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ARTIGO ARTICLE
Pesquisa participante e formação ética do pesquisador
na área da saúde

Participative research and health researcher´s ethical formation

Maria Luisa Sandoval Schmidt 1

Abstract The present article discusses Ethics con- Resumo O presente artigo discute o conceito de
cept as dwell and way of dwelling, aiming to articu- ética como morada e modo de habitar e busca
late it with some elements of participative research articulá-lo a elementos da pesquisa participante
from an ethnographic matrix. Mainly, it focuses the de matriz etnográfica, mostrando a relação in-
idea of the ethical subject’s autonomy, associating it dissociável entre método e ética nesta perspecti-
with self-reflection and alterity in ethnography. Yet, va. Focaliza, sobretudo, a idéia de autonomia do
it approaches the participative research in an eth- sujeito ético, associando-a às temáticas da auto-
nographic perspective as a praxis that induces to reflexão e da alteridade na etnografia. Aborda,
health researcher’s ethical formation. ainda, a pesquisa participante de cunho etno-
Key words Participative research, Ethnography, gráfico como prática propícia à formação ética
Ethics for research, Ethical formation do pesquisador na área de saúde.
Palavras-chave Pesquisa participante, Etnogra-
fia, Ética de pesquisa, Formação ética

1
Departamento de
Psicologia da
Aprendizadem, do
Desenvolvimento e da
Personalidade, Instituto de
Psicologia, USP. Av. Prof.
Mello Moraes 1721/Bloco
G, Cidade Universitária.
05508-030 São Paulo SP.
malu@usp.br
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Schmidt, M. L. S.

Introdução responder ao mundo e aos outros e que, agindo,


escolhem quem são. A escolha, no sentido sar-
O debate sobre ética em pesquisa científica está treano, inventa e motiva o valor que advém da
na ordem dia e, em nosso país, a pesquisa em própria escolha.
saúde tem sido um catalisador importante deste Concomitantemente, como explica Marilena
debate. A Resolução 196/96 do Conselho Nacio- Chaui3, a escolha desafia a consciência moral, pois
nal de Saúde apresentou-se como um instrumen- exige a decisão sobre o que fazer, as justificativas
to de controle e regramento dos procedimentos perante os outros e nós mesmos sobre as razões
de pesquisa médica e, ao mesmo tempo, susci- da decisão e, por último, a responsabilidade por
tou um conjunto interessante de questões na suas conseqüências.
medida em que pretendeu dar conta da vasta área Voltando à idéia de morada, vê-se que o ho-
de investigações em saúde. Parte destas questões, mem escolhe a si mesmo no mundo e cria e atu-
como bem sinaliza Iara Guerriero1, refere-se a aliza mundos, escolhendo. Sua ancoragem nes-
duas ocorrências interligadas no campo da pes- ses mundos ou o modo de habitá-los remete aos
quisa em saúde: a presença das ciências sociais e valores e aos sentimentos despertados pelos va-
humanas, indicando que a pesquisa em saúde lores. Poder-se-ia dizer que a consistência das
não é recoberta exclusivamente pela pesquisa escolhas repousa no valor e nos sentimentos que
médica, e a prática de pesquisas qualitativas em este valor suscita.
que desenhos metodológicos estão intrinseca- É preciso escolher, viver e sentir um valor para
mente relacionados à ética de modos diversos que ele se associe, autenticamente, à idéia de ética.
daqueles contemplados pela Resolução 196/96. Escolha, valor e sentimento assim articulados
Trata-se, portanto, de uma discussão que reme- fazem pensar no caráter autônomo e nunca he-
te, necessariamente, ao entendimento das dife- terônomo da ética. Há, certamente, valores dis-
renças epistemológicas e de método que consti- poníveis numa sociedade ou cultura, em diferen-
tuem, desde o interior das práticas de pesquisa, tes tempos históricos, mas são os indivíduos e as
éticas próprias e respeitáveis. coletividades que, por suas escolhas e práticas
Como a ética não se concretiza por decreto, sociais, os transformam e atualizam ou esque-
sendo matéria de reflexão e de escolhas situadas, cem. E há, também, o valor do valor, quer dizer,
parece ser mais fecundo estabelecer regiões de o modo como os valores afetam indivíduos e
contato e interlocução entre modelos de pesqui- comunidades humanas: alguém ou um grupo
sa e seus modos de zelar por princípios e valores pode indignar-se com a injustiça ou permane-
do que lutar pela simples hegemonia de um so- cer-lhe indiferente; sentir escárnio pela honesti-
bre os outros. dade ou raiva da mentira; admirar a integridade
Com o intuito de auxiliar tal diálogo, este ou contentar-se com a generosidade e assim por
artigo pretende expor e esclarecer algumas di- diante. Em relação a um valor pode haver senti-
mensões da pesquisa participante de inspiração mentos positivos, negativos ou neutros, de tal
etnográfica, dando especial atenção à problemá- forma que o valor pode ser afirmado, negado ou
tica da autonomia e da heteronomia na compre- deixado à indiferença.
ensão da ética como morada. Embora seja possível escolher com o apoio
da moral, da religião ou da lei, o sentido da ética
como morada e modo de habitar o mundo pede
Sobre o conceito de ética um sujeito autônomo ou agente consciente ca-
paz de deliberar antes de agir e de julgar as ações.
A ética, ligada ao senso e à consciência moral, é A ética pressupõe a autonomia e a autono-
mais do que um conjunto de normas e regras mia é feita, como aponta Marilena Chaui3, do
ou, ainda, mais do que a mera obediência a nor- controle interior dos impulsos, inclinações e pai-
mas e regras. A ética é morada, modo de habitar xões, da discussão consigo mesmo e com os ou-
o mundo e lugar de atualização de valores e ati- tros sobre o sentido dos valores e da capacidade
tudes. Ou seja, a ética está implicada nas escolhas de outorgar a si mesmo regras de conduta. A
humanas que criam mundos e nos modos de autonomia estabelece uma relação problemática
valorizar e viver estes mundos. A ética, portanto, e problematizadora com os valores estabeleci-
é indissociável do tema da escolha. dos e hegemônicos num tempo e lugar, sem sub-
Sartre2, filósofo para quem escolha e liberda- meter-se ou subordinar-se cegamente a eles. Três
de configuram a condição humana, entende que propriedades da pessoa autônoma, ainda segun-
os homens são seres em situação, compelidos a do Chaui3, merecem referência: a responsabili-
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dade por seus atos, a disposição para julgar suas cuidando para que, com sua ação, o mundo seja,
intenções e a recusa da violência contra si e con- a um só tempo, preservado e renovado. Esta pers-
tra os outros. pectiva, exposta de modo bastante sumário, ar-
A autonomia é autodeterminação, significan- ticula julgamento, escolha e responsabilidade. Nas
do que o reconhecimento do fim ético move a palavras de Arendt4, a educação é o ponto em que
ação ética e nunca a coação externa. A autodeter- decidimos se amamos o mundo o bastante para
minação, contudo, não se traduz pela desconsi- assumirmos a responsabilidade por ele, salvando-o
deração dos outros. Ao contrário, julgamentos da ruína que seria inevitável não fosse a renova-
sobre certo e errado, permitido e proibido ou ção e a vinda dos novos e dos jovens. É, ainda, para
bem e mal são intersubjetivos, envolvendo o cui- a autora, a educação é o ponto em que os adultos
dado com outros. Assim, contemplam-se as con- oferecem uma ordenação, um juízo, uma opi-
dições humanas da singularidade, com a auto- nião, um posicionamento sobre os quais os jo-
determinação e da pluralidade, com a intersub- vens podem se apoiar para assumir sua respon-
jetividade. Não é possível sacrificar os outros em sabilidade de preservar e renovar o mundo.
nome da liberdade ou da felicidade de uns: os Esta digressão serve, talvez, para reforçar que
valores aspiram à universalidade. Ou, dizendo a educação pode ser o ponto a partir do qual um
de outra maneira, para a ética os fins não justifi- sujeito autônomo se forma. Esta formação su-
cam os meios quando eles sacrificam a liberdade põe, ao que parece, o contato com os valores
ou a consciência moral e não se espera que prin- consagrados, com a moral vigente numa socie-
cípios como a liberdade, a dignidade ou o respei- dade em dado momento histórico e o exercício
to sejam retirados de uns em favor de outros. de discutir, pensar e interpretar esta moral: su-
A ética como modo de habitar o mundo pede, põe este lugar em que a tradição e a disposição
mesmo, a apreciação do mundo como sendo a para a renovação convivem e dialogam.
própria coexistência humana. O mundo é, tam- A incapacidade para a autonomia é a hetero-
bém, a trama significativa de tudo que torna a nomia que se traduz na incapacidade de dar-se a
terra habitável para os homens. Por isso, a pes- si mesmo a regra, a norma ou a lei. O indivíduo
soa ética é inseparável do cuidado com o mundo. heterônomo depende de receber, de fora, a regra,
Os modos de cuidar não são “naturais” e sim a norma e a lei. Na heteronomia vige a passivida-
instaurados na e pela vida social e cultural. Da de, contrária à atividade exigida pela ética. As-
mesma forma, a pessoa ética se faz na coexistên- sim, o indivíduo heterônomo pode responder
cia, na intersubjetividade e na sociabilidade e os sem pensar no diz ou faz, pode simplesmente
valores e atitudes éticos não são, igualmente, “na- repetir algum ensinamento recebido e pode, por
turais”, mas dependem da educação. fim, viver uma espécie de alienação no apego au-
Este argumento sobre a necessidade da edu- tomático e formal às ordens jurídica, ideológica,
cação é particularmente provocativo, pois faz pen- religiosa, entre outras.
sar no quanto a ética em pesquisa não pode, nem As regras, normas e leis são necessárias à vida
deve, permanecer restrita ao plano da norma, da social, coibindo a violência, impondo limites e
regra e da lei ou ao plano exclusivamente jurídico. controles ao risco permanente de violência.
Há inúmeras concepções de educação e dis- Há, no entanto, um problema central a ser
cuti-las neste contexto iria requerer um desvio considerado no debate sobre ética em pesquisa:
demasiado longo para os propósitos deste arti- como evitar que normas e regras de conduta na
go. Então, pareceu pertinente recorrer a uma vi- pesquisa se tornem dispositivos de evasão da res-
são em particular que, justamente, entende a edu- ponsabilidade, da reflexão e do julgamento pró-
cação em conexão com o tema do cuidado com o prios do indivíduo autônomo que forja a ética e
mundo e da responsabilidade pelo mundo. é por ela forjado?
Trata-se das idéias de Hannah Arendt4, para Aquela pergunta predispõe a uma outra:
quem a educação é uma prática ligada ao fenô- como formar pesquisadores no espírito da ativi-
meno da natalidade, ou seja, ao fato de que seres dade ética?
nascem para o mundo. A educação, entregue aos Para estas perguntas não existem respostas
adultos, tem a dupla tarefa de, por um lado, pro- simples, nem muito menos certeiras, pois, como
mover o desenvolvimento dos jovens e, por ou- ensina Chaui3, a ética é o campo de um saber
tro, zelar pela continuidade do mundo. Do edu- prático, recortado por deliberações e escolhas
cador é esperado que ele apresente o mundo em sobre o possível e sobre aquilo que depende da
constante mudança ao jovem e do jovem é espe- vontade dos homens: sua matéria-prima são
rado que ele se torne responsável pelo mundo, valores e não fatos.
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Schmidt, M. L. S.

Existem, contudo, propostas de pesquisa ca- da, tratar mais especificamente da etnografia in-
pazes de oferecer elementos fecundos para a pon- terpretativa.
deração em torno da formação, tanto no terreno O termo participante remete à controvertida
das teorias metodológicas quanto no das experi- presença de um pesquisador num campo de in-
ências concretas de trabalho de campo. vestigação formado pela vida cotidiana de indi-
A pesquisa participante inspirada na antro- víduos, grupos, comunidades ou instituições pró-
pologia interpretativa e no trabalho de campo ximos ou distantes. Esta presença do pesquisa-
etnográfico, na medida em que retoma e proble- dor no campo encontra sua complementação no
matiza as experiências fundadoras da antropo- convite ou convocação do outro – indivíduo,
logia moderna, abre lugar a duas temáticas de grupo, comunidade ou instituição – para parti-
interesse para o debate sobre formação ética: a cipar da investigação como informante, colabo-
auto-reflexão e a alteridade. Trata-se de dois te- rador ou interlocutor.
mas que enlaçam a ética e a política das investi- Na pesquisa participante, a relação entre pes-
gações em que o pesquisador se desloca de seu quisador e pesquisado pode aparecer diferente-
meio para estudar um outro, próximo ou dis- mente, como os termos informante, colaborador
tante, na sua própria “casa” ou lugar. As lições e interlocutor, acima mencionados, apontam.
deste tipo de deslocamento continuam a rever- Informante é um termo da tradição etnográ-
berar nas situações de pesquisa em outras disci- fica que ainda é usado não só na antropologia e
plinas como a psicologia, a sociologia, a história na sociologia como também naquelas áreas que
oral ou a geografia. Delas é possível aproximar, se aproximaram do método etnográfico mais
também, as pesquisas das ciências sociais e hu- recentemente. Ele sugere um tipo de participação
manas na esfera da saúde. do pesquisador e do pesquisado em que a con-
dução da pesquisa, os objetivos e interesses, as
formas de apropriação dos dados de observação
Pesquisa participante, de campo e de entrevistas e a produção de conhe-
auto-reflexão e alteridade cimento são prerrogativas do pesquisador: o in-
formante “presta informações”. Maria Isaura
A pesquisa participante comporta algumas ver- Pereira de Queiroz9, socióloga que, em nosso
tentes metodológicas diferentes, porém, aparen- meio, foi e é importante referência nos estudos
tadas; todas, por continuidade ou ruptura, rela- com relatos orais, escreve com nitidez sobre esta
cionadas com a matriz etnográfica que, na virada maneira de conceber a participação.
do século XIX para o XX, legitimou a antropolo- Colaborador indica uma repartição dos lu-
gia e a etnografia como disciplinas científicas. gares de produção de conhecimento ou compre-
Termos como pesquisa-ação, pesquisa-inter- ensão no processo de pesquisa. Os objetivos e
venção e mesmo o método etnográfico identifi- interesses são do pesquisador mas, em geral, há,
cam discursos e práticas de investigação que não no relato final da investigação, espaços para que
estão circunscritos à antropologia e sim perpas- os “pesquisados” falem por si, articulados àque-
sam várias áreas das ciências sociais e humanas, les em que o pesquisador comenta e interpreta
tais como a sociologia, as psicologias educacio- os achados do campo e das entrevistas. Ecléa
nal, social e clínica, a psicossociologia, a geogra- Bosi10, com seu clássico estudo de psicologia so-
fia humana, a terapia ocupacional, a história oral, cial sobre o trabalho de memória de velhos, pro-
a comunicação social, a economia, entre outras. porciona um interessante exemplo de pesquisa
Ao mesmo tempo, muitas destas áreas já produ- em colaboração.
ziram no interior de suas praxes ou em experiên- A figura do interlocutor evidencia uma reori-
cias interdisciplinares um saber acumulado so- entação da tradição etnográfica no contexto con-
bre saúde. temporâneo de estudos que focalizam a inter-
As diferenças e afinidades entre estas três gran- pretação dos sentidos e significados de modos
des vertentes da pesquisa participante – pesqui- de viver, sentir e pensar que constituem a plurali-
sa-ação, pesquisa-intervenção e método etnográ- dade de mundos coexistentes e conectados na
fico – foram tratadas em detalhe em artigo pu- atualidade. Desta interpretação, os “pesquisados”
blicado por mim em 20065 e podem ser aprofun- não estão excluídos, tornando-se parceiros inte-
dadas com a leitura de autores como Brandão6, lectuais dos pesquisadores na compreensão de
Rocha e Aguiar7 e Pereira8, entre outros. Para as fenômenos e na elaboração do conhecimento. O
finalidades deste artigo, contudo, serão clarifica- encontro etnográfico, neste caso, é objeto de cons-
das algumas referências comuns para, em segui- tante análise crítica e lugar de negociações e acor-
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dos sobre objetivos, destinos, formas de divul- logia, aqui representada por Malinowski, pelas
gação e autoria da pesquisa. antropologia e etnografia interpretativas, a par-
Estas três figurações das relações entre pes- tir dos anos 60 e 70 do século XX, traz em seu
quisador e “pesquisado” não representam qual- bojo, entre outras coisas, a valorização do outro
quer espécie de linha evolutiva e nem se apresen- não mais como exclusivamente informante mas,
tam de maneira tão esquemática como aqui ex- sobretudo, como colaborador e interlocutor com
posto: são sinais de posições que convivem, for- quem se procura parcerias para a construção do
mando o terreno plural da teoria e da prática da conhecimento e para a interpretação da cultura,
pesquisa participante. convidando-o a uma atividade de elaboração in-
É possível, no entanto, identificar uma certa telectual para além da prestação de informações
radicalidade na última figuração, naquilo que diz sobre seu universo de vida.
respeito à necessidade constante de auto-refle- A instabilidade ou a veloz mobilidade da vida
xão e de posicionamento sobre a alteridade. social no mundo contemporâneo desafiam o
A experiência de Malinowski, considerada entendimento das ciências sociais e humanas.
uma espécie de carta fundadora da antropologia Para Marc Augè13, o mundo contemporâneo é
moderna e científica, pode ser lida, como faz Ja- feito de uma multiplicidade de mundos coexis-
mes Clifford11, pelo viés do lugar do método que, tentes e conectados, por onde passam relações
por um lado, tenta forjar o pesquisador como de sentido e imensas variações de formações iden-
instrumento legítimo e confiável de observação e titárias e representações de alteridade. Se a dinâ-
interpretação da alteridade e, por outro, busca mica social não é sólida nem estável, a tarefa de
dominar e controlar o trabalho de campo, do- sua interpretação também se torna um desafio
minando e controlando “seus informantes” em às teorias e métodos consagrados nas ciências
favor dos objetivos da investigação. sociais e humanas. Ou, dito de outra maneira, as
Porém, posteriormente, com a publicação dos crises do mundo contemporâneo encontram sua
diários de campo de Malinowski12, foi possível contrapartida nas crises das teorias e métodos
apreender com mais nitidez os tormentos e em- de investigação das ciências sociais e humanas.
bates do pesquisador com os informantes que, Ou, dito de outra maneira ainda, responder ao
longe de serem “meros objetos”, exibiam vonta- desafio do conhecimento contemporâneo impli-
de própria, resistências e preferências. Ao mes- ca, para as ciências humanas e sociais, desalojar-
mo tempo, foi possível entender a luta do pes- se de eventuais lugares fixos e verdades estabele-
quisador consigo mesmo para manter-se ínte- cidas para instalar-se no coração da precarieda-
gro moral e psicologicamente, durante o longo de e da inconstância que caracterizam a dinâmi-
período vivendo com os trobriandeses, sem quase ca social atualmente.
nenhum contato com europeus. Dessa forma, o encontro etnográfico ou a
O exemplo de Malinowski, valioso pelo cará- pesquisa participante inspirada na antropologia
ter fundador de sua etnografia, expõe a alterida- interpretativa define-se como processo de cons-
de e a auto-reflexibilidade como dimensões, apa- trução de conhecimento e, também, como pro-
rentemente, perfeitamente enquadradas pelo cesso de questionamento e elaboração do senti-
método científico, no sentido de que o método do da própria pesquisa em seu contexto singu-
permitia observar e interrogar o outro, elucidando lar, situado.
os significados e a lógica das concepções e práti- Vê-se que a atividade auto-reflexiva e a pro-
cas nativas e fornecia ao pesquisador uma pauta blemática do outro como objeto de interesse da
de condutas e atividades metódicas, rotineiras pesquisa participante encontram um estatuto cla-
ou padronizadas. Mas, como mostra o angusti- ramente constituinte nesta perspectiva. As des-
ado diário do antropólogo, “as normas meto- cobertas do trabalho de campo servem mais para
dológicas, quando confrontadas com a realida- testar os limites e insuficiências das teorias con-
de do trabalho de campo e com a presença con- sagradas do que para confirmá-las e os pesqui-
creta e ativa do outro, tornam-se instáveis, pre- sados migram da posição de “objetos” de estudo
cárias”5, insinuando que o interjogo de identida- para aquela de colaboradores e interlocutores
de e alteridade na relação entre pesquisador e qualificados para construção do conhecimento
pesquisados e a auto-reflexão do pesquisador sobre fenômenos sociais e humanos.
longe de serem “neutralizados” pelo método são, Nesta visão conta, sobremaneira, o recurso
na verdade, dimensões constitutivas da pesquisa metodológico a diferentes vozes e a conseqüente
participante. importância da memória, das histórias de vida e
A retomada da tradição clássica da antropo- das biografias. Busca-se, freqüentemente, a cons-
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Schmidt, M. L. S.

trução de discursos contra-hegemônicos, basea- método e ética, esta última entendida como mo-
dos não só na polissemia e polifonia em torno de rada ou modo de habitar. A compreensão, neste
um mesmo fenômeno, mas, também, na acolhi- caso, é efeito dos movimentos de afastamento e
da de formas do conhecimento do senso comum aproximação do outro e de si mesmo. A com-
e do saber popular. preensão é, ainda, construída no vai-e-vem de
Concluindo, a inclusão do outro como inter- representações ou de modos de viver, sentir e
locutor e a abertura para questionar as dimen- pensar o outro e a si mesmo no encontro: o co-
sões éticas e de poder do processo de pesquisa nhecimento que resulta do encontro é, por isso,
assinalam a pesquisa participante como diálogo, produto de posicionamentos e maneiras de se
negociação e interlocução culturais e sociais. Ela conduzir, envolvendo a atividade crítica do pes-
depende do interesse e do respeito genuínos do quisador e do outro.
pesquisador pelos sentidos e significados que seu A ética deste encontro pede a apropriação de
interlocutor atribui aos fenômenos estudados e gestos e atitudes que, quando são embaraçosos
da focalização do processo de pesquisa como para o modelo metodológico, tendem a ser omi-
produtor de conhecimento. Ao considerar o ou- tidos ou excluídos. Esta necessidade de apropria-
tro como parceiro, não só o processo de pesqui- ção faz da pesquisa um experimento de auto-re-
sa passa a lidar com outras interpretações dos flexão e um local de articulação de diferentes iden-
fenômenos estudados, quanto se abre para refle- tidades/alteridades, tratando não só da compre-
tir sobre as relações de poder entre pesquisador e ensão do pesquisador diante de um outro, mas,
interlocutor ou colaborador e sobre o sentido e a igualmente, deste outro diante do pesquisador.
utilidade da investigação para ambos. A produção de conhecimento sobre um fe-
nômeno ou um tema é acompanhada de efeitos
de reconhecimento e desconhecimento de luga-
Pesquisa participante de matriz res de identidade e alteridade, no interjogo de
etnográfica, ética e formação estilos de conhecer e interpretar o mundo vivido,
de tal forma que a pesquisa sobre algo acumula,
Maurice Merleau-Ponty14, em texto originalmente também, no par pesquisador/interlocutor, conhe-
publicado em 1960, fala do trabalho etnográfico cimento sobre si, sobre o outro e sobre o proces-
como a criação de um espaço comum entre pes- so de construção do encontro etnográfico e sua
quisadores e aqueles outros que se deseja conhe- função ou utilidade para ambos.
cer, espaço em que uns e outros se tornam mutu- O segundo elemento a salientar, intimamente
amente inteligíveis. Numa frase, para o filósofo, ligado ao primeiro, refere-se à experiência de
o encontro etnográfico tem por tarefa “alargar campo como sendo, em si mesma, formativa.
nossa razão para torná-la capaz de compreen- O pesquisador participante precisa, é claro,
der aquilo que em nós e nos outros precede e de educação teórica e conceitual. Porém, assim
excede a razão”. como na esfera da ética como morada, a pesqui-
Clifford Geertz15, na mesma direção de Mer- sa de campo ou o encontro etnográfico depen-
leau-Ponty, define o objetivo da antropologia dem, fundamentalmente, da experiência prática.
como sendo o de “alargamento do universo do A experiência prática convoca o pesquisador para
discurso humano” e, tomando o trabalho de cam- a reinvenção do método no plano concreto das
po etnográfico como prática deste alargamento, relações com outros, como ele, autônomos, obri-
sugere que o fundamental do ofício do pesquisa- gando-o a responder pessoalmente pela distri-
dor em campo, como experiência pessoal, é situ- buição democrática dos lugares de escuta, fala e
ar-se entre outros que lhe são estranhos. ação no decorrer da pesquisa, pelas formas de
Estas duas referências parecem suficientes apropriação e destinação do conhecimento ela-
para indicar alguns elementos pertinentes à dis- borado e pela apreciação crítica de efeitos de do-
cussão sobre formação ética. minação e de emancipação do conhecimento e
O primeiro elemento de caráter geral a ser sua divulgação5.
destacado é, justamente, a implicação pessoal do Vê-se, pois, que a formação do pesquisador
pesquisador num movimento de aproximar-se participante enseja a formação ética, num movi-
de um outro que, no princípio, ele não conhece e mento de mútuo pertencimento: a forma de pes-
não compreende. quisar que se traduz no método é, nesta circuns-
Aproximar-se remete à experiência de situar- tância, morada, modo de habitar.
se que, por sua vez, constitui a pesquisa de cam- Princípios e valores, nesta concepção, estão
po. Esta forma, por assim dizer, faz coincidir inscritos nas bases teóricas, nos objetivos, na
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metodologia e nos procedimentos de um projeto tenha alguma chance de acontecer. Enumera-se,
de pesquisa. Isso que dizer que a ética do pesqui- de forma esquemática, algumas destas disposi-
sador perpassa todas as fases do processo de in- ções, cuja apropriação e metabolização depen-
vestigação e, mesmo, o engaja numa responsa- dem do trabalho constante de reflexão sobre a
bilidade que se desdobra e segue depois de con- matéria concreta de cada trajeto de pesquisa.
cluída, formalmente, a pesquisa. Convém lembrar que as atitudes são apre-
sentadas como um ponto de partida e de apoio
para o debate e não como receituário a seguir,
Considerações finais renovando o convite à sua apropriação e meta-
bolização nas situações concretas de pesquisa.
O conhecimento na área de saúde tem se benefi- Atitudes de interesse para a formação ética
ciado de um conjunto interessante de pesquisas do pesquisador:
de cunho qualitativo sobre, entre outros temas 1. Busca de interlocução e diálogo no traba-
relevantes, a implementação de políticas públi- lho de campo, visando compreender o sentido e
cas, as representações de saúde e doença, as for- os significados da experiência de outros próxi-
mas de cuidado e as diferenças culturais, as di- mos ou distantes.
mensões psicológicas, sociais e culturais presen- 2. Distribuição democrática de lugares de es-
tes nas maneiras de aderir ou recusar tratamen- cuta, fala e decisão entre pesquisador e colabora-
tos, cuidados preventivos ou ações de cidadania dores ou interlocutores.
ligadas à promoção de saúde, o trabalho multi- 3. Disposição para negociar e refazer os contra-
profissional e interdisciplinar. tos ou pactos de trabalho compartilhado entre
A pesquisa participante de inspiração etno- pesquisador e colaborador sempre que necessário.
gráfica oferece-se como um campo possível de 4. Empenho no esclarecimento, fidelidade,
formação em que o aprendizado da teoria e do respeito e solidariedade às formas de viver dese-
método de investigação está indissociavelmente nhadas pelos colaboradores e cuidado em sua
ligado à formação ética. Os temas da saúde que transcrição em texto.
merecem uma abordagem etnográfica são, por 5. Embora os efeitos políticos e ideológicos
essa razão, um território propício à formação da divulgação e recepção de uma pesquisa não
ética, unindo o ensino teórico à aprendizagem possam ser planejados ou controlados pelo pes-
experiencial que advém, principalmente, do tra- quisador, a antevisão e a ponderação destes even-
balho de campo. tuais efeitos podem fazer parte do horizonte de
A proposição de experiências iniciais de pes- preocupações presentes no momento da escrita,
quisa etnográfica ainda nos cursos de gradua- direcionando escolhas sobre o quê, como e para
ção, em disciplinas de treino de pesquisa ou em quem escrever.
projetos de iniciação científica, pode contribuir 6. Abertura para sempre que possível e como
para a formação ética. O enquadre das institui- atitude metódica da pesquisa de campo realizar
ções de ensino superior, circunscrevendo um es- revisão conjunta com os colaboradores de trans-
paço protegido para a experiência do aprendiz, crições de relatos orais e de observações, bem
por meio da orientação e de grupos ou seminári- como de textos interpretativos.
os de discussão, é fecundo para a reflexão que 7. Atribuição de créditos, por ocasião de publi-
antecede e acompanha todas as fases de uma pes- cações, aos colaboradores, bem como uso de no-
quisa etnográfica, constituindo, simultaneamen- mes próprios de narradores e interlocutores quan-
te, o modo de pesquisar ou método e sua ética. do eles assim desejarem e omissão sigilosa de no-
O deslocamento do pesquisador em direção mes e outras informações que possam identificá-
ao universo de vida de um outro, próximo ou los quando eles assim preferirem ou precisarem.
distante, é, muitas vezes, geográfico: outra cidade, 8. Discussão de formas de divulgação de re-
outro bairro, outra instituição, enfim, outro lu- sultados de pesquisa que possam interessar aos
gar. E, é, ainda e principalmente, a disposição para colaboradores.
mobilizar seus modos próprios de viver, pensar e Como se vê, trata-se de disposições cuja rea-
sentir para encontrar e compreender modos pró- lização depende do trabalho de pensamento e da
prios de viver, pensar e sentir de um outro. escolha e do posicionamento do pesquisador em
Estes deslocamentos têm em sua origem situação. A adesão a esta pauta de atitudes não
motivos éticos que dão sentido e direção ao dese- antecede a pesquisa concreta que ele realiza, a
jo de pesquisar. O encontro etnográfico requer, é não ser como intenção, mas consubstancia-se ou
verdade, certas atitudes de partida para que ele não no processo mesmo de pesquisar.
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Schmidt, M. L. S.

Referências

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tativas em saúde [tese]. São Paulo (SP): Faculdade São Paulo: T. A. Queiroz; 1979.
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