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O lugar do negro em Juiz de Fora-MG:

artigo
segregação ambiental, espaço e raça

The place of the Negro in Juiz de Fora-MG:


environmental segregation, space and race

Ana Claudia de Jesus Barreto*

Introdução No interior dessas discussões, perpassa


a condição da representatividade da popu-
A discussão em torno das questões es- lação negra, seja no mercado de trabalho,
paço e raça tem crescido ao longo dos anos, na renda, na moradia, seja na escolariza-
apesar de ainda ser uma temática marginal, ção. Contudo, a discussão que por ora se
devido a alguns autores menosprezarem efetua é em torno do lugar do negro na
a segregação por raça. Alguns debatem a cidade e, acima de tudo, sobre como esse
segregação racial determinada pela inser- lugar é construído socialmente em repre-
ção na classe social, ou seja, a segregação sentação às estruturas sociais. Os padrões
racial existe porque há muitos negros po- de ocupação nas cidades revelam que tan-
bres (VILLAÇA, apud FRANÇA, 2010). Já a to a desigualdade social quanto a segre-
pesquisa de Edward Telles (2004), demons- gação residencial têm cor e endereço. Por
trou que a segregação residencial com base isso, a discussão de espaço e raça se faz
racial não pode ser explicada somente pelo necessária, cada dia, para desvendar pro-
status socioeconômico, pois outros fatores cessos sociais que ratificam a condição do
devem ser levados em consideração, já que negro, e o seu lugar, determinada por um
segregação no Brasil é moderada em com- conjunto de fatores, entre os quais o ra-
paração à segregação entre brancos e ne- cismo enquanto sistema que inferioriza o
gros em várias cidades dos Estados Unidos. negro com relação ao branco.

* Doutoranda em Serviço Social Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ. Atualmente coordena o
Curso de Serviço Social da Universidade Estadual de Minas Gerais - UEMG (UEMG/ MG/ Brasil). E-mail:
acbarreto@oi.com.br

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Além do mais, o negro enfrenta ainda campo. A equipe que executou a pesquisa
o racismo ambiental, ou seja, as injustiças de campo envolveu a autora deste artigo e
sociais e ambientais que recaem de forma 10 estagiários que faziam parte da Defesa
desproporcional sobre as etnias vulnera- Civil de Juiz de Fora, à época. Basicamente,
bilizadas (HERCULANO, s/d). Dessa forma, o questionário foi composto de duas per-
por estarem situadas em áreas precárias, es- guntas: 1) Qual a sua cor; 2) Qual o número
tão sujeitas aos desastres ambientais. Pos- de moradores na residência. O resultado da
to isto, além da segregação e da pobreza pesquisa revelou que a maioria dos mora-
acrescem-se a vulnerabilidade às enchentes dores situados em área de risco ambiental
e aos desmoronamentos de terra, demons- é negra, confirmando a ideia defendida
trando, conforme Maricato (1995), a ex- de que esses locais são uma analogia das
clusão social, que tem sua expressão mais senzalas, as quais guardavam sofrimento,
concreta na segregação espacial ou am- espoliação, discriminação e inferiorizarão
biental, configurando pontos de concentra- impostas pela elite branca composta por
ção de pobreza à semelhança de “guetos” proprietários fundiários.
ou imensas regiões, nas quais a pobreza é
homogeneamente disseminada e a segrega- 1. Segregação, espaço e raça: uma discus-
ção ambiental é uma das faces mais impor- são necessária
tantes da exclusão social, bem como é parte
ativa e importante. Ao discutir a segregação racial no Bra-
Sendo assim, este estudo é resultado de sil, alguns teóricos acabam negando a sua
uma pesquisa realizada em 2010, na cida- existência, justificando que a diferença está
de de Juiz de Fora-MG, nas áreas de ris- no fator renda que determina a condição
co ambiental, a partir da qual foi possível para consumir a cidade, ou seja, a partir
constatar que essas áreas são segregadas do momento que o cidadão independente
racialmente, ou melhor, essas áreas são, da sua cor tem um rendimento que possa
em sua maioria, ocupadas pela população adquirir uma moradia nos bairros de mé-
não branca, ratificando, assim, a condição dia e alta classe social, nada o impede de
subalterna e precária que esse grupo étnico comprar. Isto porque diferentemente dos
-racial se encontra na ocupação do espaço Estados Unidos, o Brasil não tem uma le-
urbano. gislação que impõe a separação residencial
A pesquisa foi realizada durante dois entre as classes sociais.
meses, em 42 áreas identificadas como Contudo, apesar da inexistência da lei
áreas de risco ambiental. O recorte espa- segregacionista, outros fatores que contri-
cial foi o bairro Dom Bosco, com vistas ao buem para a segregação racial no Brasil,
aprofundamento sobre as injustiças sociais precisam ser levados em consideração. Essa
e ambientais que recaem sobre as etnias discussão foi levantada por Telles (2004) e
mais vulneráveis, por ser um bairro de alta apresentada em Significado da raça na so-
concentração negra e estar situado numa ciedade brasileira.
área de valorização imobiliária. Ao examinar o caso brasileiro, Telles
Foram utilizadas fontes primárias e se- afirma que a segregação racial no Brasil
cundárias, mapas de risco ambiental elabo- pode ser maior do que se pensa, porém, é
rados pela Defesa Civil e uma pesquisa de preciso avaliar a natureza e os graus de se-

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gregação no Brasil, bem como as implica- aumento não significa que estavam mo-
ções nas relações raciais. rando adequadamente nas regiões centrais.
Pelo contrário, encontravam-se nas regiões
Minha alegação principal é que a segregação pobres e periféricas das cidades.
racial no Brasil não é auto-evidente e requer A pesquisa de Telles demonstra que tan-
uma mensuração sistemática. Além disso, as to em São Paulo como no Rio de Janei-
interpretações dos índices de segregação de- ro, no nível dos distritos (grandes áreas),
vem ser entendidas como um reflexo da his- a população branca está situada no centro
tória, não implicando pressupostos inerentes da cidade, enquanto a população pobre e
aos sistemas de segregação baseados na lei, negra situa-se, no caso da primeira cidade,
como os dos Estados Unidos e da África do “no primeiro anel da periferia sul-sudeste,
Sul, nem tampouco abraçando a ideologia de em vários distritos a leste do centro da ci-
democracia racial, que ofusca o entendimen- dade e nos anéis mais afastados da perife-
to real de como operam raça e classe no Bra- ria distante norte-nordeste” (TELLES, 2004:
sil. (TELLES, 2004, p.163) 165). No caso da segunda cidade, há uma
concentração de brancos na zona sul e a
No caso do Brasil, pela perspectiva de população não branca está nas favelas es-
Telles para entender a segregação por raça, palhadas em torno da região – a maior con-
é preciso levar em consideração a histó- centração de negros está na periferia, nos
ria e suas consequências e não abraçar a subúrbios, ou, como geralmente é referido,
ideologia racial, como foi estabelecida no na Baixada Fluminense.
Brasil a partir da interpretação de Gilberto Para Telles, embora a centralização da
Freire, compreendendo que a miscigenação classe média e a periferização dos pobres
no país promoveria uma harmonia entre as sejam a marca da estrutura das cidades da
raças. A imigração europeia em massa, a América Latina, não é o suficiente para en-
partir da metade do século XIX, definiu a tender os níveis de segregação residencial
distribuição racial nas regiões sul e sudeste nos núcleos urbanos. Para o autor, a exis-
que concentram uma população branca su- tência das favelas, em áreas valorizadas ou
perior à negra. Os brancos são minorias nas não, torna-se indispensável ao estudo da
regiões menos desenvolvidas. Entre 1890 segregação no nível dos bairros, como é o
a 1950 os não brancos diminuíram nessas caso das favelas do Rio de Janeiro. Tomar
regiões, provavelmente em decorrência da a centralização como uma forma urbana
competição da mão de obra imigrante que para descrever a segregação não é apro-
era mais qualificada e a preferida pelos priado para “descrever as áreas metropoli-
proprietários rurais e comerciantes. tanas especialmente complexas no Brasil”
A partir de 1950, passa a ocorrer uma (TELLES, 2004, p. 166). Até mesmo porque
imigração vinda da região nordeste para a centralização é uma herança do período
o sul e sudeste, em função do desenvolvi- colonial, das cidades anteriores ao século
mento industrial, ocorrendo um aumento XX, quando ainda não existia uma tecno-
de pretos e pardos levados pela expectativa logia avançada, disponibilidade de carro e
de conseguirem empregos. Passa-se, en- a construção de edifícios comerciais.
tão, a ter um aumento significativo de não Para medir a segregação em sua pesqui-
brancos no meio urbano. No entanto, esse sa, Telles utilizou o índice de dissimilarida-

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de, que mede a uniformidade de distribui- da Baía de Todos os Santos, no chamado Su-
ção dos grupos sociais no espaço. Chegando búrbio Ferroviário, em São Caetano, Valéria
à conclusão, a partir dos dados levantados, e Liberdade, dividindo o espaço com áreas
que a segregação racial no Brasil é mode- que concentram trabalhadores de subsistên-
rada com relação aos padrões dos Estados cia em Salvador e nas suas franjas (BARRE-
Unidos e que a segregação residencial en- TO; CARVALHO, 2007, p. 257-256).
tre brancos, pardos e pretos não podem ser
unicamente atribuída ao status econômico, No tocante ao perfil étnico dessas áreas,
como o autor mesmo afirma [...] “a econo- Barreto e Carvalho (2007) também confir-
mia apenas não explica a segregação racial mam a segregação racial em Salvador, re-
no Brasil. A auto-segregação, o racismo, ou velando em dados estatísticos que na “área
ambos contribuem para a segregação ra- superior” a composição étnica é de 64,8%
cial, além da classe” (TELLES, 2004, p. 172). de brancos para 27,5% de pardos e 6,5%
Para Barreto e Carvalho (2007), é neces- de pretos, enquanto na área “popular-infe-
sário ir além da descrição da desigualdade rior”, tem-se 13,7% de brancos para 64,8%
da localização do indivíduo diferenciado de pardos e 20,2% de pretos.
por cor/raça, para empreender esforços Como pôde ser demonstrado, a segre-
teóricos e metodológicos na tentativa de gação social e espacial do negro não se
explicar sua lógica nos marcos das práti- limita a uma região do país, e sim é um
cas racistas e discriminatórias da sociedade fenômeno real em todo Brasil, guardadas
brasileira. Isso pode ser observado no estu- as suas particularidades. Ao mesmo tempo,
do das autoras sobre a segregação residen- é reveladora de uma condição de exclusão,
cial e a condição social e racial em Salva- de desvalorização e desproteção social des-
dor, no percurso histórico de alocação da te grupo étnico – seja na condição do em-
população soteropolitana. Os setores altos, prego, da moradia ou na forma com que
representados por empresários, dirigentes consomem a cidade –, que guarda raízes
e trabalhadores intelectuais ocupam a orla profundas representadas nos quilombos e
atlântica, os setores médios, ocupam o cen- nas senzalas e que se reproduzem através
tro tradicional e as áreas antigas e, por fim, das relações sociais.
os grupos de menor renda estão nas áreas As relações sociais vigentes na socie-
que as “elites deixaram para trás”. dade brasileira (patrimonialismo, a cultura
As áreas populares são as que abrigam do favor e o coronelismo) têm suas origens
a população que não tem possibilidade de desde o período colonial, sustentam a de-
consumir o espaço da cidade moderna nem sigualdade social e racial vigente no país
da cidade tradicional e vai se alojar tipi- e se transformam em dados estatísticos na
camente em parcelamentos clandestinos e atualidade. Hoje, nas cidades brasileiras,
habitações precariamente autoconstruídas. são os negros que apresentam indicadores
de maior vulnerabilidade na área do em-
[...] as áreas populares predominam em Sal- prego, da renda, da moradia e que determi-
vador, na região que hoje se chama de Mio- nam uma inserção fragilizada, precarizada
lo (que é o trecho entre a BA-324 e a Ave- e subalterna, ratificando assim sua condi-
nida Paralela, onde estão bairros como Tan- ção por baixo, construída na perspectiva
credo Neves e Cajazeiras) e em parte da orla da colonialidade do poder que considera “o

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racismo e a construção de categorias raciais (segregação da pobreza e cidadania restrita
a partir da formação da divisão internacio- a alguns) e ambientalmente predatória. A
nal do trabalho do sistema-mundo europeu questão fundiária, cujo enfrentamento foi
capitalista/patriarcal moderno/colonial no adiado sine die, no campo, ressurge sob
final do século XV, em 1492”. (FIGUEIRE- novo formato no universo urbano (MARI-
DO; GROSFOGUEL, 2009, p. 224) CATO, 2007, s.n.).
A segregação tem vários conceitos e for- Os grupos sociais de menor renda ten-
mas de ser mensurada. No entendimento de dem a estar em locais destituídos de ser-
Eduardo Marques (apud FRANÇA, 2010), há viços básicos ou, quando existem, são
três diferentes processos associados ao fe- precários e em locais sujeitos aos riscos
nômeno: o primeiro deles é a formação de ambientais. Portanto, não é apenas a sepa-
guetos e enclaves fortificados, que pode ser ração que gera acesso desigual, mas tam-
voluntária ou involuntária; o segundo é a bém, e ao mesmo tempo, a desigualdade de
desigualdade de acesso às políticas públicas, acesso que especifica e produz a separação.
aos bens e serviços que são ofertados; por Para Silva (1989), a localização da família
último, é o que se refere ao grau de aglome- no território da cidade determina sua inser-
ração de um determinado grupo social em ção ou exclusão social, o acesso ou não aos
alguns lugares da cidade que guardam ho- bens e serviços urbanos.
mogeneidade interna e heterogeneidade ex- Essa desigualdade de acesso fica muito
terna na distribuição dos grupos na cidade clara a quem está “destinada” quando são
(FRANÇA, 2010). Sendo assim, este trabalho realizadas pesquisas como a exibida pela re-
adota o conceito de Torres como referência vista Carta Capital (24/09/13)1 que publicizou
na discussão sobre segregação nas cidades: o levantamento do governo federal, reve-
lando a cor dos beneficiários do Brasil Sem
A segregação é, sobretudo um fenômeno re- Miséria, que inclui o Bolsa Família, o Brasil
lacional: só existe segregação de um grupo Carinhoso e o Pronatec. Destinou-se desta-
quando outro grupo se segrega ou é segrega- que ao fato de que 73% dos beneficiários do
do. É nesse componente relacional que as me- Bolsa Família em 2013 são negros; 77% são
didas de segregação vão se basear, buscando beneficiários do Brasil Carinhoso e 65% estão
medir o grau de isolamento de um determina- matriculados no Programa Nacional de Aces-
do grupo social em relação a outro. (TORRES, so ao Ensino Técnico e Emprego.
2004a, p. 42, apud FRANÇA, 2010, p. 20) Numa economia fortemente marcada
pelo mercado, que impõe as regras do jogo,
O processo capitalista de produção en- para Andrelino Campos (2005), o acesso à
gendra a segregação espacial. A separação terra foi legalmente vedado aos negros e
e a desigualdade de acesso se constroem à boa parcela de beneficiários, como indi-
e reconstroem mutuamente (MARQUES; cados nas pesquisas acima referidas. São,
TORRES, 2005). São processos indissociá- assim, espoliados, ou seja, excluídos do
veis e precisam ser pensados dinamica- acesso aos bens e serviços ofertados pela
mente. A evolução do uso e da ocupação sociedade e incluídos por baixo, marca-
do solo assume uma forma discriminatória dos pelo ranço escravista, pois recebem

1. MARTINS, Miguel. O racismo em números. Revista Carta Capital, São Paulo, p. 40-41, set. 2013.

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os piores salários, exercem atividades que 42 áreas de risco ambiental. Paralelamente
não exigem alta escolaridade e lutam du- à execução do PMRR, o Serviço Social da
plamente para além da sobrevivência, de Defesa Civil, em 2010, realizou um levan-
modo a demonstrar que não são vagabun- tamento populacional e étnico-racial nas
dos, criminosos e violentos. áreas identificadas como de risco ambien-
tal com o intuito de identificar quem são
2. O lugar do negro em Juiz de Fora-MG os sujeitos sociais que estão vulneráveis
aos escorregamentos de terra e inundação
A cidade de Juiz de Fora está dividida na cidade. A pesquisa revelou que, em Juiz
em dois lados, o formal, constituído pelas de Fora, 35.986 pessoas estão sujeitas aos
moradias e construções valorizadas pelo desastres ambientais, sendo que nesse uni-
mercado imobiliário em locais com boa in- verso, 70,5% são negras – pretas e pardas
fraestrutura, saneamento e serviços e, por – e29,5% são brancas. Os dados levantados
outro lado, o informal, caracterizado por evidenciam a segregação espacial por raça
moradias subnormais e precárias situadas na cidade de Juiz de Fora. Fato evidente e
em locais desvalorizados pelo capital imo- que não é incomum em outras cidades bra-
biliário e sem investimento público (MA- sileiras. Por outro lado, levanta a discussão
RICATO, 1995; 2010). Por essa razão, não sobre o lugar de moradia do/a negro/a nas
existe o necessário – esgotamento sanitá- cidades que, neste caso específico, é um
rio, água, luz e saneamento básico –, para a lugar de risco ambiental, onde os sujeitos
qualidade de vida dos moradores. sociais não brancos, em sua maioria, se lo-
De acordo com o Plano Municipal de calizam nessas áreas, estando expostos ao
Redução de Risco (PMRR), elaborado pela risco de serem atingidos por escorregamen-
Defesa Civil em 2007, existem na cidade tos de terras e inundações.

Tabela 1- População residente, por cor/raça na cidade de Juiz de Fora - MG

Cor População %
Preta 75.818 14,69%
Brancos 293.877 56,93%
Parda 142.462 27,59%
Amarela 3.448 0,67%
Indígena 639 0,12%
Total 516.244 100%

Fonte: IBGE, 2010

Os dados estatísticos revelam que co ambiental, conforme pesquisa de campo


56,93% da população de Juiz de Fora é da citada acima.
cor/raça branca e 42,28% é da cor/raça ne- A expressão racismo ambiental pode
gra. Demonstrando um número significa- causar estranheza ou até mesmo acharem
tivo desse grupo étnico na cidade e parte que é uma “apelação”, diz Herculano. “Mas
desse universo está inserida na área de ris- olhe a cor da pele de quem mora nas fa-

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velas sobre os morros ou, nas beira-rios saúde, da moradia e do rendimento – cam-
e beira-trilhos; olhe a cor da pele de ex- pos esses nos quais o negro está sempre
pressivo número dos corpos levados pelas numa condição inferior à população branca.
enchentes, soterrados pelos deslizamentos” Isso significa, subliminarmente, que o bran-
(HERCULANO, s.d.). co detém o poder, que se expressa quando
Fica evidente que os não brancos na ci- se submete e mantém o outro que considera
dade de Juiz de Fora sofrem injustiça so- um ser inferior num patamar sempre abaixo
cial ou racismo ambiental, quando o poder do seu. Essa condição também é representa-
governamental empurra esse grupo étnico da pela segregação espacial.
tanto para regiões periféricas, sem servi- Por mais que se defenda que não existe
ços de infraestrutura e saneamento básico, racismo no Brasil e que vivemos uma de-
como para zonas de perigo ambiental, le- mocracia racial, a realidade não consegue
vando-os, dessa forma, a estarem expostos forjar esse mito. “O racismo é um potente
aos desastres em decorrência do fator plu- fator de distribuição seletiva das pessoas
viométrico. Essa racionalização da ordem no seu ambiente físico; influencia o uso do
hegemônica ratifica o que Vargas disserta: solo, os padrões de habitação e o desen-
volvimento de infraestrutura” (BULLARD,
[...] O espaço é produzido por relações sociais 2004, p. 57, apud MELO, 2013, p. 5).
e as reproduz. Uma vez que as relações so-
ciais são determinadas por diferenças de po- 3. O bairro Dom Bosco: segregação racial
der, ao mesmo tempo em que as relações so- de base ambiental
ciais incidem sobre as formas e manifesta-
ções de poder, o espaço urbano está profun- Em Juiz de Fora, os ex-cativos alcan-
damente implicado no processo e que hie- çaram em massa a cidade a partir de 1920,
rarquias sociais se concretizam em um dado após o declínio da produção de café na
momento histórico. (VARGAS, 2005, p. 92) Zona da Mata Mineira. Ao chegar à cidade,
a parte central não comportava a deman-
Não posso deixar de remeter e de defen- da populacional, sobrando à parte perifé-
der a ideia de que a condição do/a negro/a rica, de baixa ocupação, dando origem aos
no espaço urbano, no caso a sua localiza- bairros, como Dom Bosco e São Bendito,
ção geográfica, está conectada com a sua “levando à formação de bairros inteira-
trajetória histórico-escravocrata. Este arti- mente negros” (OLIVEIRA, 2000, p. 64).
go defende que o espaço urbano carrega o Eram bairros que não possuíam nenhuma
estigma da cor, ou seja, os locais precários infraestrutura e corajosamente, por não
são destinados à população negra pobre, haver outra opção, a população pobre foi
representando as antigas senzalas, locais de habitando essas áreas.
confinamento e sujeição do corpo ao casti- O Bairro Dom Bosco será utilizado como
go e ao trabalho forçado. exemplo de segregação sociorracial para
A ideologia dominante que alimenta com ilustrar a condição do negro na cidade. A
muito cuidado essa lógica, a qual se perpe- formação do bairro Dom Bosco iniciou-se
tua até o momento atual, faz-se presente em no ano de 1927. Após muitos anos de luta
todos os âmbitos ocupados pelo/a negro/a e pressão da comunidade, o poder público
no campo do trabalho, da escolaridade, da realizou melhorias e investimentos na área,

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como pavimentação, saneamento básico e Todos esses investimentos, de algum modo,
infraestrutura (água, luz). Ao mesmo tem- vêm valorizando o bairro, apesar de no seu
po, ao longo do período, outros investi- interior ser mantido uma pobreza, con-
mentos foram ocorrendo em torno do bair- trastando com o seu entorno, tornando o
ro, a exemplo da Universidade Federal de bairro “Uma pedra no meio do Caminho”,
Juiz de Fora (1960), Hospital Monte Sinai dos agentes modeladores do espaço urbano,
(1994), Shopping Center (2008) e constru- segundo Monteiro (2014).
ções residenciais destinadas à classe média.

Figura 1- Visão parcial do bairro que está inserido numa região de fortes investimentos imobiliá-
rios no seu entorno. Fonte: Acervo fotográfico de Ana Cláudia Barreto. 29 jul. 2010.

Hospital
Monte Sinai Dom Bosco

Shopping

Ao analisar o bairro Dom Bosco e o seu investimentos, o bairro é considerado de


entorno, fica evidente a pressão que os mo- risco físico pela Defesa Civil, pois, no de-
radores do bairro vêm sofrendo ao longo correr do tempo, sem condições de adqui-
dos investimentos imobiliários na área, rir um lote ou uma casa num local seguro,
bem como a segregação espacial a qual muitos moradores foram ocupando as en-
estão expostos, aliada ao risco ambiental, costas. De acordo com a pesquisa de cam-
pois o bairro também está incluso nas áreas po2 realizada em 2010, com a finalidade
de risco ambiental da cidade. Apesar desses de levantar o perfil étnico-racial, nas tre-

2. Foi uma iniciativa da autora, quando na ocasião era Assistente Social da Defesa Civil e ao mesmo tem-
po realizava o estudo de tese de mestrado.

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ze ruas do bairro Dom Bosco consideradas cos, no mesmo espaço, sendo essa convi-
de risco físico, constatou-se que dos 3.514 vência em situações de apropriação da terra
moradores, 19,3% são brancos e 80,7% são totalmente diferentes, resultam numa dis-
negros – pretos e pardos. puta territorial e numa segregação raciali-
A convivência fronteiriça entre classe zada, haja vista que a maioria dos morado-
média e baixa, acrescida ao fator racial, ou res do Dom Bosco são negros/as.
seja, pobre e negro convivendo com bran-

Tabela 2- População residente, por cor/raça, Bairro Dom Bosco – Juiz de Fora - MG

Cor População %
Preta 1.796 37,93%
Brancos 1.416 29,90%
Parda 1.473 31,11%
Amarela 43 0,91%
Indígena 7 0,15%
Total 4.735 100%

Fonte: IBGE, 2010 apud Monteiro, 2014.

O capital imobiliário exerce uma pres- venções, como a regularidade na posse da


são sob o bairro Dom Bosco para que seja terra. Kowarick (2009) refere-se à situação
removido ou pelo menos para que haja uma de desproteção a que vastas camadas po-
diminuição no fluxo de moradores que es- bres encontram-se submetidas no que con-
tão localizados em área de valorização fun- cerne às garantias de trabalho, saúde, sa-
diária: “As terras do bairro tornam-se uma neamento, educação e outros componentes
reserva de mercado que atiçam os olhos que caracterizam os direitos sociais básicos
dos promotores imobiliários. O bairro fica de cidadania. Isso também é viver em risco.
incluído e ao mesmo tempo desagregado. Com o propósito de analisar as condições
É um espaço fora de lugar” (MONTEIRO, socioeconômicas dos moradores do Dom
2014, p. 144) Bosco, foram entrevistadas 16 pessoas, e a
O Bairro Dom Bosco é a representação pesquisa demonstrou que 11 não tinham
de uma contradição urbana, visto que, ao concluído o ensino fundamental, 2 estavam
mesmo tempo em que sofre um processo desempregados, 4 ocupados em atividades
de valorização imobiliária muito grande, informais (faxineiras e pedreiros) e 7 são
apresenta vulnerabilidade social e ambien- donas do lar; e sobre a renda familiar 4 re-
tal em seu cotidiano. cebiam 1 (um) salário mínimo e 4 recebiam
Conforme levantamento do Atlas So- inferior a 1 (um) salário mínimo.
cial de Juiz de Fora (2006), o bairro Dom Diante dos dados, trata-se de cidadãos
Bosco é considerado uma Área de Especial totalmente desprotegidos, pois não têm
Interesse Social (AEIS), representando uma acesso às políticas públicas de habitação,
pobreza urbanizada que, apesar da infraes- trabalho e renda, que lhe confeririam uma
trutura investida, necessita de outras inter- inclusão social digna. Na maioria dos ca-

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sos, são vistos como “massa desvalida”, Tomando-se as informações para 2007, te-
“desclassificados”, “desfiliados”, “desterri- mos que 20% da população branca situa-
torializados”, vulneráveis aos danos ma- va-se abaixo da linha de pobreza, enquan-
teriais, psicológicos e aos riscos devido às to mais do dobro, ou 41,7% da população
chuvas. Viver numa sociedade tão desigual negra encontrava-se na mesma situação de
é um duplo risco. vulnerabilidade. No caso de indigência, a si-
tuação é tão ou mais grave: enquanto 6,6%
Observa-se que há uma estreita relação entre dos brancos recebem menos de ¼ de salário
as péssimas condições de moradia, o acesso a mínimo per capita por mês, esse percentual
serviços públicos e os riscos ambientais, co- salta para 16,9% da população negra, qua-
mo se ocorresse nos territórios um encontro, se três vezes mais. Isso significa 20 milhões a
perverso, de vulnerabilidades – urbana, so- mais de negros pobres do que brancos e 9,5
cial e ambiental. Assim, os territórios com milhões de indigentes negros a mais do que
pouco ou nenhum investimento público, brancos. (IPEA, 2008, p.33)
concentram população em situação de maior
pobreza e são áreas com grande degradação Lima (2012), ao relacionar raça e pobre-
ambiental. Os locais de moradia podem exer- za, diz que existem duas perspectivas para
cer um papel central sobre as condições de entender essa relação: uma é como o es-
vida e sobre o grau de vulnerabilidade destes tudo da raça é discutido com a pobreza e
indivíduos. Assim, é preciso articular a no- a outra é como a pobreza é discutida com
ção de risco e vulnerabilidade social com a a variável raça. Segundo a autora, as pes-
de segregação socioespacial (PAZ; TABOA- quisas recentes sinalizam a existência de
DA, 2010, p. 3). forte rigidez social no Brasil, independente
da raça/cor. Porém, no tocante à aquisição
Ao permitir que pessoas ocupem áreas ou manutenção de status elevado, a rigidez
de risco ambiental, não estaria o Poder social se torna rigidez racial, ou seja, há de
Público realizando um tipo de eliminação fato impedimentos ou dispositivos como
seletiva? Não estaria impondo, através de o preconceito e o racismo que funcionam
estratégia, a definição dos espaços de mora- como barreiras invisíveis na mobilidade so-
dia para os/as negros/as? Ao longo de todo cial dos negros.
percurso pós-abolição, pode-se perceber Os dados mensurados pelos Institutos de
essa trajetória de expulsão, desterritoriali- pesquisa revelam sistematicamente a situa-
zação, punição e segregação da população ção do negro numa posição sempre desigual
negra na cidade, como se não pertencessem na relação ao branco e uma alta concentra-
à cidade, fossem os indesejados de cor e ção de negros nas áreas de pobreza. Esses
para isto elementos (in)visíveis funcionam estudos reafirmam uma situação histórica e
para expulsar, eliminar da cidade formal, socialmente construída desde o período co-
onde transitam os “cidadãos de bem”. lonial, que é o lugar do negro na sociedade.
Diante deste quadro, para Menegat (2009), Ainda assim, com todas as políticas de ações
o futuro é absolutamente negado para uma afirmativas para reduzir essas desigualda-
parcela cada vez maior de pobres “negros” na des, há uma longa estrada a percorrer na
cidade que, na condição de sem-propriedade, luta contra todas as formas de desigualda-
passam a ser indesejados na cidade. des enfrentadas pela população negra. Em

206 Repocs, v.15, n.30, jul./dez. 2018


vista disso, a variável raça necessita ser As políticas públicas são elaboradas
levada em consideração para compreender verticalmente, não se considera o desejo de
as desigualdades sociais. Além do mais, as cidade do cidadão, tampouco é considerada
discussões devem ir além dos dados e apro- a história e experiência de vida, pois cada
fundar a correlação entre pobreza e raça, ou pessoa e lugar possuem uma história que
seja, o porquê e como essa correlação ocorre cria uma identidade entre o lugar que mora
e o papel da variável raça na produção da e a cidade. Essas informações necessaria-
desigualdade (LIMA, 2012). mente passam pelos moradores do lugar, o
que implica na sua participação na discus-
4. Relatos de vida são sobre a cidade e o seu desejo de vida.
A produção desse conhecimento no âm-
A seguir, seguem 3 (três) narrativas de bito das ciências sociais é de suma impor-
moradores do bairro, demonstrando as tra- tância para se pensar a cidade a partir do
jetórias de vida de alguns descendentes de olhar do cidadão, que passa pelo processo
escravos que moram no Dom Bosco, ou que de inclusão/exclusão social, possibilitan-
foram removidos pela Defesa Civil, após do a discussão e necessidade de valorizar
as ocorrências de deslizamentos de terras. as diferenças culturais e sociais e de levar
Milton Santos (1993) afirmou que devemos em consideração não apenas um mapa, um
olhar para o território como “formas-con- diagnóstico, mas também, nesses estudos,
teúdo”, considerando a história de um lu- “a inclusão das utopias de democracia, ci-
gar, a sua gente, as causas das mazelas ur- dadania e felicidade” (KOGA, 2011, p. 157).
banas e não, meramente, olhar seus efeitos.
Em vista disso, a intenção não é somente Maria Isabel
analisar os efeitos das chuvas numa área de
risco ou a localização da população negra Bisneta de escrava, 64 anos, natural de
nas cidades, mas, acima de tudo, sinalizar Juiz de Fora, analfabeta, viúva; a renda fa-
a sua gente, a história de luta e resistência miliar é de um salário mínimo, decorren-
pela permanência no lugar. E, quem é essa te da pensão deixada pelo marido. Ainda
gente? São pessoas que descenderam de criança foi para Piau-MG, e lá trabalhava
outras que foram escravizadas. numa fazenda. Em torno de 1973, chegou
Segundo Koga (2011, p. 34), “o chão do para morar no Dom Bosco, mas anterior-
território pode significar um novo aporte mente “tomava conta” de um sítio no bair-
para o debate no campo das políticas públi- ro Aeroporto e em troca morava numa casa
cas”. Na sua maioria, as políticas públicas dentro do sítio. Quando o proprietário pe-
são elaboradas para atender de um modo diu a casa, foi para o Dom Bosco por ter en-
geral todos os territórios, como se não exis- contrado um lote que estava sendo vendido
tissem diferenças, anseios e necessidades pelo valor que possuía de Crz$ 500,00. “Se
humanas opostas. Cada lugar tem sua es- eu tivesse condições comprava num lugar
pecificidade e condições desiguais de vida melhor”. Os materiais foram conseguidos
que exigem enfrentamentos particulares, e através de doação, os colegas do filho que
as diferenças sociais e culturais deveriam ajudaram a construir, fazendo um mutirão
ser consideradas na elaboração das políti- “dava café, almoço ao pessoal”. “Foi difícil,
cas públicas. pagava os outros pra levar pra lá, o pessoal

O lugar do negro em Juiz de Fora-MG 207


catava o material da gente … os moradores tão ela recebe R$ 180,00, referente ao auxí-
de baixo discriminavam, falavam que era lio aluguel pago pela Prefeitura de Juiz de
favela”. A casa de Maria Isabel era de alve- Fora. Junto com ela moram suas três filhas
naria, com dois pavimentos; foi demolida e cinco netos. Questionada sobre seu senti-
em 2008, porque estava numa área sujeita mento quando chove, diz: “fico tranquila,
a escorregamento de terra. A partir de en- não estou na situação de risco”.

Figura 2 - Moradia de Maria Isabel, demolida pela Defesa Civil em 2008. Fonte: Defesa Civil de Juiz de Fo-
ra - MG. 30 de Maio 2006.

Fátima Ao ser questionada sobre sua infância, de-


monstrou muita dificuldade para expressar,
Natural de Juiz de Foram, neta de escra- resumindo apenas em dizer que trabalhou
va por parte de mãe, tem 38 anos, mãe de “tomando conta de criança”. Ao ir para o
seis filhos; destes, apenas quatro estão sob Dom Bosco, ficou morando por um período
sua responsabilidade – 1, 6, 9 e 16 anos de na casa da sogra e aos poucos foi cons-
idade. Desempregada, cursou até a 1ª série, truindo sua casa que era de “madeirite”,
teve o benefício do Programa Bolsa Família “chão de terra” ... não gosto de lembrar”,
suspenso. Não sabe informar em que ano diz ela. Certamente, não é agradável para
chegou ao Dom Bosco, apenas falou sobre ela recordar os momentos difíceis que vi-
o motivo que a levou para aquele bairro: o veu, até quando a Defesa Civil em 2003
casamento com seu companheiro (falecido). atendeu ao chamado de escorregamento de

208 Repocs, v.15, n.30, jul./dez. 2018


terra que gerou a remoção de algumas fa- seu atual companheiro, que mora no Dom
mílias, como a de Fátima, que passou a ser Bosco. “Quando chove, hoje, já não tenho
beneficiada com o auxílio aluguel até 2007, medo... sinto coisa boa... ter a casa da gen-
quando recebeu uma moradia da COHAB e te... ter algo que é da gente é muito bom”.
hoje se divide entre sua morada e a casa do

Figura 3 – Moradia de Fátima, demolida em 2003. Fonte: Defesa Civil de Juiz de Fora – MG. Jan 2003.

Vanderlei vo, estudou até a 5ª série. Quando se apo-


sentou recebia dois salários mínimos, mas
Natural de Coimbra-MG, descendente de após tantos decréscimos recebe atualmente
escravo por parte da avó materna. “Minha R$510,00. Possui escritura do imóvel, con-
avó usava argola no nariz, ela morreu com quistada graças à advogada da construtora
120 anos”. Foi dessa forma que Vander- em que trabalhava que o orientou a legali-
lei reacendeu na memória a lembrança de zar, junto à Prefeitura, a compra do imóvel
sua querida avó com a qual conviveu por que, na época, foi feito um contrato tipo
muitos anos. “Eles eram vendidos... igual a “gaveta”. Junto com ele, mora uma compa-
boi... a carne mais boa ...”, desse jeito que nheira com a qual tem um filho de 1 ano de
o morador resumiu o significado da escra- idade e mais dois enteados, filhos do outro
vidão para ele, a partir dos relatos narra- relacionamento de sua atual companheira.
dos por sua avó quando ainda era criança. Quando criança, trabalhou nas fazendas em
Seu Vanderlei, 59 anos, aposentado, viú- Visconde do Rio Branco/MG “ah candeei

O lugar do negro em Juiz de Fora-MG 209


muito boi”. Entre 13 e 14 anos de idade, na época era funcionário de uma Constru-
veio para Juiz de Fora, quando seu cunha- tora que estava construindo um prédio nas
do, que era militar, resolveu trazê-lo para proximidades. Seu Vanderlei, por instantes,
trabalhar e depois servir o exército. Por olha para a cidade e aponta para os prédios
aqui ficou trabalhando em sítios, em um que construiu na Avenida Independência.
dos últimos, quando já era adulto, resolveu “Quando eu mudei era tudo trilha” ... “era
se desvincular, porque a proprietária não uma rede de esgoto a céu aberto, a luz era
dividia mais com ele os produtos que ele fornecida por vizinho da rua de baixo, água
plantava. Porém, durante os anos que tra- era de mina, pra beber tinha que ir na bica”,
balhou em sítios fez uma poupança e com e assim ele descreve as dificuldades enfren-
esse dinheiro comprou a casa que mora. tadas para morar e permanecer no lugar.
Sua chegada ao Dom Bosco foi em 1983; Porém, hoje, na opinião dele, está melhor
antes de adquirir a sua moradia, pagava devido às casas que a Defesa Civil demoliu.
aluguel do porão nesta mesma casa que Resume e finaliza dizendo: “Foi uma luta,
comprou. O motivo que o trouxe ao Dom era tudo mato”.
Bosco foi a proximidade com o seu serviço,

Figura 4 - Moradia do Sr. Vanderlei. Fonte: Acervo fotográfico de Ana Cláudia Barreto. 12 de Março 2010.

Os relatos demonstram dentro desse consolidadas e ocorre o desastre ambien-


universo pesquisado que a trajetória de es- tal, o atendimento é fragmentado, pontual
poliação e injustiça social e ambiental que e focalizado. Reproduzindo assim, a lógi-
marca a população negra e pobre e as polí- ca da política pobre para pobre e, nesse,
ticas urbanas reforçam esse quadro quando caso específico uma política pobre para a
o poder público permite que essa parcela população negra, que historicamente carre-
populacional se instale em áreas de risco ga o estigma da escravidão e que desde os
ambiental e quando as moradias já estão anos seguintes a abolição vem procurando

210 Repocs, v.15, n.30, jul./dez. 2018


romper as barreiras da inferioridade racial me Torres (2004, apud LIMA, 2012, p. 237),
elaborada pela ideologia eurocêntrica, que Lima afirma que “a definição mais genérica
a fim de explorar o trabalho dos africanos de segregação residencial é o grau de aglo-
para promover a acumulação capitalista. meração de um determinado grupo social/
De certo, a riqueza produzida mundialmen- étnico em dada área”.
te no processo de exploração das riquezas Histórica e socialmente falando, essa
naturais dos territórios americanos inva- condição da população negra na cidade na
didos pelos europeus, produziu por outro contemporaneidade é resultado da colonia-
lado uma massa de desenraizados que não lidade do poder, que por meio de disposi-
se apropriaram dessa acumulação e que tivos ideológicos construiu a “raça” negra
hoje passa por um processe de exclusão para justificar a sua exploração com fins
permanentemente em todos os setores da mercantilistas e posteriormente capitalis-
vida cotidiana, ficando assim, a mensagem tas. Sabe-se que a acumulação do capital
de que para o capital o que interessa é a não se deu sem sangrias e violência e foi
busca desenfreada pelo lucro e a sua con- através da força bruta e ideológica que im-
cretização, não importando a humanidade. pôs a uma população negra e africana o
trabalho forçado nas colônias das Américas
Considerações finais e, falando particularmente no Brasil, dei-
xou marcas bem profundas na sociedade –
As reflexões que foram realizadas neste as manifestações racistas são uma prova. O
trabalho confirmam a condição precária e grupo dominante branco não aprova a as-
subalterna que a população não branca ex- censão social do negro, e o negro, quando
perimentam na sociedade brasileira. Mes- consegue romper as barreiras estabelecidas,
mo não havendo leis que determinem a se- torna-se a exceção da regra ou então vai
gregação espacial, existem outras barreiras para o campo da meritocracia.
que chamamos de invisíveis, porque não Trazer a discussão sobre o lugar do ne-
são explícitas, mas existem e perpassam gro pobre na sociedade brasileira é repen-
às relações sociais entre negros e brancos, sar a cidade: para quem e para que existe
como o racismo e o preconceito que impe- a cidade? Qual o desejo de cidade para a
dem a mobilidade social do negro. população majoritária? Como deixar de ser
Essas barreiras ficam claras e expostas um cidadão de papel e tornar-se real?
nos índices das pesquisas, as quais consta- O lugar destinado para aos negros po-
tam numericamente a condição desigual do bres morarem na cidade retrata o descaso
negro com relação ao branco, em diversas do poder público e a ausência das políticas
categorias, como emprego, escolaridade, públicas voltadas para minorar a desigual-
renda, habitação etc. dade social com recorte racial. Mesmo sen-
Mais do que confirmar, é necessário ir do o lugar da segregação, é o lugar da vida,
além, discutindo o porquê e as causas da dos sonhos, da convivência comunitária e
correlação entre pobreza e raça que con- da identidade.
fluem na desigualdade. A segregação no É no lugar que se vive que se concre-
Brasil é conferida pela existência majori- tiza a trama das relações sociais, em que
tária da população negra nos locais de po- os sujeitos desenvolvem a sua identidade e
breza e de risco socioambiental, e confor- subjetividade. É o lócus da inclusão social

O lugar do negro em Juiz de Fora-MG 211


pela exclusão; é nele que se faz sentir a au- IPEA. Retrato das desigualdades de gênero e raça.
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parece que vai muito além. Por isso, é ne- 2, p. 233-254, 2012.
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O lugar do negro em Juiz de Fora-MG 213


Resumo Summary
Ao analisar os padrões de ocupação das ci- When analyzing the patterns of occupa-
dades brasileiras pode-se constatar a desi- tion of Brazilian cities one can verify the
gualdade social e racial nas configurações social and racial inequality in the spatial
espaciais. Majoritariamente, a população configurations. Most of the poor and black
negra e pobre ocupa os espaços menos population occupy the spaces less valued
valorizados pelo capital imobiliário, com by real estate capital, with less public in-
menor investimento público e outras vezes vestment and at other times they present
apresentam risco ambiental, formando um environmental risk, forming a set of fac-
conjunto de fatores que somados marcam tors that together mark the condition and
a condição e o lugar do negro na cidade, the place of the black in the city, thus ra-
ratificando assim uma segregação nas di- tifying a segregation in the dimensions
mensões ambiental, residencial e racial, di- environmental, residential and racial bar-
ficultando a mobilidade social desse grupo riers hampering the social mobility of this
étnico-racial. ethnic-racial group.

Palavras-chave Keywords
Negros; Risco ambiental; Espaço; Segrega- Blacks, environmental risk, space, segrega-
ção. tion.

Recebido em: 28.08.16


Aprovado em: 30.05.18

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