ele descreve as diferentes


funções existentes na comunidade e as suas funcionalidades.

130
Logan (1983, p.226) reflete que as táticas de guerra utopianas são perfeitamente consistentes com o pacifismo
de humanistas da linha erasmiana. Estes humanistas estavam profundamente impressionados pela crítica estoica
da ética marcial da Antiguidade, e eles rotineiramente aplicavam técnicas estoicas racionais que desbancavam
visões cavalheirescas das táticas e glória marciais da Idade Média.
68

Assim, o serviço público constitui uma necessidade para a comunidade utópica, mas, ao
contrário do costume europeu de associar cargos a pessoas de que se queira tirar algum
proveito próprio, para quem delega estes cargos, o costume utopiano seria o exato oposto.131
Isso porque T.M. adverte que “aquele que anda a cata de uma magistratura só ganha
frustrações com isso”. (MORVS, 2006, p. 597).132

Como os cargos são distribuídos de acordo com votação popular, secreta e universal,
com base nos méritos e popularidade de cada candidato, que se encontra absolutamente
proibido de fazer qualquer promoção pessoal ou sequer mostrar interesse no cargo, não é de
se admirar que os candidatos sejam sempre pessoas de alta estima da população, repercutindo
positivamente na relação com as autoridades. T.M. mostra claramente a enorme diferença
destas relações na Europa e na Utopia:

As relações com os magistrados são de convivialidade feita de amabilidade,


e de facto nenhum deles é arrogante nem grosseiro; tratam-nos por pais e
eles demonstram que lhes fica bem esse título; as homenagens são-lhes
prestadas de espontânea vontade, não são impostas contra vontade. O
próprio príncipe não se distingue dos outros cidadãos por trajar
diferentemente ou usar diadema, mas por andar com um manipulo de espigas
de trigo na mão, como é característica de um pontífice ser precedido por
círios. (MORVS, 2006, p. 597).133

De acordo com pesquisas realizadas por Logan (1983, p. 151), um dos temas evidentes
em T.M. é a educação. Isto porque, como um bom humanista, a formação do ser humano era
uma prioridade na civilização utopiana. Desse modo, a educação caracterizava, acima de tudo,
uma necessidade.

Na perspectiva educativa, T.M., de acordo com Logan (1983, p. 200), afirma134 que não
há necessidade de tantas leis para cidadãos bem educados, o que reflete, na sociedade
utopiana, no fato de terem poucas leis, graças a uma população bastante educada.

Para Baker-Smith (1991, p.190), a educação é um tema evidente em T.M. e, segundo o


autor, como afirma Raphael, o declínio de um Estado sempre pode ser seguido de vícios que

131
Para Logan (1983, p.197), de Platão T.M. retira a regra de que aqueles que buscam funções públicas a
desqualificam para tal. Isso pode ser encontrado no argumento de Platão de que “aqueles que são capacitados de
governar, os verdadeiros filósofos, vão repudiar poder político enquanto que os moralmente inferiores sempre
vão ter a esperança de alguma compensação da sua própria inadequação de uma carreira política.”
132
LAT194/ING195/FRA558.
133
LAT194/ING195/FRA558.
134
E neste ponto se assemelha a Platão.
69

surgem de atitudes errôneas. Educação, na Utopia, é uma questão de política nacional, e a


formação dos jovens, uma função desprezada na Europa, é atribuída, na Utopia, à categoria
mais reverenciada na comunidade, os sacerdotes.

Há um clima científico na Utopia, que caracteriza uma condição moral e política.


Baker-Smith (1991, p. 181) ressalta que a vida intelectual utopiana é direcionada a três áreas
distintas: a primeira é cientifica, no sentido prático: os ilhéus são observadores habilidosos do
mundo natural, tanto do ambiente imediato quanto dos céus e, junto com o interesse em
medicina, ambas as ciências contribuem para o bem-estar físico; a segunda, com seus debates
sobre filosofia moral, é direcionada para a saúde espiritual; e a terceira pode ser resumida
como especulativa ao invés de prática, e leva em direção à teologia natural.

Para Surtz (1957a), a estrutura da sociedade quanto à questão de função educacional se


divide em três classes de estudantes: a primeira, os profissionais, pessoas que se destacam nas
suas atividades profissionais ou de conhecimento e que são isentas de todas as outras tarefas,
a fim de se dedicar ao estudo; na segunda, estão todas as crianças em idade escolar, porque a
educação é universal e compulsória na Ilha; e a terceira constitui-se de uma boa parte da
população adulta, que se dedica ao estudo e à leitura quando nas suas horas de folga.

Este envolvimento pelo estudo condiz com sua filosofia do prazer, pela sua convicção
de que os prazeres da alma são superiores aos do corpo, e por estarem persuadidos de que,
entre os prazeres da mente, a contemplação da verdade traz verdadeiro deleite. O povo como
um todo é incansável na sua busca intelectual. Literatura é objeto de amor, porque é a fonte de
grande prazer. Há um enorme contraste com o desdém para o estudo da nobreza europeia,
conforme explicitado anteriormente.

Na perspectiva de Logan (1983, p. 200), a educação utopiana tem diversos aspectos.


Um deles é a preocupação tanto pela moral e virtude, quanto pelos avanços no aprendizado. O
processo educacional utopiano se compunha de treinamento militar para todos os cidadãos, e
os jogos se mantinham presentes nas etapas educativas, caracterizando-se como uma parte
delas.

Quanto à questão da filosofia moral utopiana, a educação ensina as crianças a fazerem


distinção entre os verdadeiros e os falsos prazeres, dando preferência aos primeiros. Segundo
Logan (1993, p. 200), T.M. afirma que: “não há necessidade de tantas leis para cidadãos bem
70

educados, o que reflete na sociedade utopiana o fato de terem poucas leis, graças a uma
população tão educada”.135

T.M. comenta a respeito da necessidade de instituições assegurarem que os cidadãos


desenvolvam e mantenham um padrão de comportamento necessário para a realização e
preservação das metas da política racional. Da mesma forma, comenta a respeito da natureza
particular destas instituições, que constituem um sistema de educação formal; da proibição
legal de certas formas de mau comportamento; de uma rede de reforços positivos e negativos
para encorajar um comportamento apropriado; e de um sistema de justiça criminal.

Para Logan (1983, p. 202), este controle social, além das proibições legais, envolve uma
multidão de reforços positivos e negativos para encorajar o bom comportamento e
desencorajar o mau. Estes dispositivos, desenvolvidos para afetar o comportamento por um
apelo às emoções, refletem a concepção de que a natureza humana inclui um enorme
elemento não racional.136

T.M. reconhece a importância da lei para o bom governo, acompanhada do efeito


educacional que dispõe do indivíduo para melhor manuseio e, consequentemente, o deixa
mais disposto ao cumprimento das leis. Por isso, na comunidade utopiana, de acordo com
reflexões de Logan (1983, p. 202), “o dirigente deve elogiar e recomendar alguns cursos de
ação e censurar outros, e em toda área de conduta ele deve assegurar que qualquer um que
desobedecer é desgraçado”.

Um traço humanista se faz mister em T.M., quando se observa seu interesse para com a
educação moral e o ensinamento das virtudes. O autor prioriza o conhecimento que se deve ao
homem ligado à formação do homem integral. Aqui, encontra-se a validade de uma reflexão
da postura filosófica moral e política, quando a civilização utopiana, além do conhecimento
das letras, traz inclinação ao conhecimento da formação ética e política, fornecendo
instrumentos para a construção de uma nova sociedade. Para tanto, assim se dirige T.M.:

Ministram eles instrução a crianças e jovens: prioridade é conferida não às


letras, mas à moral e à virtude, pois colocam o máximo de diligência em
instilar desde cedo no ânimo das crianças, ainda tenras e moldáveis, bons

135
Quando se trata de um bom governo, a educação ganha no cenário grego um tema evidente. Um exemplo
disto é que Platão e Aristóteles dedicam mais espaço à educação do que a qualquer outro tópico nos seus
exercícios sobre o melhor governo.
136
T.M. pode ter derivado seu interesse de controle social de Platão que explora a questão nas Leis.
71

princípios que sejam úteis para manter a comunidade humana; se esses


princípios tomarem assento em profundidade nas crianças, hão-de
acompanhá-los, quando homens, por toda a vida e hão-de ser de grande
utilidade para o Estado (cuja ruína começa com os vícios que surgem de
princípios deturpados). (MORVS, 2006, p. 651).137

Em estudos realizados por Surtz (1957a, p. 78), observa-se que a educação cuidadosa
das crianças é responsável pelas boas ideias dos utopianos. Uma vez implantados na criança
valores verdadeiros, estes permanecerão por toda a sua vida e serão proveitosos para a defesa
e manutenção do Estado.

Assim, dentro de um cenário renovador da civilização utopiana, observa-se o quanto a


educação apresenta sentido e validade, garantindo equidade entre os homens. T.M. está além
de seu tempo quando percebe que o acesso ao saber garante ao homem seu espaço social.
Desta forma, Surtz (1957a, p. 151) revela a preocupação utopiana com formação das crianças
enquanto garantia para a formação do Estado. Os utopianos perpetuam a verdade entre
crianças e adultos, em parte por educação e em parte por boa literatura e aprendizado.

Esta reflexão decorre da própria percepção que o texto de Utopia expressa quando
Raphael não hesita em responder que os utopianos formam suas ideias corretas tanto pela
educação, quanto pelo gosto do aprendizado e da boa leitura. “A diferença entre elas está no
fato de que a educação se aplica à disciplina e ao treinamento, ao passo que o aprendizado
abraça especialmente o conhecimento advindo de aulas, palestras ou livros.” (SURTZ, 1957a,
p. 78).

Quanto à questão da filosofia moral utopiana, a educação ensina as crianças a fazerem


distinção entre os verdadeiros e os falsos prazeres, dando preferência aos primeiros. Pois,
conforme anteriormente explicitado, cidadãos bem educados necessitam de poucas leis”.138

T.M. deixa claro que “entre as suas leis mais antigas se conta a de que ninguém pode ser
desconsiderado por causa da sua religião”. (MORVS, 2006, p. 541).139 Uma única pena é
prevista em lei, que é justamente para resguardar a estabilidade familiar tão importante nesta
civilização comunista, pois os que a rompem, traindo o vínculo matrimonial, são punidos com
a servidão mais grave. Quem se entregar a um envolvimento íntimo antes do casamento é

137
LAT230/ING231/FRA606.
138
Quando se trata de um bom governo, a educação ganha no cenário grego um tema evidente. Um exemplo
disto é que Platão e Aristóteles dedicam mais espaço à educação do que a qualquer outro tópico nos seus
exercícios sobre o melhor governo.
139
LAT220/ING221/FRA594.
72

punido com o impedimento de casar, e isso é considerado uma grande vergonha para o
malfeitor e principalmente para a família, que é acusada de não saber educar o membro
adequadamente nos costumes dos ilhéus. Existe uma questão a ser destacada:

[...] se uma das pessoas lesadas, apesar de a outra parte não o merecer,
persistir em afecto por ela, não lhe está vedado permanecer fiel à lei do
matrimônio, aceitando acompanhar o culpado nos trabalhos a que for
condenado; acontece, por vezes, que o arrependimento de um e o
acompanhamento empenhado de outro, ao induzirem o príncipe a ser
indulgente, conseguem restituí-los de novo à liberdade. Porém, ao que volta
a cair em falta, a pena de morte é o castigo a ser infligido. (MORVS, 2006,
p. 541).140

Os utopianos são mais severos nos castigos com os próprios ilhéus do que com os
estrangeiros, visto que todos tiveram acesso à educação de melhor qualidade; por isso, não
pode alegar desconhecimento das leis e costumes, além de terem tido melhores condições de
desenvolver o seu caráter.

Quando se aborda a temática das leis na Utopia, não podemos esquecer a eficácia e
aplicabilidade do sistema penal. T.M. deseja que o corpo legal tenha como função deter o
crime, reformar e reabilitar o criminoso e reparar o mal que fora acometido a alguma vítima.
(LOGAN, 1983).

Nesse contexto, segundo Baker-Smith (1991, p. 110), estabelece-se como meta no


sistema penal utopiano destruir os vícios, mas salvar os criminosos.

Na Utopia, todos os criminosos são escravos, entretanto, o contrário não se dá. A


distinção se faz nos termos atribuídos a estes: servus e famuli. Os servus, tratados como
subumanos, contempla: primeiro, criminosos utopianos que recebem a forma mais severa de
penalidade, pois as suas educação e criação são motivos suficientes para evitar o erro;
segundo, prisioneiros de guerra, já que os Utopianos consideram criminosas as pessoas que
lutam contra eles, por isso fazem cumprir pena na Ilha141; e, terceiro, os condenados à morte
noutros lugares e comprados pelos utopianos estão cumprindo penas judiciais. Os famuli
consistem de voluntários estrangeiros que, por sua vontade própria, decidem oferecer a sua
mão de obra aos utopianos; estes são recebidos como trabalhadores e vivem livres. Dessa

140
LAT190/ING191/FRA554.
141
Convém a observação de que os utopianos só escravizam prisioneiros de guerra capturados nos conflitos em
que eles próprios participavam.
73

forma, a escravidão é encarada primariamente como uma condição penal, embora, para os
estrangeiros que são voluntários, ela possa se tornar benevolente.

Os escravos rebeldes são executados, mas, para os verdadeiramente arrependidos,


sempre há esperança de perdão em troca de penitência sincera. Neste aspecto, o sistema penal
é reformativo, ao invés de punitivo, e é um grande avanço em relação à prática europeia. A
exceção se faz aos prisioneiros adquiridos no estrangeiro, e sua reabilitação pode ser menos
garantida. No caso dos prisioneiros de guerra, estes, de todos, são os que menos são
reabilitados. (BAKER-SMITH, 1983).

Um castigo severo infligido ao seu concidadão é um excelente objeto de lição para os


utopianos, que preferem a escravidão à morte como castigo. O exemplo do escravo dura mais
tempo para deter outros de crimes semelhantes. No caso de uma ofensa severa, é vantajoso,
para a moralidade pública, que o castigo seja efetuado publicamente142. O sistema criminal
utopiano proporciona a severidade do castigo ao grau de hediondez do crime. Criminosos
incorrigíveis são executados como bestas indomáveis, que não podem ser contidas por prisão
ou corrente.143

3.3 O dever-ser da plebe

A constituição de uma nova civilização carecia de cidadãos capazes de renovar as


estruturas atrasadas, corruptas e decadentes da velha Europa. Como um exímio humanista,
T.M. pretendia fazer dos utopianos homens fortes e vigorosos, pois assim deveria ser a nova
sociedade criada por ele. T.M. mesmo dá uma descrição dos habitantes, mostrando que:

[...] de corpo, são eles destros e robustos, de forças maiores do que a estatura
deixaria prever, ainda que ela não seja baixa. O seu solo não é
uniformemente fértil nem o clima é dos mais salubres, mas eles protegem-se
contra a temperatura mediante um regime alimentar apropriado, e com tal
solicitude cuidam da terra que em nenhum outro lugar haverá colheitas e
rebanhos mais reprodutíveis, nem corpos de homens mais vigorosos e menos
atreitos a doenças. Assim, poder-se-á admirar a diligência com que executam
os trabalhos que habitualmente fazem os lavradores, de tal modo que não só
uma terra um tanto ingrata por natureza é melhorada pela sua habilidade e
pelo seu trabalho. (MORVS, 2006, p. 565).144

142
A concepção didática do castigo é encontrada na obra platônica Leis.
143
Como também recomenda Platão nas Leis.
144
LAT178/ING179/FRA538.
74

Quanto à forma de se organizarem, T.M. apresenta um modelo novo de cidadão e uma


nova dimensão de sociedade. Por isso, acrescenta: “É um povo acolhedor e alegre, inteligente,
que gosta do lazer, bastante sofrido nos trabalhos braçais a que se entregam. De resto, aliás, é
comedido nas suas ambições, infatigável em se entregar ao trabalho do espírito.” (MORVS,
2006, p. 567).145

Uma preocupação igualmente humanista, e que retrata a preocupação moreana com a


condição dos utopianos, é o tratamento dado àqueles que se caracterizavam como excluídos
ou discriminados socialmente. Assim, adverte ele que:

Troçar de um homem disforme ou estropiado é tido como torpe e baixo, não


por aquele que é posto em troça, mas por quem assim o faz, pois lança
estultamente em rosto a um infeliz, como se fosse uma falta, o que não está
em suas mãos poder ser evitado. (MORVS, 2006, p. 595).146

Desse modo, condena toda forma de caçoar, rir e discriminar os desvalidos, como uma
crítica à sociedade em que vivia. Os esquecidos e humilhados socialmente não existiam no
contexto do reino e nem havia quem se preocupassem com eles.

A paridade sexual na sociedade utopiana também era uma peculiaridade, visto que o
espaço dado à mulher na Utopia era significativo, pois a ela era dada a mesma condição que
aos homens, até mesmo a habilidade militar para com o combate. (MORVS, 2006, p. 605).147
Caracteriza isto, portanto, uma inovação para a sociedade tradicional do tempo de T.M.

Baker-Smith (1991, p. 165) acrescenta ainda que o papel da mulher na vida utopiana
pode ajudar a revelar alguma coisa do seu caráter único. Nota-se um traço marcadamente
patriarcal no ordenamento da sociedade. Ao casar, as mulheres passam a conviver com os
maridos no domicílio deles, e elas participam de tarefas mais leves, como tecelagem,
trabalhos agrícolas, alimentação e cuidados maternos. Dentro da família individual, atendem
aos seus maridos, assim como os jovens atendem aos mais velhos. No final de cada mês, as
esposas fazem uma confissão de suas falhas aos pés do seu marido, como as crianças fazem
aos pés dos seus pais, numa versão secular de uma tradição monástica.

145
LAT178/ING179/FRA538.
146
LAT194/ING195/FRA557.
147
LAT200/ING201/FRA566.
75

Outra descrição significativa feita à população utopiana, além da condição social


feminina, era a realidade do idoso e de funcionários públicos. Para Logan (1983, p. 212),
embora não haja exceções à regra comunitária, para idosos e alguns funcionários públicos são
permitidos certos privilégios, como: a isenção de trabalho manual, a preferência de alguns
assentos de oficiais e idosos nas refeições em comum e a distribuição dos melhores quitutes
aos mais idosos. Tudo isso serve apenas para destacar a autoridade destes grupos, conferindo-
lhes um destaque.

Na hierarquia familiar, “é ao mais idoso que compete chefiar a família”. (MORVS,


2006, p. 517).148 Todos na família devem obediência ao parente mais antigo, a não ser que,
por senilidade, ele tenha perdido faculdades, situação em que é substituído pelo que vem a
seguir na idade. Isto tem como resultado possibilitar aos membros mais responsáveis de uma
comunidade assegurar o comportamento correto dos menos responsáveis. Desse modo, o
contexto social, quanto ao povo que habita a ilha, não é complexo, revelando o desejo de T.M.
de estabelecer uma sociedade sem burocracia e pautada nos critérios e valores cristãos. É
também uma crítica ao modelo europeu de burocratismo e de corrupção institucional.

Numa análise da constituição familiar de Utopia, Baker-Smith (1983) ressalta que os


utopianos praticam a monogamia, e o seu código legal apóia essa prática de forma enfática.149
Isso não é surpresa, pois, a unidade familiar é a base da sociedade utópica. Há, no entanto,
costumes bem peculiares:

Se tal costume para nós se torna objecto de riso e o censuramos por estulto,
eles, pelo contrário, admiram-se de que haja uma estultice tão grande da
parte de todos os outros povos a ponto de, quando se trata de comprar um
potro, em que a operação envolve pouco dinheiro, serem tão cautelosos que
recusam fazer negócio sem o verem em pêlo, depois de lhe retirarem a sela e
depois de lhe arrancarem todos os adereços, não vá acontecer que debaixo
das mantas se esconda alguma matadura, mas, quando se trata de escolher
cônjuge, em que a situação é de ficar acompanhado, a gosto ou a
contragosto, para um vida inteira, procedem com tamanha displicência que
deixam todo o corpo encoberto pela roupa e avaliam a mulher no seu todo
por um palmo mal medido (de facto não mais se vê que não seja o rosto) e
trazem-na para junto de si sem terem em conta o perigo, que é grande (se só

148
LAT136/ING137/FRA482.
149 Existe uma grande divergência em relação à proposta platônica na República, em que a comunhão dos bens
inclui a comunidade de parceiros. Entretanto, o costume de apresentar noivos nus uns aos outros antes do
casamento possui paralelo nas Leis platônicas, em que o dançar nu preenche a mesma função.
76

derem com ele depois), de quadrarem mal um com o outro. (MORVS, 2006,
p. 587).150

Todo utopiano sabe quem são seus filhos, mas as famílias nucleares são integradas nas
famílias estendidas de cada casa, que, em regra, são ligadas por sangue. Estas casas, por sua
vez, são integradas dentro de famílias maiores, encabeçadas pelos sifograntos (ou filarcos), o
que resulta em a ilha inteira ser considerada como uma única família. Esta elaborada
organização familiar é um dos meios pelos quais os utopianos se protegem dos possíveis
efeitos nefastos do seu igualitarismo.

Cada família contém entre 10 (dez) e 16 (dezesseis) adultos na cidade, e até 40


(quarenta) no campo. Sobre cada uma, preside o casal mais idoso, o paterfamilias e sua
esposa. O magistrado mais baixo, chamado de sifograntos (ou filarcos), proporciona uma
ligação entre a familiae de uma cidade e o senado. Existem 200 (duzentos) deles. Cada um é
eleito por um grupo de 30 (trinta) famílias para servir por um ano. Das suas funções
constitucionais, a sua principal tarefa é supervisionar o trabalho e evitar a preguiça. Outro
papel é assegurar que o governo não perca contato com o cidadão. Os eruditos representam o
grupo de onde são eleitos estes funcionários públicos. Os sifograntos (ou filarcos) possuem
um papel primordial entre os dois extremos da constituição, limitando o poder do senado e
proporcionando a oportunidade para a participação popular no debate. Quanto aos números da
população:

Existem 6 mil famílias com uma média de 13 adultos em cada cidade, isto é,
78 mil. Se isto é duplicado no campo, então cada Cidade-estado possui em
torno de 156 mil adultos, e a Utopia possui 8 milhões e 424 mil adultos. Em
1516 a população de Londres era em torno de 60 mil e da Inglaterra 2
milhões e 300 mil, dos quais somente 300 mil residiam em cidades.
(BAKER-SMITH, 2006, p. 196).

T.M. redige uma série de orientações para a população utopiana, indo desde a
quantidade de habitantes que devem compor a ilha, pois o número de habitantes de cada
cidade deve ser mantido dentro da média predeterminada. Quando existem famílias
excedentes ou deficitárias, pessoas são deslocadas para compensar. Se, no entanto, exceder o
máximo estabelecido para a ilha, fundam-se colônias utopianas em terras estrangeiras, onde
houver terra improdutiva. Convém escutar do próprio autor suas ideias sobre a reforma
agrária:

150
LAT188/ING189/FRA550.
77

Se os donos originais aceitarem, ficarão todos unidos pelas mesmas


instituições e pelos mesmos costumes, facilmente se fundem as populações
em benefício de ambos os povos. Efetivamente, mediante as suas
instituições, conseguem que aquela terra, que a outros pareceria ingrata e
estéril, se torne fecunda para os dois povos. Quando os indígenas recusam as
novas leis, expulsam-nos das fronteiras que eles próprios definem para si;
contra os que opõem resistência recorrem à luta, pois consideram haver
razões plenamente justas para uma guerra, quando qualquer povo implantado
num território dele não se serve, mas apenas preserva a propriedade,
deixando-o improdutivo e ao abandono, proibindo o seu uso e a sua posse a
outros que por lei natural nele devem procurar subsistência. (MORVS, 2006,
p. 515).151

No contexto das acomodações domiciliares, é interessante destacar sua padronização. O


que pode diferenciar uma moradia da outra são os jardins, a única coisa de que eles podem
sentir falta quando são obrigados a mudar de residência a cada dez anos. Podemos dizer que
os jardins urbanos são o principal deleite dos cidadãos. Baker-Smith (1991, p. 160) alega que
existe um aspecto simbólico nisto: o jardim representa a harmonia da arte e da natureza. Uma
reconciliação da ordem com a fecundidade. Os jardins são simbólicos na própria Utopia, pois
modificam o dano causado num jardim perdido anteriormente e o deleite na antecipação de
um paraíso reconquistado. No decorrer da era humanista, o jardim persiste como o ambiente
preferido para diálogos literários, como foi o diálogo que originou a Utopia, de acordo com a
obra. (BAKER-SMITH, 1983).

Quando se fala em moradia na Utopia, significa reconhecer o trabalho de quem produz


na cidade. Característicos do trabalho na ilha são o esmero e o comprometimento com os
resultados, e a construção civil não seria diferente. O capricho com o qual os prédios são
levantados e a sua manutenção constante são típicos de uma sociedade na qual não há o
comprometimento da qualidade por questão pecuniária.152 Deste modo, com um trabalho
mínimo envolvendo uma manutenção constante, os edifícios utopianos são conservados por
muitíssimo tempo, e os responsáveis pela construção civil dificilmente teriam trabalho a
executar se não lhes fossem dadas ordens para o preparo antecipado de material para
construção, como o corte e tratamento da madeira e o ajuste das pedras, para que, quando a
necessidade surgir, caso ocorra alguma obra, ela possa ser construída rapidamente. (MORVS,
2006).

151
LAT134/ING135/FRA481.
152
Na sociedade europeia, os custos envolvendo a manutenção das moradias muitas vezes estavam acima das
condições dos moradores. O resultado é a degradação dos imóveis a ponto de inviabilizar o seu conserto,
necessitando demolir para construir outro a um custo maior.
78

T.M. também fez uma série de orientações, voltadas para o vestuário utopiano, de
maneira a revelar a condição em que cada habitante ocupa na ilha. As roupas são simples,
porém confortáveis, e são produzidas por cada casa. Quando necessitam, por motivo de
trabalho, usam artigos de couro, mas normalmente se vestem usando o linho e a lã sem
tingimento, com a cor original do tecido. Assim, ele diz: “quanto ao linho, ele reclama menos
trabalho e por isso o seu uso é mais frequente; mesmo assim, no linho só atendem ao candor,
na lã apenas olham ao asseio, não levando em conta a delicadeza do fio.” (MORVS, 2006, p.
507).153 Dessa forma, evitam os exageros muito comuns na Europa do tempo do autor, em que
nunca parecia haver o suficiente para se vestir:

Em consequência disso, enquanto noutros lados por vezes se tornam


necessárias para uma só pessoa quatro ou cinco togas de lã, de diversas
cores, e outras tantas túnicas de seda (aliás, para os mais requintados nem
dez bastam), aí qualquer um se contenta com uma apenas, a maior parte das
vezes, para dois anos. Não há de facto razão alguma para andar em busca de
mais para com elas se abrigar melhor contra o frio ou parecer mais bem
vestido com uma nova peça ou com uma nova cor. (MORVS, 2006, p.
507).154

Lembre-se que os utopianos julgam o valor de todas as coisas de acordo com sua
natureza e, já que roupas, por sua natureza, visam apenas à proteção e à modéstia do corpo, o
que estiver acima disto não é natural. Portanto, o deleite nos exageros apenas demonstra o
falso prazer.

T.M. faz com que a roupa de todos os utopianos seja do mesmo corte, com exceção de
masculino e feminino, solteiro e casado. Estas roupas persistem imutáveis através das
gerações. São agradáveis a vista, ajustadas para o livre movimento do corpo e adaptadas para
o frio e o calor. Enquanto que as roupas profissionais, feitos de couro, duram em torno de
sete anos, as demais vestimentas duram por volta de dois anos155.

A tradição cristã herdou dos hebreus uma predileção por um horário dispensado para a
alimentação e sempre reservou especial atenção para as refeições. T.M., herdeiro desta

153
LAT132/ING133/FRA478.
154
LAT132/ING133/FRA478.
155
“Os utopianos são como Lycurgus que, como Erasmus conta no seu Apophthegns, baniram a arte da tintura,
pois, enquanto a cor prazerosamente engana a vista, a natureza da coisa é corrompida.” (SURTZ, 1957a, p.46).
Surtz (1957a) continua afirmando que a única preocupação é com a limpeza do tecido, e nenhum valor é
atribuído ao tamanho do fio.
79

tradição judaico-cristã, igualmente reconhecia a necessidade de prescrever orientação para os


utopianos com relação à alimentação. Assim, T.M. explica que:

[...] as refeições do meio-dia são bastante ligeiras, as do fim do dia são mais
largas, pois às primeiras segue-se o trabalho, às outras sucede-se o sono e o
descanso da noite, que é considerado de bom efeito para uma digestão que
seja saudável. Não há jantar que passe sem música (58) e nunca falta uma
sobremesa sem alguma guloseima. Queimam-se aromas e espalham-se
essências, nada poupam que sirva para tornar agradável o convívio.
Efetivamente, por seu natural, são levados a pensar que nenhum tipo de
prazer é de excluir, contanto que dele não provenha qualquer inconveniente.
(MORVS, 2006, p. 563).156

Outra orientação significativa de T.M. é de que, depois que o encarregado dos doentes
retira a porção de alimentos prescritos pelos médicos, o restante seja distribuído
equitativamente pelas mansões, de acordo com a quantidade de pessoas de cada uma, “tendo-
se, contudo, em atenção o príncipe, o pontífice, os traníboros, bem como os embaixadores e
todos os forasteiros” (MORVS, 2006, p. 521)157, sem deixar de incluir os idosos, pois para
estes são reservados aquilo que não há como ser dividido igualitariamente a todos. Todos os
visitantes, referidos aqui como forasteiros, quando os há, possuem sempre acomodações bem
equipadas.

Os horários das refeições são ao meio-dia e no fim da tarde, e são anunciados por uma
trombeta de bronze. Todos, menos os acamados, se dirigem para o refeitório localizado na
mansão do sifogranto. Apesar de não ser proibido levar alimento para comer em casa,
ninguém dispensa a comodidade dos restaurantes onde, além de haver muita fartura, ainda
existe, no caso da refeição no final da tarde, por ser mais demorada, acompanhamento de
música. (MORVS, 2006).

As posições que cada um ocupa no refeitório dizem respeito aos seus cargos e a sua
idade. Destaca-se o Sifogranto com a sua esposa na companhia de um casal de mais idade,
quando não acompanhado do sacerdote e da esposa, caso haja um templo na área. Desta mesa
se tem a vista geral do refeitório. Nas demais mesas, sentam quatro:

[...] frente a frente, e alternadamente, ficam colocados os mais jovens e os


anciãos, com a finalidade de assim por toda a casa se relacionarem os que
são da mesma idade e se misturarem os que são de tempos diferentes; assim
foi estatuído, dizem, para que a gravidade dos anciãos e o respeito que lhes é

156
LAT142/ING143/FRA493.
157
LAT140/ING141/FRA486.
80

devido ponham cobro a qualquer leviandade insensata dos jovens (já que
nada se pode fazer ou dizer que escape aos vizinhos, quaisquer que eles
sejam).” (MORVS, 2006, p. 563).158

Quanto à temática da saúde, T.M. não se refere a isto como algo relevante, visto que a
preocupação está com a vida de prazer. Se a condição do utopianismo é a da experiência da
vida saudável, falar de doença parece ser um desuso na ilha. No entanto, T.M. revela que
mesmo “sendo eles os que menos precisam de conhecimentos médicos, em parte alguma lhe é
dado maior crédito, até porque colocam a sua aquisição no plano das partes mais belas e mais
úteis do saber, já que lhes permitem perscrutar os segredos da natureza.” (MORVS, 2006, p.
575).159 Acreditam os utopianos que Deus, que na obra é comparado a um autor, revela a sua
criação para ser contemplada pelo homem, que foi o único a ser agraciado por esta capacidade
de admirar a obra divina. (MORVS, 2006).160

Os doentes são muito bem cuidados, “e não lhes faltam com nada que lhes possa servir
para restabelecer a saúde, seja em medicamentos, seja em dieta alimentar”. (MORVS, 2006,
p. 583).161 Os hospitais, mais parecendo pequenas vilas em tamanho, localizados fora da área
urbana, são bem equipados e repletos de funcionários capacitados. Revela-se aqui o altruísmo
cristão da prática da caridade e do cuidado com os fracos e os desvalidos. Para T.M., não há
como instaurar uma civilização sem o emprego destes conceitos humanistas, tão esquecidos
na sociedade do seu tempo.

Quanto ao trabalho na ilha, observa Surtz (1957a), como devotos da razão e do senso
comum, os utopianos seguem um raciocínio lógico e valorizam os prazeres da alma como os
mais importantes.

Os seus habitantes dividem o dia, incluindo a noite, em vinte e quatro horas


de tempos iguais: seis horas são dedicadas a trabalhar, três antes do meio-
dia, depois das quais tem lugar o almoço que se prolonga pela sesta em
descanso, retomando de seguida o trabalho durante três horas, para tudo
terminar com a refeição principal. Uma vez que se contam as horas a partir
do meio-dia, é às oito horas que se deitam; o sono exige oito horas.
(MORVS, 2006, p. 505).162

158
LAT142/ING143/FRA490.
159
LAT182/ING183/FRA542.
160
LAT182/ING183/FRA542.
161
LAT186/ING187/FRA546.
162
LAT126/ING127/FRA469.
81

Antes do amanhecer, são disponibilizadas palestras sobre os mais diversos assuntos, em


que a participação para os estudantes é obrigatória, sendo abertas para os demais membros da
comunidade. Graças a uma vontade de se instruir cada vez mais, inerente ao utopiano, essas
palestras são bastante populares. No entanto, para aqueles que não se interessam por
disciplinas intelectuais, “se alguém quiser aplicar esse mesmo tempo a trabalhar no ofício que
lhe cabe (há quem não tenha dotes para se dedicar a disciplinas intelectuais), não fica
impedido de o fazer, mas até é elogiado por ser útil à comunidade”. (MORVS, 2006, p.
505).163

Riquezas e honrarias nada significam para os utopianos, que desprezam estes falsos
prazeres, pois afirmam que nada se compara com o deleite de conhecer a verdade e a
realidade. Este é o motivo por detrás da decisão de reduzir as horas de trabalho ao máximo
para que os cidadãos possam ter o máximo de tempo para se dedicar a perseguir os
verdadeiros prazeres, pois “acreditam que todos os cidadãos devem se libertar do serviço
corporal para alcançar a liberdade da mente, é disso que eles acreditam que consiste a
felicidade desta vida.” (SURTZ, 1957a, p. 62).164

Na Utopia, todos satisfazem seus desejos, contanto que trabalhem. Até viajantes devem
contribuir, com suas tarefas costumeiras, antes de serem alimentados. Assim, o trabalho é a
base do valor, e a vida está de tal forma ordenada que o trabalho em tarefas essenciais, como a
agricultura, possui alta estima na sociedade utopiana.

Mencionar a temática de religião significa dizer que é algo que reúne a instância pública
e a efetivação do Estado. Os utopianos dispõem da condição pública da religião, em que todos
exercem a sua confissão de fé amparada pelo Estado (SURTZ, 1957b, p. 189).165

A política de tolerância, implantada pelo primeiro governante da Utopia, atende aos


interesses da religião, pois permite que a melhor religião, a verdadeira, se revele. Com isso,

163
LAT126/ING127/FRA469.
164
Baker-Smith (1991, p.202) relaciona a condição do trabalho na Utopia com o dinheiro, o que revela o quanto
ele pode ser objeto que corrompe a dignidade humana na ilha, à luz das investigações que realizou sobre T.M.
Dinheiro é o meio pelo qual uma comunidade natural é corrompida para um sistema artificial, em que os ricos
controlam em benefício próprio. Numa sociedade em que dinheiro, um mero cifrão, substitui o valor intrínseco
das coisas, distorções fundamentais se tornam possíveis.
165
Para Baker-Smith (1991, p.172) “A crença na alma, conforme os conceitos platônicos, demonstra que os
utopianos são platonistas florentinos. Este aspecto da influência de Platão era particularmente proeminente no
início do Século XVI.” Surtz (1957b, p.49) complementa: “Aeneas Silvius declara que os príncipes filósofos,
principalmente Sócrates, Platão e Aristóteles, possuem as mesmas verdades: eles acreditam nas mesmas coisas
que os cristãos a respeito do governo do mundo, da imortalidade da alma, e a respeito de Deus”.
82

acreditam os utopianos que nenhuma religião pode ser fonte ou ocasião de danos ou maus
tratos.

Para Surtz (1957b), a distinção e a relação entre razão e revelação fornecem a base para
a interpretação humanista da Utopia, pois os humanistas da época acreditavam numa força
inata e natural da verdade, pois nada é mais poderoso que a verdade. Isso significa dizer que
os utopianos são livres para manterem qualquer outra verdade religiosa, contanto que eles
acreditem na existência e providência divinas e na imortalidade da alma humana.166 A crença,
no entanto, tem que satisfazer duas condições: primeira, ser fundamentada num argumento
racional; e, segundo, não conduzir a uma vida amoral.

Para Baker-Smith (1991, p. 189), “a religião utopiana possui uma característica


revolucionária partindo de mitos locais a princípios gerais.” A vitoria de Útopus sobre os
nativos por conta das divergências religiosas o tornou precavido quanto ao lidar com as
crenças dos seus súditos, permitindo uma liberdade religiosa. No entanto, existe uma
construção de elementos religiosos comuns a todas as religiões, os quais são destacados e
usados para formular a essência de um culto nacional. Todos os cidadãos participam do
louvor público conduzido no templo, e o rito dos cultos particulares é reservado para o lar.

De acordo com Surtz (1957b, p. 119), a dependência singular utopiana na sua


racionalidade torna seus habitantes:

[...] ignorantes da ordem supernatural na qual vivem e, portanto, só


podem filosofar a respeito da ordem natural. Consequentemente, não
fazem distinção entre atos naturalmente bons e atos supernaturalmente
ou salutariamente benéficos. Mas, eles acreditam na providência e no
ser supremo que impôs como condição a observância da lei moral que
está imbuída na natureza humana e que se tornou conhecida através do
uso da razão humana.

Surtz (1957b, p. 10) complementa ainda que:

[...] a religião natural é nada mais do que a complexidade de verdades a


respeito de Deus. É o especulativo e o prático vistos através da luz natural da
razão e os deveres que fluem destas verdades. Na revelação sobrenatural, de
onde advém a religião, Deus fala diretamente ao homem e atesta a verdade
que ele diz também de uma forma sobrenatural.

166
Recorda-se que esta é a condição sine qua non para a moralidade utopiana.
83

Mais adiante (SURTZ 1957b, p. 49), relaciona as verdades básicas que, de acordo com a
lei de Útopos, cada utopiano sensato defende. Primeiramente, a existência de Deus é
pressuposto e, implicitamente, contida nesta lei. Todos os utopianos acreditam na existência
de um ser supremo, mas discordam na sua identidade. Em segundo lugar, há a crença de que
Deus se comporta em relação ao homem e ao universo com uma providência amável. Em
terceiro lugar, a crença dos utopianos sensatos na imortalidade da alma humana. Por último,
como um importante corolário, a fé na providência, pois é necessário acreditar na retribuição
futura para a alma imortal.

Há uma evolução religiosa em Utopia, pois Surtz (1957b) observa que a discussão dos
utopianos sobre a vida boa dos mortos possui duas finalidades: primeiro, estimula os vivos no
exercício da virtude; e, segundo, serve como forma de veneração que agrada aos mortos. Eles
acreditam que os mortos estão presentes quando se conversa a respeito deles. A razão para
isso é que os mortos podem andar por onde querem e não são mal agradecidos às boas
companhias que tiveram em vida. Homens bons, acreditam os utopianos, depois que morrem,
possuem um incremento no seu amor e caridade.

Desse modo, podemos verificar que a religião utopiana mostra uma tendência evolutiva
que parte de cultos específicos para uma formulação mais intelectual do divino. Só
gradativamente, estão eles abrindo mão da superstição e compartilhando de uma compreensão
intelectual de Deus em comum. O que Raphael descreve é a emergência de um sistema de
teologia natural que ascende às imagens restritas de seitas em particular, por isso, não há
estátuas nos seus templos. (BAKER-SMITH, 1991).
84

CONCLUSÃO

O presente trabalho teve por objetivo defender a existência de uma filosofia moral e
política utopiana. Como toda filosofia moral e política, o ponto inicial se faz através de uma
leitura crítica de uma situação histórica, seja no presente ou no passado. Com os elementos
extraídos dessa visão, idealiza-se como aquela situação deveria ser, propondo soluções para
os problemas observados. Além da crítica e do dever-ser, todo estudo da moralidade, seja
individual ou coletiva, deve possuir uma fundamentação filosófica.

A filosofia moral e política utopiana não se encontra exposta em conceitos estanques,


como costumeiramente encontra-se nos estudos sobre o tema, mas, inserida dentro de uma
pseudorrealidade, cujas leitura e coerência se mostram viáveis, ou não. Portanto, não se trata
de estudo de teoria pura, na qual os conceitos são abstraídos da realidade, mas antes uma
teoria experimental, em que o leitor se defronta com a aplicabilidade e a viabilidade dos
conceitos.

Na Utopia de T.M., podemos ver nitidamente uma crítica contida, essencialmente, no


Primeiro Livro, embora não se atenha a ele, e um dever-ser que se concentra nas páginas do
Segundo Livro, mas estando presente também no Primeiro. Este dever-ser se encontra
exemplificado na práxis, quando se apresentam as soluções para os problemas expostos na
crítica.

A crítica está concentrada em duas questões elementares: uma individual, que é o falso
prazer; e a outra, coletiva, que promove a desigualdade. Ela se faz não somente no repúdio a
atos nefastos cometidos na busca de falsos prazeres, mas também na flagrante demonstração
da desigualdade que imperava na Europa.

Na crítica aos governantes, T.M. rejeita a predominância dos interesses pessoais sobre
os coletivos. O pensamento corrente à época era de que os súditos foram dados por Deus para
o desfrute e a realização pessoal dos governantes, ou seja, a população era apenas os meios
para se atingir os fins do regente. T.M. inverte esta ordem perversa, transformando a
população no verdadeiro propósito de se governar.
85

A crítica feita aos nobres também se aplicava ao clero, detentor do mesmo status de
nobreza. T.M recusa a exploração dos protegidos e o desrespeito à justiça, que atentava
somente para os seus próprios interesses, relegando a população a um segundo plano.

A população, no entanto, também não escapa do escrutínio de T.M. quanto a sua


dissimulação, ao querer se convencer da validade dos falsos prazeres. Ele renegava estes
vícios, que não se limitavam à população, pois eram cultivados por todos e acabavam por
desenvolver os males que os assolavam, não importando a condição social.

Toda a fundamentação filosófica da Utopia de T.M. se alicerça numa única questão: a


existência de uma natureza humana, criada por Deus, para que o homem pudesse ser feliz. A
partir desta crença no Criador, desenrolam-se os demais alicerces da moralidade utopiana. O
homem teria sido dotado da capacidade de discernimento por projeto original divino, e não
teria alcançado esta condição pelo pecado original. A ele foi dado o livre-arbítrio, que se
constitui na virtude do uso da razão, meio pelo qual ele pode escolher entre os falsos e
verdadeiros prazeres.

O dever-ser moreano se vê demonstrado em todas as áreas da vida utopiana e tem como


base a educação, objeto da Ética da Virtude, que proporciona a formação do homem e cidadão
ideal, resultando na sociedade perfeita. Tudo se ramifica desta peculiaridade, tão inovadora
para a sua época.

Por fim, mister se destacar a importância da utopia moreana. A partir de tão singela
obra, cunhou-se um termo, fundou-se um gênero que permeia as ciências humanas e
construiu-se uma base para o socialismo, comunismo e comunitarismo contemporâneos. Em
quase cinco séculos de existência, continua oferecendo soluções para os graves problemas
enfrentados pela sociedade até os dias atuais.
86

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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