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ARTIGO ARTICLE
Pesquisa participante e formação ética do pesquisador
na área da saúde
Abstract The present article discusses Ethics con- Resumo O presente artigo discute o conceito de
cept as dwell and way of dwelling, aiming to articu- ética como morada e modo de habitar e busca
late it with some elements of participative research articulá-lo a elementos da pesquisa participante
from an ethnographic matrix. Mainly, it focuses the de matriz etnográfica, mostrando a relação in-
idea of the ethical subject’s autonomy, associating it dissociável entre método e ética nesta perspecti-
with self-reflection and alterity in ethnography. Yet, va. Focaliza, sobretudo, a idéia de autonomia do
it approaches the participative research in an eth- sujeito ético, associando-a às temáticas da auto-
nographic perspective as a praxis that induces to reflexão e da alteridade na etnografia. Aborda,
health researcher’s ethical formation. ainda, a pesquisa participante de cunho etno-
Key words Participative research, Ethnography, gráfico como prática propícia à formação ética
Ethics for research, Ethical formation do pesquisador na área de saúde.
Palavras-chave Pesquisa participante, Etnogra-
fia, Ética de pesquisa, Formação ética
1
Departamento de
Psicologia da
Aprendizadem, do
Desenvolvimento e da
Personalidade, Instituto de
Psicologia, USP. Av. Prof.
Mello Moraes 1721/Bloco
G, Cidade Universitária.
05508-030 São Paulo SP.
malu@usp.br
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Schmidt, M. L. S.
Existem, contudo, propostas de pesquisa ca- da, tratar mais especificamente da etnografia in-
pazes de oferecer elementos fecundos para a pon- terpretativa.
deração em torno da formação, tanto no terreno O termo participante remete à controvertida
das teorias metodológicas quanto no das experi- presença de um pesquisador num campo de in-
ências concretas de trabalho de campo. vestigação formado pela vida cotidiana de indi-
A pesquisa participante inspirada na antro- víduos, grupos, comunidades ou instituições pró-
pologia interpretativa e no trabalho de campo ximos ou distantes. Esta presença do pesquisa-
etnográfico, na medida em que retoma e proble- dor no campo encontra sua complementação no
matiza as experiências fundadoras da antropo- convite ou convocação do outro – indivíduo,
logia moderna, abre lugar a duas temáticas de grupo, comunidade ou instituição – para parti-
interesse para o debate sobre formação ética: a cipar da investigação como informante, colabo-
auto-reflexão e a alteridade. Trata-se de dois te- rador ou interlocutor.
mas que enlaçam a ética e a política das investi- Na pesquisa participante, a relação entre pes-
gações em que o pesquisador se desloca de seu quisador e pesquisado pode aparecer diferente-
meio para estudar um outro, próximo ou dis- mente, como os termos informante, colaborador
tante, na sua própria “casa” ou lugar. As lições e interlocutor, acima mencionados, apontam.
deste tipo de deslocamento continuam a rever- Informante é um termo da tradição etnográ-
berar nas situações de pesquisa em outras disci- fica que ainda é usado não só na antropologia e
plinas como a psicologia, a sociologia, a história na sociologia como também naquelas áreas que
oral ou a geografia. Delas é possível aproximar, se aproximaram do método etnográfico mais
também, as pesquisas das ciências sociais e hu- recentemente. Ele sugere um tipo de participação
manas na esfera da saúde. do pesquisador e do pesquisado em que a con-
dução da pesquisa, os objetivos e interesses, as
formas de apropriação dos dados de observação
Pesquisa participante, de campo e de entrevistas e a produção de conhe-
auto-reflexão e alteridade cimento são prerrogativas do pesquisador: o in-
formante “presta informações”. Maria Isaura
A pesquisa participante comporta algumas ver- Pereira de Queiroz9, socióloga que, em nosso
tentes metodológicas diferentes, porém, aparen- meio, foi e é importante referência nos estudos
tadas; todas, por continuidade ou ruptura, rela- com relatos orais, escreve com nitidez sobre esta
cionadas com a matriz etnográfica que, na virada maneira de conceber a participação.
do século XIX para o XX, legitimou a antropolo- Colaborador indica uma repartição dos lu-
gia e a etnografia como disciplinas científicas. gares de produção de conhecimento ou compre-
Termos como pesquisa-ação, pesquisa-inter- ensão no processo de pesquisa. Os objetivos e
venção e mesmo o método etnográfico identifi- interesses são do pesquisador mas, em geral, há,
cam discursos e práticas de investigação que não no relato final da investigação, espaços para que
estão circunscritos à antropologia e sim perpas- os “pesquisados” falem por si, articulados àque-
sam várias áreas das ciências sociais e humanas, les em que o pesquisador comenta e interpreta
tais como a sociologia, as psicologias educacio- os achados do campo e das entrevistas. Ecléa
nal, social e clínica, a psicossociologia, a geogra- Bosi10, com seu clássico estudo de psicologia so-
fia humana, a terapia ocupacional, a história oral, cial sobre o trabalho de memória de velhos, pro-
a comunicação social, a economia, entre outras. porciona um interessante exemplo de pesquisa
Ao mesmo tempo, muitas destas áreas já produ- em colaboração.
ziram no interior de suas praxes ou em experiên- A figura do interlocutor evidencia uma reori-
cias interdisciplinares um saber acumulado so- entação da tradição etnográfica no contexto con-
bre saúde. temporâneo de estudos que focalizam a inter-
As diferenças e afinidades entre estas três gran- pretação dos sentidos e significados de modos
des vertentes da pesquisa participante – pesqui- de viver, sentir e pensar que constituem a plurali-
sa-ação, pesquisa-intervenção e método etnográ- dade de mundos coexistentes e conectados na
fico – foram tratadas em detalhe em artigo pu- atualidade. Desta interpretação, os “pesquisados”
blicado por mim em 20065 e podem ser aprofun- não estão excluídos, tornando-se parceiros inte-
dadas com a leitura de autores como Brandão6, lectuais dos pesquisadores na compreensão de
Rocha e Aguiar7 e Pereira8, entre outros. Para as fenômenos e na elaboração do conhecimento. O
finalidades deste artigo, contudo, serão clarifica- encontro etnográfico, neste caso, é objeto de cons-
das algumas referências comuns para, em segui- tante análise crítica e lugar de negociações e acor-
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trução de discursos contra-hegemônicos, basea- método e ética, esta última entendida como mo-
dos não só na polissemia e polifonia em torno de rada ou modo de habitar. A compreensão, neste
um mesmo fenômeno, mas, também, na acolhi- caso, é efeito dos movimentos de afastamento e
da de formas do conhecimento do senso comum aproximação do outro e de si mesmo. A com-
e do saber popular. preensão é, ainda, construída no vai-e-vem de
Concluindo, a inclusão do outro como inter- representações ou de modos de viver, sentir e
locutor e a abertura para questionar as dimen- pensar o outro e a si mesmo no encontro: o co-
sões éticas e de poder do processo de pesquisa nhecimento que resulta do encontro é, por isso,
assinalam a pesquisa participante como diálogo, produto de posicionamentos e maneiras de se
negociação e interlocução culturais e sociais. Ela conduzir, envolvendo a atividade crítica do pes-
depende do interesse e do respeito genuínos do quisador e do outro.
pesquisador pelos sentidos e significados que seu A ética deste encontro pede a apropriação de
interlocutor atribui aos fenômenos estudados e gestos e atitudes que, quando são embaraçosos
da focalização do processo de pesquisa como para o modelo metodológico, tendem a ser omi-
produtor de conhecimento. Ao considerar o ou- tidos ou excluídos. Esta necessidade de apropria-
tro como parceiro, não só o processo de pesqui- ção faz da pesquisa um experimento de auto-re-
sa passa a lidar com outras interpretações dos flexão e um local de articulação de diferentes iden-
fenômenos estudados, quanto se abre para refle- tidades/alteridades, tratando não só da compre-
tir sobre as relações de poder entre pesquisador e ensão do pesquisador diante de um outro, mas,
interlocutor ou colaborador e sobre o sentido e a igualmente, deste outro diante do pesquisador.
utilidade da investigação para ambos. A produção de conhecimento sobre um fe-
nômeno ou um tema é acompanhada de efeitos
de reconhecimento e desconhecimento de luga-
Pesquisa participante de matriz res de identidade e alteridade, no interjogo de
etnográfica, ética e formação estilos de conhecer e interpretar o mundo vivido,
de tal forma que a pesquisa sobre algo acumula,
Maurice Merleau-Ponty14, em texto originalmente também, no par pesquisador/interlocutor, conhe-
publicado em 1960, fala do trabalho etnográfico cimento sobre si, sobre o outro e sobre o proces-
como a criação de um espaço comum entre pes- so de construção do encontro etnográfico e sua
quisadores e aqueles outros que se deseja conhe- função ou utilidade para ambos.
cer, espaço em que uns e outros se tornam mutu- O segundo elemento a salientar, intimamente
amente inteligíveis. Numa frase, para o filósofo, ligado ao primeiro, refere-se à experiência de
o encontro etnográfico tem por tarefa “alargar campo como sendo, em si mesma, formativa.
nossa razão para torná-la capaz de compreen- O pesquisador participante precisa, é claro,
der aquilo que em nós e nos outros precede e de educação teórica e conceitual. Porém, assim
excede a razão”. como na esfera da ética como morada, a pesqui-
Clifford Geertz15, na mesma direção de Mer- sa de campo ou o encontro etnográfico depen-
leau-Ponty, define o objetivo da antropologia dem, fundamentalmente, da experiência prática.
como sendo o de “alargamento do universo do A experiência prática convoca o pesquisador para
discurso humano” e, tomando o trabalho de cam- a reinvenção do método no plano concreto das
po etnográfico como prática deste alargamento, relações com outros, como ele, autônomos, obri-
sugere que o fundamental do ofício do pesquisa- gando-o a responder pessoalmente pela distri-
dor em campo, como experiência pessoal, é situ- buição democrática dos lugares de escuta, fala e
ar-se entre outros que lhe são estranhos. ação no decorrer da pesquisa, pelas formas de
Estas duas referências parecem suficientes apropriação e destinação do conhecimento ela-
para indicar alguns elementos pertinentes à dis- borado e pela apreciação crítica de efeitos de do-
cussão sobre formação ética. minação e de emancipação do conhecimento e
O primeiro elemento de caráter geral a ser sua divulgação5.
destacado é, justamente, a implicação pessoal do Vê-se, pois, que a formação do pesquisador
pesquisador num movimento de aproximar-se participante enseja a formação ética, num movi-
de um outro que, no princípio, ele não conhece e mento de mútuo pertencimento: a forma de pes-
não compreende. quisar que se traduz no método é, nesta circuns-
Aproximar-se remete à experiência de situar- tância, morada, modo de habitar.
se que, por sua vez, constitui a pesquisa de cam- Princípios e valores, nesta concepção, estão
po. Esta forma, por assim dizer, faz coincidir inscritos nas bases teóricas, nos objetivos, na
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