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DEPARTAMENTO DE FILOSOFIA
CENTRO DE HUMANIDADES
Fortaleza
2010
MARK IAN COLLINS
Fortaleza - Ceará
2010
AGRADECIMENTOS
Amigos são muitos que me mostraram Para cada conquista teve mãos que ajudaram
que distância não é medida conduziram cada vez mais adiante
seja na falta ou na presença quando um largava outro segurava
sinto que sou uma pessoa querida. e assim eu seguia para frente
Espero um dia alcançar o poder Para aqueles que não foram citados
de conseguir a todos devolver eu garanto que serão sempre lembrados
este carinho que me deu tanta guarida. pois não se esquece algo tão forte que se sente.
MORVS
RESUMO
This dissertation was developed based on the principle that the utopian method of philosophy
develops as a narrative in which its interlocutors use dialogue in the search for knowledge. It
is based on authors such as Goodwin (2001), Baker-Smith (1991), Logan (1983), Surtz (1957)
among others who write on the theme of this dissertation in a qualitative-descriptive manner,
seeking exclusively to show that in addition to being a literary work, there is a moral and
political philosophy contained in Thomas More's UTOPIA. It shows how the concepts
contained in the story developed in this book fall into categories that belong to moral
philosophy on an individual as well as collective level. The research is presented in three
chapters. In the first, the critique is presented as a support from which to lever up the
philosophical process. In the second chapter the foundation and its principles are described.
Next the idealization is revealed, which is explored in the third and last chapter. It can be
concluded that UTOPIA by Thomas More was created in a literary style characterized in great
works that preceded it and continues today, even in science fiction (writing) where future
civilizations are projected. It should be noted that whether it be in the beginning of modernity
or in the end of the contemporary period, the moral and political philosophies of Thomas
more continue to be lucid options for confronting the enormous differences and challenges
experienced by humanity.
INTRODUÇÃO .......................................................................................................................... 8
Apresentamos neste trabalho1 a obra de Sir, Santo, Martir da fé, Chanceler do reino,
Thomas More (T.M.): Sermonis quem Raphael Hythlodaeus vir eximius de optimo
reipublicae statu habuit liber primus, per illustrem virum Thomam Morum inclutae
britanniarum urbis Londini et civem et vicecomitema2, conhecido mundialmente pela singela
palavra, de sentido tão controverso quanto profundo, cunhada pelo próprio autor, Utopia.
Condenar a Utopia por se tratar de algo não verificável e irreal deriva da visão
ortodoxia empirista e positivista das ciências sociais, incluindo a ciência política, dentro da
academia inglesa, e que explica a pouca atenção que foi dedicada ao pensamento utópico na
Inglaterra, berço do fundador do gênero.3 Em estudo sobre a obra em comento, Goodwin e
Taylor 1982, com base no conceituado estudo de R.Ruyer: L’Utopie et lês Utopies,
argumentam que utopias são, apesar da sua apresentação às vezes fantasiosa, estritamente
racionais e que constituem teoria especulativa.
1
A correção ortográfica deste trabalho obedece às novas regras gramaticais, no entanto, as citações permanecem
na grafia original.
2
Título original da obra: Relato que Rafael Hitlodeu, homem eminente, fez acerca da melhor forma de governo,
por Thomas Morus homem ilustre, cidadão da ínclita cidade inglesa de Londres e seu magistrado.
(NASCIMENTO, 2006).
3
Sobre esse assunto verificar em: Goodwin e Taylor 1982.
9
equivocado. A primeira prova pode ser vista na própria Utopia, em que existe impeachment
para governantes tirânicos. Goodwin et al (2001) defendem que o modo de pensar utopiano4
transforma os parâmetros de pensamento moral, social e político.
Outra razão de uma obra tão popular ter sido tão pouco estudada, ou talvez tão pouco
levada a sério, estaria na sua natureza e conteúdo revolucionários, o que tem provocado nas
autoridades políticas e religiosas desde então o desprezo por uma obra radical e
transformadora. Talvez seja esse o motivo pelo qual a Igreja Católica, principal autoridade
religiosa ocidental desde então, apesar de ter elevado o autor ao status de Santo da sua Igreja,
insiste em afirmar que a Utopia consiste apenas em uma obra literária para mero
entretenimento; um paradoxo, em se tratando da principal obra do autor, e por haver uma farta
evidência de que os princípios colocados na Utopia se encontram presentes nas suas demais
obras, destacando ou separando, assim, um homem da sua obra literária.
A Utopia é a única obra em Latim escrita por um Inglês que, traduzida nos mais
diversos idiomas, é ainda lida por pessoas fora da academia e seus estudiosos. Desde a sua
publicação, há quase meio milênio, não se têm passado vinte e cinco anos sem uma
reimpressão num idioma europeu. Entre 1868 e 1940, quando o bibliógrafo parou de contar,
nestes setenta e dois anos, a obra foi reimpressa noventa e duas vezes. As reimpressões em
muitos idiomas pelo mundo, desde então, não pararam.5
Principal obra de um autor executado pelos seus conterrâneos por traição6, não é de se
admirar que tenha recebido pouca atenção no seu país de origem, mesmo que este ato o tenha
transformado num mártir da fé e santo, pelos princípios que defendia, ainda mais diante do
fato de que a situação que gerou a sua discórdia e o levou à Torre de Londres e, em seguida, à
execução perdura até a presente data na figura do monarca britânico como chefe da Igreja
Anglicana da Inglaterra. Somente a partir de 1960, mais de quatro séculos após a sua morte,
foi que o estudo da Utopia surgiu na academia de uma forma mais evidente.7
4
No decorrer do texto, usaremos aleatoriamente o termo utopiano e utopiense.
5
Vide Yale 1965 p.cv
6
Por determinação do Rei Henrique VIII, no dia seis de julho de mil quinhentos e trinta e cinco, em Londres, aos
cinquenta e sete anos.
7
Vide Levitas 1990, p.09.
10
A pergunta que se coloca em todo o presente trabalho é se a obra Utopia demonstra que
os utopianos, habitantes de uma ilha imaginária, conseguem desenvolver uma política social
plena, e invejável a qualquer cristão da Europa. E o alcance dessa condição se dá por meios
racionais, tendo a própria razão como sentido. Entretanto, ainda não se conhece claramente a
intenção de T.M.: se esta é uma chamada de atenção aos católicos de sua época ou apenas
uma proposta social e política da vigente até então. Ainda persiste a dúvida: seria o livro
somente uma peça literária ou o caminho da racionalidade para o alcance de uma sociedade
perfeita?
O nosso trabalho revelará outra face deste autor e sua obra, não como um mártir da fé
ou santo8, o qual promove a autoridade eclesiástica de Roma ao negar o reconhecimento do
segundo matrimônio de Henrique VIII e a imposição do rei como chefe supremo da Igreja na
Inglaterra, tampouco como uma obra literária, mas antes como um teórico político, cuja
preocupação foi a de estabelecer uma sociedade cujos princípios eram pautados na justiça, na
moral e nos valores humanos.
Homem de grande influência e cultura em sua época, T.M. era, como Erasmo, um
cristão e humanista, porém, adepto do verdadeiro cristianismo, aquele que existiu em tempos
remotos e foi se deteriorando até se tornar não mais espiritual e humilde, mas mercenário,
político e suntuoso. No início do século XVI, época em que viveu T.M., a Igreja tinha
alcançado níveis absurdos de exigências e deturpação da mensagem cristã original, abusos
esses que acabaram por gerar as reformas protestantes. No livro A Utopia, percebemos o
quanto a ironia de T.M. ataca as falhas e os erros em que estava envolvida a Igreja.
8
No ato de canonização, o Papa Pio XI, em 1935, o declara como modelo aos ingleses, como diplomata a ser
seguido e estadista perfeito. Venerado pelos católicos, é declarado, por João Paulo II, como padroeiro dos
políticos e estadistas, em atenção aos fiéis ingleses que viam um interesse especial em referenciá-lo. Esse
interesse se deu por conta do interesse que os comunistas dispensavam por sua obra, enquanto tratado de uma
sociedade política em que os valores são igualitários e a comunidade humana, um retrato do bem comum.
11
filosóficas pela inovação de uma sociedade racional e pelo olhar visionário de uma
humanidade da razão.
A sensibilidade à sociedade de seu tempo faz com que T.M. crie antagonismos. A uma
sociedade em que se evidencia o vício, ele apresenta o modelo de uma sociedade virtuosa. A
um privilégio direcionado a poucos, ele constrói uma sociedade em que todos têm acesso aos
mesmos direitos e cumprimento dos deveres recíprocos.
Para entender a filosofia por detrás desta história, iremos separar todos os conceitos
contidos dentro do texto. Desmontaremos a história, ou se quiser, podemos dizer que estamos
decodificando uma obra de filosofia moral e política utopiana.
Dessa maneira, na Utopia, pode-se encontrar uma síntese sobre moral e política, dentre
outros assuntos, não menos relevantes, mas que são destacados aqui pela sua igual
abrangência.
Como toda filosofia moral e política, seja utópica ou não, há a necessidade de um ponto
de apoio, como se fosse uma alavanca para gerar o movimento filosófico. Este ponto se
encontra na crítica. A partir de uma visão crítica se pode projetar o dever-ser que constitui o
trabalho filosófico.
Stillman 9afirma que: “Utopias podem ser vistas como uma filosofia política prática que
considera e acessa ideais, meios e circunstâncias, a fim de facilitar sábias ações humanas.”
Para o pesquisador, trata-se de uma filosofia política inusitada, não só em conteúdo como em
forma, bem diferente das demais filosofias políticas a que estamos acostumados até a presente
data.
O gênero filosófico utópico promove uma reflexão crítica a respeito dos ideais e
práticas da sociedade e permite conduzir a ações racionais. A despeito dos estereótipos
criados a respeito de Utopias como sendo fantasiosas e irrealizáveis, o cerne do pensamento
utopiano se concentra em levantar e oferecer alternativas e, à luz destas, iluminar o atual
quadro e agir onde se deve.10
Hertzler11, na sua história sobre o pensamento utopiano, afirma que “Utopia não é um
estado social, é um estado da mente”. Nesse mesmo sentido é o entendimento de Reis12, que
defende a relação entre o idealismo filosófico e o utopianismo e também enfatiza o papel do
utopianismo como um estado da mente13.
9
STILLMAN 2001,p.10
10
Idem
11
HERTZLER, 1922, p.314.
12
REIS, José Eduardo P. Barreiros Professor do Dep. Letras - Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro.
13
GOODWIN et al (2001).
13
Para Mumford17, o método essencial da Utopia consiste neste retrato de vida cotidiana
dentro das instituições utópicas, seguindo seus princípios próprios. Eticamente, uma proposta,
para se tornar utópica, deve antes ser universal e oferecer benefícios a todos dentro do seu
escopo.
O que quer dizer filosofia utopiana? Nesta área filosófica, os conceitos não estão
abstraídos do contexto social, como nas demais áreas de filosofia, mas apresentados como
14
STIELTJES, 2005, p.18.
15
“Colocar num palco” descreve os aspectos presentes numa cena de teatro ou filme.
16
PREVOST, 1978.
17
MUMFORD, 1922.
14
Não são ideais diferentes que distinguem utopias de outras formas de filosofia moral e
política, mas a sua exposição. Ao invés de apresentar conceitos abstraídos da sociedade, a
Utopia mostra como conceitos filosóficos são aplicados na sociedade e, através do relato da
mesma, como uma sociedade regida por aqueles princípios funciona. Trata-se de uma
experiência filosófica colocada em prática através de uma história mostrando como seria se
aquela teoria fosse colocada em prática. As reflexões derivadas da história vão mostrando a
sua viabilidade ou não.19
Ao invés de elaborar uma teoria filosófica correta para depois oferecê-la para a
sociedade, o pensamento utopiano simula a sociedade de posse daquela teoria e analisa como
seria se fosse verdade a sua aplicação. Trata-se de uma experiência do pensamento, uma
espécie de “jogo” filosófico.20
18
Vide The Philosophy of Utopia e The Politic of Utopia de Barbara Goodwin.
19
STILLMAN in GOODWIN 2001.
20
STILLMAN in GOODWIN 2001, p.14.
21
STILLMAN in GOODWIN 2001.
15
Muitos comentadores citam Oscar Wilde: “Um mapa mundi que não inclua Utopia nem
vale a pena olhar, pois omite o único país no qual o homem está sempre chegando, olhando e
vendo um mundo melhor, partindo. Progresso é a realização de Utopias”.22
Uma das interpretações que brotam na leitura da Utopia é a sua comparação com a
imagem de um espelho. Seria, portanto, um reflexo de um mundo novo, outra possibilidade,
mesmo que seja distante, servindo como espelho para a crueldade da realidade. De acordo
com Stieltjes (2005, p. 18), é importante observar a imagem da Utopia como sendo um
espelho da realidade:
Aquele que desejar um empenho maior nos estudos das obras medievais encontrará
alguns empecilhos; a estrada se fará árdua e o esforço hermenêutico será uma constante. Da
mesma forma, o estudioso de T.M. não se deparará com um percurso ameno, mas com a
aridez de estudos, com poucas interpretações sobre sua obra “Utopia”.
Com fito em ampliar a literatura sobre o tema, fornecendo material para futuras
pesquisas, sem embargo das demais obras de T.M, delimitou o objeto da pesquisa a obra da
Utopia.
Entre todas as traduções, foi escolhida para o trabalho de pesquisa a tradução do latim
para o inglês, da Cambridge University Press, a mais recente e que possui uma ortografia
mais moderna, visto que trabalha com parágrafos e pontuações mais fáceis para aqueles não
versados no latim.24 No entanto, ao citarmos os trechos da obra neste trabalho, optamos pela
tradução do latim para o português, do Prof. Dr, Aires do Nascimento, publicado pela
Fundação Calouste Gulbenkian, garantindo assim uma fidelidade na citação no nosso
vernáculo. As demais traduções foram usadas para elucidar os trechos mais obscuros. A
versão publicada pela Yale University Press, considerada até a publicação da versão de
22
LEVITAS 1990, p.05.
23
Claude-Gilbert Dubois e Sabine Melchior-Bonnet explicam como o espelho de vidro, revestido de mercúrio,
invenção da Renascença, excita a imaginação da época. (STIELTJES 2005, p.18).
24
Embora estudiosos e pesquisadores mais tradicionais criticassem esta versão justamente pela sua
modernização ortográfica.
16
Cambridge como a melhor tradução, continua sendo até a presente data a que possui o mais
rico comentário a respeito do texto.
Apesar de certa profusão de textos sobre a Utopia, são muito raros os que possuem um
enfoque filosófico. A predominância consiste na sua interpretação literária. Mas, dentro de
uma perspectiva filosófica, só foram encontrados dois textos, envolvendo uma mesma autora:
Barbara Goodwin.26
Esta autora reconhece o débito que a academia inglesa tem com um dos primeiros e
mais destacados autores da renascença. Barbara Goodwin chamou a atenção para a falta de
estudos filosóficos pertinentes a um assunto tão profundo e cujas consequências se fizeram
tão presentes na história, pois esta obra é considerada como o berço do socialismo e do
comunismo contemporâneos e tem servido de inspiração para anarquistas e diversas correntes
de pensamento, manifestando-se inclusive em ficções científicas, com as suas projeções de
futuro.
25
a numeração após o código "LAT" e "ING" correspondem a paginação do livro da Cambridge University Press
contendo a versão original latina e a inglesa e a numeração após o "FRA" da paginação do livro de Prévost.
26
The Philosophy of Utopia e The Politics of Utopia, ambos editados pela Barbara Goodwin, e a segunda em
parceria com Keith Taylor.
27
The Praise of Wisdom e The Praise of Pleasure.
17
a obra se trata de uma peça literária e nada mais; do outro lado, defendendo uma profundidade
muito maior da obra, no âmbito da filosofia, encontramos Logan28 e Baker-Smith.
28
The Meaning of More’s Utopia.
18
Pode-se dizer que T.M. escreve uma obra de reforma política, na condução de uma
sociedade cujos valores humanos são evidenciados, tanto em nível individual quanto coletivo.
Valores que reclamam respostas, visto serem ainda cobrados presentemente.
tempo, mas seria amplamente direcionado aos homens. As ideias-chaves de seu escrito podem
conduzir à compreensão de ser seu pensamento uma revolução, e de que a tarefa de constituir
um novo mundo para ele era clarividente. Sem reformas profundas, não seria viável
estabelecer um estado da razão.
Além de oferecer uma ponte entre o antigo medieval e o novo moderno que se
descortinava diante dele, T.M. procurava uma harmonia entre a ciência filosófica humana e a
teologia, enquanto ciência divina. Como seria, então, entender essa postura moriana à luz dos
conhecimentos veiculados em seu tempo? De Silva (1992, p. 210) esclarece:
29
Enquanto em Agostinho prevalecia a fé nos assuntos confrontados com a razão, Tomás de Aquino acreditava
que se a razão não “concordava” com a fé era por insuficiência racional ou uma falta de entendimento.
20
se, pois, a perspectiva de uma filosofia moral e política, com ênfase na efetivação de valores e
conselhos viáveis ao homem moderno. Este, não mais convencido de uma moral eclesiástica
deísta, mas de novos impasses, que se levantam com a ciência experimental e com os avanços
no campo da observação e da dedução empírica.
Uma postura significativa da filosofia política de T.M. é que, em seu tratado utópico,
ele busca reunir a primazia da razão e da revelação, o seu equilíbrio, possível a uma nova
humanidade, na observância das ordens criadas, evidenciando a perspectiva do pensamento
cristão, num recorte humanista de seu tempo.30
Ao pensar numa comunidade perfeita, T.M. sabia que seu ponto de partida seria a
antropologia, a compreensão da criação humana. O estudo da criação humana seria
fundamental para a formação da pessoa e da sociedade utopianas. A criação humana seria a
predisposição do próprio homem de se ver criatura de Deus, reconhecendo sua existência, sua
razão natural, a ordenança da natureza e a construção de uma conduta moral pactuada pela
convivência e pela efetivação da razão natural.
30
Os utopianos, se existissem de fato e não fossem apenas personagens literários, não se caracterizariam como
racionalistas, nem tampouco, pode-se dizer deles, precursores do Iluminismo. Apenas se servem da razão, mas
sem pô-la no lugar mais alto de suas vidas. A razão, para eles, era a faculdade de os tornarem sempre abertos à
realidade. Seria aquela condição de fazer com que se alcançasse algo que não era obtido pelos sentidos.
21
natural do homem e Deus. Assim, o tratado utopista é um tratado humanista político porque,
conforme De Silva (1992, p. 217) ressalta:
A reforma política de T.M. se revela na sua descrição de uma sociedade que carece, não
apenas de reforma, mas de uma nova forma. Baseia-se no humanismo que está a cargo das
ações de cada habitante, pelos usos e costumes que se coordenam na vivência dos valores
sociais e na revelação cristã. Assim, a Utopia é uma reflexão sobre os fundamentos e
condições em que se pode levar a cabo uma sociedade moderna. Aquela, que via nos valores
medievais os pressupostos de uma comunidade que se conceitua racional, que conhece nos
acontecimentos o presságio de um novo alvorecer.
Portanto, a razão seria a faculdade-guia dos utopienses, o que seria exemplo não
somente para os ingleses cristãos, mas também para os demais cristãos de sua época. Seria,
igualmente, a razão, a condutora de uma comunidade humana, a condição de uma reforma
social.
Uma questão que se colocava à mente de T.M era a viabilidade de uma reforma da
Inglaterra, e acreditava que isso não seria possível sem uma reforma da Igreja. A Utopia é
uma reflexão sobre a Cristandade e sobre os pilares evangélicos.
De Silva (1992, p. 224) afirma que T.M. constrói, na Utopia, “um programa ideológico-
político, sociológico, artístico, etc.”. Isso, porque toda civilização proposta apresenta uma
beleza sobre-humana. O utopiense é aquele homem prudente, que conhece os limites, os
ideais ou ilusões sobre as possibilidades de vida temperadas de experiência.
Assim, segundo Surtz (1957b, p. 13), o termo que representa a crítica dentro da filosofia
moreana é o vício, que abrange todos os segmentos da sociedade. A obra de T.M. busca
expor e descrever os vícios que prejudicam o Estado e as virtudes que o exalta e o faz
florescer.
No que tange aos vícios, Guilherme Budê, no prefácio de Utopia, deixa claro que a raça
humana possui desde o seu nascimento um apetite que parece um parasita presente na carne e
22
que a preda durante a sua vida toda (MORVS, 2006). Serão estes apetites que iremos
descrever no decorrer desse primeiro capítulo.
Surtz (1957a, p. 40), por sua vez, relaciona as quatro causas mencionadas na obra no
tratamento de falsos prazeres: doenças corporais, satisfação desmedida de desejos básicos,
também compreendidos como desejos desonestos, opiniões falsas e, sobretudo, hábitos
pervertidos.
As doenças corporais são compreendidas no seu sentido físico e não moral. Têm como
causa um julgamento corrompido em relação ao prazer derivado da sua moléstia.31 Os desejos
desonestos derivam dos encantos perversos e maliciosos que causam muitas coisas que são
desagradáveis por si, mas são confundidas como desejos superiores, pois possuem como
objeto não só prazeres sensuais, como comida e bebida em quantidades imoderadas, ou delícia
excessiva, mas, também, ligações perversas com riquezas e honras.
Para Surtz (1957a, p. 40): “Erros intelectuais, ou pensamentos errôneos, causam aos
mortais a escolha de falsos prazeres”. Assim, ao ser seduzido a erros de julgamento pelos
desejos que surgem, o homem se torna vítima de hábitos ou costumes corruptos. Ao olhar
para prazeres falsos, como se eles fossem verdadeiros, faz-se com que a gratificação seja
31
Um exemplo seria a obesidade que pode criar falsos prazeres quando na verdade a vítima estaria apenas se
subjulgando aos desejos errôneos de comer desmesuradamente. O alcoolismo é outro exemplo de doença que
promove uma necessidade confundida com prazer autêntico, quando apenas se satisfaz um vício.
23
derivada destes. Porém, não é a natureza da coisa, mas a sua perversidade que é a causa de
aceitar coisas amargas, ou azedas, ao invés das coisas doces.
Segundo More (1995)32, o vício possui não só uma responsabilidade individual daquele
que se ilude, mas também uma questão social, que é cabível dentro de uma sociedade que não
tem medida social, que não se constrói a partir de critérios morais.
De acordo com Surtz (1957), isso é perceptível na crítica social moreana quando
Raphael fala do costume como fonte de erro em relação ao prazer. Para o autor, T.M. está se
referindo não somente aos hábitos corruptos dos homens enquanto indivíduos, mas, também,
às falsas considerações e vícios das classes sociais, pois a sociedade fornece o ambiente no
qual uma opinião errônea pode surgir e crescer.
Surtz (1957) percebe essa crítica quando T.M. se refere aos costumes cegos dos
homens. Esses costumes são preservados nos prazeres torpes de todos os deleites desmedidos
da carne, e os mantêm ignorantes e sem cuidado ou preocupação com a doçura do prazer
espiritual. T.M. é bastante explícito quando se refere aos mortais que, em exercício de
fantasia, como se estivesse ao alcance deles poder transformar a realidade como mudam de
palavra, imaginam prazeres que ultrapassam a natureza, cheios de amargor, perversidade e
prazeres ilícitos.
A esse respeito, declaram os utopienses que tudo isso nada tem a ver com a felicidade,
antes, na maior parte das vezes, lhe serve de empecilho, porque, uma vez assentes, essas
ilusões do prazer não deixam lugar para os deleites autênticos e verdadeiros, uma vez que daí
por diante ocupam todo o espírito. T.M. prossegue afirmando que estes desvarios, embora o
comum dos mortais os tome como prazeres, não são instituídos pela natureza como
agradáveis.
Para Surtz (1957, p. 42), entre os prazeres falsos destacados pelos utopianos, existem: a
noção errônea de que quanto melhor a roupa, melhor aquele que a veste; o orgulho tolo por
honras inúteis, especialmente por uma nobreza desprovida de bens; um deleite pueril por
pedras e gemas preciosas; ouro armazenado ou riquezas guardadas para simples
contemplação; e, por fim, um entusiasmo enlouquecido por jogos de dados, falcoaria e caça.
32
LAT246/ING247/FRA629.
24
O falso prazer derivado de falsa honra é particularmente repudiado pelos utopianos, pois
consideram tolos e ignorantes aqueles que exigem reverência e respeito como um direito
decorrente de seus trajes e que possuem orgulho por honras vãs e desnecessárias. Para T.M
apud Surtz (1957, p. 47): “o prazer que surge da satisfação de um desejo incomum por sinais
de respeito, quando independe da honra. Trata-se de um engodo e não é natural nem
verdadeiro”. Já que os utopianos julgam o valor de todas as coisas de acordo com sua
natureza e já que roupas, por sua natureza, visam apenas à proteção e à modéstia do corpo, o
que estiver acima disto não é natural. Dessa forma, o deleite nos exageros apenas demonstra o
falso prazer. Os utopianos defendem que uma sociedade deve pautar-se no valor que seja
compensável a cada cidadão, e o que acontece contra esse princípio é prejudicial para a
sociedade.
Esse entendimento fica claro quando T.M faz uma crítica à classe dos governantes. Esta
crítica possui duas funções, visto que, ao exteriorizar as suas dúvidas a respeito da viabilidade
da sua função como conselheiro, cargo que viria a ocupar em breve, torna-se incisivo na
explanação dos vícios próprios dos governantes.
Em seu discurso sobre os vícios dos governantes, T.M mostra que, enquanto Rafael
acredita no sucesso de um governo destituído dos falsos prazeres, o personagem More afirma
que assim se procedendo: “cai por terra toda a fidalguia, a magnificência, o esplendor, a
majestade, que, como sustenta a opinião pública, é o verdadeiro ornamento e glória do
Estado” (MORVS, 2006, p. 673).33 Desta forma, pode-se ver como as aparências do Estado,
na figura e esplendor dos seus governantes, são edificadas sobre os falsos prazeres e os vícios
dos monarcas.
33
LAT246/ING247/FRA630. Vale recordar o trecho em que quando se fala de falso prazer. A população dá
condições para o cultivo de falsos prazeres [...] É esta multidão que apóia o conceito falso de nobreza, baseada
em um culto de ostentação que, na verdade, vira as coisas ao avesso, chamando coisas más de boas e
confundindo coisas amargas com doces. [BAKER-SMITH p.178]
25
Para Surtz (1957a), o primeiro ponto que T.M. destaca na crítica aos governantes é a
falta de interesse no estudo e no conhecimento. T.M questionava como governar sem dispor
de um conhecimento sobre a sua função de governante. Essa questão é de fato pertinente, pois
o que prevalecia era o desdém para com o estudo, uma característica dos nobres e dos
cavalheiros tanto na Inglaterra como na Europa. Ser chamado de erudito ou estudioso era uma
ofensa para um nobre.
Nesse sentido, T.M não conseguia entender porque os governantes não liam os livros
que já haviam sido escritos pelos filósofos. Para T.M., era relevante o rei ou governante
dispor de acesso à cultura e ao saber, como referência para um bom governo.34 É uma
condição de lucidez para aquele que pretende governar com o crivo da razão. Assim sendo,
T.M. propõe uma reforma radical da sociedade de seu tempo, e a Utopia é uma prova cabal
desse intento (MORVS, 2006).35
No entanto, T.M. tem consciência do grande desafio que isso significa ao ponderar:
“Porventura não estás tu ciente de que, se eu propuser a algum rei decisões sensatas e tomar a
peito arrancar-lhe as sementes perniciosas do mal, serei imediatamente escorraçado e posto a
ridículo?” (MORVS, 2006, p. 453).36
Depois de tecer uma crítica severa aos governantes quanto a seus vícios, T.M. sugere
conselhos que viabilizam a instauração de uma sociedade racional, mantida pela nova ordem
de racionalidade e pelos ensinamentos cristãos. No entanto, segundo Logan (1983, p. 56),
T.M. reconhece que se trata do mais relevante e sério de todos os problemas sistêmicos, em
vista do que “os conselhos bons ou maus possam acarretar, através dos governantes, em toda
uma sociedade”.37 Por isso que, em a Utopia, a objeção de Rafael para ocupar um posto no
corpo de conselho de um governante se resume a uma rejeição fundamental deste modo de
expressão política, pois ele acredita que isso na prática não funciona.38 “O ambiente da corte
corrompe o cortesão. O problema é institucional.” (BAKER-SMITH 1991, p. 101).
34
Assim, também propunha Aristóteles, a Alexandre, a cultura.
35
LAT082/ING083/FRA417.
36
LAT082/ING083/FRA417.
37
Podemos ver claramente como esta influência atua nos dias de hoje no exemplo do papel que lobistas, como
“conselheiros”, exercem no nosso executivo e legislativo.
38
Para Baker-Smith (1991, p.101): “A função do conselho, de acordo com Castiglionoe, é usar a persuasão para
guiar o príncipe em direção a políticas virtuosas.”
26
Para Logan (1983, p. 68), em T.M., a função do conselho corrompido tem uma
finalidade de atender aos interesses individuais em detrimento dos interesses comuns. Isso se
faz presente em todos os exemplos citados por Raphael no primeiro livro da Utopia, que
reforçam a inutilidade de conselhos a governantes. Rafael menciona a preocupação dos reis
mais com as guerras do que para com a paz; a condição de bajulação que norteia o rei, que,
por sua vez, aprecia esse clima; e a conduta da corte que é regida por precedentes, o que não
permite inovação.
No primeiro livro, faz-se um exemplo do tipo de conselhos que um rei receberia dos
seus conselheiros. Uma análise de cada opção mostra conselhos nada virtuosos, embora
representassem um quadro bastante realista do cenário europeu. Rafael pede para imaginar
que está junto a um governante e que possui assento no seu conselho, em que, no mais secreto
dos aposentos, sob a presidência do próprio governante, se discutem superiores opiniões de
homens altamente sabedores dos meios e das estratégias de fazer alianças para recuperar o
que lhes escapara, tentar arruinar inimigos, conquistar e anexar territórios, contratar
mercenários, distribuir subornos de dinheiro, entregar para outros o que não lhes pertence e
atrair cortesãos. Isso, sem contar com atos de falsidade com que se trata o inimigo como
amigo e o instigam por detrás. T.M. faz uma descrição da condição que prevalece entre os
conselheiros de um governante europeu do séc. XVI:
[...] de todos aqueles que pertencem ao conselho dos reis, não há ninguém
que procure aconselhar-se, seja porque alguém é de verdade altamente
competente, seja porque lhe parece que é tão competente que não lhe apetece
confrontar-se com o conselho de outrem, a não ser dos que aplaudem as
opiniões mais que absurdas e vivem do parasitismo daqueles que procuram
apenas ganhar para si as boas graças do príncipe com o seu aplauso. A
analogia está na natureza, por certo: cada um elogia o que inventa, da mesma
maneira que o filhote do corvo sorri para o progenitor e que ao macaco
39
agrada a sua cria. (MORVS, 2006, p. 411).
Mais adiante, T.M. observa que mesmo aqueles providos de boa fé estão arriscados a
cair nas tramas nefastas do poder:
[...] quem quer que seja ou ficará pervertido pelo seu comportamento
depravado ou ele próprio, na sua integridade e inocência, servirá de
cobertura à malícia e a estultices alheias, de tal modo que muito dificilmente
alguém poderá, por via indireta, levar alguma coisa a tornar-se melhor.
(MORVS, 2006, p. 473).40
39
LAT052/ING053/FRA374.
40
LAT098/ING099/FRA434.
27
[...] os próprios príncipes, na sua maior parte, estão todos mais que
comprazidamente ocupados em estratégias militares [...] e preferem-nas a
ações de paz ou passam muito mais tempo a congeminar de que modo, lícito
ou ilícito, conseguiriam conquistar novos reinos do que a administrar bem os
que lhes couberam. (MORVS, 2006, p. 411).41
E quando decide criar a Utopia, um dos delitos e condições que deseja banir dessa
civilização é exatamente a guerra, e a proposta bélica de governo. Assim, T.M. diz que: “é
rotundamente proscrita pelos utopianos e, ao invés do que se passa em todas as nações, a
custo se encontrará coisa tão desqualificada como a glória que se busca na guerra.” (MORVS,
2006, p. 605).43
T.M. critica o governante que, na busca de um reino cada vez maior, maiores também
serão os seus problemas. O fascínio bélico próprio dos governantes corruptos e interessados
apenas em expansão e conquista acaba por proporcionar uma série de males e desavenças no
seu próprio país, como cita T.M. quando relata a respeito de um governante que havia se
apoderado de outro país.
41
LAT052/ING053/FRA374.
42
LAT200/ING201/FRA566.
43
LAT200/ING201/FRA566.
28
[...] havia que fazer gastos, ver sair o dinheiro para fora, dedicar o sangue
próprio (da população) a uma vaidade alheia; paz e segurança eram sem
perspectivas, os bons costumes no país tinham decaído em razão da guerra,
havia uma cupidez desenfreada de pilhagem, vivia-se um desaforo de
assassínios a toda a prova, as leis eram deitadas ao desprezo porque o rei se
dispersava a cuidar de dois reinos e menos era capaz de voltar a atenção para
qualquer um deles. (MORVS, 2006, p. 457).44
Desse modo, como aplicar um governo justo, a prática dos valores, a implantação de
uma civilização moral e politicamente viável, se a atenção do governante estava voltada para
a guerra e sua manutenção?
T.M. deixa clara em seus escritos a condição política e moral de sua época. Relata a
pauperização das instituições, a nomeação de cargos públicos como algo vergonhoso e propõe
uma crítica severa a esse contexto. Segundo Surtz (1957a, p. 49)
Não será que é iníqua e ingrata uma nação que proporciona tantos regalos a
fidalgos, como lhes chamam, a traficantes de dinheiro e a outros do mesmo
gênero, que vivem na ociosidade ou que passam a vida a adular e assegurar
vãos prazeres, quando, em contraste, para agricultores, carvoeiros, serviçais,
condutores de carros e artesãos, sem os quais a organização pública não se
aguenta, nada prevê que lhes seja favorável? (MORVS, 2006, p. 665).46
T.M. enxerga a corrupção institucional quando explica a conduta dos ricos e fidalgos
que estabelecem a “fraude privada”, e ainda adotam leis que os apóiam e que garantem que
condutas corruptas serão aprovadas por lei. E acrescenta:
44
LAT084/ING085/FRA418.
45
Erasmus, escrevendo para Faber, em 1532, declara que TM e seu pai, que não pertenciam à nobreza, mereciam
os favores do rei pela sua virtude, a verdadeira origem de toda a nobreza. George Lily também diz que TM foi
chamado aos cargos mais honrados do Estado apenas por recomendação da sua virtude.
46
LAT242/ING243/FRA625.
29
É por isso que, quando olho para todos os Estados que hoje se apresentam
em prosperidade, dou comigo a pensar (Deus me é testemunha) se não está a
ocorrer uma conspiração de ricos que usurpam o nome e a autoridade do
Estado para tratarem dos seus próprios interesses, congeminando e
maquinando todos os modos e todas as estratégias para, primeiro, ficarem
com os bens que desonestamente açambarcaram, sem medo de os perderem,
depois, para pagarem o mínimo possível de mão-de-obra aos pobres e para
deles abusarem. (MORVS, 2006, p. 665).47
O maior ataque que TM faz à Igreja está contido no primeiro livro, no episódio do
Cardeal Morton, e, de uma forma mais velada, no segundo, que relata a vida na ilha de
Utopia. A semelhança da vontade de Cristo exposta na sua revelação, contida na Bíblia, com a
racionalidade e propostas da religião Utópica é muito grande. E somente através da razão, os
ilhéus alcançaram o estado político desejado e idealizado pelo próprio Filho de Deus nas
escrituras sagradas. Ao mostrar que a fé cristã é lógica, ele mostrou que para ser divino tudo
tinha que fazer sentido. Deus, de acordo com T.M. não realizaria alguma coisa que não fizesse
sentido.
47
LAT242/ING243/FRA625.
48
Nota do pesquisador: lembra-se de que um dos sinais de poder na época feudal era ter “muitos amigos”, que
acompanhavam os poderosos.
49
LAT056/ING057/FRA381.
30
Cristandade a uma revisão de suas bases evangélicas. Da mesma forma, T.M. chama a
atenção para os mesmos males e, diferentemente de Lutero, a quem T.M. passaria a deplorar
posteriormente, ofereceria a sua reforma nos moldes dos habitantes da Utopia.
A condição interna da Igreja, no contexto de T.M., não era diferente da condição civil
da Inglaterra e Europa. Havia uma paridade de governo. De acordo com Surtz (1957b), o
próprio Papa Urbano I (222-230) foi o primeiro a decretar que padres poderiam receber
propriedades oferecidas por devotos. No entanto, ele estipulou que nada podia se tornar
propriedade privada, mas tudo visava ao bem comum. Assim, moradias eram comuns a padres
e a hospitalidade, aberta aos laicos. No entanto, o bem comum foi substituído pelo “meu” e
“teu”, e o clero era agora visto como renda, legado e propriedade. Como não conduzir esse
contexto a uma condição de crítica, de análise política e moral?
O pior pecador não resistira à graça se todos entre o clero vivessem como
deveria. O Bispo Fisher dizia que no tempo de São Paulo não havia cálices
de ouro, mas havia padres dourados. Agora, existem muitos cálices de ouro e
quase nenhum padre dourado. (SURTZ, 1957b, p. 146).
Um dos temas de relevância na análise de filosofia moral e política em T.M. diz respeito
à justiça que lhe é inerente. Nosso autor chega a desejar apreciar essa condição e diz que daria
a vida por descobri-la, até mesmo em lugares longínquos. Esse desejo para ele tornou-se um
anseio, porque a realidade experimentada por ele não lhe dava a devida condição para tal.50
T.M. critica veementemente a valorização dos bens materiais. Isso fica explícito em seu
discurso sobre o valor do ouro, mais aquilatado do que o próprio homem, tornando a criação
superior à criatura.51 Sua crítica torna-se tenaz, quando diz:
[...] que justiça é essa que faz com que alguém, por ser fidalgo ou por
transaccionar dinheiro ou por se entregar à usura (enfim, seja ele quem for
daqueles que ou nada fazem ou aquilo que fazem é como se nada fizessem
em favor da comunidade), consiga uma vida lauta e esplêndida sem fazer
nada ou em actividade supérflua [...]. (MORVS, 2006, p. 665).52
Como já fora dito anteriormente, a conduta do governante recai para a população. Daí a
ênfase para uma postura coerente e justa para quem governa. T.M. toma esse direcionamento,
50
Para Logan (1983, p.51) “A política jurídica inglesa não pode ser justificada por princípios morais ou
religiosos e também não pode ser justificada nas vantagens que deveria gerar (não se justifica nem pela religião,
nem pela moral, tampouco pelos resultados).” O próprio Estado Inglês permitiu que a doutrina cristã se
rebaixasse a seus caprichos e a tirania ganhasse o seu indevido espaço.
51
LAT154/ING155/FRA509.
52
LAT242/ING243/FRA622.
31
visto que a população, igualmente, apresenta vícios, fraquezas e se mostra sujeita a delitos.
Como o nosso autor mesmo expressa, quando no prefácio questiona se vale a pena se
empenhar em publicar a Utopia diante da postura dos seus concidadãos. A instabilidade da
conduta dos homens é preocupante para o nosso autor. Observa que essa condição se dá pela
ignorância das letras; pela rejeição do que é novo; pelo apego ao que lhes agrada; e pela não
aceitação a algo diferente. A instabilidade é tanta que T.M. diz:
Entretanto, para dizer a verdade, nem eu próprio ainda decidi bem comigo
mesmo se irei por fim empreender a publicação. Na realidade, tantos são os
gostos humanos, tão remissos os intelectos de alguns, tão ingratos os
sentimentos, tão irracionais os juízos, que me parece bastante mais cordato
pôr-me do lado dos que vivem despreocupados e satisfeitos, dão largas à sua
natureza, sem se matarem com cuidados de publicar algo que pudesse ser de
utilidade ou de recreio para outros, que ou desdenham ou são mal
agradecidos. Há muitos que ignoram as letras, muitos que as menosprezam.
Um bárbaro rejeita como difícil tudo aquilo que não é completamente
bárbaro. Os presumidos de sábios menosprezam como trivial tudo o que não
cintila com palavras fora de uso. Alguns apenas gostam de velharias, à maior
parte só lhes agrada o que é deles. Este é tão carrancudo que não admite um
gracejo, aquele é tão insípido que não suporta uma ironia; tão entupido têm
alguns o nariz que qualquer odor lhes causa receio, como teme a água aquele
que foi mordido por um cão raivoso; tão instáveis são outros que aprovam
uma coisa, se estão sentados, e outra, se estão de pé. (MORVS, 2006, p.
383).53
Direciona sua crítica aos abastados, os grandes proprietários de terras que garantem sua
vida sobre as costas dos trabalhadores, daqueles que derramam o suor para manter o fausto de
53
LAT036/ING037/FRA353.
54
LAT128/ING129/FRA473.
32
seus dominadores. T.M. faz uma crítica a esse modelo social, oneroso para os desfavorecidos
e privilegiados para os que detêm o poder. E conclui: “Com isso descobrir-se-á que são menos
do que se pensara aqueles cujo trabalho produz todos os bens de que os mortais se servem.”
(MORVS, 2006, p. 507).55
O tecido social vivido por T.M. é de esperteza de quem toma o poder às mãos, em
detrimento dos que mantinham a nobreza e a realeza como fardo socioeconômico. A sua
perspectiva utopiana de uma nova civilização não integra em seu interior essa condição
nefasta e nem admite uma postura de parasitismo de nenhum de seus habitantes. Assim, ele
acrescenta: “observe-se agora entre todos estes, quão tão poucos desempenham profissões
indispensáveis.” (MORVS, 2006, p. 507).56
Uma vez que a Utopia é uma obra de restauração social, T.M. tenta construí-la à
imagem dos valores cristãos. Soma, aos valores e critérios racionais, aqueles inerentes a
Cristo. Por isso, ele propõe uma interpretação mais fiel possível aos preceitos cristãos, haja
vista que foram muitos os que, distorcendo a mensagem cristã, acabaram por “permitir os
homens a se sentirem mais seguros nas suas maldades” (SURTZ, 1957a, p. 177). Isso se
conceitua, na perspectiva moreana, como sinal de hipocrisia social.
Há de se obter o ajustamento das perversões, tudo no molde das palavras de Cristo, pois
somente assim se obtém a garantia de uma sociedade purificada da maldade, pelo esforço e
pela ascese espiritual. Morvs (2006, p. 473)57 assim prescreve:
T.M. faz essa reflexão em vista do que reconhece de seu contexto histórico-político.
Para ele, segundo Surtz (1957a), os poderosos não medem sua devoção religiosa pela regra de
Cristo, mas pela sua própria predileção emocional. Aqui ele indica um ensinamento que vai
de encontro ao governo corrupto, ilícito, e diz que, para esses governantes, “viver
55
LAT128/ING129/FRA473.
56
LAT128/ING129/FRA473.
57
LAT098/ING099/FRA434.
33
Na perspectiva de Baker-Smith (1991, p. 44), T.M.59 não possuía simpatia para com os
mitos predominantes de então, envolvendo honra e cavalheirismo. O ideal de cavalheirismo
estava se tornando um ideal cada vez mais literário, preocupado mais com brincadeiras de
guerra do que com as verdadeiras condições de um campo de batalha. Ou seja, T.M. tece uma
crítica aos ritos, sinais e simbolismos quando estes assumem a pretensão de essenciais à fé
estabelecida no sacrifício e na memória daquele que foi ao extremo da dor e doação. Segundo
Baker-Smith (1991, p. 44), a sociedade estava “no caminho rumo à esclerose institucional, ou
seja, o parecer estava se tornando mais importante do que o ser”.60
58
A crítica que se faz é que as paixões e os vícios dos que governavam estavam acima dos valores cristãos e as
verdades da fé sucumbiam diante dos interesses pessoais e obscenos. Erasmo de Roterdã também tece uma
crítica a respeito, e desde suas primeiras publicações era radicalmente contra o absurdo das pessoas que tentavam
dobrar a moralidade de Cristo para a vida dos homens e não o inverso. (SURTZ 1957a p.178)
59
Como também Erasmus.
60
Ou talvez o “parecer” só fosse possível através do “ter”, pois “tendo” se parece “ser”, assim se antecipa a
dualidade que vivemos hoje em que questionamos o “ter” do consumismo predominando sobre o “ser”.
61
Na análise de Baker-Smith (1991, p.216): “A natureza humana não pode ser mudada sem uma reforma das
instituições, mas instituições não podem ser reformadas até que a natureza humana mude”. Isso serve de base
para uma reflexão feita posteriormente pela revolução social feita por Durkheim e Weber, que admitiam a
34
Nesse trecho, T.M. dá ênfase à sua perspectiva política e moral de sua sociedade
nascente. A garantia de sobrevivência e de manutenção da vida é de direito no Estado,
instituição legítima de amparo ao homem.
Na perspectiva de Surtz (1957a, p. 176), essa observação de T.M. é rica porque permite
uma compreensão sobre as causas dos problemas sociais que estão no campo da moralidade:
Essa crítica sobre o elemento social da moralidade está presente em toda a tradição
filosófica, nos discursos posteriores a T.M.
validade da instituição sobre o sujeito e do sujeito sobre as instituições. Desse modo, uma análise moderna das
questões sociais que preocupavam esses cientistas sociais expressava uma herança sobre o destino dos homens.
62
LAT066/ING067/FRA394.
63
LAT054/ING055/FRA378/POR417.
35
todas as coisas serão medidas em termos de valor monetário, e a justiça será distorcida para
gratificar o pequeno número de cidadãos ricos.64
64
Na Política de Aristóteles, o homem, quando perfeito, é a melhor das criaturas, mas, se ele estiver isolado da
lei e da justiça, ele é a pior de todas. (LOGAN 1983, p.153). Para Platão, governantes egoístas predariam sobre o
resto da comunidade, o que os obriga a terem tudo em comum. T.M. compartilha a mesma visão pessimista da
natureza humana que Aristóteles e Platão, e sugere também a remoção da oportunidade de acúmulo egoísta que é
um dos motivos do comunismo utopiano ser universal. Para Logan (1983, p. 209), o argumento platônico para a
inibição do egoísmo de uma classe governante é relançado na Utopia como um argumento para a necessidade de
comunidade da propriedade, a fim de assegurar justiça distributiva. T.M. afirma que com a igualdade de
distribuição todos os homens têm a abundância de todas as coisas, trazendo ordem para a sociedade, enquanto,
onde houver propriedade privada, haverá o desmando.
65
LAT244/ING245/FRA626.
66
LAT102/ING103/FRA (texto não encontrado no Francês).
67
LAT100/ING101/FRA437.
36
Logan (1991, p. 133) acrescenta que, na perspectiva de T.M., “uma das grandes
patologias sociais é o luxo e o desperdício, pois o excesso pode ser tão danoso quanto a
deficiência”.
68
LAT100/ING101/FRA438.
37
Para Logan (1983, p. 134), a intenção de T.M. é demonstrar que existem meios para
“facilitar o alcançar da felicidade pelos seus cidadãos, [e que este] deve ser uma organização
política que possibilita a todo tipo de homem estar o seu melhor e viver felizmente.” Ou seja,
a nobreza da vida no desfrute da reputação, do prazer, erradicando toda existência de dor e do
mal. Baker-Smith (1991, p. 203) acrescenta que é uma tentativa de concentrar os homens no
estabelecimento do bem comum, constituindo uma das características próprias dos utopianos.
Desse modo, Logan (1983, p. 51) diz que: “a política jurídica inglesa não pode ser
justificada por princípios morais ou religiosos e nem pelos resultados.” Pode-se dizer que
princípios, morais e religiosos é que dão resultados, é que justificam uma política jurídica.
Assim, a proposta jurídica moral é da vivência prática dos critérios que T.M. determina como
válidos para a comunidade utopiana. Ele comenta que: “a forma mais prática, ou como se
diria na atualidade, científica de se curar sintomas sociais como crime ou guerra é assumir as
ações realísticas necessárias para aliviar ou eliminar as suas causas”. (LOGAN, 1983, p. 57).
Na análise do tema em evidência, para Logan (1983, p. 55), Raphael encontra as causas
básicas do roubo (criminalidade), não no mau caráter dos ladrões (criminosos)
individualmente, mas nos defeitos do sistema social. A Utopia mostra claramente que não se
pode trabalhar com a parte sintomática dos problemas sociais sem enfrentar as causas; as
verdadeiras soluções assumem a forma de mudanças legais e institucionais designadas a
eliminar as causas. Compreende-se, portanto, que questões delituosas não podem ser
enfatizadas na ordem individual. Problemas sociais são decorrentes de injustiças sociais e
podem ser percebidos através de uma análise racional. Todo o Livro I da Utopia mostra
claramente as origens dos graves problemas sociais que acometem a Europa.
Para Logan (1983, p. 54), a proposta de todo Livro I revela a origem dos graves
problemas que acometem a Europa do Séc. XVI e que, por sua vez, não devem ser vistos de
forma isolada, mas dentro de um contexto maior, mais social.
2.1 A Razão
Na análise de Surtz (1957a, p. 06), “a Utopia é uma cidade filosófica. Uma criação da
razão humana sem a ajuda da revelação divina”. E os utopianos acreditam na possibilidade da
revelação divina, apesar de terem conquistado a cidade perfeita somente através da razão. A
distinção entre a razão e a fé não é tão gratuita quanto se pressupõe, pois T.M. deixa clara a
distinção explícita entre a razão natural e a religião revelada. Os utopianos acreditam que, a
não ser que uma religião seja mandada do céu e possa inspirar no homem uma opinião mais
sacrossanta, não há nenhuma que seja superior às buscadas pela razão humana. (SURTZ,
1957a).
Baker-Smith (2006) afirma que a temática sobre a formação de uma civilização racional
é institucional. A Utopia incorpora a consciência de que na política princípios gerais
normalmente operam através de estruturas institucionais específicas, e as recomendações
reformadoras de TM são dirigidas a uma mudança institucional. Encontra-se, nesse sentido, a
compreensão de que uma sociedade construída pela razão deve incorporar em suas
instituições critérios morais e políticos no mesmo nível da dimensão racional.
Desse modo, a prescrição de uma sociedade moral e política, segundo T.M., perpassa
pela harmonia não só do que é prudente e moral, mas, também, do que é prudente e cristão,
cujas instituições devem ser tanto prudentes quanto santas. Somente pela razão, é que os
utopianos são levados a princípios éticos, e a Utopia é construída extrapolando estes mesmos
princípios para o âmbito da política. Em alguns aspectos importantes, a comunidade
puramente racional de T.M. age como se fosse uma comunidade perfeitamente cristã.
Permite à filosofia do prazer incluir não só serviço aos outros, mas até sacrifício, já que
estes trazem os prazeres elevados de benevolência moral e esperança de uma recompensa
após a morte. (BAKER-SMITH, 1991).
T.M. designa essa condição de vida de prazer de “apetência natural”, aquela que permite
tornar viável tudo o que é agradável, no usufruto dos sentidos e na reta razão. Nas palavras de
T.M., apetência natural “designa por prazer todo o movimento ou todo o estado de corpo, ou
de alma nos quais o homem, guiado pela natureza, se delicia em viver”. (MORVS 2006, p.
551).72 A “apetência natural”, como tudo o que é agradável por natureza, não se busca apenas
pelos sentidos, mas também pela reta razão.
69
T.M. proporciona aos utopianos uma crença estoica na solidariedade humana e uma crença platonista numa
divindade beneficente.
70
De cunho epicurista.
71
Herdado dos estoicos.
72
LAT166/ING167/FRA521.
41
Segundo T.M., os habitantes da Utopia definem a virtude como sendo viver segundo a
natureza, que é o mesmo que dizer que o homem foi ordenado por Deus a viver de acordo
com a forma do qual foi criado. Deixa-se conduzir pela natureza todo aquele que no desejar
ou no repudiar as coisas obedece à razão. A razão, por seu lado, antes de mais e em primeiro
lugar, inflama os homens ao amor e à veneração da divina majestade, e proporciona ao
homem a aptidão para a felicidade. Para T.M., a natureza convida e impulsiona o homem a
levar uma vida com o mínimo de ansiedade e com o máximo de satisfação, e, por afinidade de
natureza, a prestar assistência aos outros para alcançarem o mesmo. (MORVS, 2006).
Para Surtz (1957a, p. 37), T.M. afirma que todo prazer é, portanto, bom ou mal por
natureza e permanecerá assim para sempre. E observa que os utopianos chegam a essa
concepção mediante a aplicação de três normas negativas. Um objeto só pode ser prazeroso
por natureza se não: envolver a perda de um prazer maior; ter como consequência dor ou
arrependimento a terceiro: causar dor e sofrimento ao próximo. Dos três, os primeiros dois
são de importância especial e valor para o indivíduo, e o terceiro, para a sociedade.
Nas palavras de T.M., os utopianos consideram que a felicidade não se situa num prazer
qualquer, mas apenas no prazer bom e honesto. Todo prazer efetivamente se direciona para
esta felicidade como sumo bem. É através desta natureza, que na Utopia se considera virtuoso
seguir seus ditames, que se chega à meta final, que é a felicidade. (MORVS, 2006).
Para Surtz (1957a), os homens devem respeitar a natureza como a sua mãe, e jamais
recusar ou desprezar uma dádiva que ela colocou no mundo para o seu uso e deleite. Os
utopianos são insistentes a respeito do natural, e desprezar a beleza não é natural, como
também usar meios artificiais para aumentá-la. Os utopianos não se servem de meios
artificiais para expressar a beleza contida em cada homem. Como orienta T.M.:
42
Para a vida em Utopia é preciso compreender, segundo Surtz (1957a, p. 152), que a
natureza convida e impulsiona o homem a levar uma vida com o mínimo de ansiedade e com
o máximo de satisfação, ou seja, afinidade de natureza. Ela convida a prestar assistência aos
outros para alcançarem o mesmo; nunca, efetivamente, terá havido seguidor tão severo e tão
estrito da virtude e inimigo do prazer que aponte aos outros trabalhos, vigílias e austeridades,
sem ao mesmo tempo ordenar que se dediquem a aliviar a pobreza e os sofrimentos dos
outros.
De acordo com T.M., todas as ações conduzem ao prazer, e considera que todas as
nossas ações, e nelas as próprias virtudes, têm no ponto de mira o prazer como seu objetivo e
felicidade. (MORVS, 2006)
73
LAT162/ING163/FRA517.
43
Para Surtz (1957a), os utopianos consideram o prazer como toda noção ou estado do
corpo ou mente, em que o homem tenha naturalmente deleite. Mas deve-se atentar para o fato
de que muitas coisas que, embora sejam consideradas prazerosas, pela sua própria natureza,
não contêm prazer algum.
De acordo com Surtz (1957a), T.M. demonstra habilidade retórica acima de tudo no seu
uso do termo prazer (Uoluptas). Uoluptas no senso literal da palavra sempre tem transmitido
a ideia de gratificação do corpo ou dos sentidos. Na Utopia, uoluptas é atribuído a um tipo de
prazer muito elevado, e é definido como todo movimento e estado do corpo ou da mente em
que o homem tenha naturalmente deleite.
Surtz (1957a) afirma que T.M. usa, na obra, vários sinônimos para uoluptas, como:
iucunditas (pleasantness) delectatio (delight), laetitia (joyfulness), suauitas (sweetness) e até
commoda (interesses). Tanto fazendo o seu prazer (uoluptas) abraçar os prazeres do corpo e
da alma, e identificando-o com seus sinônimos indiscriminadamente, T.M. astutamente torna
mais fácil corroborar que prazer é a essência da felicidade humana. Por isso, na atribuição do
termo prazer, para os utopianos, só pode haver ou prazer ou dor. Não há nenhum estado
neutro de sensação intermediária entre prazer e dor, ou uma coisa ou outra. A natureza do
prazer como bom ou mal é imutável.
Para Logan (1983), o governo verdadeiro seria aquele que buscava os verdadeiros
prazeres, no estabelecimento de que as leis educacionais, por exemplo, deveriam contemplar
44
nas crianças o repúdio aos falsos prazeres e o acesso ao verdadeiro saber, adquirido por bons
livros.
O projeto educacional dos utopianos inclui o exercício dos prazeres, em que um menor
não seja obstáculo para alcançar uma maior, e que não haja arrependimento ou dor como
consequência. Da mesma forma, nenhum utopiano deve comprometer o outro ao perseguir um
prazer que é almejado.
Na percepção de Logan (1983, p. 153): “deve se dar ao homem uma educação correta
para que esses instintos o conduzam a virtude, mas se educá-lo mau ele acaba no outro
extremo”. A satisfação dos desejos é algo inerente ao ser e pode ocupá-lo pela vida inteira.
T.M. exemplifica a alteridade dos utopienses que agradecem à mãe natureza pelo prazer
de dar aos filhos o comer, o beber, o coçar e o esfregar. Tais ações derivam dos favores da sua
própria natureza. A isso pode ser acrescido o conselho moreano que diz: “aquilo que não pode
ser transformado em benefícios, que tenha os seus malefícios reduzidos o máximo possível.”
(LOGAN, 1983, p. 116).
Para Morvs (2006, p. 549)74, não pode haver na comunidade utopiana nenhum benefício
particular que entre em choque com o estado e a condição da maioria:
Cuidar do interesse de cada um, sem violar essa lei, é sensatez; cuidar, além
disso, do interesse público é próprio da solidariedade. Mas apressar-se a
impedir o prazer alheio para garantir o seu é, em contrapartida, uma
iniquidade; pelo contrário, privar-se a si mesmo de alguma coisa, para juntá-
la à de outros é, em fim de contas, prática de humanidade e de benignidade,
que, nunca como nesse gesto, tanto compensa quanto dispensa. De fato, há a
compensação da reciprocidade; além disso, a própria consciência de ter
agido bem e a recordação do afeto e do bem-querer daqueles a quem se
prestou um benefício trazem ao espírito maior prazer do que teria o corpo
com aquilo que lhe foi retirado. Enfim (e aqui a religião facilmente
encontrará adesão em espíritos de bom assentimento), Deus compensa com
gozo imenso, que nunca terá fim, a troca de um prazer exíguo e sem duração.
74
LAT164/ING165/FRA518.
45
A deontologia do prazer para os utopianos passa a ser mais rigorosa do que qualquer
outro modelo. De acordo com as observações de Surtz (1957a), os resultados práticos desses
padrões de moralidade estabelecidos para os devotos do prazer acabam se tornando mais
rigorosos e elevados do que os estabelecidos pelos cristãos. Assim, a sociedade utopiana
apresenta-se por um lado austera, mas por outro hedonista. Veremos adiante como essa
concepção parece ser uma tradição reconhecida como forma de sociabilidade.
Para Surtz (1957a, p. 32), a relação entre prazer e virtude é decorrente da faculdade
racional pela qual um homem escolhe e evita prazeres e dores, que é a maior das suas
virtudes. É também a fonte de todas as demais virtudes, pois ensina que não podemos levar
75
Da mesma forma que Platão, os utopianos desprezam os falsos prazeres de riqueza e honra em comparação
com o deleite de conhecer a verdade e a realidade. (SURTZ, 1957). Reconhecendo que o hedonismo apresenta-se
como uma peculiaridade para a sociedade utopiana, é imperativo perceber como o prazer pode direcionar toda
uma comunidade. Dessa forma, é preciso reconhecer a herança que T.M. admite ter recebido da tradição
filosófica.
46
uma vida de prazeres que não seja também uma vida de prudência, honra e justiça. E também
não levar uma vida de prudência, honra e justiça que não seja também uma vida de prazer. A
maior parte de um prazer mental surge do exercício da virtude e consciência de uma boa vida.
O sacrifício de um prazer a fim de beneficiar o seu vizinho é mais que recompensado por uma
recompensa maior e tripla: “a aprovação da nossa consciência, a lembrança da gratidão de
quem recebe o favor e a firme esperança de uma recompensa futura”.76
Para Surtz (1957a), na perspectiva de T.M são três os prazeres do corpo: dois
relacionados à saúde e o terceiro a um deleite que inunda os sentidos com uma doçura
facilmente perceptível.
76 Na perspectiva de Logan (1983, p.170), é relevante perceber que aí finalmente TM deriva de Platão e
Aristóteles a ideia importante de que os vários prazeres podem ser classificados de acordo com a sua
importância, pois, na comunidade utopiana, há também uma hierarquia dos valores. Sobre os verdadeiros
prazeres e a melhor vida, Platão e Aristóteles compartilham com os utopianos a divisão de prazeres em diversas
categorias. A Ética, de Aristóteles, distingue entre os prazeres da mente e a dos sentidos e, como Platão, ele
acredita que ambas as formas de prazer são necessárias para a boa vida. A herança utopiana de Platão e
Aristóteles é a contemplação filosófica, para eles é o maior dos prazeres. T.M. reconhece que, enquanto em
Platão a contemplação filosófica da verdade é o prazer supremo, os utopianos asseguram que a principal parte do
prazer mental surge da prática das virtudes e da consciência de uma boa vida. Aristóteles, na sua Ética, afirma
que os vários prazeres podem ser hierarquizados de acordo com a dignidade da faculdade a que pertencem. O
que se oportuniza em Aristóteles é que se antecipa aos utopianos fazer a distinção entre prazeres naturais e não
naturais e também se explica que a doença e os hábitos podem fazer com que as pessoas achem que o não natural
é prazeroso.
77
No entendimento dos utopianos aqueles que acreditam que uma vida feliz está focalizada na satisfação da
fome, da sede e da coceira, com o alimento, a bebida e a coçação, vivem uma vida miserável.
47
mortem. Assim, a imortalidade da alma é mantida como uma fundação essencial para a
dignidade humana. Para os utopianos, a crença de Deus tem destinado a alma para a
felicidade, e depois da morte recompensas serão concedidas a feitos virtuosos e castigos serão
impostos para atos vergonhosos. A postura prática da felicidade dos utopianos é de que não só
projetam suas preocupações com a felicidade numa pós-morte, mas pressupõem o íntimo
envolvimento do divino com o humano; isso, por conseguinte, leva à crença de que o mundo é
regido por essa força divina, e não pelo acaso. A sociedade utopiana é a expressão da regência
da fé e da razão, num sistema ético sistemático.
A concepção social de Deus é uma condição de busca da felicidade dos utopianos. Para
eles, o conceito de Deus como o fim último que o humano alcança foi tratado aqui porque é
essencial para a compreensão da ideia utopiana de felicidade.
De acordo com a reflexão de Surtz (1957a), os utopianos discutem virtude e prazer, mas
o ponto principal da disputa é no que consiste a felicidade de um homem, se derivado de uma
única coisa ou de diversas coisas mais. A predisposição utópica é a de que o fim do homem é
a alegria ou beatitude. O ponto em questão aqui é: qual é o objeto dessa felicidade ou
beatitude? Salienta-se que toda essa controvérsia está centralizada e confinada a apenas dois
objetos: virtude e prazer. A escatologia dos utopianos é a perspectiva de que o homem já
alcançou na Terra os elementos para a beatitude, resumo de sua condição terrena.
Vemos isso quando nos deparamos com a própria perspectiva de T.M (2006, p. 585),78
que diz: “Os princípios [da religião] são do tipo seguinte: a alma é imortal e por benevolência
de Deus foi feita para a felicidade; depois desta vida, à virtude e às boas ações estão
destinados prêmios, aos crimes estão destinados castigos”.
78 LAT160/ING161/FRA514.
48
Desse modo, de acordo com Surtz (1957a, p. 36), os utopianos afirmam que, ou em
parte ou no todo, a felicidade do homem se encontra no prazer. As características que eles
exigem para o tipo correto de prazer são as seguintes: “A felicidade reside somente naquele
prazer que é bom e honesto por natureza, esta é a norma positiva”.81
79
LAT158/ING159/FRA513.
80
LAT162/ING163/FRA517.
81
Para Logan (1983), T.M. tem uma referência clássica grega quando lê que na Política de Aristóteles, a
felicidade, não importando se os homens a encontram no prazer, na bondade ou em ambas, pertence àqueles que
têm cultivado o seu caráter e mente ao máximo e mantido a aquisição de bens externos dentro de limites
moderados. Aristóteles expressa mais uma vida de ação virtuosa do que na sua Ética, e tal ação aparenta-se como
um componente importante quanto à contemplação filosófica. Aristóteles, na Ética, reforça que uma verdadeira
vida feliz é uma vida de bondade vivida na liberdade dos impedimentos e, enquanto na Ética a felicidade perfeita
é uma atividade contemplativa, na Política a quantidade de felicidade que cabe a cada indivíduo é igual à
quantidade da sua bondade e sabedoria e dos atos bons e sábios que ele efetua. Desse modo, a exemplo da
tradição filosófica grega, “a vida de maior prazer que, de acordo com os utopianos é a melhor vida, é, portanto, a
vida da virtude.” (LOGAN, 1983, p.174).
49
Desse modo, a própria natureza possibilita uma vida livre de cuidados, permeada de
alegria, na prática da solidariedade, em que todos vivem a virtude de viver com todos e para
todos. Nas palavras de T.M. se observa:
Importa não ser menos benevolente para si do que para os outros [...].
Efetivamente, quando a natureza nos convida a que sejamos bons para os
outros, ela mesma não iria mandar depois que fôssemos cruéis e falhos de
clemência para nós próprios. É, pois, dizem eles, uma vida agradável, ou
seja, o prazer, que a natureza nos prescreve como fim de todas as nossas
atividades; viver segundo este preceito da natureza, tal é a sua definição de
virtude. (MORVS, 2006, p. 547).82
Há entre os utopianos uma relação entre virtude e prazer. Entretanto, em que consiste
essa relação? A resposta é que a virtude é subordinada ao prazer. Todas as nossas ações,
incluindo as virtudes em si, se referem enfim ao prazer como sua finalidade e alegria. Mas
isso não é uma subordinação no sentido grosseiro. Ao contrário, a principal parte dos prazeres
da mente surge do exercício da virtude e da consciência de uma boa vida. Os utopianos
praticam a virtude porque eles presumem que o prazer está associado à realização de feitos
virtuosos e que uma boa consciência é fonte de gratificação84. Por isso, no ensino e na
instrução85, as palavras de T.M. são incisivas:
82
LAT162/ING163/FRA517
83
Erasmus, no seu Enchiridion, exclamava que o verdadeiro e único prazer (voluptas) é felicidade (gaudium)
numa consciência limpa.
84
Na relação entre a vida mais justa e a vida mais prazerosa, os utopianos pensam semelhantemente a Platão em
seu livro Leis, em que ele diz: [...] o ensino que recusa a separar o prazeroso do justo ajuda a induzir o homem a
viver uma vida justa e sagrada, de forma que qualquer doutrina que negue esta verdade se torna vergonhosa e
detestável, pois ninguém consentiria voluntariamente ser induzido a cometer um ato a não ser que envolvesse
como consequência mais prazer do que dor. (SURTZ 1957a, p.19).
85
Essas palavras do autor reforçam a ideia de que a educação utopiana, tal como proposta pelos teóricos gregos,
“tem uma preocupação tanto pela moral e virtude quanto pelos avanços no aprendizado.” (LOGAN 1983, p.200).
Para Surtz (1957a, p.48), T.M., inspirado nos escritos de Pico della Mirandola, afirma que o aprendizado e a
virtude são as coisas que se consideram e possuem mais valor do que a nobreza dos antepassados. E que “a honra
é a recompensa da virtude, e segue a virtude como uma sombra segue um corpo”.
50
A honra, de acordo com Surtz (1957a, p. 47), pode ser definida como “uma
manifestação externa de estima pelo valor de outro, seja por sua virtude ou sua autoridade.” A
honra só é derivada da virtude. Assim, uma pessoa pode ser honrada por conta da sua própria
virtude, como no caso de homens virtuosos, ou por conta da virtude de outro, como
governantes e sacerdotes, a que são dadas honras porque representam Deus e a comunidade.
Da mesma forma, homens ricos são honrados não por conta de suas riquezas, mas pela sua
posição destacada na comunidade. “O prazer que surge da satisfação de um desejo incomum
por sinais de respeito, quando independe a honra, trata-se de um engodo e não é natural nem
verdadeiro.”
Os utopianos têm uma reverencia significativa para com aqueles que ocupam cargos
públicos porque, para eles, “primeiro, honra é a recompensa da virtude; segundo, honra é um
incentivo à virtude, por isso, levantam estátuas de homens notáveis para prestar-lhes honras
pelas suas virtudes e que servem para incitar em todos a virtude.” (SURTZ, 1957a, p. 47).
A honra para os utopianos serve como uma função social de incentivo aos demais. A
imitação dos nossos antepassados virtuosos e nobres é o meio mais eficaz ao perseguir a
virtude. (SURTZ, 1957a, p. 49).
Por isso, de acordo com Surtz (1957a, p. 39), os utopianos encontram na honra e no
cuidado coletivo a verdadeira dignidade. Os utopianos consideram correto cuidarem de seus
próprios interesses e, mais ainda, cuidar dos interesses públicos também. Mas consideram
totalmente injusto privar o prazer de outrem em prol do seu próprio. Privar a si mesmo de
algo para entregar a outrem é um serviço amigável de humanidade e gentileza, e pode ser
considerado um ganho maior do que uma perda, porque: “a compensação se faz na forma de
86
LAT230/ING231/FRA606.
51
retorno de favores, oferecendo maior prazer à alma do que ao corpo que foi privado, e a
recompensa dada por Deus, em que um pequeno prazer é trocado pela alegria eterna”.87
Logan (1983, p. 182) explicita que a Utopia é uma referência à vivência do preceito da
igualdade entre os homens, pois a equidade social é veementemente reiterada. No entanto, o
sistema social, que na concepção de Surtz (1957a, p. 152) é um sistema comunista, parece
estar intimamente ligado a uma filosofia que se traduz no hedonismo utopiano.
87
Epicuro mesmo disse “que não é só mais bonito conferir do que receber um benefício, mas também mais
prazeroso, pois nada produz alegria tanto quanto a beneficência”. (SURTZ, 1957a, p.39)
88
Na leitura de Utopia, Surtz (1957a, p.151) afirma que, de todos os grandes autores gregos, o nome de Platão é
o que encabeça a lista de Raphael. É a República que os utopianos acham mais estimulante e proveitoso para os
seus princípios comunistas. Uma grande diferença entre a República e a Utopia é a forma de governo. No
primeiro caso, o sistema instituído é a aristocracia e no segundo, temos uma democracia livre de castas. (SURTZ
1957a, p.152). Para Logan (1957a, p.208) “as conexões mais interessantes entre a Utopia e os trabalhos teóricos
gregos estão na alteração ou rejeição do que seja a Polis ideal.” Uma dessas questões bastante marcante é a que
trata do comunismo. O comunismo platônico, citado na Republica, dos guardiões é bastante abrangente, pois,
além da propriedade, mulheres e crianças também são comuns. As demais classes citadas não são comunistas.
No livro Leis Platão ainda admite que o melhor estado seria completamente comunista, embora essa visão se
refira somente a uma classe pequena de cidadãos plenos. O comunismo é, na prática, demasiadamente exigente
para pessoas criadas e educadas como seus conterrâneos. De acordo com o livro Leis, as únicas instituições
comunistas são: as mesas em comum e as leis requerendo a distribuição gratuita de dois terços de toda a
produção agrícola para cidadãos e escravos.
52
adultério é severamente castigado e faz parte de uma campanha legal para apoiar a
monogamia.
Logan completa (1983) que, para alguns pesquisadores, T.M. não leva em consideração
a natureza humana como ela é, mas, sim, uma imagem idealizada, pois o comunismo só
funcionaria de fato se os homens fossem cristãos perfeitos. Baker-Smith (1991, p. 140)
acrescenta que:
A posição de TM a esse respeito, segundo Surtz (1957a), é que nem o direito natural e
nem o direito positivo divino (o Evangelho de Cristo) são a base da propriedade privada. Mas
a razão humana vê prontamente que a posse em comum é o sistema melhor adaptado à
natureza do homem. Os homens, portanto, dividem os bens do mundo por meio de acordos,
que são nada mais que a lei humana ou a lei pública.
89
Para Logan (1983, p.209) graças à natureza humana os homens são egoístas, e a propriedade privada é a maior
propensão ao egoísmo. Para Platão, por sua vez, governantes egoístas predariam sobre o resto da comunidade, o
que os obriga a terem tudo em comum. Nesse mesmo horizonte T.M. compartilha a mesma visão da natureza
humana que Aristóteles e Platão e sugere também a remoção da oportunidade de acúmulo egoísta, que é um dos
motivos de o comunismo utopiano ser universal. O argumento platônico para a inibição do egoísmo de uma
classe governante é relançado na Utopia como um argumento para a necessidade de comunidade da propriedade,
a fim de assegurar justiça distributiva. No final do Livro I, T.M. afirma que com a igualdade de distribuição
todos os homens têm a abundância de todas as coisas, trazendo ordem para a sociedade, enquanto, onde houver
propriedade privada, haverá o desmando. De acordo com Baker-Smith (1991, p.140): [...] a compreensão do
comunismo utopiano pressupõe conhecimento sobre o estado primitivo da natureza e da humanidade. Existe
uma distinção clássica romana entre o estado primitivo da natureza e a ascensão da vida humana civilizada.
53
Por outro lado T.M., segundo Surtz (1957a, p. 176), compreende que a avareza e a
ganância impõem a falta sobre a abundância da natureza, pois
[...] o que a natureza liberal tem dado para ser comum a todos, os homens
maliciosamente transformam em privado; o que ela tem feito visível e
acessível é carregado, trancado, guardado e mantido longe dos demais por
portas, paredes, ferrolhos, ferro, armas e leis.
Dessa forma, a ganância e maldade de uma minoria impõem a falta e a fome diante da
abundância da natureza e causa pobreza no meio das riquezas de Deus. Isso era condenável e
impraticável para a civilização utopiana.
Para Surtz (1957a, p. 50), à primeira vista, a Utopia pode fazer concluir que TM está
atacando aqueles que possuem títulos vazios de nobreza. No entanto, uma leitura cuidadosa
revela que o seu alvo é a riqueza, o que leva a um problema central da Utopia, que é o
binômio riqueza/pobreza. O sistema utopiano de comunismo envolve a abolição de dinheiro,
que costuma ser, por opinião pública, os verdadeiros ornamentos e honras de uma
comunidade.90 Na Utopia, todos satisfazem seus desejos contanto que trabalhem. Até
viajantes contribuem, com suas habilidades, antes de comparecer às refeições. Assim, “o
trabalho é a base do valor e a vida está de tal forma ordenada que o trabalho em tarefas
essenciais, como a agricultura, possui alta estima.” (BAKER-SMITH, 1991, p. 202)
90
TM anuncia que na Inglaterra de sua época a nobreza era nada mais do que uma classe de ricos.
54
Para fazer tal obra requisitou não apenas indígenas, mas (para eles não
considerarem que o trabalho era forma degradante) associou-lhes também
todos os seus soldados e por isso, com a repartição do trabalho por tanta
gente, a obra foi realizada com uma rapidez inacreditável; aos vizinhos (que
no início se riam por considerarem que era desvario) cativou-os pela
admiração e acabou com eles pelo terror. (MORVS, 2006, p. 489).91
Outro detalhe peculiar que Logan (1983, p. 214) destaca diz respeito à agricultura da
Ilha. Tendo em vista a rudeza e as privações enfrentadas pela classe de agricultores, ela possui
uma rotatividade a cada dois anos. Assim, ninguém é privado da vida na cidade, e a produção
agrícola é garantida.
91
LAT110/ING111/FRA450/POR489.
92
LAT130/ING131/FRA474.
93
LAT132/ING133/FRA478.
94
LAT128/ING129/FRA473.
55
O que garante que todos trabalhem o mínimo possível é que todos contribuem. Assim,
não se sobrecarrega ninguém. A questão da ociosidade possui limites na Utopia e existe uma
eterna fiscalização para evitar a preguiça. Outra questão á a inexistência de lugares dedicados
aos vícios, como tabernas, prostíbulos, entre outros lugares de corrupção e de encontros
secretos. Toda atividade misteriosa, oculta e fora do conhecimento de todos é mal vista, pois
“cada um sente necessidade de ficar à mercê dos olhares de todos, de se entregar ao trabalho
costumado, ou de admitir uma folga de trabalho que seja repouso honesto.” (MORVS, 2006,
p. 527)95
T.M. afirma que, ao aplicar esta forma de distribuição de trabalho, em que havendo
mais pessoas trabalhando se trabalha menos, a consequência é a abundância de todos os bens,
distribuídos equitativamente, condição esta longe da sua realidade do século XVI.
No que se refere à igualdade entre gêneros, o que diferencia o trabalho entre homens e
mulheres se encontra limitado principalmente pelas suas condições físicas.96 A autonomia da
mulher utopiana é considerável e não há distinção quanto à educação de meninos ou meninas.
“Na Utopia os sexos não são apenas duplicatas, e suas funções são cuidadosamente distintas.
Mas, nas áreas mais importantes da vida, naquelas conectadas com realização moral, existe
absoluta igualdade.” (BAKER-SMITH, 1991, p. 167).
95
LAT144/ING145/FRA494.
96
Mais uma vez, notamos características platônicas, referentes à igualdade sexual, estendidas aos guardiões no
campo de batalha, cujo efeito é aumentar a resistência ao inimigo, pois se trata de uma grande desgraça retornar
sozinho sem o companheiro ou companheira do campo de batalha.
56
De acordo com as considerações de Surtz (1957a, p. 39), T.M. reconhecia que as leis
que devem ser observadas cuidadosa e escrupulosamente são aquelas que tratam com a
partição e as comodidades da vida, ou seja, a substância do prazer. T.M. considera
[...] que há que respeitar não só os contratos celebrados entre privados, mas
também as leis públicas que por comum acordo foram aprovadas, tenham
elas sido promulgadas segundo a justiça por um príncipe ou tenha sido o
povo a fazê-lo, contanto que não seja sob a opressão de um tirano nem
devido a processo fraudulento, desde que esteja em causa a repartição de
facilidades de vida, que o mesmo é dizer, matéria de prazer. (MORVS, 2006,
p. 549).97
Assim sendo, o prazer tem sua matéria no bem-estar dos habitantes. Para Surtz (1975a,
p. 153), o fato de que os utopianos visualizarem as comodidades de vida como matéria do
prazer é extremamente importante para a compreensão da sua adoção e manutenção da forma
comunista de governo, já que aconselham e incentivam os homens a viver uma existência
feliz e livre de preocupações e a ajudarem os demais a uma existência similar.
Numa sociedade utopiana não há falta que caracteriza valor numa sociedade
capitalista. Onde não há propriedade o bem público assume o controle. Aqui,
pelo contrário, como nada existe que seja particular, é o bem público que se
toma a peito. Ora, aqui, em que tudo é de todos, até porque há o cuidado
de manter os celeiros públicos abastecidos, ninguém tem dúvidas de que não
virá a faltar nada do que seja necessário na vida privada. De facto, não há
distribuição malevolente das coisas nem alguém passa necessidade nem anda
na mendicidade e, embora ninguém seja dono de coisa alguma, nem por isso
deixam todos de ser abastados. (MORVS, 2006, p. 549).98
A falta da matéria do prazer pode criar egoísmo, porque toda preocupação torna-se
egoísta. “Certamente [...] quantos são os que não sabem que, se não se puser alguma coisa de
lado que lhes venha a ser útil, mesmo que o Estado viva em prosperidade, ficarão sujeitos a
morrer de fome”. (MORVS, 2006, p. 665).99 Assim, a preocupação consigo se torna mais
imperativa do que o bem-estar comum100.
Essas questões são tratadas por T.M., que diz que, seja na cidade ou mesmo no campo,
onde os habitantes vivem distantes uns dos outros, “nada falta para sua subsistência, tanto
97
LAT164/ING165/FRA518.
98
LAT240/ING241/FRA621.
99
LAT240/ING241/FRA621.
100
Estabelece-se aqui, a lei da autossuficiência utopiana que, segundo Logan (1983, p.194), se deve mais à
indústria dos seus habitantes do que às vantagens naturais do seu território. Estes defeitos sérios no território, que
não encontram precedentes nos exercícios gregos de melhor governo e que também não se encontram nos
análogos utópicos de Novo e Velho Mundo, foram incluídos, provavelmente, por considerações teóricas e podem
refletir uma consciência aristotélica de T.M. sobre as limitações que o fato coloca na teoria.
57
mais que é dos campos que vêm os viveres com que se alimentam os da cidade.” (MORVS,
2006, p. 525).101 Há uma ordem social, com a contribuição de todos, dos citadinos aos
campesinos.
Para Surtz (1957a, p. 39), contanto que leis justas sobre a distribuição e propriedades
sejam observadas e invioladas, os utopianos consideram correto cuidarem de seus próprios
interesses e, mais ainda, cuidar dos interesses públicos também. Mas consideram totalmente
injusto privar o prazer de outro em prol do seu próprio.
Desse modo, a matéria do prazer encontra sua vertente no campo social, na prática das
leis justas e no entendimento de que uma sociedade racional acontece na equidade social,
fazendo de todos responsáveis por todos.
101
LAT142/ING143/FRA493.
58
Para T.M. “é do príncipe que promana, como de fonte inesgotável, o caudal de bens e de
males para todo o seu povo”. (MORVS, 2006, p. 663).102 Sendo assim, cabe à autoridade
moral e política, bem como à integridade dos seus funcionários, o bem-estar ou a ruína de
uma comunidade. (MORVS, 2006).
3.1 O governo
Uma questão extremamente perturbadora para T.M. se encontra logo no início do Livro
Dois103, que trata da gênese da sua sociedade perfeita.
O autor deplorava a violência, mas reconheceu que a sua Utopia só seria iniciada pela
ação violenta de um conquistador, representado na obra pelo monarca Utopus. Dessa forma, é
difícil de determinar como implantar uma utopia sem a imposição da vontade individual na
coletividade. A desculpa de que seria para o bem dos habitantes conquistados não se justifica
em T.M. e representaria um argumento ético muito consequencialista para a filosofia moral
Utopiana. Se a implantação de uma sociedade utópica só se faz através da guerra, então a
102
LAT052/ING053/FRA373.
103
MORVS p.489//LAT110/ING111/FRA450.
59
Sendo assim, aquele que implanta um novo governo deve ser um oportunista, um líder
militar que aproveita a sua chance e obtém uma vitória militar, como a de Utopus sobre os
Abraxans, enquanto eles estavam distraídos pelas suas próprias discussões religiosas. Ao
invés de ser um rei no sentido tradicional, ele usou seu poder absoluto de conquistador para
impor um sistema político que impede qualquer atitude que leve à tirania.
O seu exercício de poder é de autonegação, pois ele libera o Estado para atender e
cuidar do coletivo, ao invés dos interesses elitistas minoritários para que um novo início seja
possível. “Na verdade, ele mistura o papel de autocrata e legislador105 para o estabelecimento
bem sucedido de um estado ordenado.” (BAKER-SMITH, 1991, p. 152). Ele afirma que
quando o poder supremo é combinado em uma pessoa com sabedoria e temperança, somente
aí a natureza gera a melhor das constituições com a melhor das leis.
De forma sutil, ele deixa entender que as pessoas providas de conhecimento e sabedoria
deveriam ser os conselheiros de governantes. Esta posição fica clara depois de Rafael falar a
respeito das suas viagens ao redor do mundo109 e da experiência que obteve de todas as suas
vivências. Dessa forma, ele faz uma espécie de modelo para o conselheiro, uma pessoa
conhecedora da diversidade humana pelo mundo e que saiba separar os conhecimentos sábios.
107
Amauroto foi estrategicamente escolhida por estar no centro da Ilha, porém, ela não é entendida como a
“capital”, visto que todas as cidades são rigorosamente iguais, inclusive em importância.
108 LAT118/ING119/FRA462.
109
O livro insinua que o primeiro a fazer a circunavegação do globo seria Rafael Hithloday.
61
(MORVS, p. 407).110 T.M dá uma rica orientação neste sentido ao expor o pensamento de
Rafael:
[...] se eu me levantar mais uma vez e porfiar em dizer que se dão ao rei
todos estes conselhos, mas que eles são desonestos e perniciosos e que não
só a sua honra, mas até a sua segurança está mais nas riquezas do povo do
que nas suas, se eu demonstrar que os cidadãos escolhem um rei para seu
bem e não para bem do rei, ou seja, com o objectivo de viverem
tranquilamente no seu trabalho e nas suas preocupações, livres de serem
maltratados, e que por isso ao príncipe pertence, sobretudo, cuidar que o seu
povo esteja em bem, mais do que ele mesmo, como é próprio do ofício de
pastor que, como tal, deve apascentar as ovelhas mais do que a si mesmo.
(MORVS, 2006, p. 465).111
Nos conselhos de como governar, T.M. (2006, p. 465)112 expõe que “a majestade de um
rei exige que ele exerça o poder não sobre mendigos, mas sobre um povo de homens
abastados e felizes”. Como já foi exposto, T.M. define o prazer e a felicidade como formas
citadinas de vida.
[..] havia o rei de dedicar-se ao reino dos seus pais, criar nele a maior
prosperidade possível, torná-lo o mais florescente de todos; ter amor pelos
seus e ser por estes retribuído, viver em unidade com eles, exercer o poder
com brandura e deixar os outros reinos prosperarem, uma vez que aquilo que
agora lhe coube é já mais que suficiente. (MORVS, 2006, p. 459).114
Assim, a ganância do rei seria não o de ampliar desmesuradamente o seu reino, vindo a
escorraçar-se depois, mas de possibilitar qualidade e excelência aos seus súditos. Dispor de
povo numeroso demais para ser governado não é uma lição idônea para provar a força e o
poder daquele que governa, mas, sim, as condições que garanta a todos uma mesma condição
social.
110
LAT048/ING049/FRA369.
111
LAT090/ING091/FRA426.
112
LAT092/ING093/FRA426.
113
LAT092/ING093/FRA426.
114
LAT086/ING087/FRA421.
62
T.M. orienta o rei a não acumular riqueza pessoal quando isto trouxer miséria para o
povo. Ele insiste em dizer que “de fato, este capital afigurava-se bastar, quer ao rei para se
opor a qualquer rebelião, quer ao reino para combater incursões inimigas. De resto, era
insuficiente para incentivar ambições alheias.” (MORVS, 2006, p. 469).116 Garantindo a
circulação de dinheiro para as transações diárias dos seus súditos e sendo obrigado a
compartilhar com a população o excedente do que possuía acima do estipulado pela lei, “não
haveria ele de buscar violar a lei. Tal rei seria odiado pelos maus, mas apreciado pelos bons.”
(MORVS, 2006, p. 469). 117
A orientação observada é que a questão financeira não deve levar a destruição, mas
proporcionar a todos segurança e comodidade. Por outro lado, T.M. (2006, p. 469)118
admoesta a fim de que o armazenamento de ouro e prata seja para a finalidade de gastar com
115
LAT146/ING147/FRA497.
116
LAT094/ING095/FRA429.
117
LAT094/ING095/FRA429.
118
LAT206/ING207/FRA574.
63
O acumulo de riquezas em ouro e prata pelo Estado, numa sociedade que é praticamente
autossuficiente e possui um sistema comunista, parece fora de propósito, mas é facilmente
compreendido que os metais valiosos representam uma segurança nacional, pois é livremente
usado para a guerra quando o Estado precisa defender seus interesses, seja para corromper
inimigos ou contratar mercenários. Os utopianos não se importam empenhá-los, tanto mais
que não passariam a viver menos à vontade, mesmo que aplicassem todo o aprovisionamento.
(MORVS, 2006, p. 469). 119
A guerra, no contexto utopiano, é exceção à sua regra moral em geral. Longe de seguir a
teoria da virtude, eles antecipam o consequencialismo que só viria séculos depois.120 Baker-
Smith (1991, p. 183), analisando a Utopia, acrescenta que é no seu trato com a guerra que os
utopianos são mais problemáticos. Apesar de desprezarem o ouro e a riqueza, eles fazem farto
uso destes bens contra o inimigo. A guerra, eles a consideram uma atividade subumana; não
há glória na guerra. Existe uma atitude anticavalheiresca, pois, sob todos os aspectos, a prática
de guerra utopiana viola todas as convenções mantidas pela ideologia do cavalheirismo. Nos
seus estratagemas mais sutis, eles usam a mais incavalheiresca de todas as armas: o dinheiro.
[...] obter aquilo que pretendem; aliás, se o tivessem antes conseguido, isso
teria evitado a declaração de guerra. Quando a natureza do conflito não
permite composição com os inimigos, eles reclamam vingança tão cruel
sobre aqueles a quem imputam o acontecido que o terror lhes retira
119
LAT206/ING207/FRA574.
120
Logan (1983, p. 215) chama a atenção para o fato dos utopianos serem radicalmente diferentes dos teóricos
gregos, especialmente de Platão, na sua visão sobre a guerra. Platão considerava a guerra entre as cidades gregas
como uma infeliz briga interna e doméstica [...]. Todos os que não eram gregos eram considerados inimigos
naturais a serem conquistados. Em qualquer tipo de guerra, quem se destacar na batalha merece recompensas
gloriosas. Aristóteles, por sua vez, no livro Politica, não possui o entusiasmo de Platão para a guerra, e observa
que ela não é um fim em si mesmo, mas um meio para a boa vida. Os motivos gregos que levam um homem a se
tornar um soldado, Logan (1983, p. 215) explica: “O treinamento militar não é feito para escravizar homens que
não merecem tal fatalidade e os seus objetivos deveriam ser: primeiro, impedir homens de um dia eles mesmos
serem escravizados; segundo, colocar homens numa posição de exercer a liderança. Liderança esta, direcionada
aos interesses dos conduzidos, e não o estabelecimento de um sistema geral de escravatura; e, terceiro,
possibilitar homens a se tornarem senhores daqueles que naturalmente merecem ser escravos (i.e. não-gregos)”.
Logan lembra outro teórico de cidade-estado chamado Maquiavel, que diz: “quando é absolutamente uma
questão de segurança do nosso país não há consideração de justo ou injusto, piedoso ou cruel, de elogios ou
desgraça.” (LOGAN 1983, p.235).
64
Para Logan (1983, p. 221), mesmo detestando a guerra, os utopianos guerreariam para
proteger seu próprio território, expulsar um inimigo da terra dos amigos, livrar um povo da
tirania e obter território para colonização. Os utopianos justificam suas guerras coloniais com
as leis naturais. Eles consideram uma causa justa para a guerra a recusa de promover a
reforma agrária por parte de nações vizinhas.122
Baker-Smith (1991, p. 184) nos revela uma questão muito controvertida que envolve
tanto a guerra quanto os recursos financeiros: o uso de mercenários pelos utopianos. Ao
contrário da sua valorização pela vida, os utopianos desprezam completamente a vida dos
mercenários que contratam para a guerra. Outro ponto significativo, levantado por Logan
(1983, p. 197), é que nos assuntos militares a República apresentou um precedente quanto ao
costume dos soldados utopianos de serem acompanhados pela sua família no campo de
batalha, uma prática justificada pelo fato de que qualquer animal luta melhor na presença de
sua cria.
121
LAT204/ING205/FRA573.
122 Postura que justificaria hoje as invasões de terra promovidas pelo MST, no Brasil, buscando uma reforma
agrícola.
123
O ideal socrático, presente na República, de pais, irmãos, filhos e mulheres, moldados juntos numa força
irresistível, é, certamente, a origem do arranjo utopiano.
65
T.M. defende que não há sentido numa guerra para o enriquecimento, visto que o preço
seria excessivo. Os utopianos consideram loucura, como também vergonhoso, qualquer
vitória cruenta, preferindo a astúcia derivada da razão, pois,
Para Logan (1983, p. 222), a Utopia mostra que todo assunto referente à guerra foge de
todo e qualquer sistema moral de igualdade e parece que, por se tratar de algo tão bestial,
envolve outro sistema moral: o consequencialismo, que visa aos resultados. Observa-se que os
resultados que são buscados seguem rigorosamente o princípio de que, se não há como
impedir o mal, que se minimizem os seus danos o máximo possível. Há, portanto, um caso de
confronto entre a deontologia do cavalheirismo europeu e o consequencialismo utopiano.
Atos impensados aos cavalheiros numa guerra seriam feitos tranquilamente pelos utopianos
visando a alcançar os resultados buscados. Como já citado, os utopianos em geral são
extremamente desprovidos de cavalheirismo medieval125, e mesmo a contragosto atribuem um
valor inferior à vida de todos os demais povos, inclusive a dos seus aliados.126
124
LAT204/ING205/FRA570.
125
Chivalry.
126
Talvez seja mais adequado afirmar que os utopianos colocam a vida dos seus acima de todos os demais. Para
Logan (1983, p. 215), os utopianos desconhecem os conceitos de inimigos e escravos naturais e consideram que
a guerra é uma atividade boa somente para animais e a encaram com a mais absoluta aversão. Eles consideram
infame a glória alcançada em guerra. Estas atitudes, que derivam dos estoicos, seguem o conceito de uma
fraternidade humana universal que os utopianos, tanto quanto os estoicos, derivam da razão. Quando os
utopianos são obrigados a guerrear, suas táticas são governadas por considerações humanitárias que os estoicos
aplicariam a todas as guerras, mas que Platão restringe a disputas internas e domésticas. Platão se opõe à prática
de devastar as terras e queimar as casas de inimigos gregos; da mesma forma, os utopianos não arrasam o
território do inimigo ou queimam sua colheita. Assim como os guardiões platônicos não consideravam a
população como seus inimigos, mas somente a minoria responsável pela briga, os utopianos sabem que gente
comum não vai para a guerra por sua própria escolha, mas pela loucura dos governantes. T.M. aceita alguns
princípios dos teóricos gregos, mas refina estes princípios formulando mais precisamente a relação entre as
metas do indivíduo e as metas da comunidade e, por reconhecer a inevitabilidade destes conflitos, aplica o
método do cálculo de prazer da ética epicuriana para a solução de tais conflitos.
66
chamam aqueles para quem estão lutando a favor e, depois, as forças armadas dos demais
aliados. Somente em última instância, adicionam um contingente de seus próprios cidadãos.
[...] nem por isso os tomam à sua parte, a não ser para protegerem as suas
fronteiras ou para escorraçarem os inimigos que tenham invadido os
territórios dos aliados ou bem assim, quando levados por sentimento de
comiseração, se propõem libertar da servidão e do jugo de qualquer tirano
algum povo oprimido pela tirania (fazendo-o, aliás, por filantropia).
(MORVS, 2006, p. 605).127
Tal decisão, porém, é tomada não somente de cada vez que uma pilhagem se
fez mediante incursão armada, mas também, e nesse caso com sentimentos
mais hostis, quando os seus homens de negócios, em qualquer povo, seja em
razão de leis iníquas, seja por violação imperdoável de leis boas, são objecto
de ataque, sob capa de justiça. (MORVS, 2006, p. 605).128
Buscando evitar a todo custo o envolvimento dos seus próprios cidadãos na contenda,
quando se torna imperativa a participação de utopianos, esses se mostram inimigos intrépidos
e determinados. A força do seu ataque aumenta com o passar do tempo, tornando-se mais
obstinada.
127
LAT200/ING201/FRA566.
128
LAT200/ING201/FRA566.
129
LAT212/ING213/FRA581.
67
A visão utopiana sobre a guerra é o inverso da ética cavalheiresca do seu tempo, que
desprezava a estratégia e honrava o derramamento de sangue.130 A arte da guerra utopiana,
não cavalheiresca, tem como premissa a ideia de que a honra e a glória cavalheiresca e os
métodos de guerras falsamente heroicos servem aos interesses de uma pequena classe de
homens decadentes, todos corrompidos por costumes violentos, príncipes tirânicos e alguns
dos seus nobres apoiadores.
130
Logan (1983, p.226) reflete que as táticas de guerra utopianas são perfeitamente consistentes com o pacifismo
de humanistas da linha erasmiana. Estes humanistas estavam profundamente impressionados pela crítica estoica
da ética marcial da Antiguidade, e eles rotineiramente aplicavam técnicas estoicas racionais que desbancavam
visões cavalheirescas das táticas e glória marciais da Idade Média.
68
Assim, o serviço público constitui uma necessidade para a comunidade utópica, mas, ao
contrário do costume europeu de associar cargos a pessoas de que se queira tirar algum
proveito próprio, para quem delega estes cargos, o costume utopiano seria o exato oposto.131
Isso porque T.M. adverte que “aquele que anda a cata de uma magistratura só ganha
frustrações com isso”. (MORVS, 2006, p. 597).132
Como os cargos são distribuídos de acordo com votação popular, secreta e universal,
com base nos méritos e popularidade de cada candidato, que se encontra absolutamente
proibido de fazer qualquer promoção pessoal ou sequer mostrar interesse no cargo, não é de
se admirar que os candidatos sejam sempre pessoas de alta estima da população, repercutindo
positivamente na relação com as autoridades. T.M. mostra claramente a enorme diferença
destas relações na Europa e na Utopia:
De acordo com pesquisas realizadas por Logan (1983, p. 151), um dos temas evidentes
em T.M. é a educação. Isto porque, como um bom humanista, a formação do ser humano era
uma prioridade na civilização utopiana. Desse modo, a educação caracterizava, acima de tudo,
uma necessidade.
Na perspectiva educativa, T.M., de acordo com Logan (1983, p. 200), afirma134 que não
há necessidade de tantas leis para cidadãos bem educados, o que reflete, na sociedade
utopiana, no fato de terem poucas leis, graças a uma população bastante educada.
131
Para Logan (1983, p.197), de Platão T.M. retira a regra de que aqueles que buscam funções públicas a
desqualificam para tal. Isso pode ser encontrado no argumento de Platão de que “aqueles que são capacitados de
governar, os verdadeiros filósofos, vão repudiar poder político enquanto que os moralmente inferiores sempre
vão ter a esperança de alguma compensação da sua própria inadequação de uma carreira política.”
132
LAT194/ING195/FRA558.
133
LAT194/ING195/FRA558.
134
E neste ponto se assemelha a Platão.
69
Este envolvimento pelo estudo condiz com sua filosofia do prazer, pela sua convicção
de que os prazeres da alma são superiores aos do corpo, e por estarem persuadidos de que,
entre os prazeres da mente, a contemplação da verdade traz verdadeiro deleite. O povo como
um todo é incansável na sua busca intelectual. Literatura é objeto de amor, porque é a fonte de
grande prazer. Há um enorme contraste com o desdém para o estudo da nobreza europeia,
conforme explicitado anteriormente.
educados, o que reflete na sociedade utopiana o fato de terem poucas leis, graças a uma
população tão educada”.135
Para Logan (1983, p. 202), este controle social, além das proibições legais, envolve uma
multidão de reforços positivos e negativos para encorajar o bom comportamento e
desencorajar o mau. Estes dispositivos, desenvolvidos para afetar o comportamento por um
apelo às emoções, refletem a concepção de que a natureza humana inclui um enorme
elemento não racional.136
Um traço humanista se faz mister em T.M., quando se observa seu interesse para com a
educação moral e o ensinamento das virtudes. O autor prioriza o conhecimento que se deve ao
homem ligado à formação do homem integral. Aqui, encontra-se a validade de uma reflexão
da postura filosófica moral e política, quando a civilização utopiana, além do conhecimento
das letras, traz inclinação ao conhecimento da formação ética e política, fornecendo
instrumentos para a construção de uma nova sociedade. Para tanto, assim se dirige T.M.:
135
Quando se trata de um bom governo, a educação ganha no cenário grego um tema evidente. Um exemplo
disto é que Platão e Aristóteles dedicam mais espaço à educação do que a qualquer outro tópico nos seus
exercícios sobre o melhor governo.
136
T.M. pode ter derivado seu interesse de controle social de Platão que explora a questão nas Leis.
71
Em estudos realizados por Surtz (1957a, p. 78), observa-se que a educação cuidadosa
das crianças é responsável pelas boas ideias dos utopianos. Uma vez implantados na criança
valores verdadeiros, estes permanecerão por toda a sua vida e serão proveitosos para a defesa
e manutenção do Estado.
Esta reflexão decorre da própria percepção que o texto de Utopia expressa quando
Raphael não hesita em responder que os utopianos formam suas ideias corretas tanto pela
educação, quanto pelo gosto do aprendizado e da boa leitura. “A diferença entre elas está no
fato de que a educação se aplica à disciplina e ao treinamento, ao passo que o aprendizado
abraça especialmente o conhecimento advindo de aulas, palestras ou livros.” (SURTZ, 1957a,
p. 78).
T.M. deixa claro que “entre as suas leis mais antigas se conta a de que ninguém pode ser
desconsiderado por causa da sua religião”. (MORVS, 2006, p. 541).139 Uma única pena é
prevista em lei, que é justamente para resguardar a estabilidade familiar tão importante nesta
civilização comunista, pois os que a rompem, traindo o vínculo matrimonial, são punidos com
a servidão mais grave. Quem se entregar a um envolvimento íntimo antes do casamento é
137
LAT230/ING231/FRA606.
138
Quando se trata de um bom governo, a educação ganha no cenário grego um tema evidente. Um exemplo
disto é que Platão e Aristóteles dedicam mais espaço à educação do que a qualquer outro tópico nos seus
exercícios sobre o melhor governo.
139
LAT220/ING221/FRA594.
72
punido com o impedimento de casar, e isso é considerado uma grande vergonha para o
malfeitor e principalmente para a família, que é acusada de não saber educar o membro
adequadamente nos costumes dos ilhéus. Existe uma questão a ser destacada:
[...] se uma das pessoas lesadas, apesar de a outra parte não o merecer,
persistir em afecto por ela, não lhe está vedado permanecer fiel à lei do
matrimônio, aceitando acompanhar o culpado nos trabalhos a que for
condenado; acontece, por vezes, que o arrependimento de um e o
acompanhamento empenhado de outro, ao induzirem o príncipe a ser
indulgente, conseguem restituí-los de novo à liberdade. Porém, ao que volta
a cair em falta, a pena de morte é o castigo a ser infligido. (MORVS, 2006,
p. 541).140
Os utopianos são mais severos nos castigos com os próprios ilhéus do que com os
estrangeiros, visto que todos tiveram acesso à educação de melhor qualidade; por isso, não
pode alegar desconhecimento das leis e costumes, além de terem tido melhores condições de
desenvolver o seu caráter.
Quando se aborda a temática das leis na Utopia, não podemos esquecer a eficácia e
aplicabilidade do sistema penal. T.M. deseja que o corpo legal tenha como função deter o
crime, reformar e reabilitar o criminoso e reparar o mal que fora acometido a alguma vítima.
(LOGAN, 1983).
140
LAT190/ING191/FRA554.
141
Convém a observação de que os utopianos só escravizam prisioneiros de guerra capturados nos conflitos em
que eles próprios participavam.
73
forma, a escravidão é encarada primariamente como uma condição penal, embora, para os
estrangeiros que são voluntários, ela possa se tornar benevolente.
[...] de corpo, são eles destros e robustos, de forças maiores do que a estatura
deixaria prever, ainda que ela não seja baixa. O seu solo não é
uniformemente fértil nem o clima é dos mais salubres, mas eles protegem-se
contra a temperatura mediante um regime alimentar apropriado, e com tal
solicitude cuidam da terra que em nenhum outro lugar haverá colheitas e
rebanhos mais reprodutíveis, nem corpos de homens mais vigorosos e menos
atreitos a doenças. Assim, poder-se-á admirar a diligência com que executam
os trabalhos que habitualmente fazem os lavradores, de tal modo que não só
uma terra um tanto ingrata por natureza é melhorada pela sua habilidade e
pelo seu trabalho. (MORVS, 2006, p. 565).144
142
A concepção didática do castigo é encontrada na obra platônica Leis.
143
Como também recomenda Platão nas Leis.
144
LAT178/ING179/FRA538.
74
Desse modo, condena toda forma de caçoar, rir e discriminar os desvalidos, como uma
crítica à sociedade em que vivia. Os esquecidos e humilhados socialmente não existiam no
contexto do reino e nem havia quem se preocupassem com eles.
A paridade sexual na sociedade utopiana também era uma peculiaridade, visto que o
espaço dado à mulher na Utopia era significativo, pois a ela era dada a mesma condição que
aos homens, até mesmo a habilidade militar para com o combate. (MORVS, 2006, p. 605).147
Caracteriza isto, portanto, uma inovação para a sociedade tradicional do tempo de T.M.
Baker-Smith (1991, p. 165) acrescenta ainda que o papel da mulher na vida utopiana
pode ajudar a revelar alguma coisa do seu caráter único. Nota-se um traço marcadamente
patriarcal no ordenamento da sociedade. Ao casar, as mulheres passam a conviver com os
maridos no domicílio deles, e elas participam de tarefas mais leves, como tecelagem,
trabalhos agrícolas, alimentação e cuidados maternos. Dentro da família individual, atendem
aos seus maridos, assim como os jovens atendem aos mais velhos. No final de cada mês, as
esposas fazem uma confissão de suas falhas aos pés do seu marido, como as crianças fazem
aos pés dos seus pais, numa versão secular de uma tradição monástica.
145
LAT178/ING179/FRA538.
146
LAT194/ING195/FRA557.
147
LAT200/ING201/FRA566.
75
Se tal costume para nós se torna objecto de riso e o censuramos por estulto,
eles, pelo contrário, admiram-se de que haja uma estultice tão grande da
parte de todos os outros povos a ponto de, quando se trata de comprar um
potro, em que a operação envolve pouco dinheiro, serem tão cautelosos que
recusam fazer negócio sem o verem em pêlo, depois de lhe retirarem a sela e
depois de lhe arrancarem todos os adereços, não vá acontecer que debaixo
das mantas se esconda alguma matadura, mas, quando se trata de escolher
cônjuge, em que a situação é de ficar acompanhado, a gosto ou a
contragosto, para um vida inteira, procedem com tamanha displicência que
deixam todo o corpo encoberto pela roupa e avaliam a mulher no seu todo
por um palmo mal medido (de facto não mais se vê que não seja o rosto) e
trazem-na para junto de si sem terem em conta o perigo, que é grande (se só
148
LAT136/ING137/FRA482.
149 Existe uma grande divergência em relação à proposta platônica na República, em que a comunhão dos bens
inclui a comunidade de parceiros. Entretanto, o costume de apresentar noivos nus uns aos outros antes do
casamento possui paralelo nas Leis platônicas, em que o dançar nu preenche a mesma função.
76
derem com ele depois), de quadrarem mal um com o outro. (MORVS, 2006,
p. 587).150
Todo utopiano sabe quem são seus filhos, mas as famílias nucleares são integradas nas
famílias estendidas de cada casa, que, em regra, são ligadas por sangue. Estas casas, por sua
vez, são integradas dentro de famílias maiores, encabeçadas pelos sifograntos (ou filarcos), o
que resulta em a ilha inteira ser considerada como uma única família. Esta elaborada
organização familiar é um dos meios pelos quais os utopianos se protegem dos possíveis
efeitos nefastos do seu igualitarismo.
Existem 6 mil famílias com uma média de 13 adultos em cada cidade, isto é,
78 mil. Se isto é duplicado no campo, então cada Cidade-estado possui em
torno de 156 mil adultos, e a Utopia possui 8 milhões e 424 mil adultos. Em
1516 a população de Londres era em torno de 60 mil e da Inglaterra 2
milhões e 300 mil, dos quais somente 300 mil residiam em cidades.
(BAKER-SMITH, 2006, p. 196).
T.M. redige uma série de orientações para a população utopiana, indo desde a
quantidade de habitantes que devem compor a ilha, pois o número de habitantes de cada
cidade deve ser mantido dentro da média predeterminada. Quando existem famílias
excedentes ou deficitárias, pessoas são deslocadas para compensar. Se, no entanto, exceder o
máximo estabelecido para a ilha, fundam-se colônias utopianas em terras estrangeiras, onde
houver terra improdutiva. Convém escutar do próprio autor suas ideias sobre a reforma
agrária:
150
LAT188/ING189/FRA550.
77
151
LAT134/ING135/FRA481.
152
Na sociedade europeia, os custos envolvendo a manutenção das moradias muitas vezes estavam acima das
condições dos moradores. O resultado é a degradação dos imóveis a ponto de inviabilizar o seu conserto,
necessitando demolir para construir outro a um custo maior.
78
T.M. também fez uma série de orientações, voltadas para o vestuário utopiano, de
maneira a revelar a condição em que cada habitante ocupa na ilha. As roupas são simples,
porém confortáveis, e são produzidas por cada casa. Quando necessitam, por motivo de
trabalho, usam artigos de couro, mas normalmente se vestem usando o linho e a lã sem
tingimento, com a cor original do tecido. Assim, ele diz: “quanto ao linho, ele reclama menos
trabalho e por isso o seu uso é mais frequente; mesmo assim, no linho só atendem ao candor,
na lã apenas olham ao asseio, não levando em conta a delicadeza do fio.” (MORVS, 2006, p.
507).153 Dessa forma, evitam os exageros muito comuns na Europa do tempo do autor, em que
nunca parecia haver o suficiente para se vestir:
Lembre-se que os utopianos julgam o valor de todas as coisas de acordo com sua
natureza e, já que roupas, por sua natureza, visam apenas à proteção e à modéstia do corpo, o
que estiver acima disto não é natural. Portanto, o deleite nos exageros apenas demonstra o
falso prazer.
T.M. faz com que a roupa de todos os utopianos seja do mesmo corte, com exceção de
masculino e feminino, solteiro e casado. Estas roupas persistem imutáveis através das
gerações. São agradáveis a vista, ajustadas para o livre movimento do corpo e adaptadas para
o frio e o calor. Enquanto que as roupas profissionais, feitos de couro, duram em torno de
sete anos, as demais vestimentas duram por volta de dois anos155.
A tradição cristã herdou dos hebreus uma predileção por um horário dispensado para a
alimentação e sempre reservou especial atenção para as refeições. T.M., herdeiro desta
153
LAT132/ING133/FRA478.
154
LAT132/ING133/FRA478.
155
“Os utopianos são como Lycurgus que, como Erasmus conta no seu Apophthegns, baniram a arte da tintura,
pois, enquanto a cor prazerosamente engana a vista, a natureza da coisa é corrompida.” (SURTZ, 1957a, p.46).
Surtz (1957a) continua afirmando que a única preocupação é com a limpeza do tecido, e nenhum valor é
atribuído ao tamanho do fio.
79
[...] as refeições do meio-dia são bastante ligeiras, as do fim do dia são mais
largas, pois às primeiras segue-se o trabalho, às outras sucede-se o sono e o
descanso da noite, que é considerado de bom efeito para uma digestão que
seja saudável. Não há jantar que passe sem música (58) e nunca falta uma
sobremesa sem alguma guloseima. Queimam-se aromas e espalham-se
essências, nada poupam que sirva para tornar agradável o convívio.
Efetivamente, por seu natural, são levados a pensar que nenhum tipo de
prazer é de excluir, contanto que dele não provenha qualquer inconveniente.
(MORVS, 2006, p. 563).156
Outra orientação significativa de T.M. é de que, depois que o encarregado dos doentes
retira a porção de alimentos prescritos pelos médicos, o restante seja distribuído
equitativamente pelas mansões, de acordo com a quantidade de pessoas de cada uma, “tendo-
se, contudo, em atenção o príncipe, o pontífice, os traníboros, bem como os embaixadores e
todos os forasteiros” (MORVS, 2006, p. 521)157, sem deixar de incluir os idosos, pois para
estes são reservados aquilo que não há como ser dividido igualitariamente a todos. Todos os
visitantes, referidos aqui como forasteiros, quando os há, possuem sempre acomodações bem
equipadas.
Os horários das refeições são ao meio-dia e no fim da tarde, e são anunciados por uma
trombeta de bronze. Todos, menos os acamados, se dirigem para o refeitório localizado na
mansão do sifogranto. Apesar de não ser proibido levar alimento para comer em casa,
ninguém dispensa a comodidade dos restaurantes onde, além de haver muita fartura, ainda
existe, no caso da refeição no final da tarde, por ser mais demorada, acompanhamento de
música. (MORVS, 2006).
As posições que cada um ocupa no refeitório dizem respeito aos seus cargos e a sua
idade. Destaca-se o Sifogranto com a sua esposa na companhia de um casal de mais idade,
quando não acompanhado do sacerdote e da esposa, caso haja um templo na área. Desta mesa
se tem a vista geral do refeitório. Nas demais mesas, sentam quatro:
156
LAT142/ING143/FRA493.
157
LAT140/ING141/FRA486.
80
devido ponham cobro a qualquer leviandade insensata dos jovens (já que
nada se pode fazer ou dizer que escape aos vizinhos, quaisquer que eles
sejam).” (MORVS, 2006, p. 563).158
Quanto à temática da saúde, T.M. não se refere a isto como algo relevante, visto que a
preocupação está com a vida de prazer. Se a condição do utopianismo é a da experiência da
vida saudável, falar de doença parece ser um desuso na ilha. No entanto, T.M. revela que
mesmo “sendo eles os que menos precisam de conhecimentos médicos, em parte alguma lhe é
dado maior crédito, até porque colocam a sua aquisição no plano das partes mais belas e mais
úteis do saber, já que lhes permitem perscrutar os segredos da natureza.” (MORVS, 2006, p.
575).159 Acreditam os utopianos que Deus, que na obra é comparado a um autor, revela a sua
criação para ser contemplada pelo homem, que foi o único a ser agraciado por esta capacidade
de admirar a obra divina. (MORVS, 2006).160
Os doentes são muito bem cuidados, “e não lhes faltam com nada que lhes possa servir
para restabelecer a saúde, seja em medicamentos, seja em dieta alimentar”. (MORVS, 2006,
p. 583).161 Os hospitais, mais parecendo pequenas vilas em tamanho, localizados fora da área
urbana, são bem equipados e repletos de funcionários capacitados. Revela-se aqui o altruísmo
cristão da prática da caridade e do cuidado com os fracos e os desvalidos. Para T.M., não há
como instaurar uma civilização sem o emprego destes conceitos humanistas, tão esquecidos
na sociedade do seu tempo.
Quanto ao trabalho na ilha, observa Surtz (1957a), como devotos da razão e do senso
comum, os utopianos seguem um raciocínio lógico e valorizam os prazeres da alma como os
mais importantes.
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Riquezas e honrarias nada significam para os utopianos, que desprezam estes falsos
prazeres, pois afirmam que nada se compara com o deleite de conhecer a verdade e a
realidade. Este é o motivo por detrás da decisão de reduzir as horas de trabalho ao máximo
para que os cidadãos possam ter o máximo de tempo para se dedicar a perseguir os
verdadeiros prazeres, pois “acreditam que todos os cidadãos devem se libertar do serviço
corporal para alcançar a liberdade da mente, é disso que eles acreditam que consiste a
felicidade desta vida.” (SURTZ, 1957a, p. 62).164
Na Utopia, todos satisfazem seus desejos, contanto que trabalhem. Até viajantes devem
contribuir, com suas tarefas costumeiras, antes de serem alimentados. Assim, o trabalho é a
base do valor, e a vida está de tal forma ordenada que o trabalho em tarefas essenciais, como a
agricultura, possui alta estima na sociedade utopiana.
Mencionar a temática de religião significa dizer que é algo que reúne a instância pública
e a efetivação do Estado. Os utopianos dispõem da condição pública da religião, em que todos
exercem a sua confissão de fé amparada pelo Estado (SURTZ, 1957b, p. 189).165
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164
Baker-Smith (1991, p.202) relaciona a condição do trabalho na Utopia com o dinheiro, o que revela o quanto
ele pode ser objeto que corrompe a dignidade humana na ilha, à luz das investigações que realizou sobre T.M.
Dinheiro é o meio pelo qual uma comunidade natural é corrompida para um sistema artificial, em que os ricos
controlam em benefício próprio. Numa sociedade em que dinheiro, um mero cifrão, substitui o valor intrínseco
das coisas, distorções fundamentais se tornam possíveis.
165
Para Baker-Smith (1991, p.172) “A crença na alma, conforme os conceitos platônicos, demonstra que os
utopianos são platonistas florentinos. Este aspecto da influência de Platão era particularmente proeminente no
início do Século XVI.” Surtz (1957b, p.49) complementa: “Aeneas Silvius declara que os príncipes filósofos,
principalmente Sócrates, Platão e Aristóteles, possuem as mesmas verdades: eles acreditam nas mesmas coisas
que os cristãos a respeito do governo do mundo, da imortalidade da alma, e a respeito de Deus”.
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acreditam os utopianos que nenhuma religião pode ser fonte ou ocasião de danos ou maus
tratos.
Para Surtz (1957b), a distinção e a relação entre razão e revelação fornecem a base para
a interpretação humanista da Utopia, pois os humanistas da época acreditavam numa força
inata e natural da verdade, pois nada é mais poderoso que a verdade. Isso significa dizer que
os utopianos são livres para manterem qualquer outra verdade religiosa, contanto que eles
acreditem na existência e providência divinas e na imortalidade da alma humana.166 A crença,
no entanto, tem que satisfazer duas condições: primeira, ser fundamentada num argumento
racional; e, segundo, não conduzir a uma vida amoral.
166
Recorda-se que esta é a condição sine qua non para a moralidade utopiana.
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Mais adiante (SURTZ 1957b, p. 49), relaciona as verdades básicas que, de acordo com a
lei de Útopos, cada utopiano sensato defende. Primeiramente, a existência de Deus é
pressuposto e, implicitamente, contida nesta lei. Todos os utopianos acreditam na existência
de um ser supremo, mas discordam na sua identidade. Em segundo lugar, há a crença de que
Deus se comporta em relação ao homem e ao universo com uma providência amável. Em
terceiro lugar, a crença dos utopianos sensatos na imortalidade da alma humana. Por último,
como um importante corolário, a fé na providência, pois é necessário acreditar na retribuição
futura para a alma imortal.
Há uma evolução religiosa em Utopia, pois Surtz (1957b) observa que a discussão dos
utopianos sobre a vida boa dos mortos possui duas finalidades: primeiro, estimula os vivos no
exercício da virtude; e, segundo, serve como forma de veneração que agrada aos mortos. Eles
acreditam que os mortos estão presentes quando se conversa a respeito deles. A razão para
isso é que os mortos podem andar por onde querem e não são mal agradecidos às boas
companhias que tiveram em vida. Homens bons, acreditam os utopianos, depois que morrem,
possuem um incremento no seu amor e caridade.
Desse modo, podemos verificar que a religião utopiana mostra uma tendência evolutiva
que parte de cultos específicos para uma formulação mais intelectual do divino. Só
gradativamente, estão eles abrindo mão da superstição e compartilhando de uma compreensão
intelectual de Deus em comum. O que Raphael descreve é a emergência de um sistema de
teologia natural que ascende às imagens restritas de seitas em particular, por isso, não há
estátuas nos seus templos. (BAKER-SMITH, 1991).
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CONCLUSÃO
O presente trabalho teve por objetivo defender a existência de uma filosofia moral e
política utopiana. Como toda filosofia moral e política, o ponto inicial se faz através de uma
leitura crítica de uma situação histórica, seja no presente ou no passado. Com os elementos
extraídos dessa visão, idealiza-se como aquela situação deveria ser, propondo soluções para
os problemas observados. Além da crítica e do dever-ser, todo estudo da moralidade, seja
individual ou coletiva, deve possuir uma fundamentação filosófica.
A crítica está concentrada em duas questões elementares: uma individual, que é o falso
prazer; e a outra, coletiva, que promove a desigualdade. Ela se faz não somente no repúdio a
atos nefastos cometidos na busca de falsos prazeres, mas também na flagrante demonstração
da desigualdade que imperava na Europa.
Na crítica aos governantes, T.M. rejeita a predominância dos interesses pessoais sobre
os coletivos. O pensamento corrente à época era de que os súditos foram dados por Deus para
o desfrute e a realização pessoal dos governantes, ou seja, a população era apenas os meios
para se atingir os fins do regente. T.M. inverte esta ordem perversa, transformando a
população no verdadeiro propósito de se governar.
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A crítica feita aos nobres também se aplicava ao clero, detentor do mesmo status de
nobreza. T.M recusa a exploração dos protegidos e o desrespeito à justiça, que atentava
somente para os seus próprios interesses, relegando a população a um segundo plano.
Por fim, mister se destacar a importância da utopia moreana. A partir de tão singela
obra, cunhou-se um termo, fundou-se um gênero que permeia as ciências humanas e
construiu-se uma base para o socialismo, comunismo e comunitarismo contemporâneos. Em
quase cinco séculos de existência, continua oferecendo soluções para os graves problemas
enfrentados pela sociedade até os dias atuais.
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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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