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Presidente da República do Brasil

Luiz Inácio Lula da Silva

Secretária Especial de Políticas para as Mulheres


Nilcéa Freire

Secretária Adjunta – Teresa Cristina Nascimento Sousa Subsecretária de Planejamento de Políticas para as Mulheres
Lourdes Maria Bandeira
Subsecretária de Articulação Institucional
Sônia Malheiros Miguel Chefe de Gabinete
Cíntia Rodrigues Dias Gouveia
Subsecretária de Monitoramento de Programas e Ações Temáticas
Aparecida Gonçalves Conselho Nacional dos Direitos da Mulher
Susana Cabral – Secretária Executiva

© 2009. Presidência da República. Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres

Elaboração, distribuição e informações


Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres – Presidência da República
Via N1 Leste, S/N, Pavilhão das Metas, Praça dos Três Poderes – Zona Cívica Administrativa
– cep: 70150-908 – Brasília – DF
Fones: (61) 3411-4246 ou 3411-4330 e Fax: (613326-8449
spmulheres@spmulheres.gov.br – www.presidencia.gov.br/spmulheres

Ligue 180 – Central de Atendimento à Mulher

Secretaria Executiva do Observatório Brasil da Igualdade de Gênero


Nina Madsen
Flávia Teixeira Guerreiro
Marcela Torres Rezende
Marcelo Grossi Mouta
Jullyane Carvalho

Projeto gráfico e diagramação


Kiko Nascimento

Revisão e Edição
Secretaria Executiva do Observatório Brasil da Igualdade de Gênero

Distribuição gratuita
1ª Tiragem: 3.000 exemplares em dez/2009

As opiniões emitidas nesta publicação são de exclusiva e inteira responsabilidade dos autores,
não exprimindo, necessariamente, o ponto de vista da Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres.

É permitida a reprodução parcial ou total desta obra, desde que citada a fonte.

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)

Brasil. Presidência da República. Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres.


Revista do Observatório Brasil da Igualdade de Gênero. 1ª Impressão. Brasília: Secretaria Especial
de Políticas para as Mulheres, 2009. 88 p.

1. Mulheres. 2. Mulheres e Poder. 3. Igualdade de gênero. 4. Brasil


I. Observatório Brasil da Igualdade de Gênero. II. Secretaria Especial de Políticas para Mulheres. III. Brasil
Índice

Editorial Dossiê Mulheres e Poder


03 Apresentação. 30
Farol
Entrevista: 31
05 Prof. Dr. Luis Felipe Miguel.

Notícias do Congresso Responsabilidades familiares, 36


09 por Márcia Vasconcelos.

Especial: Mulher e Poder, 44


Impactos da Crise sobre a Vida por Profa. Dra. Céli Regina Jardim Pinto.
das Mulheres

17 Mulheres Negras e Poder,


por Dra. Sueli Carneiro.
50
Especial:
Enfrentamento à Violência Mulheres nos espaços de poder e decisão: o 56
contra as Mulheres Brasil no cenário internacional, por Luana

23 Pinheiro e Alexandre Branco.

Mulheres na Política, 65
por Fátima Pacheco Jordão.

Existe democracia sem as mulheres? 67


Uma reflexão sobre a função e o apoio às ações
afirmativas na política, por Patrícia Rangel.

Cotas eleitorais para mulheres: 76


uma revisão da jurisprudência dos Tribunais
Eleitorais Brasileiros, por CEBRAP – Núcleo Direito
e Democracia.

Mulheres em espaços de poder e decisão


Subrepresentação feminina é constatada também
nos Secretariados dos Estados e das Capitais, por
Alessandra Soares Muniz Gomes. 82
Participação das Mulheres nas Direções das
Centrais Sindicais Brasileiras, por Lilian Arruda
Marques e Patrícia Costa. 86
Editorial

com muita alegria que lançamos essa primeira edição da Revista


do Observatório Brasil da Igualdade de Gênero, organizada pela
Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres (SPM/PR) e elaborada
a várias mãos, por diversas parceiras e convidadas.
Neste primeiro número, destacamos o tema foco do Observatório
em 2009: Mulheres, Poder e Decisão, traduzido no Dossiê Mulheres
e Poder. Tema já antigo na agenda e nas reflexões feministas acerca
das desigualdades de gênero, foi somente a partir do lançamento
do II Plano Nacional de Políticas para as Mulheres, em 2008, que
ele se transformou em matéria de políticas públicas no âmbito do
Governo Federal brasileiro. Para a SPM/PR, a escolha deste tema
como foco do monitoramento do Observatório para 2009 reflete o
compromisso desta instituição e deste Governo com as mulheres e
com o fortalecimento da democracia.
A Revista traz também um conjunto de matérias sobre temas
que marcaram o ano, a exemplo dos especiais sobre o Impacto da
Crise Econômica sobre a Vida das Mulheres e sobre o Enfrentamento
da Violência contra as Mulheres.
Esperamos que o material aqui produzido e compilado possa
servir de insumo para discussões e reflexões acerca das desigualdades
de gênero ainda marcantes em nossa sociedade, de forma a contribuir
para a construção de um país mais justo e igualitário para mulheres
e homens.

Ministra Nilcéa Freire.

3
Farol

Mini-reforma eleitoral aprova


pontos para ampliar participação
das mulheres na política
Foi aprovada em segundo turno na Câmara a seguinte redação: Do número de vagas resultan-
dos Deputados uma mini-reforma eleitoral que te das regras previstas neste artigo, cada partido
estabelece novas regras e ações afirmativas para ou coligação preencherá o mínimo de 30% e o
as mulheres. As novas regras começam a valer já máximo de 70% para candidaturas de cada sexo.
nas próximas eleições, em 2010. Sancionada pelo A partir de agora, os partidos têm que des-
Presidente Lula e publicada em 29 de setembro de tinar 5% do Fundo Partidário à criação e manu-
2009, a Lei 12.034 avança na questão da amplia- tenção de programas de promoção e difusão da
ção da participação feminina no âmbito político, participação política das mulheres. O partido que
contribuindo para um aumento quantitativo da re- não cumprir essa disposição deverá, no ano subse-
presentação política das mulheres nos partidos. quente, adicionar mais 2,5% do Fundo Partidário
No texto anterior da chamada lei de cotas para tal destinação. Além disso, devem reservar
para mulheres, constava apenas a reserva das va- ao menos 10% do tempo de propaganda partidária
gas. Com a mini-reforma, os partidos são obriga- para promover e difundir a participação política
dos a preenchê-las, e o artigo passa a vigorar com feminina.

Direito à comunicação e promoção


da diversidade na mídia
Convocada em abril por Decreto Presidencial e ticipação de movimentos sociais e outras organi-
organizada pelo Ministério das Comunicações com zações da sociedade civil. A Conferência contará
a colaboração da Secretaria Geral e da Secretaria com a participação de delegadas, delegados e re-
de Comunicação Social da Presidência da Repú- presentantes da sociedade civil, eleitos em confe-
blica, a 1ª Conferência Nacional de Comunicação rências estaduais e distrital, além de representan-
(Confecom) discutirá meios para a construção de tes do Poder Público, que discutirão a formulação,
direitos e cidadania na era digital. o monitoramento e o acompanhamento das polí-
A 1ª Confecom acontece em Brasília, entre ticas públicas relacionadas às comunicações, com
14 e 17 de dezembro de 2009, após debates pre- o estabelecimento de mecanismos democráticos e
liminares em diversas cidades do país, com a par- participativos.

5 5
Farol

Assembleia Geral da ONU aprova criação


de agência única para as mulheres
A Assembleia Geral, órgão máximo de decisão ONU dedicados às mulheres: Fundo de Desenvol-
da Organização das Nações Unidas, aprovou, no vimento das Nações Unidas para a Mulher (Uni-
dia 14 de setembro, resolução que dispõe sobre fem), Assessoria Especial do Secretário Geral para
nova entidade responsável por promover os direi- Assuntos de Gênero (OSAGI), Divisão das Nações
tos das mulheres e a luta pela igualdade de gêne- Unidas para o Avanço das Mulheres (DAW) e Ins-
ro em âmbito internacional. O texto, aprovado na tituto Internacional de Pesquisa e Treinamento
63ª sessão da Assembleia Geral, reflete o apoio para o Avanço das Mulheres (INSTRAW).
dos países membros à criação de uma agência A estruturação do organismo ficará sob a
consolidada para tratar das questões que dizem responsabilidade do Secretário-Geral da ONU,
respeito às mulheres, e recebeu o aval dos 192 Ban Ki-moon. A agência única para as mulheres
membros da Assembleia. deve ter maior status dentro da Organização e
A nova agência, cuja instauração está previs- será liderada por uma Subsecretária-Geral, ter-
ta para meados de 2010, deverá unificar o traba- ceiro cargo em importância dentro do Sistema
lho já desenvolvido pelos quatro organismos da ONU.

Projeto Diálogos é apresentado na 1ª Conseg


O projeto Diálogos, organizado e conduzido segurança pública no país. As 213 mulheres parti-
pela SPM/PR, se fundamentou na concepção de cipantes apresentaram mais de 60 diretrizes sobre
que mulheres e homens vivenciam a violência de o tema. Os resultados finais da iniciativa foram
diferentes maneiras e possuem diferentes vulne- apresentados pela Ministra Nilcéa Freire na I Con-
rabilidades e necessidades de segurança. Seu ob- ferência Nacional de Segurança Pública - Conseg
jetivo: identificar como as mulheres percebem a - realizada em Brasília entre os dias 27 e 30 de
questão e levantar propostas para a melhoria da agosto de 2009.

6
Farol

Há trinta anos, a primeira mulher


chegava ao Senado Federal Brasileiro
Em maio de 1979, assumia o mandato a pri- pelo voto direto, no Brasil, foram Junia Marise, de
meira senadora eleita da história brasileira, Euni- Minas Gerais, e Marluce Pinto, do Ceará, e exerce-
ce Michiles, do PDS do Amazonas. Eleita pelo voto ram seus mandatos a partir de 1991.
indireto, em 1978, como suplente de João Bosco Apesar de representarem a maior fatia do
Lima, Michiles assumiu a vaga com o falecimen- eleitorado, as mulheres continuam subrepresen-
to do titular, e foi pioneira na defesa das causas tadas na maioria das casas políticas, inclusive
femininas no Congresso Nacional no fim dos anos no Senado Federal. Na atual legislatura, trin-
1970 e início dos 1980. ta anos depois da posse de Michiles, há apenas
Antes da senadora Michiles, ainda no Impé- nove Senadoras da República, eleitas por quatro
rio, a Princesa Isabel havia exercido o cargo de se- partidos diferentes, representando nove Unida-
nadora, por direito dinástico, após ter completado des da Federação. Do total de 81 senadores, 72
25 anos de idade. As primeiras senadoras eleitas são homens.

Procuradora-Geral da República
participa de sessão do STF
Pela primeira vez na história, uma mulher ral (TRE-RJ), foi membro da Comissão Permanente
participou, no dia 1º de julho de 2009, de ses- de Atuação na Defesa dos Interesses Indígenas,
são do Supremo Tribunal Federal na condição de exerceu a Coordenadoria de Defesa do Meio Am-
procuradora-geral da República. Deborah Duprat biente e dos Direitos do Consumidor e, também, a
de Britto Pereira ocupava o posto interinamente, Coordenadoria de Defesa dos Interesses Difusos e
desde que o então procurador-geral, Antonio Fer- Coletivos, além de ter integrado as 6ª e 7ª Câma-
nando de Souza, deixou o cargo. ras de Coordenação e Revisão.
A procuradora-geral em exercício, que ingres- Deborah permaneceu no cargo de procurado-
sou no Ministério Público Federal em outubro de ra-geral da República até o Senado Federal saba-
1987, exerceu funções de representante do MPF na tinar e aprovar a indicação do nome de Roberto
apuração das sessões eleitorais da 1ª Zona Eleito- Gurgel para substituir Antonio Fernando.

7
Farol

Mais Mulheres no Poder


As mulheres são mais da metade da popu- da participação feminina nos cargos de decisão
lação e do eleitorado, têm maior nível de esco- no Executivo, Legislativo e Judiciário, nos par-
laridade e representam quase a metade (50%) tidos políticos, nas empresas públicas e privadas
da população economicamente ativa do país. e em entidades representativas de movimentos
Entretanto, não chegam a 20% nos cargos de sociais. A campanha nasceu da iniciativa do
maior nível hierárquico no Parlamento, nos Go- Conselho Nacional de Políticas para as Mulhe-
vernos Municipais e Estaduais, nas Secretarias res, do Fórum Nacional de Instâncias de Mulhe-
do Primeiro Escalão do Poder Executivo, no Ju- res de Partidos Políticos e da Secretaria Especial
diciário, nos Sindicatos e nas Reitorias. Apenas de Políticas para as Mulheres da Presidência da
nas empresas privadas as mulheres ocupam 20% República. Seu objetivo é promover uma ação
das chefias. Uma cultura de divisão sexual do transformadora das estruturas de poder e das
trabalho, preconceito e subalternidade ainda di- instituições, assim como de cultura e menta-
ficulta a autonomia e a presença feminina nas lidade, que gerem novas relações sociais entre
decisões cruciais à vida da comunidade. mulheres e homens.
A campanha “Mais Mulheres no Poder: Eu Acesse o portal www.maismulheresnopoder-
assumo este compromisso!” visa a estimular a brasil.com.br e junte-se a nós na luta por mais
autonomia, o empoderamento e a ampliação mulheres no poder.

Cinco mulheres agraciadas


com o Prêmio Nobel em 2009
Dos dez prêmios outorgados pelo Nobel Jack William Szostak, também biólogo. A ga-
2009, cinco - nas áreas de Medicina, Química, nhadora do Nobel de Química foi a israelense
Literatura e Economia - foram obtidos por mu- Ada E. Yonath, que dividiu o prêmio com o físi-
lheres. É um número recorde. Desde 1901, quan- co Venkatraman Ramakrishnan e com o químico
do foi instituído, o prêmio foi concedido a ape- Thomas Arthur Steitz. Já o Nobel de Literatura
nas 35 mulheres, de um total de 789 nomes. ficou com a escritora Herta Müller. E a cientista
As agraciadas foram a bióloga Elizabeth política Elinor Ostrom, primeira mulher a con-
Helen Blackburn e a bióloga molecular Carol W. quistar o Nobel de Economia, dividiu o prêmio
Greider, que dividiram o Nobel de Medicina com com Oliver Eaton Williamson, economista.

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Notícias do Congresso
As mais relevantes proposições e iniciativas
legislativas que tramitaram no Congresso no
primeiro semestre de 2009.

Contribuição do CFEMEA1

Criação da Procuradoria Especial A novidade recebeu o apoio como sustenta o supracitado proje-
da Mulher na Câmara dos ministros e autoridades políti- to de resolução.
cas. Para Nilcéa Freire, Ministra da Além disso, será possível
Na primeira semana de junho Secretaria Especial de Políticas para atuar no que se refere às leis que
de 2009, foi instalada a Procura- as Mulheres, a Procuradoria deve tramitam no sentido de benefi-
doria Especial da Mulher da Câmara atuar em parceria com os órgãos ciar as mulheres. O debate sobre
dos Deputados. A função do novo do Executivo, sendo fundamental a agenda política levantada por
órgão é a de receber e encaminhar para o desenvolvimento de ações parlamentares oferece mecanismos
denúncias de violação dos direitos na busca pela defesa dos direitos para avaliar seu compromisso com
femininos, tais como discrimina- das mulheres. determinados temas ou setores da
ção de gênero e violência contra as A importância da criação da sociedade, no caso, os direitos e o
mulheres. Ela terá o mesmo status Procuradoria da Mulher está na bem-estar das mulheres. Sobre as
de outros órgãos da Casa, como a possibilidade de fortalecimento da questões tratadas no Congresso,
Ouvidoria e a Procuradoria. atuação feminina na Câmara e no destacam-se os temas: trabalho e
Além de receber denúncias, o valor emblemático do espaço insti- previdência (dada a condição de
órgão tem como atribuições: sub- tucionalizado que foi conquistado. marginalização feminina no mer-
sidiar as comissões da Câmara com O próprio projeto de resolução so- cado de trabalho), violência con-
estudos de gênero, em especial bre a criação da Procuradoria Espe- tra a mulher e saúde (dada a maior
sobre temas como a violência e o cial da Mulher justifica a sua im- dependência feminina em relação
déficit de representação política; portância por reconhecer que “his- a esse setor e urgência de atendi-
atuar junto a entidades públicas e toricamente as mulheres sofrem mento médico no campo da saúde
privadas na promoção de políticas discriminação e violência”. Além da reprodutiva e pediátrica).
que visem à promoção da igualdade relevância política pelas atividades As proposições legislativas
de gênero; fiscalizar a implementa- que irá desenvolver, a instalação apresentadas por legisladoras mu-
ção de tais políticas e campanhas da Procuradoria tem também um lheres, as mais dedicadas a propor
por parte do Executivo; e cooperar impacto simbólico importante, re- políticas para a coletividade femi-
com organismos nacionais e inter- presentando um compromisso com nina, apresentam um baixo índice
nacionais voltados à implementa- a necessidade de tomar medidas de aprovação (apenas 4% no perí-
ção de políticas para as mulheres. concretas para promover a igualda- odo de 1988 a 2002). Esse baixo
A criação da Procuradoria de de gênero na política. percentual aponta para o fato de
Especial da Mulher, promessa da Neste sentido, a Procuradoria que a atuação política feminina
campanha de Michel Temer à Pre- seria “uma demonstração concreta não é reconhecida nem ganhou le-
sidência da Câmara dos Deputados, de que a Câmara dos Deputados gitimidade dentro da Câmara. Mes-
significa a possibilidade de articu- considera a conquista da igualda- mo em áreas mais prestigiadas e
lar mais e melhor as políticas pú- de entre mulheres e homens nas com maior número de proposições
blicas voltadas às necessidades da atividades políticas, econômicas e legislativas aprovadas, a tendência
coletividade feminina. culturais do país uma prioridade”, se confirma. O trabalho da Procura-

1 O CFEMEA é o Centro Feminista de Estudos e Assessoria. 9


Notícias do Congresso
doria será frutífero, então, também que beneficiem toda a coletividade proteção social ao trabalho femi-
no sentido de fortalecer esse tipo feminina, desenvolvendo e fazendo nino, especialmente das mulheres
de proposição legislativa, incre- valer leis em prol da igualdade en- negras (sujeitas a múltiplas formas
mentando seu índice de aprovação tre os sexos nas diversas esferas da de discriminação no mercado de
na Casa. sociedade. trabalho) é fundamental para que
Entre as prioridades da Ban- elas possam alcançar a autonomia
cada Feminina está o incremento Reforma Tributária e a econômica. Calcula-se que, atual-
da participação feminina na polí- Ameaça à Seguridade Social mente, 30 milhões de mulheres e
tica. Como se pode ver no Dossiê cerca de 40 milhões de trabalhado-
“Mulheres e Poder” desta revista, O debate sobre a Reforma ras e trabalhadores estão à margem
a sub-representação das mulheres Tributária tramita no Congresso do sistema de proteção social. Com
na política institucional é reco- Nacional na forma da Proposta a fragilização do financiamento da
nhecida como um grave problema de Emenda Constitucional (PEC) Seguridade, será impossível incluir
em regimes eletivos, e vem sendo 233/2008. O Fórum Brasil do Or- e garantir a proteção a todas essas
apontada como sintoma do déficit çamento (FBO), articulação que re- pessoas.
democrático. O Brasil está entre úne diversas organizações sociais, Além disso, a proposta não
os países com os piores índices de foi interlocutor dos parlamentares aponta para a construção de um
representação feminina. Daí a ne- no debate sobre a proposta, que, sistema tributário pautado pela
cessidade de ações afirmativas e como denunciado em notas técni- progressividade da tributação da
mecanismos para aumentar a par- cas e cartas abertas2, ameaça o fi- renda e do patrimônio, limitando
ticipação das mulheres na política nanciamento das políticas públicas seus objetivos à simplificação, à
institucional. de combate às desigualdades, ao eliminação de tributos e ao fim da
Em suma, a Procuradoria é extinguir várias fontes de arreca- “guerra fiscal” entre os Estados.
importante por ser mais um me- dação e unificá-las no IVA-F (Im- A preocupação é de que a
canismo de ação afirmativa para posto sobre Valor Agregado Fede- Reforma Tributária promova redis-
mulheres em um espaço organiza- ral). tribuição da riqueza e bem-estar
do sob uma ótica masculina. Neste, E a população feminina será e contribua na reversão das desi-
ao contrário dos homens (que pos- uma das mais afetadas: a Seguri- gualdades sociais, fundadas em
suem relativa liberdade para atuar), dade Social é a principal forma de relações assimétricas de gênero
as mulheres têm suas ações e es- viabilizar serviços públicos que e raça. A arrecadação de recursos
tratégias constrangidas objetiva e desoneram as mulheres da dupla públicos deve criar condições para
subjetivamente. A partir de agora, jornada de trabalho (afazeres do- garantir a proteção social ao traba-
elas contam com mais uma ferra- mésticos e cuidados com crianças, lho das mulheres, especialmente às
menta para desenvolver iniciativas doentes e idosos). Além disso, a mulheres negras.

2. Nota Técnica disponível em: htt p://www.cfemea.org.br/temasedados/detalhes.asp?IDTemasDados=200. A divulgação do texto foi tema, ainda, do Boleti m nº 08

10 do Orçamento Mulher: htt p://74.53.188.162/~cfemeao/orcamento/index.php?opti on=com_content&task=view&id=95&Itemid=1. O CFEMEA também divulgou e


assinou a Carta do Rio de Janeiro, disponível em htt p://www.adital.com.br/site/noti cia.asp?lang=PT&cod=35995.
Notícias do Congresso
Quadro comentado sobre leis aprovadas no primeiro semestre de 2009
que repercutem na vida e nos direitos das mulheres.

Lei Aprovada Ementa Origem Comentário

Lei 11.935 de 2009 Altera o art. 36-C da Lei nº 9.656, PLC 1/2006 (PL Em maio de 2009, foi sancionada a Lei 11.935, que
de 3 de junho de 1998, que 1696/2003) altera a norma que dispõe sobre os planos e seguros
dispõe sobre os planos e seguros Geraldo Resende (PPS/ privados de assistência à saúde (Lei nº 9.656, de 1998),
privados de assistência à saúde, MS) obrigando-os a cobrirem o atendimento nos casos de
obrigando os planos de saúde a planejamento familiar, incluindo métodos e técnicas de
cobrirem o atendimento nos casos concepção e contracepção. Os planos poderão custear
de planejamento familiar, incluindo também a fertilização, pois a Lei de Planejamento Familiar
métodos e técnicas de concepção (Lei 9.263/96) inclui na definição de planejamento familiar
e contracepção. “os métodos e técnicas de concepção e contracepção
cientificamente aceitos e que não coloquem em risco a vida
e a saúde das pessoas”.
É notória a importância da nova Lei, pois muitos planos
e seguros privados de saúde não forneciam qualquer
método de concepção ou contracepção, remetendo
frequentemente os usuários e usuárias ao Sistema Único
de Saúde e sem o devido ressarcimento. E, muitas vezes,
tais procedimentos não estão disponíveis na rede do SUS.
Além disso, o peso da responsabilidade pelo planejamento
familiar em geral recai sobre as mulheres, que são as que
mais se preocupam com o método a ser utilizado e têm de
arcar com as conseqüências dessa escolha. Por isso, a
cobertura dada pelos planos e seguros de saúde é medida
fundamental para possibilitar às mulheres o acesso a um
planejamento familiar de qualidade.

Lei 11.942 de 2009 Dá nova redação aos arts. 14, 83 e PLC 105/2003 (PL A Lei 11.942, sancionada em maio deste ano, modifica a
89 da Lei nº 7.210, de 11 de julho 335/1995) Lei de Execução Penal (Lei nº 7.210/1984) para assegurar
de 1984 – Lei de Execução Penal, Fátima Pelaes (PSDB/AP) assistência às mães presidiárias e a seus/suas filhos/
para assegurar às mães presas e as. Visa a atender as especificidades desse segmento
aos recém-nascidos condições de mulheres que cresce a cada ano, cumprem pena em
mínimas de assistência. condições desumanas, sem visitas de sua família e, em
alguns casos, no mesmo estabelecimento penal masculino.
A nova Lei já está em vigor. No entanto, detalha direitos
já conquistados, como o atendimento médico durante a
gestação, parto e pós-parto e o período de permanência do
recém-nascido no berçário e da criança na creche. Confira
as novas garantias:
i) acompanhamento à mulher, principalmente no pré-natal e
no pós-parto. O acompanhamento também é extensivo ao
recém-nascido (Art. 14, § 3º)
ii) os estabelecimentos penais femininos deverão ser
dotados de berçário para que as presidiárias mães possam
cuidarde e amamentar sua prole, no mínimo, até seis
meses de idade (Art. 83, § 2º)
iii) as penitenciárias de mulheres serão dotadas de
seção para gestante e parturiente e de creche para
abrigar crianças maiores de seis meses e menores de
sete anos. Tanto a seção quanto as creches devem
garantir atendimento por pessoal qualificado e horário de
funcionamento que garanta a melhor assistência à criança e
à sua responsável. (Art. 89)
Para cumprir a Lei, o poder público deve garantir recursos
em consonância com as normas de finanças públicas.

Continua

11
Notícias do Congresso
Lei Complementar Acrescenta dispositivos à Lei PLP 217/2004 (PLS Ser cidadã significa, além de votar, acompanhar e examinar
131 de 2009 Complementar nº 101, de 4 de 130/2004) as ações governamentais e, sobretudo, conhecer a forma
maio de 2000, que estabelece João Capiberibe (PSB/AP) como o dinheiro público é aplicado. É com a finalidade
normas de finanças públicas de garantir esse controle social que a Lei Complementar
voltadas para a responsabilidade nº 131, sancionada em maio de 2009, modifica a
na gestão fiscal e dá outras Lei de Responsabilidade Fiscal (Lei Complementar nº
providências, a fim de determinar 101/2000). Ela inclui na LRF dispositivos que aumentam
a disponibilização, em tempo real, a transparência dos gastos públicos em estados e
de informações pormenorizadas municípios. Os entes deverão divulgar informações
sobre a execução orçamentária detalhadas sobre a execução orçamentária e financeira
e financeira da União, dos em tempo real. Além disso, a Lei passa a explicitar que
Estados, do Distrito Federal e dos qualquer cidadão tem o poder de denunciar ao Tribunal de
Municípios. Contas e ao Ministério Público o descumprimento de suas
disposições.
As medidas aumentam a transparência das informações
sobre os gastos públicos, assegurando mais um
instrumento para que as cidadãs e os cidadãos monitorem
e exijam de seus governos a prestação de contas sobre os
gastos que vêm realizando.

Lei 11.970 de 2009 Altera a Lei nº 9.537, de 11 de Importante também foi a aprovação pelo Congresso
dezembro de 1997, para tornar Nacional do Projeto de Lei 1531 de 2007, já encaminhado
obrigatório o uso de proteção no à sanção. A proposta, de autoria da deputada Janete
motor, eixo e partes móveis das Capiberibe (PSB/AP), altera a Lei nº 9.537 de 1997, para
embarcações. tornar obrigatório o uso de proteção no motor, eixo e partes
móveis das embarcações em todo o território nacional, para
proteger passageiros e tripulações do risco de acidentes.
Em caso de descumprimento da exigência, a Lei prevê
sanções nas esferas administrativa, cível e penal.
Dessa forma, a Lei é fundamental para prevenir o grande
número de acidentes que ocorrem nas embarcações
de populações ribeirinhas e com banhistas nas praias
brasileiras. As embarcações com motor representam um
dos únicos meios de transporte para os ribeirinhos da
região Norte do país. No entanto, a maioria dos barcos não
possui nenhuma segurança, já que o motor e o eixo são
descobertos. E, quando as pessoas se aproximam do eixo
- que gira em alta velocidade - são sugadas e têm o couro
cabeludo arrancado, levando ao chamado escalpelamento.
A Lei também visa a prevenir os acidentes e atropelamentos
com barcos de motor de popa e jet skis.

Continua

12
Notícias do Congresso
Lei 12.015 de 2009 Altera o Título VI da Parte Especial PL 4850/2005 (PLS O Título VI sofreu profundas modificações, entre elas:
do Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de 253/2004) - O Capitulo I, antes denominado “Dos crimes contra
dezembro de 1940 - Código Penal, CPMI – Exploração Sexual os costumes”, passa a ser “Dos crimes contra a liberdade
e o art. 1º da Lei nº 8.072, de sexual”;
25 de julho de 1990, que dispõe - Configura crime de estupro qualquer ato sexual
sobre os crimes hediondos, nos (não só conjunção carnal) e a mulher pode ser sujeito
termos do inciso XLIII do art. 5º ativo (autora) deste crime, deixando de existir o crime de
da Constituição Federal e revoga atentado violento ao pudor;
a Lei nº 2.252, de 1º de julho de - O crime de “Posse sexual mediante fraude” foi
1954, que trata de corrupção de modificado para violência sexual mediante fraude e homen
menores. e mulher podem ser sujeitos ativo e passivo. Era este artigo
que exigia a condição de mulher honesta e de virgem.
- Presunção de inocência foi revogado e o capítulo “Da
sedução e da corrupção de menores” foi modificado para
“Dos crimes sexuais contra vulnerável”, a fim de abarcar os
crimes sexuais contra menores de 14 anos. O problema é
que a identificação de quem é pessoa vulnerável não ficou
clara, ora pode ser menor de 14 anos, ora pessoa sem
discernimento.
- Foi incluída a exploração sexual no Capítulo V
que passa a ser denominado: “Do lenocínio e do tráfico
de pessoa para fim de prostituição ou outra forma de
exploração sexual”. No entanto, deixou de avançar na
especificação das condutas.
- Previsão de aumento de pena.

Lei 12.004 de 2009 Altera a Lei nº 8.560, de 29 de PLC 53/2007 (PL A Lei “estabelece a presunção de paternidade no caso de
dezembro de 1992, que regula a 4719/2001) recusa do suposto pai em submeter-se ao exame de código
investigação de paternidade dos Alberto Fraga (PMDB/DF) genético – DNA”. Ela determina que a recusa em fazer
filhos havidos fora do casamento e exame científico, como por exemplo DNA, gera a presunção
dá outras providências. de paternidade no que tange à análise das provas em uma
eventual ação de investigação de paternidade. Esta lei
reforça a Súmula 301 do STJ, segundo a qual a recusa
do suposto pai a submeter-se ao exame de DNA induz
presunção de paternidade em ação investigatória.

Tal lei é relevante uma vez que observamos uma resistência


a mudanças de padrões de comportamento relativos à
paternidade e à filiação, o que ameaçava a efetividade da
Lei nº 8.560/92. A recusa em fazer o exame significava
obstrução ao trabalho da Justiça e permitia que homens
confrontassem a Constituição do país não reconhecendo
crianças que engendravam (e, posteriormente, que
confrontassem a Justiça ao não comparecer a chamados
para fazer exame de DNA). Daí a necessidade de regulação
e aprimoramento da antiga lei de paternidade.

13
Notícias do Congresso
Direito à amamentação e à convivência
familiar: possibilidade de afeto e
resignificação do cárcere.
Luciana de Souza Ramos1

Foi aprovada, no dia 28 de maio de 2009, a lei nais não eram sistematizadas e monitoradas con-
nº 11.942, de autoria da deputada Fátima Palaes, que forme diretrizes do Ministério da Saúde, ficando
altera os artigos 14, 83 e 89 da Lei 7.210 de 1984 – Lei em sua maioria a cargo de iniciativas pontuais dos
de Execução Penal (LEP) para determinar que as peni- gestores locais ligados à justiça. A partir de 2003,
tenciárias de mulheres sejam dotadas de seção para com a instituição do Plano Nacional de Saúde no
gestantes e parturientes e de creches para os menores Sistema Penitenciário, fruto da parceria entre os
cuja responsável esteja presa. Ministérios da Saúde e da Justiça, o plano obje-
A lei traz inovações à legislação de execução pe- tiva organizar o acesso das populações privadas
nal, reconhecendo as especificidades de gênero que de liberdade sob a tutela do estado nas ações e
permeiam o encarceramento feminino e, em especial, serviços de saúde do Sistema Único de Saúde –
reflete a necessária oferta de condições específicas SUS, de forma integral. [...] O marco normativo
para o adequado cuidado com as mulheres presas ges- do Plano é a portaria interministerial nº. 1.777 de
tantes e parturientes e seus recém-nascidos/as. 09/09/2003 que, em seus anexos I e II, apresenta
Além disso, reconhece que, para a preservação do as linhas de ação e as diretrizes para elaboração
direito fundamental à igualdade, faz-se necessário es- dos Planos Operativos Estaduais – POES (BRASIL,
tabelecer políticas públicas reconhecedoras da diver- Presidência da República. Secretaria Especial de
sidade e, portanto, das especificidades do tratamento Políticas para as Mulheres. Grupo de Trabalho In-
direcionado às mulheres aprisionadas. terministerial – Reorganização e Reformulação do
Em especial, a lei altera a LEP não apenas para Sistema Penitenciário Feminino – 2008. Brasília:
assegurar tratamento médico adequado à gestante e à Presidência da República, Secretaria Especial de
parturiente, como também para definir o período mí- Políticas para as Mulheres, 2008, p. 62-63).
nimo de permanência das mães encarceradas com seus
filhos/as, daí a importância da alteração do art. 14, Dentro das ações específicas à saúde da mulher
para que se faça referência expressa da assistência à privada de liberdade, que incluem ações para gestan-
saúde das mulheres e de seus filhos e filhas. tes e parturientes que estão no sistema penitenciário,
Cumpre destacar que a referida lei está em perfeita foram previstas metas como:
sintonia com o relatório final apresentado pelo Grupo • ações para detecção precoce e tratamento do
de Trabalho Interministerial instituído em 2007 com a câncer cérvico-uterino e de mama;
finalidade de elaborar propostas para a reorganização • ações para diagnóstico e tratamento das DST/
e reformulação do Sistema Prisional Feminino (Decreto AIDS;
de 25 de maio de 2007): • assistência à anticoncepção;
• assistência ao pré-natal de baixo e alto ris-
o Brasil não tinha consolidada, até recentemen- co;
te, uma política nacional de atenção à saúde que • imunização das gestantes;
contemplasse de forma integral a população peni- • assistência ao puerpério;
tenciária. As ações executadas por profissionais de • ações educativas sobre pré-natal, parto,
saúde que atuavam nos estabelecimentos prisio- puerpério, anticoncepção, controle do câncer

14 1. Pesquisadora do Grupo Candango de Criminologia e do Direito Achado na Rua da UnB. Membro-pesquisadora


do GTI Mulheres Encarceradas.
Notícias do Congresso
cérvico-uterino e de mama, e doenças sexual- do/a recém-nascido/a durante os seis primeiros meses
mente transmissíveis; de vida. Sendo assim, a substituição do leite materno
• atendimento de intercorrências e partos. só deverá acontecer em casos excepcionais. Além dis-
so, a criança deverá permanecer com a mãe no berçá-
Como se vê, a alteração do artigo 14 da LEP, na rio, pelo mesmo período, independentemente de haver
verdade, é uma adequação da legislação de 1984 ao impossibilidade de amamentação.
atual retrato do sistema prisional brasileiro destinado Destarte, o que se busca é a garantia de direitos,
às mulheres gestantes e parturientes, que demanda re- tanto da mulher quanto da criança, conforme o prin-
organização e reformulação para corresponder às suas cípio de proteção integral, pelo qual o Estado deve
peculiaridades. assegurar, com absoluta prioridade, o direito à vida, à
A lei 11.942/09 traz, talvez, o principal direito a saúde e à dignidade.
ser garantido às mulheres em cárcere, o direito consti- A nova redação estabelece como diretriz obrigató-
tucionalmente garantido ao aleitamento materno. ria a existência de “seção para gestante e parturiente
O inciso L, do art. 5º, da Constituição Federal de e de creche com a finalidade de assistir a criança de-
1988, preceitua que “às presidiárias serão asseguradas samparada cuja responsável esteja presa”, o que já era
condições para que possam permanecer com seus filhos previsto na redação original da LEP.
durante o período de amamentação”. Já o Estatuto da Isto é, assim como o artigo 88 da LEP descreve
Criança e do Adolescente (Lei nº 8.069 de 1990) dispõe os requisitos mínimos a serem observados para o alo-
em seu art. 9º, que “o poder público, as instituições e jamento de qualquer condenado, a nova redação pro-
os empregadores propiciarão condições adequadas ao posta para o artigo 89 reconhece a especificidade de
aleitamento materno, inclusive aos filhos de mães sub- que não há como tratar o encarceramento feminino de
metidas a medida privativa de liberdade”. forma plena sem se considerar fatores como a gravidez,
No mesmo sentido, a Lei nº 9.046 de 1995 acres- a maternidade, a amamentação e a permanência da
centou um segundo parágrafo ao art. 83 da Lei de Exe- mulher presa com suas filhas e filhos nascidos dentro
cuções Penais (Lei nº 7.210 de 1984) para definir que do cárcere.
“os estabelecimentos penais destinados a mulheres se- É defendido pelo Conselho Nacional de Política
rão dotados de berçário, onde as condenadas possam Criminal e Penitenciária que seja garantida a possibi-
cuidar de seus filhos, inclusive amamentá-los”. lidade de crianças com mais de dois e até seis anos
Não restam dúvidas de que a amamentação cons- de idade permanecerem junto às mães na unidade pri-
titui direito inalienável da mãe e da criança. Contudo, sional, desde que seja em unidades materno-infantis,
ante à ausência de definição legal e constitucional do equipadas com espaço dormitório para as mães e crian-
período adequado de permanência das mães com seus ças, brinquedoteca, área de lazer, abertura para área
filhos na prisão, os Estados da Federação estabeleciam descoberta e participação em creche externa2.
prazos diferentes para a questão; nos Estados em que Sendo assim, é extremamente pertinente a res-
nada foi estipulado, a definição do período de aleita- salva trazida pela nova redação da lei, ao prever que
mento materno depende exclusivamente dos diretores estas creches devem incluir uma estrutura adequada
dos estabelecimentos prisionais. ao atendimento de crianças de seis meses a sete anos,
Com a nova lei, o tempo previsto vai ao encontro que contemple atendimento por pessoal qualificado, de
do período de amamentação indicado pelo do Minis- acordo com as diretrizes adotadas pela legislação edu-
tério da Saúde, que é de até 2 (dois) anos, sendo o cacional e em unidades autônomas; além de assistência
leite materno recomendado, como a forma exclusiva de à criança e à sua responsável.
alimentação da criança, até os 6 (seis) primeiros meses O que se busca, portanto, no caso da permanência
de amamentação. da criança desamparada cuja responsável esteja presa,
Essa alteração também está em consonância com é a observância da necessária adequação dos espaços
o preconizado no relatório do referido GTI, segundo o e do atendimento e que se garantam berçários e cre-
qual a penitenciária deverá priorizar o leite materno, ches devidamente equipados e preparados para receber
não sendo incentivada a complementação alimentar a criança desde seu nascimento e acompanhá-la in-

2. Resolução do Conselho Nacional de Políti ca Criminal e Penitenciária - CNPCP de maio de 2009. 15


Notícias do Congresso
tegralmente durante a sua fase inicial de desenvolvi- alimentação, saúde, espaço físico para estimulação,
mento. No que se refere à estrutura do equipamento lazer e desenvolvimento psico-pedagógico das crian-
destinado às crianças, é preciso que alcance a saúde, ças; definição de critérios de tempo de permanência
alimentação, educação, lazer, dignidade, respeito, li- da mãe com suas filhas e filhos e respectivas es-
berdade para convivência familiar e convivência comu- truturas e equipes necessárias. Os estabelecimentos
nitária. prisionais femininos contarão com este local desti-
A nova lei vem ao encontro do trabalho realizado nado ao período de gravidez, amamentação e perma-
brilhantemente pelo Grupo de Trabalho Interminis- nência com os filhos e filhas nascidos/as ou não no
terial da Secretaria de Política para as Mulheres, com cárcere: creche em tempo integral para crianças de
a participação dos Ministérios da Justiça, Saúde, De- até três anos, que deverão ser atendidas por profis-
senvolvimento Social, Igualdade Racial, de Direitos sionais especializados, assegurado às presidiárias o
Humanos e outros órgãos. O GTI buscava justamente direito à amamentação3.
a minimização da ação discricionária da gestão pri- Foi exatamente isso que a lei trouxe, um novo
sional: definição de regras claras e uniformes quanto olhar para o encarceramento feminino, pautado na
ao local e condições adequadas de cumprimento de perspectiva de gênero, respeitando as mulheres em sua
pena destas mulheres; consolidação da necessida- diversidade, e garantindo a elas a ressignificação de
de de permanência dos filhos com as mães – como seu tempo na prisão e possibilitando novas expectati-
garantia de criação e/ou manutenção de vínculos; vas para além da criminalidade.
necessidade de atendimento diferenciado quanto à

3. BRASIL, Presidência da República. Secretaria Especial de Políti cas para as Mulheres. Grupo de Trabalho Interministerial – Reorganização

16 e Reformulação do Sistema Penitenciário feminino – 2008. Brasília: Presidência da República, Secretaria Especial de Políti cas para as
Mulheres, 2008, p. 84-85
Especial:
Impactos da crise sobre a
vida das mulheres 1

Ampliaram-se, ao longo dos GT é composto por representantes ção economicamente ativa (PEA)
últimos nove meses, as matérias da SPM, que o coordena, do Ipea, feminina foi menor que o cresci-
produzidas pela mídia em geral e do IBGE e da OIT e, neste primei- mento da PEA masculina em todas
pelos veículos especializados, bem ro momento, seu objetivo central as Regiões Metropolitanas (RMs)
como os encontros destinados a é monitorar a participação de ho- pesquisadas na PED. Há, neste
discutir, com públicos variados, as mens e mulheres no mercado de caso, uma reversão do fenôme-
causas, impactos e (possíveis) res- trabalho – considerando-se tam- no verificado em anos anteriores,
postas dos governos para enfrentar bém a perspectiva étnico-racial – quando se notava uma leve ten-
e debelar a crise que tem tirado o de modo que se possam identificar dência ao crescimento maior da
sono e os empregos de milhões de resultados diferenciados da crise PEA feminina em relação à mascu-
mulheres e homens em todos os sobre cada um dos grupos sociais. lina, havendo indícios, portanto,
continentes. A crise entrou decisi- Para tanto, foi desenvolvido de que o contexto de crise econô-
vamente na agenda nacional e al- um primeiro estudo que apresenta mica retirou, relativamente, mais
guns dos temas que têm merecido uma série de indicadores conjuntu- mulheres do mercado de trabalho
espaço neste cenário são aqueles rais sobre emprego e desemprego, do que homens, empurrado-as para
relacionados às conseqüências pro- que permite avaliar, em caráter a inatividade.
duzidas no mercado de trabalho inicial, os impactos produzidos As informações da PED sobre
brasileiro. As principais discussões pela crise econômica e financeira a taxa de participação de ho-
sobre o tema, no entanto, têm ig- internacional na participação no mens e mulheres no mercado de
norado os impactos diferenciados mundo do trabalho e na ocupação trabalho deixam mais clara essa
da crise sobre a oferta e a qua- masculina e feminina. Foram uti- tendência que, apesar de leve,
lidade do emprego por sexo. As lizados indicadores produzidos a é nítida e previsível, na medida
análises produzidas neste contexto partir do Cadastro Geral de Empre- em que expressa traços de nossa
consideram os trabalhadores como gados e Desempregados (Caged) do cultura patriarcal. Isso porque,
uma massa homogênea, cujas di- Ministério do Trabalho e Emprego, em situações de perda de empre-
ferentes características em nada da Pesquisa Mensal de Emprego do go/ocupação no núcleo familiar
interferem na forma de inserção e IBGE e, em alguma medida, da Pes- (com conseqüente redução dos
participação dos grupos sociais no quisa de Emprego e Desemprego rendimentos mensais), há maior
mercado de trabalho. (PED) do Dieese-Seade. Aqui serão probabilidade de que mulheres, e
Ocorre, entretanto, que a apresentados alguns dos principais não os homens, retornem às suas
configuração do mercado de tra- resultados desta pesquisa, que casas e se responsabilizem pelas
balho brasileiro, sua segmentação pode ser acessada na íntegra a par- atividades domésticas, dentre
por sexo e as desigualdades que o tir do site do Observatório: www. outras razões, pelo fato de que
caracterizam, podem implicar em observatoriodegenero.gov.br. trabalhavam em pequenos empre-
resultados bastante distintos se- endimentos familiares que não
gundo o sexo do/a trabalhador/a. Os resultados recentes do sobreviveram à crise, ou porque
Exatamente com o objetivo de mercado de trabalho sob a a perda de rendimento familiar
contribuir para esta discussão foi perspectiva de gênero impossibilitou a manutenção de
criado, no âmbito do Observató- uma trabalhadora doméstica que
rio Brasil da Igualdade de Gênero, Nos oito meses que se segui- desenvolvia atividades que ago-
um Grupo de Trabalho específico ram aos primeiros efeitos da crise ra deverão ser desempenhadas
para monitoramento dos impac- no país (setembro-2008 a abril- por ela – ao passo que a traba-
tos da crise sobre as mulheres. O 2009)2, o crescimento da popula- lhadora doméstica dispensada

1. Arti go elaborado a parti r do estudo “O impacto da crise sobre as mulhere”, produzido em 2009 por SPM, IPEA, UFF, OIT e IBGE, no âmbito do Observatório Brasil
da Igualdade de Gênero. A publicação completa pode ser acessada através do síti o do Observatório na internet: www.observatoriodegenero.gov.br.
2. Até o fechamento do presente texto, a esti mati va da PEA de maio de 2009, desagregada por sexo, ainda não havia sido divulgada pelo Dieese. Os demais dados
apresentados ao longo do texto estão atualizados até maio de 2009. 17
Gráfico 1
Variação da Taxa de Participação entre Setembro de 2008
e Maio de 2009, por Região Metropolitana, segundo sexo.
também pode voltar para a “ina-
tividade”. Usualmente, cabe aos
homens continuar no mercado de
trabalho, em busca de emprego e
renda para sustento da família, o
que acaba mantendo-os econo-
micamente ativos. Assim, entre
setembro/2008 e maio/2009, a
taxa de participação das mulheres
caiu mais do que a dos homens
em todas as RMs pesquisadas. Os
dados mostram que há queda na
taxa de participação dos homens
nas regiões metropolitanas, mas
esta queda é sempre menos acen-
tuada que a verificada entre as
mulheres (ver gráfico 1). Fonte: Pesquisa de Emprego e Desemprego/Dieese.

No que diz respeito ao nível contra -1,59%). Importante res- semprego dos trabalhadores do
de emprego, tal como já aponta- saltar que, no mesmo período do sexo masculino das seis regiões
do, a crise econômica foi capaz ano anterior, a ocupação femini- metropolitanas pesquisadas pela
de reverter, no país, uma tendên- na crescia mais, relativamente, PME, enquanto este valor é de in-
cia de redução do desemprego e quando comparada à ocupação feriores 9,18% quando se trata de
geração de novos postos de tra- masculina. Ou seja, parece que a observar as trabalhadoras.
balho, especialmente no setor crise refreou um processo, até en- Se o nível de ocupação caiu
formal. As variações nos meses tão existente, de feminização do mais, relativamente, entre as mu-
pós-setembro de 2008 foram, de mercado de trabalho (ver tabela lheres, seria de se esperar que
forma geral, negativas para ho- 1). Como veremos adiante, este houvesse um maior aumento do
mens e mulheres, com quedas re- resultado pode estar associado desemprego para elas, em compa-
lativas um pouco mais acentuadas à maior fragilidade dos vínculos ração aos trabalhadores homens.
no caso das mulheres (-2,36%, empregatícios femininos. No entanto, o que justifica a me-
nor elevação na taxa de desempre-
go entre as mulheres parece ser a
Tabela 1
inatividade que as acomete mais
Variação do nível de ocupação e da taxa de desemprego em períodos
intensamente no período de crise.
selecionados, segundo sexo. Regiões Metropolitanas.
Desse modo, as trabalhadoras que
Variação no Nível de Ocupação Variação na Taxa de Desemprego perdem seus postos de trabalho
Período
Homens Mulheres Homens Mulheres não se tornam necessariamente
Maio 09 / Set.08 -1,59% -2,36% 25,86% 9,18% desempregadas, pois desistem de
Maio 08 / Set.07 0,53% 1,11% -10,14% -13,04% procurar emprego e caem na ina-
Fonte: IBGE, Diretoria de Pesquisas, Coordenação de Trabalho e Rendimento, Pesquisa Mensal de Emprego.
tividade. Estas mulheres não con-
tribuem, portanto, para o cálculo
Historicamente, as taxas de nas tendem a se elevar mais, em da taxa de desemprego e é por isso
desemprego femininas são signi- termos relativos. Assim, quando que as taxas masculinas acabam se
ficativamente mais elevadas que se toma o período compreendi- revelando superiores às femininas.
as masculinas. No contexto de cri- do entre os meses imediatamen- Desagregando os dados de
se, entretanto, parece haver um te posteriores à crise, é possível ocupação segundo os setores de
movimento diferenciado, no qual perceber que há um aumento da atividade econômica, observa-se
as taxas de desemprego masculi- ordem de 25,86% na taxa de de- que as maiores quedas relativas

18
na ocupação feminina ocorreram apontado em diversos estudos an- masculinizado, foram as trabalha-
na indústria extrativa e de trans- teriores, em termos absolutos, foi doras as que, proporcionalmente,
formação e produção e distribui- realmente o setor industrial o mais mais perderam empregos neste se-
ção de eletricidade, gás e água impactado neste primeiro momen- tor, talvez pela maior fragilidade
(-8,28%) e nos serviços de inter- to de crise. Seria de se esperar, de seus vínculos. Ou seja, a cri-
mediação financeira e atividades portanto, que tanto para homens se provocou um aprofundamento
imobiliárias (-3,43%). Entre os quanto para mulheres fosse esse o do perfil masculino da indústria
homens, as maiores quedas relati- setor com maiores taxas de desli- brasileira, indo na contramão do
vas foram em Serviços Domésticos gamentos. Interessante notar, po- movimento de feminização que
(-12,71%) e também na Indústria rém, que, apesar de ser a indústria parecia estar ocorrendo no mesmo
(-5,90%) (ver tabela 2). Tal como um campo de trabalho altamente período do ano anterior.

Tabela 2
Variação do nível de ocupação segundo sexo e setor de
atividade em períodos selecionados. Regiões Metropolitanas.

Intermediação
Comércio, Adm. Pública,
Indústria, água, luz financeira, Serviços
Período Construção civil reparação de saúde, Outros serviços
e gás atividades domésticos
veículos, etc educação,etc
imobiliárias
Homem
Maio 09 / Set 08 -5,90% -3,82% 0,99% 2,35% 5,23% -12,71% -4,23%
Maio 08 / Set 07 0,60% 0,73% 1,03% 4,01% -0,90% 6,44% -2,31%

Mulher
Maio 09 / Set 08 -8,28% 30,29% -2,09% -3,43% -0,27% -1,25% -1,70%
Maio 08 / Set 07 5,55% -3,74% 0,75% 2,97% -0,15% -1,81% 1,51%

Fonte: IBGE, Diretoria de Pesquisas, Coordenação de Trabalho e Rendimento, Pesquisa Mensal de Emprego.

Outro aspecto merecedor de mão do trabalho exercido por estas de feminização da construção ci-
destaque refere-se às atividades trabalhadoras parece ser algo mais vil, tendência que será reafirmada
de trabalho doméstico, que de- “custoso” para as famílias, espe- na análise dos dados do Caged a
sempregaram proporcionalmente cialmente para as mulheres, pois seguir. Este movimento de femi-
muito mais homens do que mulhe- o trabalho dito “reprodutivo” lhes nização da construção civil já vi-
res: -12,71% e -1,25%, respectiva- impõe jornadas maiores e mais in- nha sendo verificado em períodos
mente. O que estes dados parecem tensas de trabalho e impacta deci- anteriores. A crise, portanto, não
mostrar é que o trabalho doméstico sivamente em suas oportunidades produziu impactos no sentido de
executado por homens não se con- de entrada e permanência no mer- reversão deste fenômeno, mas re-
figura em um bem de primeira ne- cado de trabalho. duziu a velocidade do crescimento
cessidade para as famílias, poden- Como último aspecto a se des- das ocupações masculina e femini-
do ser mais facilmente dispensado tacar nesta análise de ocupação na, com mais intensidade para as
do que o executado por mulheres. por setores de atividade, vale no- primeiras.
Isso ocorre devido à estrutura di- tar que a crise econômica produ- O detalhamento por posição
ferenciada do mercado de trabalho ziu – nos oito meses seguintes à na ocupação é ainda mais revela-
doméstico feminino e masculino, sua instalação no país – uma certa dor. Inicialmente, é possível per-
no qual as atividades desenvolvidas substituição da mão-de-obra mas- ceber que foram os trabalhadores
por trabalhadores e trabalhadoras culina pela feminina nos empreen- ocupados em postos de trabalho
são intrinsecamente diferentes: dimentos da construção civil. Entre de pior qualidade aqueles que mais
enquanto a eles cabem ocupações setembro de 2008 e maio de 2009, perderam seus empregos, o que
como jardineiro, caseiro e motoris- os dados da PME apontam uma havia sido levantado como hipóte-
ta, às mulheres cabem as tarefas queda de 3,82% no conjunto de se para explicar o freio no movi-
de cuidado com casa e crianças, postos ocupados por homens neste mento de feminização do mercado
que se constituem em atividades setor, enquanto há uma elevação de trabalho que vinha ocorrendo.
fundamentais para a reprodução da ocupação feminina da ordem de Frente ao cenário econômico des-
cotidiana das famílias. Assim, abrir 30,29%, indicando um movimento favorável, parece que os primei-

19
ros empregos a serem eliminados ocupação feminina no trabalho outras ocupações, desemprega-
são, de fato, aqueles mais frágeis. sem remuneração, indicando que, das ou inativas tenham tido que
Como se pode observar na tabela no contexto de crise econômi- se inserir nos empreendimentos
3, as demissões enfrentadas pelas ca, os postos de trabalho que se familiares – talvez substituindo
mulheres no período de crise se abriram para as mulheres foram trabalhadores que tiveram que
deram especialmente entre aquelas aqueles de natureza mais precá- ser desligados – na condição de
que não contavam com carteira de ria, para os quais não há remune- colaboradoras, que trabalham,
trabalho assinada (-11,36%). ração para o trabalho realizado. mas não têm renda própria, o que
Por outro lado, houve neste Uma das hipóteses é a de que as reafirma os valores sexistas fun-
mesmo período um aumento na mulheres antes empregadas em dantes da sociedade brasileira.

Tabela 3
Variação do nível de ocupação segundo sexo e posição na ocupação
em períodos selecionados. Regiões Metropolitanas.

Servidor
Período Trab. Doméstico Com carteira Sem carteira Conta própria Empregador Sem remuneração
público/militar

Homem
Maio 09 / Set 08 -12,71% -5,05% 1,65% -7,05% -3,13% -1,66% -27,89%
Maio 08 / Set 07 6,44% 5,02% 3,34% -3,67% -3,68% -1,26% 4,76%
Mulher
Maio 09 / Set 08 -1,25% -2,35% 0,01% -11,36% -1,22% -8,17% 12,29%
Maio 08 / Set 07 -1,81% 8,00% 3,53% -4,38% 0,02% -5,64% 13,39%
Fonte: IBGE, Diretoria de Pesquisas, Coordenação de Trabalho e Rendimento, Pesquisa Mensal de Emprego.

Interessante observar, ainda, (-7,05%). Verificou-se, ainda, um Os dados do Caged permitem este
que entre os trabalhadores ocu- ligeiro crescimento nos postos com tipo de análise mais aprofundada
pados na categoria empregadores, carteira assinada (1,65%)2, natu- do mercado formal, pois trazem
ou seja, donos de seus próprios ralmente menor do que o resultado informações sobre desligamentos
negócios, verifica-se uma redução observado no mesmo período do e admissões de todos os trabalha-
no nível de ocupação tanto para ano anterior. dores com carteira assinada.
homens quanto para mulheres, Os resultados apresentados A partir da tabela 4, verifica-
em maior intensidade para elas, até aqui, com base nas pesquisas se claramente que os primeiros
de, respectivamente, -1,66% e domiciliares de emprego, possibi- efeitos da crise internacional re-
-8,17%. Pode-se imaginar que a litaram uma análise do mercado de lativos ao emprego formal foram
maior precariedade dos empreendi- trabalho global, ou seja, tanto da- sentidos na indústria de transfor-
mentos femininos seja o principal quelas ocupações precárias e com mação, confirmando a tendência já
fator a explicar as desigualdades pouco vínculo e proteção social verificada pela PME, e, também, na
verificadas neste contexto de crise quanto daquelas de maior qualida- construção civil. Sob a perspectiva
internacional. de e proteção e até mesmo a cate- de gênero, este fato merece gran-
Já para os trabalhadores do goria de empregadores. É interes- de atenção. A indústria de trans-
sexo masculino, a principal redu- sante, porém, conhecer em maior formação e a construção civil são,
ção nos postos de trabalho após nível de detalhamento o funcio- tradicionalmente, setores de ativi-
setembro de 2008 foi justamente namento do mercado de trabalho dade econômica masculinos. Nesse
entre os não-remunerados, para formal e suas reações frente a um sentido, se os impactos da crise
os quais se verificou uma queda quadro de crise econômica, pois a internacional sobre o emprego, até
de 27,89%. Houve também uma destruição de ocupações formais o momento, foram mais seriamente
redução significativa no total de gera conseqüências distintas tan- verificados nesses setores, espera-
ocupados em empregos domésticos to para trabalhadores, quanto para se que os homens tenham sido
(-12,71%), e sem carteira assinada empresas e mesmo para o governo. mais afetados.

20
Tabela 4
Variação Absoluta e Relativa de Empregos Com Carteira Assinada
segundo Subsetores de Atividade Econômica e Sexo. Brasil.

Os dados do Caged confirmam de outubro de 2008, 70,58% dos gando esse resultado por sexo do
que, em termos absolutos, foram postos de trabalho da indústria trabalhador, nota-se que a redução
os homens que mais perderam pos- de transformação eram ocupados de postos de trabalho ocupados por
tos de trabalho formais no perío- por homens. Passados oito mes- homem foi de 47.547. Ou seja, no
do em análise3. Entre outubro de ses após a crise internacional, a mesmo período, o número de pos-
2008 e maio de 2009, ocorreu uma participação dos homens no setor tos de trabalho ocupados por mu-
eliminação de 454.355 postos de caiu 0,74 pontos percentuais, in- lheres na construção civil aumen-
trabalho formais no Brasil, sendo dicando que o número de postos tou 5.644, revelando que ocorreu
que, considerando-se apenas os de trabalho ocupados por mulheres uma substituição de homens por
homens, a retração do número de na indústria caiu proporcionalmen- mulheres, algo que já havia sido
ocupações foi maior (-510.376). te menos que em relação à queda verificado nos dados da PME.
Em outras palavras, no mesmo do número de postos ocupados por Os setores terciários (comércio
período, ocorreu um aumento no homens. Segundo as informações e serviços) registraram crescimento
número de mulheres ocupadas de do Caged, até mesmo as indústrias do emprego formal no período ana-
56.021. Em termos relativos, o têxtil e de calçados, predominan- lisado. Isso não significa, contudo,
estoque de trabalhadores formais temente femininas4, registraram que eles não foram afetados pela
homens reduziu-se 2,51% após o uma redução no estoque de empre- crise internacional. Comparando-
período de oito meses analisado, go masculino proporcionalmente se os resultados dos últimos oito
enquanto o contingente de mulhe- maior do que a ocorrida entre as meses com os obtidos no período
res ocupadas no mercado formal mulheres. Na indústria têxtil, ocor- outubro de 2007 – maio de 2008,
aumentou 0,49%. Nesse sentido, reu uma queda de 3,77% no total nota-se que aqueles foram bastante
pode-se dizer que tem ocorrido de vagas ocupadas por mulheres e tímidos. No comércio, entre outu-
uma feminização do mercado de de 4,85%, naquelas ocupadas por bro de 2007 e maio de 2008, foram
trabalho formal, contrastando com homens. Na indústria de calça- criados 277.498 empregos formais,
a tendência verificada na análise dos, as quedas foram de 9,60% e enquanto entre outubro de 2008 e
do mercado de trabalho metropo- 10,17%, para mulheres e homens, maio de 2009 esse número foi de
litano. respectivamente. apenas 66.884. Já nos serviços, fo-
Nos setores da indústria de Esse processo de feminização ram 454.755 contra 170.868.
transformação e da construção do emprego formal é ainda mais De todo modo, esses foram os
civil, os mais afetados pela crise, curioso na construção civil. No pe- setores que mais empregaram nos
nota-se que as mulheres foram me- ríodo analisado, o resultado líquido últimos oito meses, em especial
nos atingidas no que diz respeito entre admissões e desligamentos as mulheres. No comércio, a maior
ao nível de ocupação. No início nesse setor foi -41.930. Desagre- parte dos novos postos de traba-

2. Nota-se, aqui, uma suposta divergência de resultados entre a PME e o Caged, que, como será apresentado a seguir, aponta uma tendência à feminização do mercado
de trabalho formal após setembro de 2008. Ressalta-se, entretanto, que a comparação dos dois resultados exige cuidado, pois as diferenças metodológicas entre as
duas informações são significativas. Não se avaliou neste estudo as possíveis razões de tal divergência, mas ela poderia ser explicada, por exemplo, pelo fato de o Caged
considerar todo o território nacional, e não apenas as regiões metropolitanas.
3. Optou-se por iniciar a análise do emprego formal a partir do mês de outubro de 2008 e não de setembro de 2008, pois foi quando os dados do Caged passaram a

4.
evidenciar uma clara desaceleração na geração de empregos celetistas.
No primeiro dia de outubro de 2008, 61,64% e 51,10% do total de trabalhadores celetistas das indústrias têxtil e de calçados, respectivamente, eram mulheres. 21
lho foram ocupados por mulheres: empregar de forma mais precária. missão dos homens, controlada a
55.213 (82,55%) de um total de Em termos práticos, isso pode re- escolaridade, em qualquer setor/
66.884 postos gerados. Já nos ser- presentar, por exemplo, uma subs- subsetor de atividade econômi-
viços, do total de 170.868 vagas tituição de salários altos por salá- ca, seja ele predominantemente
criadas nos últimos oito meses, rios mais baixos. masculino ou feminino. Ou seja, é
124.881 (73,09%) foram ocupa- A “feminização” do mercado bastante provável que a substitui-
das por mulheres. Nesse contexto, de trabalho formal verificada no ção de trabalhadores do sexo mas-
a participação das mulheres nos período analisado, nesse sentido, culino por mulheres trabalhadoras
setores terciários cresceu razoavel- pode ser uma expressão desse mo- nos níveis verificados neste estudo
mente no período. vimento. Certamente, deve-se re- esteja revelando uma estratégia de
As constatações feitas até conhecer que esta “feminização” precarização do emprego no con-
aqui também sugerem que o acom- é um fenômeno em processo, e texto de crise.
panhamento da dinâmica do mer- representa, sobretudo, a emanci- Portanto, o atual momento de
cado de trabalho nesse contexto de pação da mulher. No entanto, tam- crise econômica parece aumentar
crise envolve não apenas uma re- bém é certo que a discriminação de os desafios no que diz respeito à
flexão sobre o nível de ocupação e mulheres é ainda bastante presente compatibilização do acesso ao
de desemprego, mas também uma no mercado de trabalho brasileiro, trabalho pelas mulheres, que faz
discussão sobre as estratégias do manifestando-se principalmente parte do processo de emancipação
empresariado em relação aos cri- em mais baixos salários em rela- feminina e minimiza as formas de
térios de demissão e admissão de ção ao masculino. No período pós- dominação patriarcal no espaço
trabalhadores. O ambiente de in- crise, os salários de admissão das doméstico, com a eliminação das
certeza provocado pela crise pode mulheres foram, inequivocamente, desigualdades existentes na divi-
levar os empresários a optarem por mais baixos que os salários de ad- são sexual do trabalho.

22
Especial:
Enfrentamento à violência
contra as Mulheres
A segurança pública no atendimento às mulheres
Alinne de Lima Bonetti, Luana Pinheiro e Pedro Ferreira1

Como as mulheres denuncian- na, inclusive domingos e feriados, do atendimento recebido em cada
tes de violência familiar e domés- em qualquer horário. Além da im- serviço que a integra, fazendo com
tica têm sido atendidas pelos equi- portância de um serviço nacional e que as reclamações alcancem os
pamentos de segurança pública gratuito, que pode constituir uma órgãos competentes.
do Estado brasileiro? A matéria a importante porta de entrada na Dos 271 mil atendimentos re-
seguir busca oferecer novos subsí- rede de atendimento para as mu- alizados pela Central em 2008, as
dios para fomentar a reflexão sobre lheres em situação de violência, a reclamações sobre instituições da
uma política de segurança pública Central tem se revelado bastante rede de atendimento às mulheres
numa perspectiva feminista - es- útil para o levantamento de infor- em situação de violência respon-
pecialmente no contexto de rea- mações que subsidiam o desenho dem por menos de 1% do total.
lização da I Conferência Nacional da política de enfrentamento da Isto não significa, obviamente,
de Segurança Pública, realizada no violência. Desde sua inauguração, que não haja um número maior de
final de agosto de 2009, em Brasí- foram efetuados mais de 700 mil críticas e denúncias a respeito dos
lia –, a partir de uma análise dos atendimentos a mulheres de todo atendimentos recebidos, ou que o
dados oriundos da Central de Aten- o país. conjunto de serviços que atende às
dimento à Mulher – Ligue 180 – e Dentre as categorias de regis- mulheres em situação de violên-
de um olhar sobre as reclamações tro realizadas pelo Ligue 180 está cia esteja funcionando da maneira
registradas acerca dos serviços de a de reclamações, que se refere ao mais adequada. Esse dado, ao con-
segurança pública no atendimento registro de críticas ao funciona- trário, aponta para a prevalência
a mulheres em situação de violên- mento inadequado dos serviços que de uma cultura que não associa
cia doméstica e familiar durante compõem a rede de atendimento o bom atendimento nos equipa-
todo o ano de 2008. às mulheres. Funcionando como mentos públicos a uma questão de
A Central foi criada pelo go- um mecanismo de monitoramento acesso a direitos e, portanto, não
verno federal em 2005 com o obje- e avaliação da Rede, cabe ao Ligue estimula a denúncia e a reclama-
tivo de receber denúncias/relatos 180 ouvir a sociedade a respeito ção aos órgãos competentes.
de violência e reclamações sobre
Distribuição dos atendimentos realizados pela
os serviços da rede, além de orien-
Central de Atendimento à Mulher, por tipo. Brasil, 2008
tar as mulheres sobre seus direitos,
encaminhando-as para os serviços 2007 2008
Tipo de Atendimento
da Rede de Atendimento à Mulher Nº Abs % Nº ABS %
em Situação de Violência, quando Informação 66.176 32,3 141.704 52,2
necessário. Funcionando por meio Relato de Violência 20.050 9,8 24.759 9,1
do número 180, caracterizado Encaminhamento para Serviços 117.436 57,3 102.146 37,7
como número de utilidade pública, Reclamação 904 0,4 1.959 0,7
o serviço pode ser acessado gratui- Sugestão 138 0,1 165 0,1
tamente de qualquer terminal te- Elogio 274 0,1 479 0,2
lefônico (móvel ou fixo, particular Total 204.978 100,0 271.212 100,0
ou público) todos os dias da sema-
Fonte: Central de Atendimento à Mulher/Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres.

1. Matéria elaborada a partir do artigo “Segurança Pública no Atendimento às Mulheres: uma análise a partir do Ligue 180”, elaborado por ocasião
do XIV Congresso Brasileiro de Sociologia, realizado no Rio de Janeiro, de 28 a 31 de julho de 2009. 23
De acordo com o estudo, os à mulher, seguidas do número 190, Além da objetiva falta mate-
serviços que mais apresentam re- de atendimento telefônico da polí- rial, o estudo aponta para a exis-
gistros de reclamação na Central cia militar, que, juntos, respondem tência subliminar de um consenso
são as Delegacias de Polícia, espe- por quase 90% do total das recla- tácito sobre a gravidade menor dos
cializadas ou não no atendimento mações registradas. crimes de violência doméstica e
familiar que se revela no entendi-
Distribuição das reclamações recebidas pela mento de haver outros casos mais
Central de Atendimento à Mulher, por serviço. Brasil, 2007 e 2008 urgentes a serem tratados, tal como
2007 2008 indicam os seguintes relatos:
Serviço
Nº Abs % Nº ABS % Cidadã reclama do 190 por
Departamento/Delegacia de Polícia 307 34,0 908 46,4 não ter comparecido no local
Delegacia Especializada de Atendimento à Mulher 225 24,9 487 24,9 solicitado numa situação de
190 94 10,4 353 18,0 emergência (violência domés-
Fórum 17 1,9 41 2,1 tica e familiar) após ter ligado
Serviços Especializados 16 1,8 22 1,1
por três vezes (...) Atendente
informou que talvez não com-
Defensoria Pública 9 1,0 21 1,1
parecessem (...) devido a ter
Organismos promoção e defesa dos direitos 1 1,0 21 11
muitos chamados urgentes na
Outros 235 26,0* 122 6,2
sua frente.
Total 904 100,0 1.959 100,0
Fonte: Central de Atendimento à Mulher/Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres.
Cidadã compareceu à de-
Nota: * O alto percentual da categoria “Outros” justifica-se pelo fato de que até abril de 2007 o registro era feito apenas como um legacia comum para registrar
atendimento de reclamação, mas não se registrava o serviço ao que se referia, nem o seu conteúdo.
um boletim de ocorrência por
ter sofrido violência, porém
Importante dizer que a recla- Para o estudo mais aprofunda-
a pessoa que estava na re-
mação nem sempre se constitui em do dos registros qualitativos relati-
cepção informou que naquela
objeto central da chamada para o vos a essas reclamações, todos os
delegacia não faziam boletim
Ligue 180. Dos relatos registrados relatos de reclamações recebidas
de ocorrência no período da
nos mais diversos tipos de de- pela Central foram classificados em
manhã, somente à tarde.
núncias de violência recebidas na três grandes grupos comuns aos
Central (como tentativa de homi- três serviços da segurança públi- Cidadã relata que na ci-
cídio, agressão física ou cárcere ca analisados (DPs, DEAMs e 190): dade de Quajaru/BA não tem
privado, por exemplo), é bastante aqueles relacionados a problemas delegado durante a semana.
recorrente a narrativa de que estas de infra-estrutura, os que refletem Só uma vez por semana (na
mulheres já procuraram os serviços despreparo dos agentes da segu- segunda- feira) que a delega-
existentes na cidade, em especial rança pública e os que evidenciam da vem da cidade vizinha para
DEAMs ou delegacias comuns, e de a recusa dos agentes no atendi- realizar atendimento.
que foram mal atendidas. mento das demandas apresentadas O segundo grupo de reclama-
É, portanto, sobre a falha na pelas reclamantes. ções apontado no estudo se refere
oferta de um atendimento acolhe- No primeiro grupo - que refe- ao despreparo dos agentes de segu-
dor e humanizado e de uma presta- re-se aos problemas infra-estrutu- rança pública, ou seja, à adoção de
ção de serviço de qualidade, que se rais – se enquadram as reclamações procedimentos equivocados ado-
concentram as reclamações rece- que denunciam a precariedade dos tados pelos agentes de seguran-
bidas pela Central, especialmente serviços oferecidos e a ausência ça, em especial no tratamento de
no que se refere: i) ao despreparo de infra-estrutura adequada para o demandas de violência doméstica
e à falta de comprometimento na seu pleno funcionamento. Dentre e familiar. Nessa categoria, estão
aplicação da legislação vigente; e elas se encontram: falta de viatura; os relatos de tentativas de media-
ii) ao atendimento inadequado em telefone sem resposta; demanda ção/conciliação em situações de
função de comportamentos que fora da jurisdição do serviço; dele- violência, o entendimento de que
reproduzem estereótipos e precon- gacias fechadas; e falta de recursos o serviço não tem competência ou
ceitos no atendimento. humanos. não está habilitado para tratar do
tema da violência doméstica e fa-

24
miliar, o desconhecimento dos pro- da Penha (11.340/2006) e a neces- tinha hematomas e nem feri-
cedimentos da Lei Maria da Penha, sidade de prova material para reali- mentos e o agressor tinha.
entre outros. zar o registro da ocorrência. Cidadã foi agredida (...)
Uma das características mar- A aplicação incorreta da Lei por seu cunhado. A vítima foi
cantes desses relatos é o discurso não é de todo surpreendente por se atendida pelo 190 e orientada
do “conflito de competências”, que “tratar de uma norma com relativo a procurar a DEAM. Quando
ocorreria, por um lado, pelo des- pouco tempo de vigência, que alte- chegou na delegacia foi in-
preparo das agentes que acreditam ra substancialmente o cotidiano de formada que a Lei 11.340 só
não ser de sua responsabilidade trabalho das delegacias, provocan- assiste violência praticada pelo
tratar da violência doméstica e fa- do assim resistência à sua adequa- marido e não conseguiu fazer o
miliar e, por outro, como uma “des- da e completa aplicação (Bonetti boletim de ocorrência.
culpa” para que os serviços possam e Pinheiro, 2007)”. No entanto, é
A necessidade de prova ma-
não atuar em casos considerados preocupante a quantidade de re-
terial para registrar boletim de
não importantes. A leitura dos re- latos de despreparo sobre os/
ocorrência é considerada como
latos transcritos no estudo revela as agentes de delegacias espe-
mais uma evidência do não reco-
que até mesmo agentes de DEAMs cializadas que, em função da
nhecimento da violência doméstica
se utilizam desse tipo de discurso natureza dos serviços e dos inves-
e familiar como um crime ou, no
para justificar o não atendimento timentos públicos, deveriam estar
caso, do seu reconhecimento como
de casos de violência doméstica e bem mais preparados para lidar
um crime menor, já que não houve
familiar. com as novidades introduzidas
derramamento de sangue. Essa ne-
Cidadã relata que, na dele- pela nova legislação do que o
cessidade conflita com o disposto
gacia de polícia, foi informada verificado na prática.
pela Lei Maria da Penha, que define
que em casos de violência do- Cidadã relata que procurou como violência contra as mulheres
méstica o BO só pode ser regis- a DEAM (...) para registrar um não apenas a violência física, mas
trado em uma DEAM para que boletim de ocorrência contra o também psicológica, moral, sexual
a vítima tenha direito à Lei seu agressor, mas não foi in- e patrimonial, demonstrando a não
Maria da Penha. formada da Lei 11.340 (...) A necessidade de marcas físicas apa-
Senhora esteve na DEAM cidadã é que disse à delegada rentes para configuração do crime.
para fazer o BO contra o com- que de acordo com a Lei Ma-
Cidadã relata que, ao ten-
panheiro que a agride com ria da Penha tinha o direito de
tar registrar BO contra seu ma-
freqüência e os policiais se solicitar as medidas protetivas
rido na DP, o delegado que a
negaram a registrá-lo dizendo de urgência contra o agressor,
atendeu disse que só poderia
que BO relacionado à violência porém a delegada afirmou que
ajudá-la se ela estivesse muito
doméstica e familiar não era a lei acima citada não apre-
machucada e ensangüentada,
com eles, sendo ela orientada sentava nada de novo e que
caso contrário ele não pode-
a procurar a delegacia civil. era igual à lei anterior. A de-
ria fazer nada, e que a mesma
legada (...) ainda disse que a
Cidadã compareceu à 50ª teria que procurar uma assis-
cidadã teria de se encaminhar
delegacia de polícia (...) para tente social antes de realizar a
ao Fórum da cidade para pedir
registrar um BO, por ter sofrido denúncia, porque depois seria
ao juiz a saída do acusado de
violência doméstica e familiar tarde demais para desistir.
casa.
e o delegado que a atendeu Cidadã procurou a DEAM
recusou-se a fazê-lo, alegando Cidadã compareceu na de-
e foi atendida pela delegada
que tinha muita coisa para re- legacia comum, porém o agen-
(...) que disse à ofendida que
solver e que a mesma procuras- te (...) recusou-se a registrar
como o agressor não falou em
se a DEAM. BO dizendo que o esposo da
matá-la, não era motivo para o
vítima já tinha ido naquela
Outros dois padrões verificados registro do BO e encaminhou a
delegacia e feito o boletim de
pelos autores com relação ao não agredida para outro local.
ocorrência e que não podia
atendimento por despreparo são a Cidadã informa que com-
ter dois boletins pelo mesmo
falta de conhecimento dos procedi- pareceu à 71ª delegacia co-
acontecido e que a vítima não
mentos introduzidos pela Lei Maria

25
mum (...) e não teve o seu seria presa por desacato. Ofen- Cidadã esteve na DEAM
BO registrado. O escrivão disse dida desistiu de pedir a ajuda para registrar BO e a delegada
que só poderia fazer algo se o da polícia. se negou a registrá-lo dizendo
companheiro a matasse. Cidadã relata que registrou que acabara seu expediente e
No último grupo de reclama- BO por violência doméstica na mandou a cidadã procurar ou-
ções, são enquadradas aquelas DEAM. (...) Há duas semanas tra delegacia.
relativas à recusa dos agentes de ela foi chamada à DEAM e lhe Cidadã ligou para o 190.
segurança pública às demandas foi apresentada uma declara- Estiveram no local três via-
das reclamantes, tanto em casos ção sugerindo que ela desistis- turas, porém se recusaram a
de atendimento quanto nos de não se do processo. prender o agressor devido ao
atendimento. Diferentemente da A cidadã relata que ligou mesmo ser policial. Alegaram
categoria “despreparo”, esse tipo
para o serviço 190 (...), pois que não colocariam as mãos
de recusa se dá num contexto ex-
sua vizinha estava sofrendo em um colega de serviço.
plícito e valorativamente carrega-
violência por parte do compa- Cidadã relata que sua
do de avaliação moral, no qual se
nheiro. A pessoa que atendeu irmã estava sendo agredida
percebe a agência de convenções
a ligação recusou o serviço di-
tradicionais de gênero na consti- pelo marido, quando solici-
zendo que em briga de marido
tuição e reprodução de modelos tou a presença da policia, um
e mulher eles não se envol-
de feminilidades e masculinidades policial da DP informou que a
vem.
que informam estereótipos des- delegacia estava superlotada e
qualificadores do feminino e enal- Ainda nesta categoria são para levar o agressor eles te-
tecedores de um tipo especifico de identificados três outros conjuntos riam que pagar 30,00 (trinta
masculino, aquele que se significa de reclamações que dizem respeito: reais) a diária.
a partir da virilidade agressiva. i) ao descaso dos agentes públicos
Diante do quadro exposto, há
Nesse grupo se explicita um nível na realização de suas obrigações
enquanto servidores do Estado; ii) que se reconhecer a necessida-
máximo da negação da violência
à recusa de atendimento em casos de de uma política de segurança
doméstica e conjugal como um
de corporativismo policial; e iii) pública que incorpore as especi-
crime digno de ser investigado e
aos casos de corrupção policial, em ficidades das demandas das mu-
é essa “banalização a responsável
pela incidência de homicídios que que os serviços de segurança são lheres em toda a sua amplitude,
poderiam ser evitados”. cobrados ou há suborno para não para além das relativas à violência
apenar os agressores. doméstica e familiar. Muito já se
Cidadã relata estava sen-
avançou. Contudo, há ainda nes-
do agredida pelo seu marido A vítima foi até a delega-
cia [comum da polícia civil] te campo muitas arestas a serem
quando ligou para o número
190 da polícia relatando (...) e o cidadão que a atendeu se aparadas, sobretudo quando se
[e] pedindo ajuda. Segundo a recusou a fazer o seu BO por leva em consideração os meandros
cidadã, o policial que a aten- motivo de dor no braço, que das interações entre demandantes
deu não deu nenhuma impor- era pra cidadã esperar o próxi- dos serviços de segurança pública
tância ao que ela dizia e ale- mo escrivão chegar. Quando o e seus agentes. A análise ora
gou não poder fazer nada por plantão trocou, o outro aten- apresentada objetivou fazer um
ela. A mesma, irritada com a dente disse que era apenas primeiro esforço nessa direção,
situação, teria perguntado ao uma briga de casal e que a ao lançar luzes sobre as sombras
policial se ele estava naquela Lei Maria da Penha não fun- dessas situações retratadas pelas
delegacia de enfeite. O poli- cionava naquela cidade como reclamações que chegam à Central
cial, então, teria dito que ela estava escrito no papel. de Atendimento à Mulher.

26
A História de uma Lei
Rubia Abs da Cruz1

A Lei Maria da Penha, além de Voltando às interpretações advocacia feminista da institui-


ter uma bela trajetória em relação equivocadas, gostaria de levantar ção.
a sua elaboração e conquista, vem alguns questionamentos sobre o Essa cultura machista e per-
construindo uma nova história em tema. Por vezes, culpabilizam-se missiva em relação à violência
nosso país. Mesmo com as diver- as mulheres que “permitem” essa contra a mulher abriu espaço para
sas interpretações e divergências situação de violência e buscam-se a responsabilização do Estado Bra-
sobre a Lei, ela tem produzido um causas para sua aparente apatia. sileiro no caso representativo de
importante estímulo à discussão As conclusões são diversas e al- Maria da Penha3, a partir do qual
do problema social da violência gumas colocações são no sentido foi constatado que o Estado des-
de gênero como fruto de uma dis- de que a mulher tem medo, outras cumpriu com o previsto na Conven-
criminação específica que atinge de que a manutenção da relação ção Interamericana para Prevenir,
fortemente as mulheres, especial- com o homem autor de violência Punir e Erradicar a Violência con-
mente quando ocorre no ambiente seria pela dependência emocional tra a Mulher, ratificada em 1995,
doméstico e familiar. ou econômica. Enfim, as possibili- e com o que dispõe a Convenção
Apesar das críticas ao instru- dades de justificativas e culpabili- para a Eliminação de todas as for-
mento, poucos negam que a vio- zação são inúmeras e se misturam mas de Discriminação contra a Mu-
lência contra as mulheres exista e às relações de afeto, às tradições lher – CEDAW, ratificada em 1993.
que deva ser coibida. Paradoxal- religiosas, às tradições familiares, Por esse padrão sistemático de
mente, pouco se tem feito para sua aos medos de perder os filhos com violência, observado no caso espe-
implementação real, colocando-se uma separação, de ficar sozinha cífico de Maria da Penha, o Brasil
dúvidas quanto a sua efetividade e e de ser discriminada. Há, no en- foi condenado pela Comissão Inte-
constitucionalidade. Existem inter- tanto, um dado fundamental para ramericana de Direitos Humanos do
pretações equivocadas em relação se entender a dificuldade de rea- Sistema Interamericano a adotar
à violência que a mulher sofre. É ção à violência por parte de algu- medidas eficazes para proporcionar
o caso do Recurso Especial que se mas mulheres: o desconhecimento o respeito e a dignidade da mulher.
encontra na pauta do Superior Tri- dos procedimentos legais e dos Ao se obter a condenação do Esta-
bunal de Justiça, ingressado pelo serviços estatais, que não estão do Brasileiro na litigância interna-
Ministério Público do DF, para de- apoiados nas políticas públicas cional, conquistaram-se, ao menos
cidir se a lesão corporal leve deve necessárias, nem possuem equipes parcialmente, avanços internos em
ser considerada ação penal pública suficientemente preparadas para relação à garantia dos direitos hu-
condicionada à representação ou lidar com esta demanda. Esse des- manos das mulheres e à proteção
ação penal pública incondiciona- conhecimento quanto ao exercício destes direitos, tendo em vista a
da, o que definirá, em última aná- de direitos é notório e bastante aprovação, alguns anos depois, da
lise, se o Estado processa ou não identificado pela Themis2 em sua Lei Maria da Penha.
processa o homem que agride sua atuação como educadora jurídica O movimento feminista, tendo
mulher. Claro que existe todo um popular na formação de promoto- acompanhado o caso desde o iní-
debate quanto ao direito à repre- ras legais populares - PLPs e jo- cio, organizou-se em um Consór-
sentação significar a autonomia da vens multiplicadoras de cidadania cio de ONGs4 e começou a elaborar
mulher, mas falaremos sobre este - JMCs, bem como no atendimento um documento-base em formato de
ponto mais tarde. jurídico às mulheres prestado na anteprojeto de lei, documento este

1. Advogada e coordenadora geral da Themis, Especialista em Direitos Humanos das Mulheres pela Universidade do Chile e American University.
Membro do CLADEM e AMB e Conselheira Fiscal da Rede Feminista.
2. A Themis Assessoria Jurídica e Estudos de Gênero é uma ONG fundada em 1993, e que busca no Direito e na Capacitação Legal a efetivação dos
direitos humanos das mulheres por meio do acesso à justiça.
3. Maria da Penha sofreu duas tentativas de homicídio pelo seu marido à época e, como conseqüência da violência sofrida, tornou-se paraplégica.
Não obtendo a condenação do agressor no âmbito da legislação brasileira, Maria da Penha recorreu à Comissão Interamericana de Direitos
Humanos, conquistando, nesta instância, a condenação do Estado Brasileiro pelo descumprimento das convenções internacionais de proteção aos
direitos das mulheres.
4. CEPIA, CFEMEA, CLADEM, Agende, Advocacy e Themis. 27
que posteriormente foi entregue ao bermos do elevado número de in- ação penal pública incondicionada.
Executivo Federal, à Ministra Nilcéa quéritos que não são finalizados ou Isso tem relação direta com a pos-
Freire, da Secretaria Especial de Po- de casos que são arquivados pelo sibilidade de a mulher manter uma
líticas para as Mulheres (SPM/PR), Poder Judiciário sem uma resposta decisão que tomou em meio a uma
pois previa a formulação e a imple- jurisdicional ou sequer uma presta- situação de violência, e que por ve-
mentação de políticas públicas que ção jurisdicional. Basta a atuação zes, pela própria falta de resposta
garantissem a implementação da jurídica nos Juizados de Violência efetiva ao problema pelo Estado e
lei. A SPM, então, iniciou um tra- para assegurar-se disso. pelo seu próprio desconhecimento
balho com as organizações e com Junto ao Supremo Tribunal dos trâmites, faz com que a mulher
grupos interministeriais, buscando Federal, temos a discussão sobre desista de prosseguir. Sabemos que
finalizar a Lei para apresentá-la ao a constitucionalidade da Lei Maria existe uma parcela significativa de
legislativo, tendo mantido o inte- da Penha na Ação Direta de Cons- mulheres que desistem de continu-
resse político para sua aprovação. titucionalidade – ADC 19, na qual ar o processo (o que de acordo com
Diversas audiências públicas foram foram apresentados Amicus Curiae a Lei não poderia acontecer quan-
realizadas pela relatora do projeto, por representantes da sociedade do ocorre lesão corporal leve) e
a Deputada Jandira Feghali (PcdoB/ civil organizada, sendo um pela que não estão sendo ameaçadas no
RJ), de forma a equacionar a Lei às Themis, Cladem/Ipê e Antígona. A momento em que desejam desistir,
demandas sociais. A Lei aprovada alegada inconstitucionalidade pa- exercendo, assim, sua autonomia.
foi ao encontro, embora não inte- rece tratar-se mais diretamente de Entretanto, o Estado não pode
gralmente, das demandas iniciais resistências culturais ao fenômeno ficar inerte, à mercê da vontade
do Consórcio, movimentos de mu- da violência contra a mulher, do da vítima em crimes de lesão e o
lheres e feministas e, exatamente que de um problema técnico-jurí- mesmo deve ser aplicado em caso
por isso, tem sido arduamente de- dico. Não se observa que a igualda- de estupro com lesão grave ou que
fendida como um instrumento de de formal não vem se refletindo na ocasione a morte, conforme bem
transformação social. igualdade material de direitos no se manifestou a Procuradoria Ge-
Para se chegar a essa relevante que diz respeito à violência con- ral pela Inconstitucionalidade da
conquista legal, muitos caminhos tra mulher, bastando verificar os Lei 12.015, de 2009. O Estado não
foram percorridos pelo movimento registros policiais sobre a referida pode ser permissivo a tal ponto
feminista na tentativa de demons- violação de direitos. Ou seja, a re- nos crimes de lesão e estupro. O
trar a importância de haver uma alidade de fato é que as mulheres Estado tem que agir, independen-
conscientização sobre a gravidade ainda precisam de proteção estatal temente da vontade da vítima,
da situação das mulheres inseri- quando se encontram em situação pois essa vontade pode estar pre-
das em um contexto de violência. de vulnerabilidade, mesmo que a judicada pelo medo e pelo apego.
Muito há que ser feito em variadas Constituição Federal expresse for- Pondera-se que a maioria destas
áreas, mas centraremos o debate malmente que somos iguais pe- mulheres está em uma situação
na análise jurídica da questão e na rante a Lei. Exatamente por isso é de medo e vergonha e que desiste
busca da harmonização do direito que existem legislações específicas da denúncia por desconhecimento
interno com os direitos humanos para crianças e idosos, ou sobre a e receio da situação piorar com a
internacionais. questão racial, já que alguns gru- entrada do Estado nesta relação,
Antes da Lei Maria da Penha, pos de pessoas estão mais vulnerá- seja pela impunidade, que a dei-
as mulheres, além de não terem veis à violência, abusos e discrimi- xa ainda mais vulnerável, seja pela
defensores públicos disponíveis, nações. prisão em flagrante ou preventiva
permaneciam vulneráveis ao pro- A autonomia das mulheres do parceiro, que embora possa lhes
blema social da violência de gêne- vem sendo debatida junto ao Su- dar uma trégua, também lhes traz
ro, visto que este não era resolvido perior Tribunal de Justiça de forma culpa frente aos filhos e familiares.
eficazmente, mesmo que trazido indireta, quando verificamos Re- A complexidade dessas relações
ao Poder Judiciário. Ainda não curso Especial referente a decidir não permite que exista uma receita
podemos afirmar que as mulheres se, em crimes de lesão corporal única ou infalível, mas certamente
vulneráveis à violência estejam leve, a ação penal é pública e con- o Estado não pode mais fingir que
protegidas efetivamente, visto sa- dicionada à representação ou se é não vê e não atuar de forma dili-

28
gente e séria quanto a este grave suas ex ou atuais companheiras e para uma transformação social que
problema social, pelo qual inclusi- esposas (a cada mês uma mulher é valorize as mulheres e permita uma
ve já foi condenado internacional- assassinada desta forma, somente vida livre de violências. É o que
mente. em Porto Alegre). E, na linha do podemos verificar na experiência
A manutenção da violência, que falava anteriormente em rela- de formação das promotoras legais
por mais paradoxal que possa pa- ção aos crimes sexuais, o estudo populares e jovens multiplicadoras
recer, se pauta nos valores da fa- também constatou o elevado nú- de cidadania, junto a Themis, mas
mília e da Igreja, sem considerar mero de meninas e jovens sendo que precisa ser ampliada aos ope-
muitas vezes que esta família está violentadas sexualmente pelo pai radores do direito e sociedade em
totalmente desestruturada e que ou padrasto. geral. E, para seguirmos contando
mantê-la pode ser ainda mais gra- Diante dessas considera- “a história de uma Lei”, devemos
voso para os que dela ainda fazem ções, conclui-se que muito se seguir atentas, avaliando sua apli-
parte. Não pode ser saudável viver caminhou para a implementação cação, a exemplo do que vem sen-
em uma família incestuosa, assim de instrumentos jurídicos tão do realizado pelo Observe – Obser-
como em uma família violenta e o importantes de defesa das mu- vatório da Lei Maria da Penha5, e
Estado não pode permanecer cego lheres vulneráveis e que estavam verificarmos assim, o quanto a Lei
a esta realidade. A Secretaria de desprotegidas legalmente diante está sendo efetiva e devidamente
Segurança Pública do Estado do da violência doméstica e fami- aplicada na proteção das mulheres
Rio Grande do Sul, impulsionada liar. Muito ainda nos falta para submetidas à realidade da violência
pela Lei Maria da Penha e com base o alcance da igualdade material, no espaço doméstico e familiar. E,
em legislação estadual, realizou o mas já foram realizados grandes caso o Estado Brasileiro permane-
Estudo Técnico 50, com tabulação avanços no tocante à garantia de ça sendo violador através de seus
e análise de dados específicos em direitos formais. agentes, o que infelizmente ainda
relação às mulheres e violência do- Certamente, a educação em ocorre, devemos continuar atuando
méstica e familiar, e constatou que direitos humanos é um dos cami- de forma diligente, sempre na bus-
os homens que ameaçam tentam nhos para o exercício da cidadania ca da garantia dos direitos huma-
sim assassinar e chegam a matar e para o respeito às diferenças, nos das mulheres.

5. O Observe – Observatório da Lei Maria da Penha é uma instância autônoma, da sociedade civil, que funciona através de um Consórcio formado por núcleos de
pesquisa e organizações não-governamentais de todo o país, e tem por objetivo primordial acompanhar, a partir da coleta, análise e divulgação de determinadas
informações, o processo de efetivação da Lei Maria da Penha (Lei11.340/2006). www.observe.ufba.br 29
DOSSIÊ MULHERES E PODER

Apresentação

iscussão que perpassa com muita força o questionamento sobre a


participação das mulheres no universo da política, o tema Mulheres,
Poder e Decisão possui, na verdade, uma amplitude considerável,
que começa com a fundamental análise da demarcação sexual dos
espaços público e privado e com a divisão sexual do trabalho e das
competências, segundo a qual mulheres seriam “naturalmente” mais
aptas a desempenhar funções ligadas à esfera doméstica, enquanto
aos homens caberia o domínio da esfera pública.
A dissociação simbólica entre mulheres e poder, resultante dessa
divisão, se materializa na organização de nossa sociedade em todos
os níveis. Os dados são muito claros em demonstrar que, conforme
se sobe nas hierarquias – quaisquer que sejam elas – encontrar-se-á,
invariavelmente, mais homens que mulheres. É assim no universo da
política – apenas 10% dos/as nossos/as parlamentares são mulheres
– no mundo empresarial, nos espaços sindicais, na administração
pública.
Por outro lado, o compartilhamento das responsabilidades
domésticas e familiares – ainda o domínio do feminino – permanece
como um tema tabu, de difícil enfrentamento e de complexa
concretização. Daí decorre que, se avançam as mulheres na
ocupação do espaço público, continuam atadas à exclusividade das
responsabilidades domésticas e familiares.
Com a intenção de aprofundar diagnósticos e análises a respeito
dos diversos desdobramentos deste problema, e seguindo a orientação
temática do Observatório Brasil da Igualdade de Gênero para o ano de
2009, o Dossiê Mulheres e Poder traz um conjunto de artigos sobre o
tema. Esperamos, com essa iniciativa, contribuir para um debate já
bastante denso, mas ainda não suficientemente disseminado.

Boas leituras!

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ENTREVISTA
Prof. Dr. Luis Felipe Miguel

DOSSIÊ MULHERES E PODER


Professor associado do Instituto de Ciência Política da Universidade de Brasília e doutor em
Ciências Sociais pela Universidade de Campinas, o Prof. Dr. Luís Felipe Miguel tem uma extensa
trajetória acadêmica nas áreas de Mídia e Política, Teoria da Democracia, e Gênero e Política.
Atualmente, conduz, entre outros, o projeto de pesquisa “Determinantes de gênero, visibili-
dade midiática e carreira política no Brasil”, que pretende entender de que forma a sobrevivência
de estereótipos de gênero constrange a ação política das mulheres e a visibilidade desta ação no
noticiário jornalístico.
A entrevista abaixo foi concedida em 19 de outubro.

Como o sr. avalia a participação Na esfera da política institucional, por ou-


das mulheres na política brasileira tro lado, a presença política das mulheres conti-
nos últimos 9 anos? nua muito reduzida. Os poderes legislativos bra-
sileiros têm uma baixa proporção de mulheres,
Em primeiro lugar, é preciso diferenciar a entre as menores da América Latina. São poucas
participação política em sentido amplo da par- prefeitas, poucas governadoras. Existem 28 mi-
ticipação na política formal, aquela dos parti- nistérios e apenas duas mulheres como titula-
dos, das eleições, dos poderes constituídos. As res.
mulheres formam um importante contingente de Do ponto de vista numérico, portanto,
muitos movimentos sociais e organizações da os avanços têm ocorrido de forma lenta. Três
sociedade civil. E isso não vem de hoje. Mar- eleições com cotas de candidaturas fizeram as
chas de mulheres “com Deus pela família” foram mulheres avançar apenas 14 cadeiras na Câmara
importantes para produzir um clima de opinião dos Deputados (foram eleitas 32 deputadas em
favorável ao golpe de 1964. (Cito esse exemplo 1994, as últimas eleições antes das cotas, e 46
propositalmente, para registrar que a mobiliza- em 2006). Nosso sistema eleitoral, com listas
ção política feminina não está necessariamente abertas, apresenta vantagens do ponto de vista
vinculada a “boas causas”.) Depois, movimentos da autonomia dos eleitores, mas é negativo para
femininos – contra a carestia, pela anistia – de- políticas de cotas. Pior ainda é o fato de que a
sempenharam papel significativo na luta contra legislação não exige o preenchimento das vagas
a ditadura. E, nas últimas décadas, as mulheres reservadas às mulheres, não lhes garante recur-
se mostram muito presentes nos novos espaços sos nem tempo de rádio e TV e permite que cada
de participação, como orçamentos participati- partido lance um número de candidatos superior
vos e conselhos gestores. às vagas em disputa. Diante de tudo isso, não é
Tais espaços não estão imunes ao sexismo de espantar que as cotas eleitorais tenham tido
– em muitos movimentos sociais, a liderança um reflexo modesto na composição do poder le-
ainda é desproporcionalmente masculina, por gislativo.
exemplo. E neles também se fazem sentir as di- Mas há outros movimentos que precisam ser
ficuldades materiais para a participação política levados em conta. Pela primeira vez na história
das mulheres, a começar pelo menor tempo li- republicana, há uma quantidade – ainda peque-
vre, fruto da dupla jornada de trabalho. Mas elas na, mas significativa – de mulheres no primeiro
participam, fazem política. plano da política nacional. Tivemos uma mulher

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ENTREVISTA
Prof. Dr. Luis Felipe Miguel
DOSSIÊ MULHERES E PODER
entre os principais candidatos às eleições de jornalística contribui para manter as mulheres
2006 e, para 2010, tudo indica que serão duas em posição secundária.
ou três. Por outro lado, o perfil das mulheres
na política mostra sinais de que está mudan- Qual é sua expectativa com relação à
do. Está diminuindo a dependência do capital participação das mulheres nas eleições
político de tipo familiar, isto é, a carreira po- estaduais e federais de 2010?
lítica que nasce da relação conjugal ou fa-
miliar com alguma liderança. Isto se percebe Não creio que haja algum avanço espeta-
entre deputadas, entre senadoras, tanto à es- cular em relação às eleições de 2006. Os limites
querda quanto à direita do espectro político. da legislação de cotas brasileira fazem com que
Pensando nos governos estaduais: em 1994, só possamos imaginar progressos muito lentos
foi eleita a primeira governadora do país (Ro- e graduais. Aos poucos, as direções partidárias
seana Sarney, no Maranhão), mas em 2006, devem se dar conta de que a inclusão de can-
pela primeira vez se elegeram governadoras didatas competitivas – em vez de deixar a cota
cujo capital político não tinha base familiar. em aberto ou ocupada por candidatas pro forma
Yeda Crusius (Rio Grande do Sul) e Ana Júlia – aumenta a competitividade geral da lista. Mas
Carepa (Pará) são exemplos das novas formas é um processo que se dá aos poucos e não há
de ingresso das mulheres na política – a mili- mecanismos que favoreçam as mulheres na dis-
tância em movimentos sociais e a visibilidade puta, interna aos partidos, por tempo de mídia
como profissional com capacitação técnica es- e recursos de campanha.
pecífica. Este é um fenômeno de grande im- Embora campanhas para a maior parti-
portância. cipação feminina na política eleitoral e pela
valorização das candidaturas das mulheres
O sr. conduz pesquisas sobre Gênero, possam ter seu impacto, sem a mudança da
Mídia e Democracia há algum tempo. lei não há como esperar uma transformação
Mulheres e política ainda são imagens rápida do quadro de sub-representação das
de baixa vinculação no imaginário mulheres no parlamento.
social brasileiro? Como isso
repercute na mídia? Temos atualmente três possíveis
candidatas à Presidência da República
O noticiário político é um espaço masculi- nas eleições de 2010. Algumas
no. As mulheres se encontram ainda mais sub- análises da cobertura jornalística
representadas nele do que no parlamento. Creio referente a essas três candidaturas
que há um processo de mão dupla. A mídia pri- têm apontado para um tratamento
vilegia a cobertura dos ocupantes das posições marcadamente sexista e discriminatório
centrais do campo político e, em particular, dos dessas mulheres. Qual a sua
ocupantes de cargos institucionais. Como as avaliação a respeito?
mulheres estão em poucos ministérios, nunca
participaram das mesas diretoras do Congres- A chamada “grande imprensa” – os veículos
so, raramente chegam à posição de líderes de de comunicação dos principais centros urbanos,
bancada ou à presidência dos principais parti- orientados para a competição pelo mercado –
dos etc., o noticiário passa ao largo delas. Por tende, hoje, a evitar o apelo aos estereótipos
outro lado, os jornalistas, de ambos os sexos, mais gritantes. Há exceções, sobretudo de uma
também tendem a reproduzir a visão dominante revista semanal paulistana de grande circulação,
da política como atividade masculina. Com isso, conhecida por sua adjetivação agressiva e seu
procuram prioritariamente homens como fonte distanciamento dos padrões de “imparcialidade
de suas matérias e repercutem mais fortemen- ostensiva” que a imprensa brasileira hoje perse-
te as propostas e declarações que partem deles. gue; e em momentos de grande tensão política,
Como, na política contemporânea, a visibilidade tais exceções podem se tornar mais numerosas.
na mídia é um componente crucial para o su- Mas o sexismo aberto não é, eu creio, a norma
cesso na carreira política, o viés da cobertura na grande imprensa brasileira.

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ENTREVISTA
Prof. Dr. Luis Felipe Miguel

DOSSIÊ MULHERES E PODER


Isso não quer dizer que não existam pro- sas. O primeiro deles é o sistema eleitoral de
blemas. Se é raro hoje se encontrar, num jor- “listas abertas”. Por esse sistema, o poder dos
nal ou num noticiário de televisão, a ideia de partidos na determinação da composição do
que “lugar de mulher é na cozinha”, por outro corpo de representantes é mais reduzido, uma
lado permanecem expectativas sobre qual é o vez que é o voto dos eleitores que determina
comportamento feminino na política, que orien- o ordenamento dos candidatos – o que não é
tam o noticiário e reproduzem, sim, percepções algo necessariamente ruim, mas faz com que a
preconceituosas. A maior atenção dada à apa- obtenção de vagas de candidaturas seja ape-
rência física das candidatas é um exemplo. Se nas um primeiro passo na direção de maior
há um esforço para a adequação aos padrões representação. O sistema de “listas fechadas”,
dominantes, no vestuário ou com a realização por sua vez, desde que secundado por regras
de cirurgias plásticas, isto é frequentemente que impeçam que as mulheres sejam deixadas
considerado uma demonstração de futilidade. Se para o final da lista, tende a promover uma
não há, a “feminilidade” da candidata se torna transferência mecânica das cotas para o con-
questionável. junto dos eleitos.
Ao mesmo tempo, há a expectativa de que Além do sistema eleitoral, existem proble-
as mulheres na política privilegiem determina- mas associados às características da legislação
dos temas, vinculados ao âmbito da família, da brasileira. Como não existe punição para os par-
domesticidade e do “cuidar do outro”. E essa tidos que não preenchem as cotas, as mulheres
expectativa marca a presença das mulheres no continuam respondendo por bem menos do que
noticiário: são esses os temas que demandariam os 30% dos candidatos previstos em lei. Como
mulheres como fontes, políticas ou especialis- cada partido pode lançar um número de candi-
tas. Por mais importantes que tais temas pos- datos superior ao número de vagas em disputa,
sam ser em si mesmos, eles estão associados a a eventual ausência das candidatas mulheres
posições secundárias no campo político – por faz pouca falta para os partidos. E nada obriga
exemplo, uma pesquisa revelou que os deputa- os partidos a garantirem às candidatas condi-
dos mais influentes, de ambos os sexos, con- ções mínimas para competir. Elas podem ter seu
centram sua atuação em questões de economia nome colocado na lista sem um centavo para a
e infraestrutura, não em educação, assistência campanha e sem ter acesso à propaganda no
social ou família, que são assuntos considerados rádio e na TV.
“femininos”. Mesmo sem a alteração do sistema elei-
toral, a lei pode se tornar mais efetiva com a
Uma pesquisa de opinião recente obrigação do preenchimento da cota de can-
conduzida pelo Instituto Patricia didaturas femininas – sob pena, por exemplo,
Galvão e Ibope revelou que 75% da impugnação da lista – e da destinação de
da população brasileira apoia a recursos proporcionais para as campanhas. Ou-
implementação da política de cotas tra medida importante é a redução do núme-
eleitorais para mulheres. Ao mesmo ro de candidaturas. Não há sentido em serem
tempo, pesquisa realizada pelo lançadas mais candidaturas do que as vagas
INESC e pelo DIAP apontou para em disputa (o Brasil é um dos poucos países
um posicionamento contrário dos que permitem tal contrassenso). Com menos
parlamentares: 60% afirmaram candidatos, os votos obtidos pelas mulheres
discordar da aplicação de sanções tornam-se mais importantes, o que estimula-
aos partidos que não cumprirem ria as direções partidárias a buscar candidatas
com a cota. Quais são os principais competitivas.
entraves à implementação e Medidas complementares possíveis são
ao sucesso dessa lei no Brasil? a introdução de reserva de vagas também
para as direções partidárias, permitindo que
As cotas no Brasil têm alcançado peque- as mulheres tenham acesso às instâncias que
no impacto na composição dos poderes legis- determinam as estratégias de campanha, e a
lativos, devido a problemas de ordens diver- ampliação das cotas, na direção da paridade.

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ENTREVISTA
Prof. Dr. Luis Felipe Miguel
DOSSIÊ MULHERES E PODER
O sr. considera a política de O debate sobre maior participação
cotas eleitorais para as mulheres das mulheres na política passa
um instrumento eficaz de ampliação necessariamente por uma discussão
do acesso das mulheres à a respeito da ocupação das esferas
política brasileira? pública e privada por homens e
mulheres e pela divisão de papéis e
Políticas de cotas podem ser necessárias definição de lugares sociais de cada
para o enfrentamento de determinadas assime- um e de cada uma nessas esferas.
trias entre grupos sociais, mas dificilmente po- O sr. considera possível uma maior
dem ser consideradas suficientes. Mesmo que a participação das mulheres na vida
reserva de candidaturas reverta plenamente em pública, e na política em particular,
ampliação do número de mulheres no poder le- sem que esse debate sobre
gislativo, ainda falta conseguir acesso às posi- participação dos homens na vida
ções centrais do campo político. privada seja enfrentado?
Além disso, como observou a cientista polí-
tica inglesa Anne Phillips, as cotas não ampliam Creio que se trata de uma questão crucial. A
a representação das mulheres, apenas o número divisão entre uma esfera doméstica “feminina”
de mulheres atuando como representantes. Quer e uma esfera pública “masculina” está no cerne
dizer, elas não garantem, por si só, que o siste- da subalternidade das mulheres e repercute for-
ma político se torne mais receptivo às demandas temente na sua fraca presença na política insti-
das mulheres. tucional. Os padrões culturais e de socialização
É importante ter mais mulheres como re- que constróem a política como espaço masculi-
presentantes, pois isso significa, em si mesmo, no inibem o surgimento da “ambição política”
a superação de uma desigualdade. Mas também entre as mulheres e marcam como desviantes
é importante fazer avançar a agenda feminis- aquelas que rompem com isso. Por outro lado,
ta: dar visibilidade às questões de interesse das as mulheres que permanecem na esfera domésti-
mulheres e buscar soluções satisfatórias a elas. ca dispõem de menor acesso às redes de sociali-
Embora alguns temas desta agenda tenham con- zação que impulsionam as carreiras políticas. E
seguido avançar significativamente nos últimos aquelas a quem se impõe uma rotina profissional
anos, como é o caso da questão da violência e uma rotina dos cuidados domésticos dispõem
doméstica, outros continuam marginalizados. também de menos tempo livre, que é um recurso
Penso no direito ao aborto, que é uma ques- fundamental para a participação política.
tão central. A lei atual retira de metade dos ci- São necessários dois movimentos – o fato
dadãos – as mulheres – a autonomia sobre o de que ambos hoje pareçam um tanto utópicos
próprio corpo, que o pensamento liberal, desde não impede que sejam enunciados. Um é a re-
o século XVII, julga que é o fundamento dos di- dução da sobrecarga que as tarefas domésticas
reitos individuais. O direito ao aborto é, assim, representam, com a disponibilização de equi-
uma questão de primeira magnitude, mas encon- pamentos coletivos (lavanderias, restaurantes,
tra enorme dificuldade para aparecer na agenda creches). Outro é a participação dos homens,
pública. Quando aparece, muitas vezes é como não como “ajuda” às suas companheiras, mas
manobra demagógica dos grupos antiabortistas, como uma tarefa que é deles tanto quanto de-
enquadrado como uma questão “moral”, e não las. Com isso, não é que as mulheres na política
política. abandonarão as preocupações com a gestão de
Assim, creio que existem dois processos suas unidades domésticas. Mas os homens na
paralelos, que se relacionam entre si, mas não política terão preocupações similares.
se esgotam um no outro. Um é a ampliação da A exigência de redistribuição das responsa-
presença das mulheres nos espaços da política, bilidades na esfera privada, com o partilhamento
que inclui, como um mecanismo importante, as equitativo entre homens e mulheres, é susten-
cotas. Outro é a ampliação do peso da agenda tada por inúmeros argumentos. A ampliação da
feminista no debate público. presença feminina na vida pública é um deles.

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ENTREVISTA
Prof. Dr. Luis Felipe Miguel

DOSSIÊ MULHERES E PODER


Observando a trajetória das mulheres para sua atividade política, mas para a mulher
na política, o sr. considera que exista é um complicador a mais, uma tarefa extra que
um deslocamento ou um acúmulo das concorre com seus compromissos públicos.
responsabilidades domésticas às quais Isto faz com que, muitas vezes, as mulheres
estas tradicionalmente respondem? iniciem tardiamente sua carreira política (ape-
Como esse processo (deslocamento nas depois dos filhos crescerem) ou limitem seu
ou acúmulo) pode interferir nessas progresso devido a fatores que raras vezes são
trajetórias? importantes para os homens, como não mudar
de cidade ou evitar ausências prolongadas de
Existem casos e casos. Tipicamente, porém, casa. A política, então, replica – e acrescenta
as mulheres que ingressam na carreira política suas próprias peculiaridades – os problemas que
são oriundas – como os homens, por sinal – das mulheres dedicadas a uma carreira profissional
classes mais ricas, o que significa que parte das enfrentam devido à desigualdade na esfera pri-
tarefas domésticas é deslocada para outras mu- vada. Este é um bom exemplo da relação entre
lheres. Ainda assim, restam responsabilidades a política e o restante do mundo social. Dito de
pela gestão da esfera doméstica. Os dados indi- outra forma, os problemas para que se alcance a
cam, então, que há uma proporção maior de mu- igualdade política entre homens e mulheres não
lheres solteiras, separadas ou viúvas na política. se esgotam em medidas estritamente políticas.
Dito de outra forma, aparentemente o casamento Eles apontam para a necessidade de transforma-
oferece ao homem um apoio ou uma retarguarda ções das relações sociais em diversas esferas.

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DOSSIÊ MULHERES E PODER

Responsabilidades familiares
Márcia Vasconcelos1

Apresentação nas possibilidades de ascensão profissional e na


ocupação de cargos de poder e decisão. Nesse
O fortalecimento da presença das mulheres cenário, políticas públicas que proponham no-
nas múltiplas esferas da vida social tem sido um vos modelos, por meio do questionamento dos
objetivo dos movimentos de mulheres e feminis- papéis tradicionais de gênero e do fortalecimen-
tas e, mais recentemente, das políticas públicas to da noção de compartilhamento e co-respon-
no Brasil. Certamente, grandes avanços já foram sabilidade social sobre o trabalho reprodutivo,
alcançados. Porém, obstáculos a uma efetiva adquirem centralidade, podendo contribuir efe-
redefinição dos lugares sociais ocupados pelas tivamente para alteração do quadro atualmente
mulheres, especialmente pelas mulheres negras, existente no Brasil e para garantirmos Mais mu-
e a uma distribuição mais equitativa do poder lheres no poder.
entre homens e mulheres, negros/as e brancos/
as, ainda estão presentes. A idéia de que são I. Reprodução social:
necessárias ações direcionadas a garantir Mais uma tarefa de mulheres?
mulheres no poder mantém sua pertinência e im-
portância no cenário de formulação e implemen- O fortalecimento da presença das mulheres
tação de políticas públicas. na esfera pública e a garantia de sua efetiva
A discussão do tema mulheres e poder per- participação nos chamados “espaços de poder
mite diferentes abordagens. A contribuição que e decisão” ocupam a agenda política brasilei-
pretendemos trazer aqui visa a levantar algumas ra desde os momentos iniciais de organização
questões sobre a importância da superação do dos movimentos de mulheres no Brasil no século
modelo tradicional de organização e significa- XIX, adquirindo diferentes feições e incorporan-
ção das esferas produtiva e reprodutiva da vida do novas abordagens ao longo do século XX e
para promover uma maior participação das mu- início do século XXI. No âmbito dessas discus-
lheres na cena pública – o que pode se expressar sões, as reflexões desenvolvidas pelos movimen-
na forma de uma maior e melhor inserção no tos feministas e anti-racistas trazem ricas con-
mercado de trabalho e em uma maior presença tribuições, pontuando elementos estruturantes
delas em cargos de poder e decisão. das desigualdades sociais que se manifestam
Pretendemos discutir as dificuldades en- na forma de injustiças e iniquidades no plano
frentadas pelas mulheres para compatibilizar, de socioeconômico e no plano simbólico2 e que im-
forma satisfatória, o trabalho reprodutivo com pactam as possibilidades de acesso das mulhe-
o trabalho produtivo e a participação política, res, e mais fortemente das mulheres negras, ao
ou seja, as tarefas de cuidado desempenhadas poder.
no espaço da casa e as atividades desenvolvidas No Brasil, apesar dos avanços observados na
no mercado de trabalho e nas demais esferas esfera do comportamento e das políticas públicas,
da vida pública. Entendemos, portanto, que o no que concerne à maior presença das mulheres
modelo hegemônico segundo o qual esses di- na esfera pública – incluindo aqui o mercado de
ferentes âmbitos da vida social se organizam e trabalho – segue sendo hegemônica a compreen-
se relacionam desempenham um papel central e são de que as tarefas de cuidado que compõem
constituem um fator restritivo para as mulheres, o trabalho reprodutivo são de responsabilidade
no que se refere ao acesso e tipo de inserção exclusiva das mulheres e correspondem a uma
no mercado de trabalho, em seus rendimentos, habilidade “natural” do sexo feminino.

1. Mestre em Sociologia pela Universidade de Brasília e Coordenadora de Programas de Promoção da Igualdade de Gênero e Raça no Mundo de
Trabalho do Escritório da OIT no Brasil.

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2. As noções de injusti ça no plano socioeconômico e injusti ça no plano sibólico e cultural são discuti dos pela fi lósofa estadunidense Nancy Fraser em
seu trabalho From redistribution to recognition? Dilemmas of justice in a “postsocialist” age e orientam as refl exões aqui desenvolvidas.
DOSSIÊ MULHERES E PODER
O entendimento corrente sobre o lugar extras. Limitam também suas possibilidades de
ocupado, a importância e o valor do trabalho se envolverem em atividades associativas, sindi-
reprodutivo e das responsabilidades familiares cais e de partidos políticos.
nas sociedades e, como parte disso, a definição Além de ocasionarem altos custos para as
das mulheres como responsáveis exclusivas por mulheres e para as pessoas que necessitam de
eles, tem uma série de desdobramentos. Primei- cuidados, a não consideração do tema do tra-
ramente, é importante lembrar que esses aspec- balho reprodutivo como uma questão pública
tos derivam de uma divisão sexual do trabalho, promove o aprofundamento das desigualdades e
dicotômica e rígida, que atua como poderoso alimenta o ciclo de reprodução da pobreza, na
princípio norteador nas bases da organização medida em que o acesso a serviços de cuidado
social e econômica das sociedades. Manifesta- fica disponível apenas para os grupos sociais
se em uma forma específica de relação entre cujos rendimentos permitem sua contratação.
trabalho produtivo remunerado e trabalho re- A noção da mulher como força de traba-
produtivo não-remunerado, na qual as noções lho secundária complementa esse quadro. Sen-
de homem-provedor e mulher-cuidadora e das do “essencialmente” cuidadoras e responsáveis
mulheres como força de trabalho secundária são pela reprodução social, a inserção das mulheres
reforçadas. Manifesta-se também na organiza- no mundo do trabalho é entendida como um as-
ção do mercado de trabalho a partir da hierar- pecto secundário de seu projeto de vida e de
quização estabelecida entre ocupações melhor sua identidade, tendo sido motivada, fundamen-
remuneradas e detentoras de maior status social talmente, por uma “falha” no cumprimento do
– entendidas como tipicamente masculinas – e papel de provedor, tradicionalmente definido
ocupações mal remuneradas e desvalorizadas como sendo um papel dos homens. Essa concep-
socialmente, associadas às tarefas de cuidado – ção tem efeitos sobre a organização do mercado
entendidas como tipicamente femininas. Esses de trabalho, a agenda das políticas públicas e os
elementos possuem aspectos socioeconômicos e comportamentos na esfera privada. Em momen-
simbólicos que impactam a distribuição de re- tos de retração econômica, as mulheres usual-
cursos, bens e serviços, bem como do poder, de- mente são as primeiras a perderem seus empre-
sempenhando papel central na reprodução das gos e possíveis altas no desemprego feminino
desigualdades sociais. ocasionam respostas bastante distintas daque-
No Brasil, as imagens das mulheres como las dadas às altas do desemprego masculino. Na
cuidadoras e força de trabalho secundária con- esfera privada, seus rendimentos são considera-
tribuem para que elas enfrentem maiores difi- dos complementares e mais prescindíveis do que
culdades para se inserirem no mercado de tra- aqueles auferidos pelos homens (OIT, 2009a e
balho e nos demais âmbitos da vida pública. Abramo, 2007).
Por que? A noção de mulher-cuidadora implica As imagens das mulheres como cuidadoras
na compreensão de que a reprodução social é e como força de trabalho secundária também
uma responsabilidade das mulheres e não das possuem um substrato simbólico que alimenta e
sociedades. Essa compreensão afeta a definição reproduz uma desigual distribuição de poder. O
de prioridades e temas das políticas públicas, sexismo ainda presente na sociedade brasileira,
resultando em uma não abordagem das questões que define todo um conjunto de normas de or-
do cuidado e no conseqüente déficit de servi- ganização e hierarquização de comportamentos,
ços públicos dedicados à cobertura dessas ta- habilidades e lugares sociais, privilegia aspectos
refas. Essa noção, da mesma forma, mina uma tradicionalmente associados à masculinidade em
divisão equitativa de responsabilidades sobre as detrimento de características tradicionalmen-
tarefas de cuidado também na esfera privada. te associadas à feminilidade. Essa organização
Essa conjugação de fatores impacta fortemente na esfera dos significados explica o maior valor
o uso do tempo das mulheres, limitando suas atribuído ao trabalho produtivo com relação ao
possibilidades de se engajarem em ocupações trabalho reprodutivo e oferece sustentação a um
com jornadas integrais e sem flexibilidade e de ideal de trabalhador em tempo integral que está
atenderem às exigências crescentes do mercado totalmente à disposição do mercado de traba-
de trabalho quanto à disponibilidade para horas lho. Explica também a desvalorização das ocu-

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DOSSIÊ MULHERES E PODER
pações associadas ao cuidado e à discriminação vêm sendo reconhecidos pelos tratados inter-
que as mulheres sofrem no mercado de trabalho nacionais como aspectos centrais para avançar
e nos demais âmbitos da esfera pública. em direção a uma maior igualdade de gênero,
Alguns números são bastante reveladores do contribuindo para uma maior e melhor inserção
impacto dessa lógica sobre a vida das mulheres. das mulheres no mercado de trabalho e na vida
No Brasil, elas possuem taxas de participação associativa e política. Exemplo disso é a abor-
mais baixas e taxas de desemprego sistematica- dagem dada à questão das responsabilidades
mente mais elevadas que os homens, apesar de familiares pela Convenção sobre a Eliminação
terem, em média, mais anos de estudo. Possuem de Todas as Formas de Discriminação contra a
rendimentos menores, e a desigualdade aumenta Mulher (CEDAW), aprovada em 1979 e ratifica-
nos grupos com maiores níveis de escolaridade. da pelo Brasil em 1984. A CEDAW incorpora o
A situação das mulheres negras é mais grave com tema das responsabilidades familiares e orienta
relação a todos esses indicadores. Além disso, os países a adotarem medidas que garantam o
elas estão sobre-representadas nas ocupações “reconhecimento da responsabilidade comum de
mais precárias, com destaque para o trabalho homens e mulheres com relação à educação e ao
doméstico. As mulheres seguem sendo minoria desenvolvimento de seus filhos” (CEDAW, 1979).
nos postos mais altos das empresas brasileiras e Ressalta, ainda, a importância e necessidade de
no desempenho de funções eletivas. implantar
Como resultado das mudanças sociais ocor-
ridas ao longo do século XX – fruto, em grande “serviços sociais de apoio necessários para
medida, da organização social e política das mu- permitir que os pais (homens e mulheres)
lheres para o questionamento dos papéis tradi- combinem as obrigações para com a família
cionais de gênero – chegamos ao século XXI com com as responsabilidades do trabalho e a
uma presença significativa de mulheres na esfe- participação na vida pública, especialmente
ra pública. Porém, a perpetuação das noções de mediante o fomento da criação e desenvol-
mulher-cuidadora e delas como força de traba- vimento de uma rede de serviços destinados
lho secundária na organização socioeconômica ao cuidado das crianças” (CEDAW, 1979).
e simbólica da sociedade brasileira mostra uma
certa ambigüidade com relação a essa presença. Esse tópico também foi abordado na Plata-
Elas (nós) ocuparam (ocupamos) a esfera públi- forma de Ação da IV Conferência Mundial sobre
ca, mas segue presente a idéia profundamente a Mulher, realizada em Beijing, em 1995. Em seu
arraigada de que esse não é o lugar que lhes objetivo estratégico F.6, a Plataforma de Beijing
(nos) é próprio. A presença das mulheres na es- apresenta uma série de orientações para gover-
fera pública brasileira vem ocorrendo a despeito nos, setor privado, organizações não-governa-
de uma real reestruturação da relação entre tra- mentais e sindicatos, voltadas à conciliação en-
balho produtivo e trabalho reprodutivo. As no- tre os trabalhos produtivo e reprodutivo. Dentre
ções de compartilhamento e co-responsabilidade as orientações apresentadas destacam-se:
social com relação à esfera da reprodução social
são ainda bastante incipientes – o que dificulta “ c. Assegurar, por meio de lei, incentivos,
ações que visam a promover uma distribuição estímulos e oportunidades a mulheres e ho-
mais equitativa de recursos e de poder. mens de obterem licenças e benefícios refe-
rentes à maternidade ou paternidade; pro-
II. Políticas de conciliação e mover a distribuição das responsabilidades
co-responsabilidade social: familiares igualmente entre homens e mu-
normativa internacional e lheres e promover medidas que facilitem a
legislação nacional amamentação às mães trabalhadoras.
d. Elaborar políticas na área de educação,
O tema da conciliação entre os trabalhos para modificar as atitudes que reforçam a
produtivo e reprodutivo e a necessidade de divisão do trabalho com base no gênero,
construção de novos modelos, com base na com o objetivo de promover o conceito de
co-responsabilidade social, para promovê-la, responsabilidades familiares compartilhadas

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DOSSIÊ MULHERES E PODER
no que se refere ao trabalho doméstico, em nº 111 e a Recomendação nº 111 sobre discrimi-
particular, em relação à atenção às crianças nação no emprego e na ocupação (OIT, 1993).
e aos idosos.” (In: OIT, 2009a). A abordagem do tema das responsabilida-
des familiares ocorre pela primeira vez no âm-
No âmbito da América Latina e Caribe bito da OIT em 1965, a partir da elaboração da
destacam-se as resoluções da X Conferência Re- Recomendação sobre o emprego das mulheres
gional sobre a Mulher, realizada em 2007, em com responsabilidades familiares (nº 123). Essa
Quito. Recomendação apresenta medidas que deve-
riam ser adotadas para permitir que as mulheres
“No Consenso de Quito, os governos acorda- atendessem, na medida do possível sem confli-
ram adotar medidas de co-responsabilidade to, as suas responsabilidades familiares e pro-
para a vida laboral e familiar que se apli- fissionais sem serem expostas à discriminação
quem igualmente às mulheres e aos homens, (OIT, 1993).
bem como de reconhecimento do trabalho Apesar de ter sido elaborada em um con-
não remunerado e de sua contribuição para texto no qual a noção de promoção da igualdade
o bem-estar das famílias e para o desenvol- no trabalho já ganhava força, a Recomendação
vimento econômico dos países. Foi reconhe- nº 123 reflete ainda uma compreensão sobre o
cida a necessidade dos Estados assumirem a papel de homens e mulheres nas sociedades, se-
reprodução social, o cuidado e o bem-estar gundo a qual as mulheres seriam as responsáveis
da população como objetivo da economia principais ou exclusivas pelo trabalho reprodu-
como responsabilidade pública indelével” tivo, ou seja, pelas responsabilidades familiares
(In: OIT, 2009a). e, por isso, deveriam beneficiar-se de medidas
específicas de apoio para que pudessem atender
No âmbito das normas internacionais do a essas responsabilidades e àquelas de ordem
trabalho, destaca-se a preocupação constante profissional (OIT, 1993).
da Organização Internacional do Trabalho (OIT), Em 1975, em razão do Ano Internacional da
desde sua fundação em 1919, com a promoção Mulher, a Conferência Internacional do Trabalho
da igualdade de oportunidades e tratamento foi palco de ampla discussão sobre a igualdade
para homens e mulheres. A adoção de medi- de gênero. No âmbito dessas discussões, adqui-
das voltadas para esse fim vem sendo abordada riu destaque a idéia de que as transformações no
como um aspecto fundamental para a promoção papel tradicional das mulheres deveriam implicar
dos direitos humanos e uma condição essencial necessariamente na reestruturação do papel dos
para a construção e consolidação dos regimes homens, se desdobrando em uma maior partici-
democráticos. pação deles na vida familiar e maiores respon-
Entre 1919 e 1950 observa-se a tendência à sabilidades sobre o trabalho reprodutivo. Obser-
proteção das mulheres trabalhadoras, destacan- vou-se, portanto, que a Recomendação sobre
do-se a proteção a sua saúde, fundamentalmen- trabalhadoras com responsabilidades familiares
te em função da maternidade. Os primeiros ins- (nº 123, de 1965) não refletia a compreensão
trumentos internacionais aprovados pela Confe- crescente em diferentes países e sociedades so-
rência Internacional do Trabalho versam sobre bre o papel das mulheres. A necessidade de uma
a licença e a proteção à maternidade. A partir “nova concepção” sobre os papéis de homens e
da década de 1950 esse foco de preocupação mulheres é apresentada como sendo fundamen-
se altera e a normativa da OIT passa a centrar- tal para a promoção da igualdade. Nela, homens
se na promoção da igualdade no trabalho. Esse e mulheres devem compartilhar igualmente as
novo enfoque é explicitamente demonstrado a responsabilidades parentais e outras obrigações
partir de 1951, momento no qual a Conferência familiares. Essa “nova concepção” garantiria
Internacional do Trabalho adota a Convenção nº o acesso dos trabalhadores do sexo masculino
100 e a Recomendação nº 90 sobre igualdade de com responsabilidades familiares a direitos e
remuneração. Em 1958, são adotados dois ins- garantias associadas a essas responsabilidades e
trumentos de alcance geral relativos à igualdade também contribuiria para a eliminação de pos-
de oportunidades e de tratamento: a Convenção síveis causas de discriminação contra as mulhe-

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DOSSIÊ MULHERES E PODER
res por parte de empregadores/as em função de e pré-escolas aos/às filhos/as e dependentes,
serem beneficiárias exclusivas destas garantias desde o nascimento até os 5 anos de idade (OIT,
e direitos. Em função disso, os serviços e de- 2009a).
mais meios de assistência desenvolvidos com o Em 2008, com a publicação do II Plano Na-
objetivo de apoiar o desempenho das responsa- cional de Políticas para as Mulheres, as medidas
bilidades familiares deveriam ser um direito de de conciliação entre os trabalhos produtivo e
trabalhadores e trabalhadoras igualmente. É no reprodutivo avançam no sentido da incorpora-
âmbito dessas discussões que, em 1981, é ado- ção da noção de co-responsabilidade social. As
tada a Convenção nº 156 e a Recomendação nº medidas que compõem o II PNPM incluem: o au-
165 da OIT sobre trabalhadores e trabalhadoras mento da oferta e a melhoria dos equipamentos
com responsabilidades familiares (OIT, 1993). de educação infantil; a realização de campanhas
No Brasil, os avanços mais significativos para a redução da jornada de trabalho, sem re-
com relação aos temas de proteção às mulhe- dução de salário; e a realização de campanhas
res trabalhadoras e conciliação entre trabalho de estímulo à co-responsabilidade de homens e
produtivo e trabalho reprodutivo ocorreram a mulheres pelo trabalho doméstico. O II PNPM
partir da promulgação da Contituição de 1988. prevê, ainda, a realização de ações de apoio à
O princípio de igualdade entre homens e mulhe- ratificação da Convenção nº 156 da OIT sobre
res e uma série de medidas de enfrentamento à Trabalhadores e Trabalhadoras com Responsabi-
discriminação contra as mulheres no mercado de lidades Familiares. Também em 2008 foi criado
trabalho já compunham o texto constitucional o Programa Empresa Cidadã (Lei 11.770). Ao
de 1967. A proibição de diferenciais salariais aderir ao Programa, as empresas e demais ins-
e de critérios discriminatórios de admissão no tituições ampliam a licença maternidade para 6
emprego por motivo de sexo, cor e estado civil, meses. Os 2 meses adicionais de licença devem
o descanço remunerado das gestantes, antes e ser pagos pelo empregador que pode deduzir o
depois do parto, sem prejuízo de seu emprego gasto total do imposto de renda.
ou de seu salário são alguns exemplos disso. A incorporação do tema da conciliação en-
Porém, a Constituição de 1988 avança em seu tre os trabalhos produtivo e reprodutivo também
capítulo de direitos sociais e amplia a concep- vem paulatinamente ganhando espaço nas ações
ção de família: da família construída a partir do das empresas e nos acordos coletivos. As ações
casamento, avança-se para uma noção mais am- das empresas são marcadas por “uma tendência
pla que inclui tanto o núcleo familiar formado a à extensão do auxílio creche para os homens,
partir da união estável entre homem e mulher, ampliação da licença maternidade para 6 meses
como qualquer outra configuração formada por e reconhecimento de uniões homo-afetivas para
pais ou mães e seus descendentes. Também é efeitos de extensão de benefícios para parcei-
importante dizer que texto constitucional de ros/as do mesmo sexo”. Com relação às negocia-
1988 suprimiu a noção de pátrio poder no âm- ções coletivas,
bito famíliar, mas seguiu adotando um modelo
baseado na heterossexualidade, não incorporan- “ as cláusulas que tratam das questões re-
do as uniões homo-afetivas em sua definição de lacionadas à maternidade/ paternidade e
família (OIT, 2009a). filhos e filhas e outros familiares têm au-
Os direitos reconhecidos pela Constituição mentado desde os anos 90, acompanhando
de 1988 no que concerne à conciliação entre o ritmo de crescimento das cláusulas sobre o
os trabalhos produtivo e reprodutivo incluem: trabalho das mulheres e a equidade de gêne-
licença maternidade de 120 dias e licença pa- ro, o que demonstra, mais uma vez, a inter-
ternidade de 5 dias; a proteção para as mulheres relação entre os temas. O acompanhamento
no mercado de trabalho, conforme incentivos dos filhos e filhas, cônjuges e outros fami-
específicos definidos em lei; a proibição da dife- liares ao médico (e, menos freqüentemente,
renciação salarial e de critérios discriminatórios a atividades escolares), a proteção à adoção
para o exercício de funções ou admissão com e aos filhos e filhas deficientes são alguns
base em sexo, idade, cor ou estado civil; a ofer- exemplos de cláusulas que vêm sendo disse-
ta de assistência gratuita por meio de creches minadas. Entre elas estão também aquelas

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DOSSIÊ MULHERES E PODER
relativas à extensão do período de estabili- disso, é importante destacar que, apesar do
dade pós parto e do tempo de concessão do significativo aumento na freqüência escolar no
auxílio creche, além de sua extensão para período de 1997 a 2007, persistem algumas la-
pais e mães. Ainda, embora sejam poucos cunas fundamentais, sendo o acesso de crianças
os casos, há a estabilidade para o pai no na faixa de 0 a 3 anos uma das mais alarman-
caso de nascimento do filho ou filha e a ex- tes. Se nas demais faixas obervamos aumentos
tensão da duração da licença paternidade” na taxa de frequência escolar que garantem, em
(OIT, 2009b). 2007, 70,7% de cobertura para crianças de 4 e 5
anos e 90% para crianças de 6 anos, na faixa de
Os avanços observados na legislação nacio- 0 a 3 anos essa taxa é de 17,6% (OIT, 2009b).
nal voltada para a conciliação entre os trabalhos
produtivo e reprodutivo são significativos, po- III. O potencial transformador
rém, ainda possuem pouco impacto na deses- das políticas públicas
tabilização do modelo homem-provedor/mulher-
cuidadora. Essa limitação ocorre por duas razões Lançando mão das reflexões de Nancy Fra-
básicas. Em primeiro lugar, em razão da baixa ser em seu texto From redistribution to recog-
cobertura dos direitos e serviços já existentes nition? Dilemmas of Justice in a “Postsocialist”
na legislação brasileira; em segundo lugar, pela Age, a discussão sobre as possíveis formas de
ainda incipiente incorporação da noção de co- conciliar os trabalhos produtivo e reprodutivo a
responsabilidade social. partir de uma noção de co-reponsabilidade so-
A baixa cobertura dos serviços pode ser cial conduz à abordagem de aspectos profundos
exemplificada a partir dos dados referentes à li- promotores de injustiça social – injustiça essa
cença maternidade e aqueles relativos ao acesso que se manifesta nas esferas socioeconômica
de crianças de 0 a 6 anos à escola. Como pontu- e simbólica. Em um contexto como esse – que
ado no documento da OIT (2009b) O Desafio do retrata com precisão a realidade brasileira – as
Equilíbrio entre Trabalho, Família e Vida Pessoal, políticas públicas podem desempenhar um papel
no Brasil, a licença maternidade possui um forte transformador. De fato, têm o potencial de con-
viés contributivo, ou seja, é disponível apenas tribuir para a construção de novos modelos que
para as mulheres que contribuem para a previ- atuem sobre os papéis de gênero, desestabili-
dência social. Essa característica impossibilita zando dicotomias rígidas como: trabalho pro-
o acesso a esse direito para 46% das mulheres dutivo/trabalho reprodutivo, mulher-cuidadora/
brasileiras que estão ocupadas no setor informal homem-provedor, masculino/feminino. Para isso
e estão em idade reprodutiva. Os impactos des- é necessário, nas palavras de Fraser, enfrentar o
sa lógica são mais severos para as mulheres em dilema da redistribuição e do reconhecimento,
situação de pobreza. Entre os 20% mais pobres, aliando ações que atuem sobre as desigualdades
a proporção de mulheres que contribuem para socioeconômicas com ações que desestabilizem
a previdência não chega a 15%. Esse número as dicotomias de gênero. Essa estratégia seria
se torna ainda mais revelador das desigualdades capaz de promover um impacto estrutural sobre
quando comparado com a proporção de contri- as desigualdades, promovendo novos pactos de
buição para a previdência social entre os 20% solidariedade.
mais ricos: nesse grupo a proporção de contri- Com relação especificamente ao trabalho
buição das mulheres à previdência é de pratica- reprodutivo e às responsabilidades familiares,
mente 75%. a efetividade das políticas públicas está dire-
A correlação entre rendimentos e acesso a tamente associada à incorporação dessa es-
direitos e serviços também se mantém quando tratégia. Por um lado é fundamental dirimir a
analisamos o tema do acesso de crianças de 0 desigualdade no acesso a direitos, benefícios e
a 6 anos à escola. Entre os 20% mais ricos, em serviços articulados com a esfera do cuidado,
57,23% dos domicílios onde havia, em 2007, evidenciada pelo papel crucial desempenhado
crianças de 0 a 6 anos, todas elas frequenta- pelos rendimentos na definição das possibilida-
vam creches ou pré-escolas. Entre os 20% mais des de acesso. Essa lógica assentada sobre os
pobres, essa proporção cai para 28,39%. Além rendimentos alimenta o ciclo de pobreza, cria

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DOSSIÊ MULHERES E PODER
barreiras adicionais para que as mulheres em malização e ao aumento da proporção de mulhe-
situação de pobreza ingressem no mercado de res que contribuem para a previdência também
trabalho e fortalece sua sobre-representação nas colaboram para diminuir o impacto das desigual-
ocupações mais precárias, destacando-se, espe- dades no acesso a direitos e benefícios. Porém,
cialmente, a situação das mulheres negras. Por serão ainda mais efetivas se pensadas em um
outro lado, essa mesma lógica é alimentada e, contexto de compartilhamento e co-responsa-
ao mesmo tempo, fortalece a noção de que a bilidade social pelo trabalho reprodutivo. Nesse
responsabilidade pela “resolução” das questões contexto, a ampliação da licença paternidade e
referentes ao cuidado se localiza na esfera pri- a implantação de licenças parentais que possam
vada e mais especificamente nas mulheres. ser usufruídas por pais ou mães indiscriminada-
Para romper esse ciclo de reprodução das mente também contribuem para fortalecer um
desigualdades, políticas públicas de investi- modelo no qual homens e mulheres aparecem
mento em equipamentos sociais de educação, como engajados nas atividades de cuidado. Um
por exemplo, são centrais. Ampliar o acesso de modelo no qual a dicotomia mulher-cuidadora/
crianças de 0 a 3 anos à educação continua sen- homem provedor é desestabilizada, abrindo es-
do um desafio para as políticas públicas no Bra- paço para um novo desenho que revela mulheres
sil e impacta de forma decisiva as possibilidades cuidadoras-provedoras e homens cuidadores-
de inserção das mulheres no mercado de traba- provedores.
lho, a qualidade dessa inserção e sua participa- Ações nas esferas da educação e das men-
ção em atividades associativas e comunitárias. talidades também são fundamentais. Produzir
É importante também desenhar e implementar materiais didáticos que reforcem novos mode-
políticas públicas voltadas para outros grupos los, realizar campanhas abordando esses temas
da população que necessitam de cuidados, como e sensibilizar profissionais da mídia e de veí-
idosos e pessoas com deficiência. A questão do culos de comunicação desempenham um papel
envelhecimento populacional, especificamente, importante.
exige ações imediatas, considerando a mudança Políticas públicas com essas características
no perfil demográfico da população brasileira. contribuem para fortalecer a presença das mu-
O investimento em serviços públicos de lheres na esfera pública em um duplo sentido.
cuidado age, portanto, sobre as desigualdades Fornecem a estrutura material, por meio de ser-
socioeconômicas e também contribui para a des- viços e benefícios, que dão suporte às tarefas de
construção das dicotomias de gênero no plano cuidado. Dessa forma, diminuem a sobrecarga
simbólico. Tem impactos sobre a desigualdade atualmente presente na vida das mulheres, diri-
no acesso a serviços, além de refletir e reforçar a mindo a tensão, quase exclusivamente centrada
idéia de que a reprodução social é também uma nelas, de compatibilizar sua presença na esfera
responsabilidade do Estado e da sociedade. Pode, pública com suas “responsabilidades” na esfera
ainda, contribuir para abertura de novas frentes doméstica. Mas não paramos aí. Ao mesmo tem-
de trabalho, criando oportunidades de empre- po, essas políticas públicas contribuem para o
go. Nesse sentido, políticas de ampliação dos fortalecimento da noção de co-responsabilidade
serviços de cuidado podem se aliar a políticas social pelo trabalho reprodutivo, desestabilizan-
de incentivo à maior presença de homens como do as dicotomias de gênero. Em função disso,
profissionais nessa área. O desenvolvimento de têm impactos sobre a qualidade da presença
ações articuladas e orquestradas, considerando das mulheres no espaço público. A desestabili-
a noção de co-responsabilidade social pelo tra- zação das dicotomias de gênero contribui para
balho reprodutivo contribuem, da mesma forma, desconstruir a idéia de que o espaço próprio às
para desestabilizar a noção de mulher-cuidadora mulheres é o espaço privado, e que sua “apa-
e sua influência sobre a estruturação do merca- rição” pública é eventual e instável. Mulheres
do de trabalho, tendo efeito, portanto, sobre a cuidadoras-provedoras têm no espaço público
lógica que orienta a segmentação ocupacional. um cenário de pertencimento. Portanto, esses
O estabelecimento de metas de aumento da novos modelos também atuam sobre os padrões
taxa de participação das mulheres no mercado de discriminação contra as mulheres, abrindo
de trabalho, aliadas a ações de incentivo à for- espaço para o reconhecimento de habilidades e

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DOSSIÊ MULHERES E PODER
talentos, e para a ocupação de espaços de po- Liliana (orgs). Organização, trabalho e gênero.
der. São Paulo: Editora Senac São Paulo, 2007. (Série
O diferencial aqui é a proposta de supe- Trabalho e sociedade)
rar a idéia de proteção às mulheres, em função
de suas especificidades como potenciais mães, CEDAW – Convenção sobre a Eliminação de Todas
como orientadora das políticas públicas e for- as Formas de Discriminação contra a Mulher.
talecer a noção de promoção da igualdade en- Site: https://www.safernet.org.br/site/sites/
tre homens e mulheres. Dessa forma, é possível default/files/ConvElimDiscContraMulher.pdf
atuar sobre a lógica que orienta a distribuição Acesso : 02/08/2009
de recursos e de poder em nossa sociedade, des-
construindo, paulatinamente a hierarquia de gê- Fraser, Nancy. From redistribution to recogni-
tion? Dilemmas of justice in a “postsocialist”
nero. Essa idéia não é nova. Está presente na
age. In: Justice Interrupts: critical refletions on
agenda pública há pelo menos 40 anos. Porém,
the “postsocialist” condition. 1997.
ainda encontra dificuldades em se concretizar
na forma de políticas públicas em função do ca-
OIT. Conferencia Internacional del Trabajo, 80ª
ráter estruturante da noção de mulher-cuidadora
Reunión, 1993. Trabajadores con responsabilida-
e de seu poder na organização produtiva e na des familiares. Ginebra: OIT, 1993.
distribuição do poder nas sociedades.
OIT. Trabalho e família. Rumo a novas formas de
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS conciliação com co-responsabilidade social. Bra-
sília: OIT, 2009a.
Abramo, Laís. Inserção das mulheres no mercado
de trabalho na América Latina: uma força de tra- OIT. O desafio do equilíbrio entre trabalho, famí-
balho secundária? In: Hirata, Helena e Segnini, lia e vida pessoal. Brasília: OIT, 2009b.

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DOSSIÊ MULHERES E PODER

Mulher e Poder
Céli Regina Jardim Pinto1

Meu objetivo nesta comunicação é fazer um número importante de mulheres na disputa


uma reflexão sobre o tema mulher e poder a par- eleitoral e nos cargos legislativos, executivos e
tir de duas perspectivas que estão estreitamente judiciários.
relacionadas: a primeira perspectiva diz respeito Todavia, esta presença não garante que as
a questões mais concretas do binômio mulher- mulheres tenham se eleito com plataformas fe-
poder e concerne à posição das mulheres no ministas ou sejam feministas. Mesmo assim é
espaço público, mais especificamente na arena muito mais provável que as demandas por direi-
da luta política. A segunda perspectiva refere- tos das mulheres sejam defendidas por mulheres
se ao binômio de uma forma mais teórica, bus- do que por homens, independente da posição
cando embasamento para propor questões para política, ideológica e mesmo de inserção no mo-
reflexão sobre este binômio que parece mais vimento feminista. Se a metade dos 513 depu-
um enigma. Todo o argumento que tratarei de tados da Câmara Federal brasileira fosse de mu-
desenvolver tem como foco central de preocu- lheres certamente o tema do aborto teria uma
pação a questão brasileira. presença muito maior e um debate de qualidade
Uma das questões mais centrais quando o muito diferenciada nos debates parlamentares,
tema é a presença da mulher na arena pública até porque este cenário tão hipotético revelaria
de decisão em termos gerais ou na política é a um campo de forças muito distinto do que exis-
seguinte: que mulheres queremos nos cenários te hoje entre homens e mulheres.
políticos? Todas as mulheres, independente de Iris Young é afirmativa neste ponto. Discu-
classe, posição política, comprometimento com tindo seu conceito de perspectiva (que eu de-
as questões de reconhecimento das minorias senvolverei mais tarde neste texto) ela afirma:
sem poder? Ou estamos lutando para elegermos “Não é muito comum para pessoas sem atributos
nos parlamentos e nas posições chaves de poder, descritivos representarem uma perspectiva (...).
mulheres feministas que defendam as grandes Um homem asiático americano que cresceu em
causas do movimento? um bairro predominantemente afro-americano,
A militância feminista, assim com a mili- que tem muitos amigos afro-americanos e que
tância de outros movimentos sociais, como ne- trabalha em um serviço comunitário com afro-
gros e gays, tende a responder afirmativamente americanos, por exemplo, pode ser capaz de
a segunda parte da questão e serem muito evasi- representar uma perspectiva afro-americana
vos em relação à primeira, com o argumento que em muitas discussões, mas a maioria dos ho-
mulheres que não se reconhecem como sujeitos mens asiáticos americanos não poderia, porque
políticos não lutam pelas causas das mulheres eles são muito diferentemente posicionados”
em geral. (Young,2000;148)2.
Mesmo que a assertiva seja verdadeira, gos- A cientista política Anne Phillip, por sua
taria de partir de uma outra perspectiva e afir- parte, tem uma reflexão muito sofisticada so-
mar que a simples presença de mulheres como bre relação de presença com a idéia no campo
vitoriosas, sejam elas feministas ou não, em um político. É sua tese que a idéia pode sobreviver
quadro maduro de concorrência eleitoral, é mui- sem a presença, isto é, pode haver defensores
to revelador da posição ocupada pela mulher no do feminismo no parlamento sem mulheres, mas
espaço público da sociedade. Em países onde o que tal situação é rara e limitada. São suas as
movimento feminista teve uma história longa palavras: “quando a política das idéias é to-
com muita visibilidade e com vitórias expres- mada isoladamente do que eu chamarei política
sivas no campo dos direitos das mulheres, há de presença, ela não dá conta adequadamente

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1. Professora do Departamento de História UFRGS, Doutora em Ciência Políti ca
2. Todas as traduções foram feitas por mim para uso exclusivo neste texto.
DOSSIÊ MULHERES E PODER
da experiência daqueles grupos sociais que, por Em outra oportunidade, discutindo o bi-
virtude de sua raça, etnicidade, religião, gênero nômio inclusão-exclusão, me vali de um texto
têm sido excluídos do processo democrático. A de Foucault para estudar formas de exercício de
inclusão política tem sido cada vez mais – eu poder (Pinto, 1999). Trata-se da aula no Collège
acredito acertadamente – vista em termos de de France de 15 de janeiro de 1975. Nela, Fou-
que pode ser concretizada somente por política cault exemplifica, historicamente, dois modos
de presença.” (Phillips, 1996;146). de exercício de poder: o que se constituiu frente
Retomando a questão inicial, podemos à tentativa de controlar a lepra e o que se cons-
identificar quatro cenários da mulher na arena tituiu frente à peste bubônica, ambos na Europa
política: 1) sem idéia, nem presença; 2) com do fim do medievo. Foucault, no primeiro caso,
idéia, sem presença; 3) sem idéia, com presen- afirma que se excluiu, no segundo se incluiu.
ça; 4) com idéia e com presença. Para meus Primeiro, descreve a ação em relação à lepra
propósitos, vou permanecer com os dois últimos na Idade Média: “A exclusão da lepra era uma
cenários e afirmar que eles são igualmente im- prática social que comportava uma segregação
portantes para a questão da mulher, são com- rigorosa, um colocar a distância, uma regra de
plementares e permeáveis um ao outro. não contato entre um indivíduo (ou grupo de
Neste momento, gostaria de focar uma indivíduos) e um outro. A rejeição destes in-
questão mais ampla, que reputo básica para o divíduos em um mundo exterior, confuso, para
entendimento da problemática que estou aqui lá dos muros da cidade, para lá dos limites da
tratando: as relações de poder em si. Permitam- comunidade.” (Foucault, 1999;.41).
me afirmar, como ponto de partida, que o en- Em contraposição, descreve a ação contra a
tendimento analítico de como estas relações peste: “A cidade em estado de peste – (...) foi
funcionam possibilita um aporte mais realista à dividida em distritos, os distritos foram dividi-
questão específica em pauta. dos em quarteirões, e dentro destes quarteirões
Gostaria de colocar a questão da relação foram isoladas as ruas e havia em cada rua os
mulher e poder a partir de três perspectivas: vigilantes, em cada quarteirão os inspetores, em
a primeira diz respeito à posição relativa da cada distrito e na própria cidade havia um go-
mulher na estrutura de dominação, e, para tal, vernador eleito para este fim (...)“.
assumirei a existência de um sujeito unitário Em relação a este segundo tipo de exercí-
mulher em contraposição a um sujeito unitário cio de poder, Foucault afirma que “não se trata
homem. Esta é uma simplificação grosseira que mais de uma exclusão, se trata de uma quaren-
eu plenamente reconheço, mas que mantenho tena, não se trata mais de caçar, se trata, ao
porque ela me permite discutir a questão do contrário, de estabelecer, de fixar, de presenças
poder na sociedade moderna e chegar a alguns esquadrinhadas. Não é rejeição, mas inclusão.”
pontos, que reputo fundamentais para o que (Foucault,1999;.43).
estou discutindo aqui. O texto de Foucault é uma forte metáfora
A segunda perspectiva diz respeito à pre- para quase todas as formas de poder presentes
tensão de poder da mulher na sociedade moder- no mundo contemporâneo. Se tomarmos a posi-
na. A questão que me norteia neste momento é ção da mulher no mundo público (deixarei de
a seguinte: a razão pela qual a mulher tem pre- fora a questão das relações no mundo privado,
sença tão pequena nos postos de poder político no que pese muito importante, mas não funda-
(o momento mais stricto sensu do poder) estaria mental para o meu argumento neste momento),
na resposta à primeira questão? as metáforas são muito valiosas. Dos gineceus
E a terceira perspectiva diz respeito a uma coloniais até as exclusões jurídicas na primeira
questão central de representação: as mulheres constituição republicana, a metáfora da lepra
empoderadas têm construído uma identificação parece dar conta da teia de relações de poder
com as mulheres em geral capaz de as reconstruí- onde a mulher brasileira se encontrava. Ao ser
las como sujeitos de poder. Em outros termos, confinada à casa, paradoxalmente, a mulher era
capaz de empoderá-las. Qual é a aproximação expulsa dos muros da cidade, entre os quais o
entre as mulheres empoderadas e as mulheres mundo público se conformava. Ela, simplesmen-
que se pretende empoderar? te, não existia. Quando a constituição de 1891

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DOSSIÊ MULHERES E PODER
estabelece que todos os cidadãos brasileiros al- elites inicialmente econômicas e sociais, depois
fabetizados e maiores de 18 anos eram eleito- acrescidas das elites sindicais, acadêmicas, en-
res, ficou claro para o conjunto da população de tre outras, usufruem e reproduzem estas “desi-
homens e mulheres e para o regramento jurídico gualdades para cima” e protegem os limites dos
do país que as mulheres não poderiam votar. O espaços de exercício de poder. A entrada nestes
direito ao voto, como sabemos, só foi obtido em espaços de personas, de grupos que forjaram
1932. Não se citou a mulher em 1891, não se lugar no espaço público justamente desafian-
lhe prescreveu limites, simplesmente se excluiu, do esta ordem hierárquica, é freada de todas as
não se reconheceu sua existência. maneiras. Este espaço de poder tem mostrado
A partir de 1932, e vou usar esta data como uma grande capacidade de conversão de novos
poderia usar outras, mas tenho bastante convic- membros à sua dinâmica de reprodução de de-
ção que esta é uma data muito significativa, a sigualdade, na apropriação, por exemplo, dos
mulher começa a aparecer na ordem da domina- bens públicos. Para ter este êxito, deve limitar
ção, no mundo público como uma persona que o acesso aos novos membros.
deveria ser controlada, a ela foram atribuídos Ao próprio feminismo, foi dado um lugar
lugares permitidos e lugares proibidos. Estaria neste arranjo de dominação. As mulheres femi-
incluída em alguns discursos e excluída de ou- nistas podem falar algumas coisas e não outras.
tros. Porque isto acontece? Parece-me que por As mulheres não feministas terão poderes ou-
força de dois vetores: pela dinâmica da cons- tros, porque não feministas. Quando uma mulher
trução recente do estado nacional no Brasil e fala, sua fala tem uma marca: é a fala de uma
do próprio capitalismo e pela força contrária mulher; quando uma mulher feminista fala, tem
construída pela luta das mulheres em geral e do duas marcas, de mulher e de feminista.
feminismo em particular. Dos lugares proibidos, A recepção destas falas por homens e mu-
certamente o espaço da política é o mais cla- lheres tende a ter a mesma característica, é a
ramente proibido e, por vias de conseqüência, recepção de uma fala marcada, portanto, parti-
o mais difícil de romper. Por que era o mais cular, em oposição à fala masculina/universal.
claramente proibido? Por que o é ainda hoje? Se for a fala de uma mulher feminista, é o parti-
Parece-me que há dois motivos, um decor- cular do particular.
rente do outro, que possuem uma perenidade Mesmo quando as mulheres ultrapassam
surpreendente e que até hoje devem ser consi- barreiras pessoais e partidárias e tornam-se can-
derados quando se pensa na imensa dificuldade didatas, pesquisas que tenho realizado mostram
da entrada da mulher na política no Brasil. O que estas mulheres não enfatizam nem o fato
primeiro é o imenso poder pessoal que adquirem óbvio de serem mulheres e, portanto, de serem
os membros de parlamentos e governos. Este uma novidade, nem tão pouco articulam em suas
poder pessoal não tem correspondência neces- plataformas com destaque temas presentes nas
sária ao poder político, mas é fundamental na lutas feministas. Está é uma questão que reputo
reprodução de ordens hierárquicas presentes na quase tão fundamental como a ausência per se.
sociedade brasileira: de classe; de gênero; de et- Em 2008, a cidade de Porto Alegre viveu
nia entre outras. As razões deste poder pessoal uma experiência eleitoral única na sua história:
são complexas e têm como base a própria hierar- teve três candidatas à prefeita, todas deputadas
quia da sociedade brasileira, que historicamente federais de grande destaque e tendo, pelo menos
legitimou a desigualdade tanto dos mais pobres duas delas, reais chances de serem eleitas. Em
como dos mais ricos, tanto dos despoderados pesquisa realizada a partir dos programas eleito-
como dos poderosos. No Brasil, não existem rais gratuitos veiculados na TV e nos programas
instâncias que tornem todos os seus cidadãos e editados nas páginas da internet, verificou-se
cidadãs iguais em direitos e deveres de fato. Há uma quase total ausência de referência à con-
um fosso entre as elites que se sentem desiguais dição de mulher das candidatas e a mulher foi
no sentido de se arvorarem direitos especiais e a grande ausente no discurso da campanha vei-
as camadas populares que se sentem desiguais, culada na televisão. As razões desta ausência
no sentido de não perceberem seus direitos e os devem ser buscadas tanto na postura das pró-
vivenciarem, muitas vezes, como favores. Estas prias candidatas como na recepção do discurso

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DOSSIÊ MULHERES E PODER
pelos eleitores e eleitoras. Tendo em vista que tro de uma lógica de soma zero, para não criar
as questões referentes aos direitos das mulhe- enclaves.
res aparecem nos programas escritos de algumas Butler avança ainda mais em sua análise co-
destas candidatas, até de forma bem detalhada, locando um outro questionamento central. Para
a ausência de qualquer referência a eles no pro- melhor clareza no argumento, cito novamente:
grama eleitoral de TV parece indicar que as can- “Se alguém ‘é’ mulher, isso certamente não é
didaturas não assumem a existência de um nú- tudo o que esse alguém é; o termo não logra ser
mero significativo de eleitoras-eleitores que se exaustivo, não porque os traços predefinidos de
sensibilizariam com este tipo de problemática. gênero da ‘pessoa’ transcendam a parafernália
Judith Butler, discutindo o tema da repre- específica de seu gênero, mas porque o gênero
sentação, dá uma contribuição muito importante nem sempre se constitui de maneira coerente ou
na discussão da presença da mulher na política. consistente nos diferentes contextos históricos,
A filósofa norte-americana é categórica em afir- porque o gênero estabelece interseções com
mar que não basta indagar e fazer uma análise modalidades raciais, classistas, étnicas, sexu-
das condições de reprodução de poder e opres- ais e regionais de identidades discursivamente
são que estão presentes nas instituições onde as constituídas” (Butler,2003; 20).
mulheres buscam espaços para a sua liberação. O texto de Butler é provocador e leva a
Eu cito: “Não basta inquirir como as mulheres pensar até onde as mulheres, quando saem do
podem se fazer representar mais plenamente na privado para enfrentar e/ou construir o público,
linguagem política. A crítica feminista também tornam-se cada vez menos mulher. Note-se bem
deve compreender como a categoria das ‘mu- que não estou aqui a defender a existência de
lheres’, o sujeito do feminismo, é produzida e uma mulher essencial, mas de uma mulher que
reprimida pelas mesmas estruturas de poder por se fez mulher historicamente em uma dialéti-
intermédio das quais busca-se a emancipação.” ca de dominação e resistência. As mulheres das
(Butler,2003;19). quais fala Butler reconstroem, no público, esta
Tal perspectiva é importante de ser consi- sua condição primeira de mulher e, ao sair do lo-
derada, pois o espaço da política institucional cal de recolhimento (o privado), interagem com
representativa não é um espaço novo conquista- outras condições, deixando de ser só mulher.
do (como os Conselhos, Delegacias, Secretarias), A tese de Butler me permite avançar em
mas o espaço do outro que tem de ser rompido, duas direções, a primeira no que diz respeito ao
penetrado e transformado. O outro, com esta que eu estava discutindo anteriormente, a en-
nova penetração, perdeu sua inviolabilidade, trada da mulher no cenário político como porta-
sua clausura, seu espaço intacto de reprodução dora de uma “identidade” mulher; a segunda, a
de discurso de poder: torna-se um outro diferen- possibilidade de ver a eleitora também fazendo
te, ou perde sua identidade, transformando-se esta saída do privado para o público, abrindo
em um nós. Buscar emancipação no lugar do ou- mão de sua condição de mulher.
tro é uma ação com dificuldades e efeitos muito Afirmaria aqui, a título de tese a ser inves-
específicos. tigada, que no espaço político, por ser o mais
Poder-se-ia pensar em um cenário alterna- masculino dos espaços, é onde a mulher mais
tivo de construção de novos espaços pautados aparece como mulher e mais necessita ser menos
por novos acordos de vivência, convivência e mulher para ser candidata e ser eleita. Daí fazer
formas de tomada de decisão que, ao longo do sentido a proposta de Butler: “refletir a partir
tempo, criariam condições de uma morte por as- de uma perspectiva feminista sobre a exigência
fixia dos antigos espaços, que definhariam como de se construir um sujeito do feminismo”.
excrescências ou tradições despoderadas. A titu- Em que se constituiria uma “perspectiva
lo de exercício, poderíamos imaginar a constru- feminista”? Butler não avança neste tema e a
ção de espaços paritários de deliberação pública noção de perspectiva tem muita potencialidade
democraticamente construídos que ocupassem na medida em que ela de certa forma liberta per-
espaços de poder, reduzindo, por exemplo, a sonas e movimentos do peso da identidade e da
tradicional forma de representação liberal. Este própria sujeição como um momento de recriação
processo é complexo e necessita acontecer den- do “eu”. Foi Young que abordou a questão da

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DOSSIÊ MULHERES E PODER
perspectiva com muita profundidade, deixando aproximação entre mulheres empoderadas e não
um importantíssimo legado para a nossa refle- empoderadas.
xão. O segundo conjunto constitui-se de ques-
Para ela, quem identifica grupo com identi- tões de caráter mais procedimentais informadas
dade não vê um aspecto fundamental: “Tal rígida pela discussão que tentei levar a efeito nesta
conceptualização de diferenciação de grupo ao apresentação: 1) a democracia liberal represen-
mesmo tempo nega as similaridades que muitos tativa, tal como existe no Brasil, tem potencial
membros do grupo têm com aqueles que não para incorporar novos sujeitos?; 2) quais são os
pertencem ao grupo e nega os muitos gradien- limites e possibilidades da reforma política?;
tes de diferenciação dentro do grupo” (Young, 3) quais são os limites e possibilidades de um
2000: 89). programa de inclusão política?; 4) quando é im-
Discutindo o tema da representação, Young perativo repensar o público como um espaço de
identifica três formas através das quais a re- emancipação?
presentação se concretiza: interesse, opinião Em relação ao primeiro conjunto gostaria
e perspectiva. Interesse é “o que afeta ou é de pontuar o seguinte:
importante para a perspectiva de vida dos indi- 1. Não há dúvidas de que existe uma es-
víduos ou para os objetivos das organizações”. treita relação entre a posição relativa
Tem um fim específico. A opinião é descrita pela que a mulher ocupa na estrutura de
autora como: “princípios, valores e prioridades dominação e a sua presença na vida
de uma pessoa que condicionam seus julgamen- política. No caso específico do Brasil,
tos sobre que políticas devem ser perseguidas e esta estrutura de dominação tem duas
que fins atingidos.” E, finalmente, perspectiva características muito particulares, que
conforma-se a partir de “experiências diferen- provocam efeitos profundos nas formas
tes, histórias e conhecimento social derivado de de participação da mulher na vida pú-
suas posições na estrutura social.” blica: uma desigualdade social abismal
Young, quando analisa as possibilidades de e uma hierarquia rígida em relação ao
representação, está muito preocupada com a acesso aos direitos.
questão da diferenciação, tema recorrente em 2. Se esta posição da mulher na estrutura
toda sua obra. Para ela, diferenciação é um re- de dominação tem efeitos muito evi-
curso de poder fundamental que não pode ser dentes na exclusão da mulher, todavia
combatido em nome de um consenso que se não pode ser pensada como uma de-
oporia ao conflito. A autora é categórica: “con- terminação, mas como um dado funda-
trária àqueles que pensam que políticas de di- mental a ser tomando em consideração,
ferenciação de grupos somente criam divisão tanto na análise do problema como na
e conflito, eu argumento que diferenciação de decisão de ações concretas para trans-
grupo oferece recursos para um público comu- formar a posição das mulheres nos
nicativo democrático que objetiva a justiça, por- espaços de poder. O entendimento do
que pessoas diferentemente posicionadas têm funcionamento destas hierarquias e dos
experiências diferentes e conhecimento social e demais condicionantes estruturais pos-
histórico derivado deste posicionamento que eu sibilita pensar construções estratégicas
chamo de perspectiva” (Young, 2000;136). de políticas que avancem em relação a
Tendo presentes as diversas questões que políticas meramente procedimentalis-
tentei levantar ao longo desta exposição, passo tas.
para a última parte, que denominei “notas para 3. Desde os seus primeiros passos, a ra-
reflexão”. zão de ser do movimento feminista foi
Dividirei este momento final em dois con- empoderar as mulheres (mesmo que o
juntos de questões. O primeiro conjunto diz conceito tenha sido incorporado como
respeito à posição da mulher na estrutura de vocabulário muito posteriormente). Se,
dominação, à possibilidade de determinação por por uma parte, o movimento logrou
estas características estruturais da ausência da conquistas indiscutíveis que atingi-
mulher nos espaços de poder, à existência de ram as próprias estruturas de poder no

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DOSSIÊ MULHERES E PODER
mundo ocidental, por outra parte, tem ou campanhas publicitárias, mas, e eu
sido muito tímido em interpelar mu- estou convencida disto, num programa
lheres para agirem no mundo público para dar voz às mulheres, construir es-
e, principalmente, político. Butler, ci- paços para que as mulheres falem. Dar
tada anteriormente, oferece um cami- a palavra para as mulheres � e só as mu-
nho que acredito promissor para pensar lheres podem dar a palavra às mulheres,
esta situação, quando diz que as mu- sem construir novas relações de poder.
lheres não são só mulheres, ou quando Esta certamente não é a ação suficien-
se pergunta se é necessário um sujeito te, caminho das pedras, porque o cami-
feminista. A presença feminista na are- nho não há, mas certamente é essen-
na política é desejável? Ou seria mais cial. Não é difícil fazer isto. É daquelas
uma? Daí que a noção de perspectiva ações que depende da vontade política
de Young possibilita pensar em formas e de arcar com as conseqüências da de-
inovadoras da relação entre feministas sorganização que pode causar. Nós te-
e não feministas, entre presença da mos humildemente de reconhecer que,
mulher e presença da mulher que incor- como feministas, às vezes encontramos
pora a idéia. confortáveis casas, que nos acolhem
nos quarteirões identificados por Fou-
Em relação ao segundo grupo de questões, cault.
que chamei de caráter mais procedimental, as 4. Finalmente, gostaria de concluir afir-
idéias que proponho para reflexão são as se- mando que é imperativo repensar o
guintes: espaço público como um espaço de
1. A democracia liberal, tal como existente emancipação, diria de emancipações,
no Brasil, possui limitações estruturais no plural, do quarteirão no qual a polí-
para incluir novos sujeitos, principal- tica do controle da peste bubônica tem
mente pelos limites que impõe à par- limitado as mulheres historicamente,
ticipação. Mas, mesmo tendo em conta no que pese nossas grandes e lutadas
estes limites, parece-me que não ocu- vitórias.
pamos todos os lugares possíveis. Não
esgotamos seus limites. Por exemplo, a Bibliografia
ausência da mulher na esfera política
não pode ser posta unicamente na con- BUTLER, Judith. Problemas de Gênero. (Rio de
ta dos limites da democracia liberal. Janeiro: Civilização Brasileira, 2003).
2. Na atualidade, há uma maligna tendên-
cia de ver as reformas políticas como a FOUCAULT, Miche. Les Anormaux.
panacéia para os problemas da política (Paris:Gallimard,1999).
brasileira. As reformas políticas estão
focadas em duas questões: moralidade PHILLIPS, Anne, “Dealing with Difference: A Po-
e aumento da eficácia dos agentes po- liticis of Ideas, or a Politics of Presence?” In:
líticos. Não cabe aqui discutir se elas BENHABIB. Seyla. Democracy and Difference.
atingirão estes objetivos, mas certa- (Princenton: Princeton University Press, 1996).
mente não mudarão em nada a estrutu-
ra das relações de poder que afastam as PINTO, Céli R. J. “Foucault e as Constituições
mulheres da esfera política. Brasileiras: quando a lepra e a peste se encon-
3. Tomando como referência as questões tram com os nossos excluídos”. In:Educação e
até aqui levantadas, penso que urge Realidade, v.24 n.2 jul/dez 1999.
um programa de inclusão das mulheres
na vida política, que não poder ser en- YOUNG, Iris. Inclusion and Democracy. ( Oxford:
tendido como confecção de cartilhas Oxford University Press, 2000).

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DOSSIÊ MULHERES E PODER

Mulheres Negras e Poder:


um ensaio sobre a ausência
Sueli Carneiro1

A relação entre mulher negra e poder é um No caso da Matilde Ribeiro, por exemplo,
tema praticamente inexistente. Falar dele é, en- encontramos imbricados todos os elementos que
tão, como falar do ausente. A oportunidade de transformam as mulheres negras na antítese da
discorrer sobre o assunto é um desafio proposto imagem com a qual se associa o poder. O seu
pela Secretaria Especial de Políticas para Mulhe- caso, a meu ver, revela ainda que há certas coi-
res (SPM/PR) e expressa a vontade política dessa sas que são admissíveis de serem feitas somente
Secretaria de se ocupar com as questões concer- quando as personagens envolvidas são mulheres
nentes às mulheres negras, o que é consistente e, particularmente, negras. Como afirmei em ar-
e compatível com o esforço que essa Secretaria tigo no Correio Braziliense, a propósito do caso
efetivamente vem fazendo no sentido de incor- de Matilde, não há como acusar de racismo a
porar essa temática. Acredito que o eixo nove demissão de uma gestora pública sobre a qual
do II Plano Nacional de Políticas para Mulheres paira suspeitas de uso indevido de dinheiro pú-
(II PNPM) é a política pública mais bem definida blico ou erro administrativo, tratando-se ou não
já elaborada em relação à questão de raça. Nele, de uma pessoa negra.
foram contempladas questões críticas como a Houve, no entanto, sensível diferença no
proposição de metas e a questão ideológica do tratamento que foi dispensado à ex-ministra
combate ao racismo. Ou seja, do ponto de vista Matilde Ribeiro, dentro e fora do governo, quan-
do que está no papel, é uma política que con- do esse tratamento é comparado ao dado a ou-
templa, respeita e atende à perspectiva que as tros casos semelhantes ou mais graves do que
mulheres negras querem introduzir nas políticas o dela. A imprensa divulgou largamente que a
públicas de gênero. Ministra sob acusação não fora chamada pelo
Ao pensar as experiências concretas e pou- Presidente da República, de quem teria cargo de
cas que as mulheres negras têm com instâncias confiança, para se explicar. Divulgou ainda que
de poder, o que me volta à lembrança são, por a ex-ministra foi sabatinada com direito a mui-
exemplo, os processos que culminaram com a tos pitos e puxões de orelha e aconselhamento
saída da Ministra Matilde Ribeiro da Secretaria para se demitir por outros três ministros, supos-
Especial para Promoção da Igualdade Racial (SE- tamente equivalentes a ela. Evidencia-se aí o
PPIR) e, antes dela, as circunstâncias que tam- que parece ter sido o caráter apenas simbólico
bém desalojaram Benedita da Silva da Esplanada do seu título de ministra. Demitida, é exposta a
dos Ministérios. Duas mulheres que ocuparam uma patética coletiva de imprensa, jogada aos
instâncias de poder e é muito curioso o que leões, sem a presença de nenhuma das figuras
nos diz o desenlace da presença dessas mulhe- de expressão do governo ou de seu partido para
res nessas instâncias. Na realidade, nas poucas emprestar-lhe solidariedade, como houve em
experiências que nós temos nessa relação da outros casos similares que envolveram homens
mulher negra com o poder emerge, a meu ver, brancos.
a força que essas determinações de raça e de Na mídia, proliferaram charges sobre ela
gênero têm sobre as mulheres negras, mesmo as que extrapolaram em muito o objeto central da
poderosas, conduzindo-as a trajetórias erráticas irregularidade de que era acusada. De forma gro-
e diferenciadas nas instâncias de poder a que tesca, deram plena vazão aos estereótipos. As
lhes têm sido possível ascender. ilustrações de sua figura nos órgãos de impren-

50 1. Sueli Carneiro é doutora em Educação pela Universidade de São Paulo (USP) e diretora do Geledés - Insti tuto da Mulher Negra.
DOSSIÊ MULHERES E PODER
sa serviram-se de todos os clichês correntes em racismo produz e, conseqüentemente, esvaziam
relação às pessoas negras. Em uma delas, ela é de sentido essa Secretaria.
representada sambando com batas africanas e Mas, enquanto Matilde Ribeiro era convida-
tranças rastafári. Como se esses traços de iden- da a se demitir, outros se tornaram ministros ou
tidade falassem por si só e, portanto, explicas- assumiram mandatos parlamentares com suspei-
sem os erros que lhe custaram o cargo. tas bem mais graves, se a memória de todo mun-
Foucault já explicou como se dá o proces- do estiver suficientemente acesa para lembrar.
so que nomeou de “dobrar o delito”. Dobrar o Portanto, há discriminação quando as regras
delito acoplando-lhe toda uma série de outras não se aplicam igualmente a todos, ou melhor,
coisas que não são o delito mesmo, mas uma no fato de que alguns devam ser exemplarmen-
seqüência de comportamentos, de maneiras de te punidos e outros não. Houve racismo na as-
ser que são apresentadas como causa, origem, sociação entre a negritude da ministra e seus
motivação ou ponto de partida do delito. O re- atos. Houve racismo no aproveitamento político
sultado dessa operação é que a falha cometida de uma falha pessoal de uma gestora pública
se torna a marca, o sinal, de uma suposta imper- para a desqualificação da pasta que ela dirigia.
feição congênita de uma pessoa ou, mais ainda, Houve racismo na utilização das supostas irre-
de um grupo social. É como se estivesse inscrito gularidades cometidas para negar a existência
em sua natureza, devendo por isso ser objeto do problema racial e da necessidade de que seu
de humilhação pública para servir de alerta para combate seja objeto de políticas.
os que se esquecem dessa ausência natural de Fátima Oliveira, em artigo sobre o tema no
qualidade e os eleva a posições para as quais Jornal Hoje de Belo Horizonte, também compara
não estariam talhados. o tratamento dispensado a Matilde Ribeiro. Diz
Este “dobrar o delito” presta-se, também, ela: - “Fui expectadora atenta do affair Ministra
como ameaça aos outros. Os outros do mesmo Matilde Ribeiro e do affair Rabino Henry Sobel.
grupo inferiorizado que, por ventura, ousem de- Duas personalidades pelas quais tenho enorme
sejar atingir os mesmos postos. São formas de e profundo respeito decorrente da história de
punição preventiva e educativa em que a es- vida de ambos, cuja marca é o empenho pela
tigmatização e a humilhação funcionam para democracia e pelos direitos humanos. É nítida
reafirmar a incapacidade e o despreparo para a disparidade de tratamento da grande mídia
assumir funções diretivas. Em outras palavras, nos dois casos. Também vale a pena mirar como
a necessidade de controle social e tutela desse cada setor de pertencimento de ambos reagiu.
segmento social considerado inferior. Em nota, o rabino declarou que jamais teve a
Adicional e imediatamente, promoveu-se a intenção de furtar qualquer objeto em toda a
confusão entre a pessoa da ministra e sua base. sua vida. Está habituado a enfrentar crises e
Passaram a pedir não apenas a sua cabeça, mas acusações de que possa se defender. E afirmou
a extinção do órgão que dirigia. Alguém imagina que não admite que tentem desqualificar os va-
pedir a extinção de qualquer outro ministério ou lores morais que sempre defendeu”. Exige res-
secretaria especial por que seu titular cometeu peito, diz Fátima Oliveira. E está certo. A nota
desvio de conduta? Veiculou-se na imprensa que do rabino foi referendada pela Confederação
o Presidente Luis Inácio Lula da Silva estaria Israelita Paulista. Não houve um só judeu que
particularmente aborrecido porque lutou muito se atrevesse a dizer o contrário, nem os decla-
pela criação da Secretaria da Igualdade Racial, rados desafetos do rabino. Fátima chama isso
que era uma antiga reivindicação do movimento de solidariedade. Por sua vez, a mídia acatou a
negro e por cuja criação o Presidente teria sido versão da não-intencionalidade do acontecido e
muito criticado. Segundo o presidente, a atitude passou a tratar o ocorrido como súbito distúrbio
de Matilde Ribeiro acabou dando argumentos a de comportamento. Ao contrário, Matilde Ribei-
seus adversários, para os quais a Secretaria não ro foi crucificada em praça pública.
teria função. Teria dado força para aqueles que Com Benedita da Silva, assistiu-se, em di-
propagam que não somos racistas no Brasil e ferentes ocasiões, a manifestações acerca do
que, portanto, negam as mazelas sociais que o caráter inusitado da sua presença em redutos

51
DOSSIÊ MULHERES E PODER
do poder. Quando Deputada, teve que suportar “Priorização da escolha pela raça”. Na verdade,
o presidente do SEBRAE, à época, dizer, a pro- eram apenas sete pessoas negras nomeadas por
pósito de ilustrar a desfiguração de projetos de Benedita num conjunto de trinta e seis secretá-
lei que sua área sofre no Congresso, que “no rios, mas ainda assim esses sete foram conside-
Congresso entra uma coisa, assim, tipo Mari- rados demais. As reações foram imediatas. Um
lyn Monroe e sai outra, tipo Benedita da Silva”. dos leitores do Jornal O Globo exigiu explicações
Quando Governadora, as manchetes alardeavam: sobre o critério cor negra da pele adotado pela
“Mulher negra ex-favelada assume pela primeira governadora para a escolha de seu secretariado
vez o governo do Rio de Janeiro”. Essa foi a tôni- e acrescentou: “certamente, se alguém afirmas-
ca das manchetes sobre a ascensão de Benedita se ter feito semelhante escolha priorizando a
da Silva ao governo do Rio. As ênfases à condi- cor branca da pele, já teria sofrido toda sorte de
ção de raça, gênero e de classe da governadora retaliações”.
eram exemplares do ineditismo de que o fato O racismo é assim, cruel. Ao instituir a su-
se revestia. E, algumas vezes, foram ambíguas perioridade de um grupo racial e a inferioridade
o suficiente para deixarem à mostra, misturada de outro, gera diversas perversidades. A exce-
à celebração do fato, o desconforto com a sua lência e a competência passam a serem percebi-
inadequação. das como atributos naturais do grupo racialmen-
Millôr Fernandes foi um dos que reagiram às te dominante, o que naturaliza sua hegemonia
reações celebrativas dizendo “ser preciso acabar em postos de mando e poder. Nunca ouvimos
com essa demagogia porque a favela do Chapéu alguém se levantar, além da minoria de mulhe-
Mangueira é favela de granfino, o slogan ‘Black res feministas ou militantes negros, quando o
is beautful’ já superou a identificação entre ne- secretariado é composto em sua totalidade por
gros e pobres e, a não ser como piada, nunca homens brancos. Encara-se como natural. Não se
ouvi alguém ser contra mulher”. Poderia ser, e coloca em questão se a competência ou a qua-
deveria ser simplesmente assim, mas não o é. lificação técnica foram devidamente contempla-
Na “favela de granfino”, onde nasceu Benedita, da nas nomeações. Menos ainda nos atos insa-
as mulheres são estupradas aos sete anos, per- nos quando um engenheiro assume uma pasta
dem filhos por doenças evitáveis, abortam em da cultura ou da saúde. Entende-se que isso se
condições subumanas e a fome é rotina coti- deva às composições partidárias, necessárias à
diana. Essa é a história de Benedita da Silva governança. Ou pior, em geral esses “seres su-
que, segundo a ex-deputada Heloneida Studart, periores” são considerados naturalmente aptos,
conseguiu ser mais forte que o seu destino. Um a despeito de sua formação ou trajetória profis-
destino que condena a maioria daqueles, sobre- sional, para assumir qualquer cargo de poder.
tudo daquelas, que nascem e vivem sob essas O estranhamento se dá quando esse mundo in-
condições – a marginalidade, a prostituição e teligível ao qual nos habituamos sofre alguma
toda sorte de degradação humana. Benedita, alteração. E, sobretudo, quando muda por ações
como toda exceção, confirmou a regra. intencionais ditadas pelo princípio democrático
Outras manchetes acentuavam a condição de respeito à diversidade. Somente quem perten-
de “fora de lugar” da governadora. Dizia uma de- ce a grupos historicamente discriminados sabe
las: “Nova governadora do Rio se transfere com dos inúmeros negros, das incontáveis mulheres
o marido-ator para endereço símbolo da riqueza e homossexuais que deixaram e deixam de ser
carioca”. Ou, como dizia outra: “Primeira negra lembrados para ocupar posições nas estruturas
se muda com o marido para o palácio construído de poder por essa lógica de exclusão que o ra-
no século passado pela família Guinle, a mais cismo e o ceticismo determinam.
tradicional representante da elite carioca”. Sem Combinar os critérios de qualificação téc-
dúvida, Benedita aparecia como “fora de lugar”. nica com recorte de gênero e de raça é a única
Mais expressivas ainda foram as reações em maneira de romper com a lógica excludente, que
relação à montagem de sua equipe de governo. historicamente norteia as estruturas de poder do
Diziam as manchetes: “Governadora coloca sete país, e, sobretudo, é requisito para o aprofunda-
negros no primeiro escalão”. Outra alardeava: mento e a radicalização de uma perspectiva de-

52
DOSSIÊ MULHERES E PODER
mocrática no Brasil. Um risco e um desafio que, racismo, o ceticismo e a exclusão social a que as
naquele momento, apenas uma mulher negra e mulheres negras estão submetidas se potencia-
ex-favelada se dispôs a enfrentar, ao nomear lizam e se retroalimentam para mantê-las numa
sete secretários negros. Coragem típica de quem situação de asfixia social, que põe em perspec-
teve que reescrever com dor e lágrimas o seu tiva as condições mínimas necessárias para o
próprio destino. Sabíamos que ela pagaria um empoderamento das mulheres negras em nossa
preço alto pela ousadia. Pedimos a Deus que a sociedade, de forma a, quem sabe um dia, po-
protegesse, porque os homens não teriam com- tencializá-las para a disputa de poder.
placência. Talvez, por ser homem, nem sequer Entre essas condições mínimas para per-
Deus lhe escutou. mitir o empoderamento de mulheres negras, se
Diz Roberto da Matta que uma das caracte- encontra, evidentemente, o combate ao racis-
rísticas do sistema racial brasileiro é que cada mo, bem como a necessidade de uma política
categoria racial conhece o seu lugar em uma de formação de quadros políticos e de gestores
hierarquia. Essa “sabedoria” aprendida em sé- públicos. É preciso, ademais, que haja fortaleci-
culos de racismo e discriminação explica outras mento das organizações de mulheres negras.
experiências vividas por mulheres negras que Em relação ao combate ao racismo, te-
almejam o poder. Tome-se o caso da Juíza Luis- mos falado sobre as desigualdades raciais e
linda Valois Santos, outro exemplo de percepção sobre as políticas públicas capazes de reduzi-
do senso comum acerca do destino socialmente las, mas pouco temos formulado sobre o com-
reservado às mulheres negras. bate ideológico ao racismo a partir de uma
Certo dia um professor pediu um material política de governo e de Estado. A ausência
de desenho. Com muito custo, o pai de Luislinda de uma política consistente de combate ao
conseguiu comprar um, meio remendado. Bastou racismo permitiu que uma inusitada reação
o professor ver o material para magoá-la para conservadora se organizasse, envolvendo par-
sempre. Disse ele: - “Menina, deixe de estudar celas diversificadas das elites nacionais que
e vá aprender a fazer feijoada na casa dos bran- se somam, neste momento, no combate às po-
cos”. Ela chorou e ainda se emociona quando líticas de promoção da igualdade racial. Inte-
relembra, cinquenta e oito anos depois, desse lectuais, políticos, formadores de opiniões de
fato. Mas tomou coragem e retrucou ao profes- diferentes esferas, conglomerados midiáticos,
sor: – “Vou é ser Juíza e lhe prender”. A primeira empresários e juristas, ou seja, um conjunto
parte ela cumpriu. Em 1984, a baiana Luislinda de forças que instituiu um verdadeiro “pelou-
Valois Santos tornou-se a primeira Juíza negra rinho eletrônico” contra as políticas de ação
do país. Não à toa, também foi quem proferiu afirmativa e aqui, sobretudo, contra as cotas.
a primeira sentença de racismo no Brasil. Em No combate que essas elites nacionais travam
28 de setembro de 1993, condenou o supermer- contra políticas de promoção da igualdade ra-
cado “Olhe o Preço” a indenizar a empregada cial, elas se servem da desqualificação pública
doméstica Aíla de Jesus, acusada injustamente dos movimentos negros, de seus parceiros e
de furto. aliados. Da negação do racismo e da discri-
Estou relatando esses “causos” para ressal- minação racial. Da deslegitimação acadêmica
tar como parece insólita, no imaginário social, de estudos e pesquisas que há décadas vêm
a presença de mulheres negras em instâncias demonstrando a magnitude das desigualdades
de poder, em nossa sociedade, e para destacar raciais e da negação do negro como sujeito
como as representações consolidadas acerca das social, demandador de políticas específicas,
mulheres negras determinam tanto a sua ínfima bem como de seu direito democrático de rei-
presença nas instâncias de poder como as difi- vindicá-lo.
culdades adicionais que lhes espreitam quando Estamos diante de velhas técnicas a serviço
ousam romper portas e adentrar lugares para de novas estratégias que pretendem nos levar
os quais não foram destinadas. São condições de volta à idílica democracia racial. Hoje, como
e condicionantes que tornam mais desafiante ontem, as estratégias são as mesmas. Como nos
ainda o tema “mulher negra e poder”, pois o mostrou Florestan Fernandes, a resistência ne-

53
DOSSIÊ MULHERES E PODER
gra das décadas de 30, 40 e parte dos anos 50 dimensão ideológica significa produzir iniciati-
suscitou o reacionarismo das classes dominan- vas capazes de confrontar o status quo racista,
tes que logo denunciaram o racismo negro nas ceticista e lesbofóbico por meio de diferentes
estratégias de resistência da população negra. ações de confronto ideológico, de questiona-
Essa reação conservadora tem por efeito, so- mento sistemático do potencial de reforço con-
bretudo, potencializar o racismo institucional servador incutido em diferentes iniciativas e do
impregnado nas instituições públicas e em seus empoderamento das mulheres nos diferentes
gestores, legitimando-o com o suposto conceito segmentos. Tal prescrição exige a implemen-
negativo acerca do tema que procura incutir na tação ousada das estratégias que vêm sendo
opinião pública em geral e no gestor público em defendidas pelos movimentos de mulheres em
particular. geral, para a qual a vindoura Conferência de Co-
Em relação às mulheres negras, o tema do municação cria uma oportunidade.
combate ao racismo assume, ainda, outras par- Pelo menos em tese, a Conferência de Co-
ticularidades. Persistem operando no imaginá- municação criaria uma oportunidade de se avan-
rio social, ao lado dessa reação conservadora, çar em propostas de democratização nos meios
os estigmas e estereótipos que desvalorizam de comunicação, no combate à oligopolização e
socialmente as mulheres negras e que carecem na implantação de políticas públicas de comu-
de estratégias para serem repelidos. Requerem nicação de caráter regulador e fiscalizador que
campanhas de caráter publicitário e pedagógi- afiancem o acesso efetivo dos diferentes seg-
co que tanto empreendam a valorização social mentos da população à informação, garantindo
da imagem das mulheres negras como, simul- a liberdade da expressão das mulheres, que vêm
taneamente, confrontem as diferentes práticas tendo sua imagem constantemente desrespeita-
discriminatórias de que são alvo essas mulheres, da pela mídia. Regulamentar as cotas de espaço
sobretudo, no mercado de trabalho. de mídia para campanhas educativas governa-
Coloca-se, portanto, como desafio, a ne- mentais e não-governamentais do sistema pri-
cessidade de incidir sobre as construções cul- vado de comunicação, visto que são concessões
turais racistas que permanecem reproduzindo públicas. Estimular a elaboração, em conjunto
a imagem estereotipada das mulheres negras com o CONAR, órgão regulamentador da publici-
e sua desqualificação estética. É preciso con- dade, de um código de ética sobre a imagem das
frontar o peso da hegemonia da brancura nessa mulheres na publicidade.
desqualificação estética das mulheres negras, O segundo ponto que quero destacar como
que tem impactado a sua empregabilidade e a desafio para o empoderamento das mulheres ne-
sua possibilidade de mobilidade social, além gras é a questão da formação de quadros. A luta
de impactar negativamente a sua capacidade dos movimentos de mulheres negras para con-
de disputa no mercado afetivo. Além da re- quistar reconhecimento público e adentrar em
construção de um imaginário sobre as mulhe- espaços de representação política em diferen-
res negras, capaz não apenas de reverter essas tes esferas de participação que vêm se abrindo
imagens de controle que as aprisionam, faz- na sociedade brasileira, revelou a insuficiência
se necessária a formulação de propostas que de quadros qualificados para as diferentes mis-
permitam a circulação igualitária das imagens sões colocadas. Essas deficiências implicam em
das mulheres recortadas pela raça. Em sínte- centralização das tarefas mais complexas e em
se, urge que se proponham novas imagens para morosidade e falta de prontidão para responder
as mulheres negras brasileiras, que rompam às oportunidades de incidência política sobre as
com os paradigmas do passado e com as novas políticas públicas e para a viabilização de proje-
discussões midiáticas em que as imagens das tos e estratégias.
mulheres negras são, à sua revelia, revestidas É, portanto, necessário um esforço para o
de vernizes de modernidade, sem alteração na desenvolvimento de uma política de formação
essência dos estereótipos consagrados. de quadros políticos e técnicos, em especial em
Então, tal como prediz o capítulo IX do II políticas públicas, que dê conta da formação de
Plano Nacional de Políticas para as Mulheres, a especialistas em áreas estratégicas para o mo-

54
DOSSIÊ MULHERES E PODER
vimento, por meio de uma busca intencional de maneira a possibilidade de pressão, proposição
talentos e vocações que possam impulsionar e monitoramento das formulações em relação à
efetivamente as demandas das mulheres negras, promulgação da igualdade de gênero e raça.
ofertando, portanto, sustentação a uma estraté- E, por fim, tal como expressa a nossa
gia de empoderamento dessas mulheres. plataforma feminista, urge garantir financia-
Esses processos de formação e capacita- mento público para as campanhas eleitorais
ção de mulheres negras devem se voltar para as feministas com recortes de raça. Urge garantir
necessidades concretas ditadas pelos objetivos financiamento das candidaturas femininas nos
estratégicos definidos pelas mulheres negras partidos políticos e também levar em consi-
organizadas. Portanto, introduz-se aí a terceira deração a proporção das cotas estipuladas em
questão essencial para o desenvolvimento dos lei, de modo a assegurar o acesso das mulhe-
temas anteriores e, particularmente, para pro- res às instâncias públicas. Assegurar, também,
mover o fortalecimento político e o processo de que sejam previstos recursos para a capacita-
busca de autonomia das mulheres negras às ins- ção e formação política das mulheres. Radica-
tâncias de decisão e poder, e ao fortalecimento lizar a democracia participativa fortalecendo
estadístico-institucional das organizações de os movimentos organizados da sociedade civil
mulheres negras, de cujo protagonismo depende e ampliando a participação das mulheres no
o avanço dessa agenda e que foi força motriz comando e decisão política de movimentos e
para pautar o tema da mulher negra tanto na partidos.
esfera pública como na agenda governamental. Parece-me que esses são alguns requisitos
Nesse contexto, um eixo fundamental da necessários para construir as condições para
estratégia de empoderamento das mulheres operar a desnaturalização do lugar da mulher
negras é o de busca e viabilização de pontes negra na sociedade brasileira. Um lugar no qual
de sustentação das organizações de mulheres a subalternidade aparece como uma dimensão
negras, o sujeito político no qual reside sobre- ontológica do ser mulher negra.

55
DOSSIÊ MULHERES E PODER

Mulheres nos espaços de


poder e decisão: o Brasil no
cenário internacional
Luana Pinheiro*
Alexandre Branco**

1. Introdução vivenciaram (e vivenciam) cotidianas situações


de desigualdade e discriminação que as mantém
Ao longo do século XX e, mais especialmen- em um patamar de cidadania ainda inferior.
te, a partir da década de 1960, as sociedades Na mesma direção, as conquistas também
ocidentais presenciaram uma verdadeira “inva- se deram com maior profundidade em alguns
são” das mulheres ao espaço público. Tradicio- espaços do que em outros. Para o caso brasilei-
nalmente relegadas à esfera doméstica, sob a ro, por exemplo, ainda que as mulheres tenham
resistente dicotomia do público/masculino X provocado uma feminização do mercado de tra-
privado/feminino, mulheres das mais diferentes balho1, espaços relacionados ao exercício do po-
origens enfrentaram a divisão sexual dos traba- der e da decisão seguem protegidos por barrei-
lhos e as imposições dela decorrentes, lutando ras sexistas (e também racistas). Assim, quando
para alcançarem outros espaços e experimenta- se trata de analisar a participação política das
rem outras possibilidades de inserção social. O mulheres, os dados ainda revelam uma baixa
resultado é objetiva e subjetivamente observa- presença feminina, seja na política institucional
do e engloba conquistas como uma maior taxa eletiva, seja nos cargos de direção da iniciativa
de atividade e de ocupação entre as mulheres, privada ou das organizações de trabalhadores e
maior acesso a recursos financeiros, maior au- empregadores.
tonomia e empoderamento, maior escolaridade O quadro de desigualdade vigente neste
(com maior presença nos bancos das universi- campo, associado aos enormes desafios impos-
dades e das demais esferas de ensino), maior tos à sociedade para sua reversão, fazem do
acesso a profissões usualmente percebidas como tema da “participação das mulheres nos espaços
masculinas e, portanto, mais valorizadas social de poder e decisão” um tema prioritário para a
e financeiramente. ação pública, para a mobilização social e para a
Evidente que o rompimento destas barrei- produção de informações e indicadores. O obje-
ras foi relativo e teve maior peso para alguns tivo deste artigo, portanto, é evidenciar a baixa
grupos sociais do que para outros. É sabido, por presença de mulheres na política institucional
exemplo, que para as mulheres de classes mais brasileira, inserindo o país no contexto de seus
baixas, a necessidade de complementar a renda vizinhos latino-americanos que compartilham
já as havia lançado ao mercado de trabalho (ma- muitas das dificuldades enfrentadas, mas tam-
joritariamente informal) muito antes das mulhe- bém apresentam experiências que resultaram em
res de classes médias e altas. Por outro lado, avanços quantitativos – e qualitativos – rele-
as conquistas da segunda metade do século vantes no campo da política.
também não foram igualmente desfrutadas: mu- Antes de tudo, é importante evidenciar o
lheres negras, indígenas, pobres, entre outras, conceito de participação política adotado neste

* Gerente de Projeto da Secretaria Especial de Políti cas para as Mulheres.


** Estagiário da Subsecretaria de Planejamento da Secretaria Especial de Políti cas para as Mulheres.
1 Segundo o Boleti m de Políti cas Sociais do Ipea, “a PEA feminina saltou de 28 para 40 milhões de pessoas no período 1995-2005, o que representou

56 um crescimento de 43% (contra 25% da PEA masculina no mesmo período)”. Insti tuto de Pesquisa Econômica Aplicada. Políti cas Sociais:
acompanhamento e análise. Brasília: Ipea, n.13, 2007, p.195.
DOSSIÊ MULHERES E PODER
texto. De fato, esta não é uma definição con- 2. A baixa presença das mulheres nos
sensual: “Enquanto, para alguns estudiosos, a espaços de poder e decisão: indicadores
participação é reduzida apenas ao processo po- internacionais
lítico-eleitoral, para outros, incluindo-se, aqui,
aqueles que se dedicam ao tema “mulher e po- A desigualdade entre homens e mulheres
lítica”, a definição adotada é mais abrangente, nos mais diferentes espaços da vida social é
e ‘[...] não está restrita ao envolvimento no histórica. De fato, foi sobre esta estrutura hie-
processo eleitoral, através do voto (participa- rarquizada, na qual coube aos homens ocupar o
ção eleitoral), mas inclui outras formas de ação pólo mais valorado, que a quase totalidade das
individual e coletiva’2”3. sociedades se construiu e se organizou enquan-
Defende-se aqui, que a participação polí- to estados nacionais. Frente a esta realidade,
tica comporta várias frentes: “desde a partici- entendida durante muito tempo como natural e
pação em organizações na sociedade, passando imutável, as mulheres começaram a se organizar
pelos partidos políticos, até a ocupação de car- e clamar pela garantia de direitos e pela igual-
gos e de mandatos eletivos no Estado, especial- dade de condições e oportunidades. A primeira
mente nos Poderes Legislativo e Executivo, nas onda do movimento feminista esteve centrada
instâncias federal, estadual, distrital e munici- justamente na luta pela extensão dos direitos
pal”. Todas essas formas de participação podem políticos às mulheres e na busca da cidadania.
ser agrupadas, conforme aponta Avelar, em dois Na segunda metade do século XIX e nas pri-
canais: i) canal numérico de poder, que se refere meiras décadas do século XX as lutas e manifes-
ao sistema eleitoral propriamente dito e abarca tações esparsas cederam lugar a uma campanha
desde as formas mais simples de participação, mais orgânica pelos direitos políticos de vota-
como o ato de votar e a presença em comícios, rem e de serem votadas. O movimento sufragista
até a ocupação de cargos públicos e eletivos; e se espalhou pela Europa e pelos Estados Unidos,
ii) canais corporativos de poder, que incluem as construindo a primeira voga de feminismo orga-
diferentes formas de participação dos indivíduos nizado no mundo. No Brasil, da mesma forma,
em organizações comunitárias, de classe, asso- a primeira fase do feminismo teve como foco a
ciações, etc. luta das mulheres pelos direitos políticos, me-
Para os propósitos deste trabalho, conferiu- diante a participação eleitoral, como candidatas
se foco aos canais numéricos de poder e, neste e eleitoras4.
conjunto, foram selecionados apenas aqueles re- Ainda que decisiva para as conquistas alcan-
lacionados à ocupação de postos nos executivos, çadas ao longo do século XX, a mobilização das
legislativos e judiciário, sejam cargos eletivos mulheres rumo à igualdade de direitos e oportu-
ou de livre nomeação. A seleção dos indicadores nidades é recente, historicamente falando. Faz,
analisados partiu da proposta apresentada pelo portanto, menos de um século que os primeiros
Observatório da Igualdade de Gênero da América direitos civis foram por elas adquiridos, como
Latina e Caribe, da Cepal, que traz, entre seus direito ao voto e ao trabalho, e aproximadamen-
temas centrais, o tema da autonomia na tomada te 50 anos que a luta real pela equiparação de
de decisões, com foco exatamente nestes canais direitos e oportunidades em relação aos homens
de participação. Para tanto, foram selecionados se fortaleceu. Também data desse último meio
um conjunto de indicadores relacionados à par- século os principais direitos conquistados pelas
ticipação política feminina para diversos países mulheres, seja no campo do trabalho, seja no
latino-americanos, possibilitando uma análise enfrentamento à violência e na conquista de es-
comparativa internacional da situação brasilei- paço nos bancos escolares.
ra, que será apresentado a seguir. Os avanços foram muitos, e os indicadores

2 BAQUERO, Marcelo. Parti cipação políti ca na América Lati na: problemas de conceituação. Revista Brasileira de Estudos Políti cos, v. 53, n.a. Belo
Horizonte, 1981, p.7
3 PINHEIRO, Luana. Vozes femininas na políti ca: uma análise sobre mulheres parlamentares no pós-Consti tuinte. Brasília: Secretaria Especial de

4.
Políti cas para Mulheres, 2007, p.19.
BRASIL. Secretaria Especial de Políti cas para as Mulheres. Plano Nacional de Políti cas para as Mulheres. Brasília: SPM, 2005, p.115. 57
DOSSIÊ MULHERES E PODER
disponibilizados pelos institutos de estatística ca da igualdade de gênero. A partir
ratificam esta afirmação. No entanto, eviden- da seleção de indicadores na área de
ciam também áreas nas quais as barreiras ain- participação política, acesso à saúde,
da existentes praticamente impediram avanços educação básica e superior e partici-
consistentes. A política é, neste contexto, um pação e oportunidades econômicas, o
campo ainda pouco ocupado pelas mulheres, FEM constrói e divulga um indicador
apesar de ter sido o primeiro espaço para o qual sintético5 que organiza os países en-
o movimento feminista mobilizou esforços e tre aqueles dotados de um contexto
energia. Esta não é, contudo, uma realidade ex- mais ou menos igualitário em termos
clusiva do Brasil. Os países vizinhos da América de gênero;
Latina e Caribe, e até mesmo os países consi- c) Comissão Econômica para a América
derados desenvolvidos econômica e socialmen- Latina e Caribe (Cepal): órgão das Na-
te, enfrentam grandes desafios para alcançar a ções Unidas que também incorpora o
igualdade real no que tange à participação das tema da igualdade de gênero em sua
mulheres na política. agenda. No âmbito da Cepal, foi criado,
Para evidenciar esta realidade, optou-se em 2007, o Observatório de Igualdade
por trabalhar a partir de dois pontos de vista de Gênero da América Latina e Caribe,
neste artigo: i) análise de dados e indicadores com os objetivos de i) analisar e dar
coletados de diversas fontes que evidenciam a visibilidade ao cumprimento de metas
sub-representação feminina no campo político; e objetivos específicos em torno da
e ii) análise de dados qualitativos, tendo como igualdade de gênero na região; b) ofe-
base as legislações e a existência de estrutu- recer apoio técnico e capacitação aos
ras institucionais que contribuem para ampliar produtores e usuários de estatísticas
a participação feminina nos espaços de poder e oficiais para a coleta, processamento,
decisão. análise e uso dos dados estatísticos
e produção dos indicadores do Obser-
2.1. Indicadores quantitativos vatório; e c) produzir um diagnóstico
Para análises comparativas internacionais, das desigualdades entre homens e mu-
em especial sobre o tema de política, existem lheres que será disponibilizado anual-
hoje três importantes iniciativas de sistematiza- mente por meio de Informe produzido
ção de indicadores que permitem comparações pelo Observatório. O Observatório,
– ainda que não perfeitas – entre países de di- que não tem como objetivo hierarqui-
ferentes regiões. São elas: zar os países, coleta um conjunto de
a) Inter-Parliamentary Union (IPU): ór- indicadores estratégicos, significati-
gão internacional de parlamentos, vos e pouco numerosos, que permite
fundado em 1889, que coleta seus analisar os obstáculos e avanços para
dados diretamente dos parlamentos o alcance da igualdade de gênero em
a ele associados e divulga periodica- três grandes áreas: autonomia econô-
mente um ranking dos países segun- mica, física e na tomada de decisões.
do a presença de mulheres ocupando “La idea-fuerza que está detrás es
cadeiras nas câmaras alta e baixa dos que la autonomía de las mujeres es
parlamentos; un factor fundamental para garantizar
b) Fórum Econômico Mundial (FEM): é el ejercicio de sus derechos humanos
um fórum que se reúne uma vez por en un contexto de plena igualdad. El
ano e congrega os principais líderes control sobre su propio cuerpo (au-
mundiais para discussão de assuntos tonomía física), la generación de in-
econômicos, políticos e sociais. Anu- gresos y recursos propios (autonomía
almente, o Fórum edita uma publica- económica) y su plena participación
ção e realiza estudos sobre a temáti- en la toma de decisiones que afectan

5. Os indicadores sintéti cos “se propõem a apreender a realidade social através de uma única medida, resultante da combinação de múlti plas
medições das suas dimensões analíti cas quanti fi cáveis”. SCANDAR NETO, Wadih; JANUZZI, Paulo; SILVA, Pedro Luis. Sistemas de indicadores ou

58 indicadores sintéti cos: do que precisam os gestores de políti cas sociais? In: XVI Encontro Nacional de Estudos Populacionais, Caxambu, 29 de
setembro a 03 de outubro de 2008, p.2.
DOSSIÊ MULHERES E PODER
a su vida y a su colectividad (auto- (parlamento único) é de 18,8%. Já nas Américas
nomía en la toma de decisiones) son (incluindo Anglo-Saxônica), a média para siste-
tres pilares para construir una mayor mas bicamerais sobe para 22,0%, e em sistemas
igualdad de género en la región”6. unicamerais fica em 22,4%. Em ambos os casos,
A despeito de todas as limitações metodoló- o Brasil segue abaixo da média.
gicas de se realizar comparações entre os países O Fórum Econômico Mundial, por sua vez,
– seja pela não homogeneidade na construção trabalha a partir da construção de um ranking
e coleta dos indicadores, seja pelos diferentes que tem por base a elaboração de um indicador
contextos sociais, políticos e econômicos – a sintético de igualdade de gênero que considera,
análise das informações organizadas por estas tal como mencionado, as dimensões do empo-
três importantes fontes oferece uma visão geral deramento político, do avanço educacional, do
da condição de desigualdade brasileira frente bem-estar (saúde) e da participação econômica.
aos países da América Latina7, foco desse arti- Os últimos dados disponíveis são para o ano de
go. 2008 e o critério para seleção dos 130 países
Segundo os dados do IPU8, o cenário de pesquisados foi a disponibilidade de dados. Para
participação das mulheres nos ambientes ins- avaliá-los, foi criada uma escala de 0 a 1, onde
titucionais de poder e tomadas de decisões na 0 é o pior resultado possível (mais distante da
América Latina e Caribe é bem heterogêneo. En- igualdade de gênero) e 1 é o melhor resultado
quanto é possível observar países como Cuba, possível (mais próximo da igualdade de gêne-
que tem quase metade de seu Congresso Nacio- ro).
nal constituído por mulheres (43,2%), encon- No ranking geral, que leva em considera-
tram-se também países como a Colômbia, que já ção todos os itens avaliados, os países nórdicos
adotou a lei de cotas para mulheres na política, ocupam as primeiras posições. A Noruega, pri-
mas tem apenas 8,4% de sua Câmara dos De- meira colocada, demonstra grande inclusão das
putados e 11,8% de seu Senado ocupados por mulheres em todos os quesitos, sendo sua pior
mulheres. avaliação conquistada no quesito “saúde e bem
O Brasil ocupa apenas a 109ª colocação estar”, onde figura apenas em 53º lugar. Entre
no ranking mundial de participação política das os países da América Latina, o mais bem colo-
mulheres elaborado pelo IPU. Com 44 mulheres cado dentre os pesquisados foi a Argentina, que
na Câmara dos Deputados, representando 8,6% ocupa a 24ª colocação no quadro geral, ficando
do total de 513, e 9 mulheres no Senado, repre- à frente de países como Estados Unidos (20º) e
sentando 11,11% do total de 81, o país ainda é Canadá (31º).
marcado por uma larga desigualdade de gênero Os países da parte intermediária da tabela9
na ocupação de espaços que denotam efetiva geralmente têm o desempenho bom em uma ou
possibilidade de exercício do poder. Apesar da duas áreas avaliadas, enquanto as outras con-
existência de uma lei de cotas que, desde 1997, tribuem para “puxar para baixo” sua classifi-
assegura ao menos 30% das candidaturas dos cação no quadro geral. É o caso do Brasil, 73º
partidos para cada um dos sexos, entre os países colocado no ranking geral. Enquanto no quesito
da América Latina, o Brasil figura apenas no 15º “avanços educacionais” e “saúde e bem estar” o
lugar, num total de 19 países. país encontra-se empatado com diversos outros
O IPU também disponibiliza em seu site países na 1ª posição, no item “empoderamento
as médias mundiais e por regiões da participa- político” o país está apenas no 110º lugar10.
ção feminina nos legislativos. A média mundial Isso significa que a realidade de baixo
em sistemas bicamerais (com Câmara Alta, ou acesso das mulheres aos espaços de poder e
Senado, e Câmara Baixa, ou Câmara dos Depu- decisão é o fator que determina, de forma de-
tados) é de 18,6%, e em sistemas unicamerais cisiva, a posição que o Brasil ocupa no ranking

6. Segundo o Projeto do Observatório de Gênero apresentado pela Cepal: “Antecedentes y Propuesta de Observatorio de Género1 para América Lati na
y el Caribe de la Cepal”, p.8.
7. htt p://www.ipu.org/wmn-e/classif.htm. Acesso em 05/10/2009.
8. Este assunto será retomado mais adiante.
9. A tabela completa encontra-se disponível em htt p://www.weforum.org/pdf/gendergap/report2008.pdf.
10. O quesito “empoderamento políti co” é composto pelos seguintes indicadores: razão mulheres/homens em relação ao total de anos ocupando
cargos de presidente/a ou primeira/o-ministra/o nos últi mos 50 anos; razão mulheres/homens nos cargos ministeriais; e razão mulheres/homens
ocupando cadeiras no parlamento. As fontes uti lizadas pelo Fórum Econômico Mundial foram fontes nacionais e avaliações do PNUD (Programa das
Nações Unidas para o Desenvolvimento). 59
DOSSIÊ MULHERES E PODER
do FEM, entre os últimos países na colocação Civil. Aqui cabe destacar que, apesar de poucas,
geral. Reafirma-se, portanto, o péssimo cená- o fato da Casa Civil ter uma mulher como titular
rio enfrentado pelas mulheres nesse campo e a é bastante significativo, pois é nesta esfera que
necessidade de que sejam empreendidas ações as principais decisões de governo são tomadas.
imediatas e efetivas para reversão de um quadro Em cargos executivos municipais, não se
de desigualdade que, ao contrário do verificado pode dar grande destaque a nenhum país latino-
em outras áreas, tem se revelado estável e de americano, uma vez que aquele que mais tem
difícil reversão. mulheres exercendo mandatos de prefeitas (ou
Entre todos os países, a Finlândia é aquele equivalentes nos outros países) é Porto Rico,
no qual as mulheres têm mais oportunidades po- com uma taxa que não alcança um quarto das
líticas, tendo o pior desempenho sido encontra- cadeiras (23,1%). Logo em seguida, estão Chile
do na Arábia Saudita. Na América Latina, nova- (12,2%) e Costa Rica (11,1%). O Uruguai, últi-
mente a Argentina se destaca, ocupando a 15ª mo colocado no ranking, não possui sequer uma
posição no quesito “empoderamento político” mulher ocupando o maior posto do executivo
e sendo a melhor posicionada entre os países municipal, devendo-se considerar que existem
latino-americanos11. Cuba e Costa Rica também apenas 19 municipalidades no país. O Brasil
apresentaram um desempenho relativamente aparece na faixa intermediária do ranking, em
bom, ocupando a 19ª e a 20ª posição, respecti- 10º lugar, com apenas 9,07% das prefeituras
vamente. ocupadas por mulheres.
Por último, interessante analisar os dados Para o Poder Legislativo, vale ressaltar
disponibilizados pela CEPAL12, por meio de seu apenas os indicadores para o nível local, uma
Observatório de Igualdade de Gênero da América vez que os dados nacionais já foram apresen-
Latina e Caribe, uma vez que estes cobrem uma tados anteriormente. Nesse caso, a proporção
gama bem mais ampla de informações, permi- de mulheres brasileiras que ocupa cadeiras nas
tindo observar diferentes espaços quando se tra- câmaras legislativas municipais também é muito
ta de participação política das mulheres e não baixo. Enquanto países como El Salvador, que
apenas a ocupação de cargos nos legislativos. tem 80,5% desses postos ocupados por mulhe-
Em relação ao Poder Executivo federal, o res, e Costa Rica, cuja ocupação feminina atinge
Observatório coleta informações sobre a presen- 43,2%, encabeçam a lista dos melhores resulta-
ça de mulheres no primeiro escalão de governo, dos de países latino-americanos nesse quesito,
ou seja, na direção dos ministérios ou órgãos o Brasil aparece apenas como o 13º de um total
equivalentes. Os dados disponibilizados eviden- de 15 países cujos dados estão disponíveis, à
ciam que os países latino-americanos vivenciam frente apenas de Panamá e Guatemala. Apenas
situações bastante diferenciadas entre si. Chile 12,6% das cadeiras das câmaras municipais bra-
e Argentina, que são os únicos países da Amé- sileiras são ocupadas por mulheres.
rica Latina a terem mulheres no mais alto posto Finalmente, o Observatório da Cepal coleta
do poder executivo (Presidência), têm bons nú- também informações sobre o Poder Judiciário,
meros: enquanto o Chile é o país que mais tem mais especificamente sobre mulheres presentes
mulheres exercendo funções ministeriais (48%), na mais alta corte de justiça do país. Neste caso,
a Argentina encontra-se na quinta colocação os números demonstram novamente uma baixa
nesse critério (31%). O Brasil novamente mos- presença feminina, sendo Honduras o país com
tra suas dificuldades na área, ocupando a última maior presença de mulheres na Suprema Corte
posição, com apenas 6% de presença feminina (53%). Mais uma vez, o Brasil figura entre os
nos gabinetes ministeriais, o que significa 2 mi- últimos da América Latina (11º lugar) com ape-
nistras: Nilcéa Freire, da Secretaria Especial de nas 18% das cadeiras ministeriais do Superior
Políticas para Mulheres, e Dilma Roussef, da Casa Tribunal Federal estando ocupadas por mulheres

11. Tal resultado deve-se ao efi ciente sistema de cotas adotado pela Argenti na, que envolve: “i) a existência de listas fechadas; ii) a obrigatoriedade de
que em cada grupo de três posições na lista esteja presente uma mulher; iii) a moderada magnitude da circunscrição eleitoral, que disponibiliza
um número não muito pequeno de vagas para cada distrito eleitoral; e iv) a existência de um movimento de mulheres vigoroso e atuante, que
pressionou o governo pela aprovação da lei e por algumas das regras que orientam a sua aplicação”. PINHEIRO, Op. Cit., p.52.

60 12. Vale ressaltar que os dados disponibilizados pela Cepal são fornecidos pelos governos dos países lati no-americanos e referem-se sempre ao últi mo
período disponibilizado. Para detalhes, ver: htt p://www.cepal.org/oig/adecisiones/.
DOSSIÊ MULHERES E PODER
(ou duas mulheres), apesar de uma mulher já ter garantirão, em igualdade de condições com
sido a presidenta do Superior Tribunal Federal os homens, o direito a:
entre os anos de 2006 e 2008. O Uruguai nova- b) participar na formulação de políticas
mente aparece como último colocado, sem ne- governamentais e na execução destas,
nhuma mulher presente em sua Suprema Corte. e ocupar cargos públicos e exercer to-
das as funções públicas em todos os
2.2. Indicadores qualitativos planos governamentais.
Em relação aos indicadores qualitativos, Artigo 8º - Os Estados – Partes tomarão
importante ressaltar que estes permitem ana- todas as medidas apropriadas para garantir
lisar o comprometimento político-institucional à mulher, em igualdade de condições com
dos países com a temática de gênero o que, em o homem e sem discriminação alguma, a
termos teóricos, contribuiria para a ampliação oportunidade de representar seu governo
da presença de mulheres na política formal. no plano internacional (...).”15.
Para exemplificar este comprometimento, foram A Cedaw é, portanto, um marco histórico
selecionados os seguintes indicadores: ratifi- no movimento feminista e na luta pela aquisi-
cação da Convenção para Eliminação de todas ção de direitos de igualdade para as mulheres,
as Formas de Discriminação contra as Mulheres tendo dado impulso decisivo na construção de
(Cedaw), existência de leis de cotas para as elei- políticas de igualdade por parte dos Estados sig-
ções e existência e hierarquia de mecanismos natários, tornando então a luta pela equidade
governamentais de políticas para as mulheres. de gênero uma luta também do Estado.
A CEDAW é uma convenção das Nações Sua ratificação deu novo impulso às organi-
Unidas, aprovada pela sua Assembléia Geral em zações feministas e de mulheres, que passaram
1979. Segundo o Unifem, todos os países lati- a contar com um forte instrumento legal para
no-americanos membros da ONU já ratificaram exigirem políticas públicas nas áreas ali defini-
a Convenção, sendo que 15 ratificaram também das. Da mesma forma, em muito tem ajudado os
seu Protocolo Facultativo, 3 assinaram, mas não mecanismos governamentais de políticas para
ratificaram e outros 15 nem ao menos assina- mulheres na disputa política interna ao governo
ram13. O Brasil tornou-se signatário da Conven- para alocação orçamentária e apoio político para
ção, com ressalvas à parte da família14, em 1981. o desenvolvimento de políticas de gênero e/ou
O Congresso Nacional ratificou a convenção três para mulheres. Com a Cedaw, o Estado brasileiro
anos depois, em 1984, conferindo à convenção passou a ter a obrigação legal de trabalhar pela
poder de lei federal, embora o Congresso tenha inclusão das mulheres na vida política; a lei de
mantido as ressalvas que o executivo havia fei- cotas é um exemplo das iniciativas posteriores
to. Apenas em 1994 as ressalvas foram retira- tomadas nesta área.
das, sendo toda a Convenção acatada pelo Esta- Na América Latina, Argentina, Brasil, Vene-
do brasileiro. zuela, Bolívia, Colômbia, Equador, Costa Rica,
A importância de se analisar tal Conven- Panamá, Peru e República Dominicana têm leis
ção à luz da temática de poder e decisão está de cotas para mulheres. Apesar de ter poucos
no compromisso político e legal imposto espe- impactos em alguns deles, como Brasil e Bolí-
cialmente por seus artigos 7º e 8º que dispõem via, em termos de ampliação substancial de mu-
que: lheres no parlamento, em alguns lugares o resul-
“Artigo 7º - Os Estados - Partes tomarão tado alcançado foi bastante positivo. É o caso
todas as medidas apropriadas para eliminar da Argentina que passou de um total de 6% das
a discriminação contra a mulher na vida cadeiras do Congresso Nacional ocupadas por
política e pública do país e, em particular,

13. “’Não assinaram’ refere-se a Estados que não assinaram, rati fi caram, aceitaram ou aprovaram a CEDAW. ‘Assinaram mas não rati fi caram’ refere-se
a Estados que assinaram o tratado mas não o rati fi caram nem aceitaram. ‘Rati fi caram’ refere-se à Aceitação, Rati fi cação ou Sucessão da CEDAW,
todos legalmente obrigando os países a implementar as disposições do tratado. A mesma classifi cação de assinaturas e rati fi cações aplica-se ao
Protocolo Facultati vo”. UNIFEM. Progresso das Mulheres no Mundo. Brasil: Unifem, 2008, p.75
14. A CEDAW permite a rati fi cação com reservas. No caso do Brasil, estas reservas referiam-se ao arti go 15, parágrafo 14, e arti go 16, parágrafo 1°,

61
letras a, c, g, h.
15. CEPIA. Instrumentos Internacionais de Proteção aos Direitos Humanos. Brasil, 2001, p. 39.
DOSSIÊ MULHERES E PODER
mulheres para 38,3% na década passada. Outro mente, já a coloca numa posição importante na
exemplo de bons resultados é a Costa Rica, cuja hierarquia governamental.
proporção de mulheres no parlamento saltou de Dentre os países aqui analisados, todos têm
14% para 36,8%. algum tipo de estrutura neste sentido, que va-
No Brasil, inicialmente, as cotas eram de, riam desde órgãos com status ministerial (Brasil
no mínimo, 20% dos candidatos a cargos ele- e Chile, por exemplo), passando por Conselhos
tivos para as mulheres e referiam-se apenas às que desempenham o papel executivo (como na
eleições para câmaras legislativas municipais. Argentina). Destes órgãos, 40% são ministérios
Em 1997, as cotas são estendidas para os demais ou possuem status ministerial; 40% são enti-
cargos proporcionais, mas passam a ser de, no dades ligadas à presidência sem status de mi-
mínimo, 30% e, no máximo, 70% para cada um nistério ou são mecanismos cujos responsáveis
dos sexos. As primeiras eleições após a implan- respondem diretamente à presidência (como se-
tação do sistema de cotas nacional teve efeito cretarias, institutos nacionais, etc); e os 20%
inverso ao esperado: em 1998 foram eleitas 29 restantes são entidades diretamente dependen-
deputadas federais, contra 32, em 2004. A bai- tes de um ministério (como vice-ministérios,
xa eficácia das cotas no Brasil tem sido muito subsecretarias, conselhos, etc).
estudada por pesquisadores e estudiosos que O Brasil encontra-se nos primeiros 40%, uma
apontam, entre as principais causas: i) o texto vez que a Secretaria Especial de Políticas para as
da Lei, que não obriga os partidos a preenche- Mulheres, apesar de vinculada à Presidência da
rem as cotas; ii) o sistema político brasileiro, República, é dotada de status de ministério. O
que funciona com listas abertas, consideradas histórico brasileiro de ação institucional na área
menos favoráveis à incorporação de grupos ex- de promoção da equidade de gênero começou
cluídos; iii) profissionalização e elevados custos em 1985, com a criação do Conselho Nacional de
das campanhas; iv) falta de investimento dos Direitos da Mulher (CNDM). Produto da pressão
partidos na formação política feminina; v) dis- do movimento feminista, o CNDM era vinculado
persão de votos entre candidaturas femininas, ao Ministério da Justiça e, ainda que se respon-
entre outros16. sabilizasse naquele momento pela execução das
Outro dado que contribui para analisar o políticas, não possuía prerrogativas ministe-
encaminhamento das pautas de inclusão das riais.
mulheres nos países latino-americanos, refere- O Conselho foi de vital importância para
se à existência e ao status dos diversos órgãos garantir as conquistas feministas à época da As-
executivos criados para promover políticas pú- sembléia Nacional Constituinte, em 1988, tendo
blicas que visam à equiparação de direitos e grande parte de suas reivindicações sido apro-
oportunidades entre mulheres e homens e à vadas. Entretanto, após o fim da Constituinte,
promoção da autonomia feminina. A existência o CNDM ficou esvaziado de poder. Somente em
de órgãos executivos de políticas para mulhe- 1995 foi reativado, mas ainda assim o tema da
res é um indicador qualitativo do compromisso igualdade de gênero era pauta secundária no
dos países com a questão de gênero e pode ser governo, e o status do Conselho foi rebaixado,
interpretado como um ingrediente adicional no passando então a ser subordinado à Secretaria
cenário favorável de promoção da participação Nacional de Direitos Humanos do Ministério da
feminina nos espaços de poder e decisão. Até Justiça.
porque, nesses casos, a titularidade dos organis- Nesse processo, o CNDM tornou-se um ór-
mos tende a ser de uma mulher o que, imediata- gão meramente consultivo. Em 2002, no contex-

16. Sobre este assunto, ver: MIGUEL, Sônia Malheiros. A políti ca de cotas por sexo: um estudo das primeiras ‘experiências no Legislati vo brasileiro’.
Brasília: Cfemea, 2000; MIGUEL, Luis Felipe. Teoria políti ca feminista e liberalismo: o caso das cotas de representação. Revista Brasileira de
Ciências Sociais, v. 15, n. 44, p. 91-102, out. 2000; ARAÚJO, Clara. Mulheres e representação políti ca: a experiência das cotas no Brasil. Revista
Estudos Feministas, v. 1, n. 1, p.71-90, 1998; ______. Cidadania incompleta: o impacto da lei de cotas sobre a representação políti ca das mulheres
brasileiras. Tese (Doutorado em Ciência Políti ca) – Insti tuto de Filosofi a e Ciências Sociais, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro,
1999; ______. As cotas por sexo para a competi ção legislati va: o caso brasileiro em comparação com experiências internacionais. Dados: revista de

62 ciências sociais, v. 44, n. 1, p. 155-195, 2001; ______. Potencialidades e limites da políti ca de cotas no Brasil. Revista Estudos Feministas, v. 9, n. 1,
p. 231-252, 2001.
DOSSIÊ MULHERES E PODER
to eleitoral, o assunto voltou à pauta política e como já afirmado no início deste artigo, que a
foi criada a Secretaria de Estado de Direitos da questão cultural – ou seja, os valores sociais de
Mulher (Sedim) que pouco teve tempo de atuar, gênero e a socialização diferenciada – é um dos
pois foi instituída nos últimos meses do governo fatores que mais determinam a baixa ocupação
Fernando Henrique. Assim, em 2003, foi criada a dos cargos políticos por mulheres. Por sociali-
Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres zação diferenciada entende-se a maneira como
(SPM), com status ministerial e ligada direta- os valores são repassados e reproduzidos so-
mente à Presidência da República, que engloba cialmente na construção da individualidade. Em
o CNDM, e coordena toda a política voltada para uma sociedade historicamente patriarcal – como
a promoção da autonomia das mulheres e da ainda o é a brasileira –, homens e mulheres fo-
igualdade de gênero no país. ram socializados (ou seja, tiveram contato com
o mundo social) de formas diferentes, cabendo
3. Considerações finais às mulheres a responsabilidade pelas atividades
do mundo privado, relacionadas às tarefas do-
De modo geral, o que se pode concluir é mésticas de cuidado da família e da casa. Aos
que o Brasil encontra-se, ainda, em um estágio homens, por outro lado, coube a tarefa de pro-
defasado em relação à participação feminina nos ver o domicílio, a partir da inserção no mun-
espaços da política institucional. A dissociação do público. Nesta separação públicoXprivado/
histórica estabelecida entre mulheres e poder é homemXmulher, a vida política ficou excluída
algo a ser vencido no país, constituindo-se ain- do campo de ação feminino. Assim, apesar dos
da em uma realidade latente. Em comparação tímidos avanços verificados nos últimos anos,
aos países da América Latina, algumas questões “A política [ainda] é freqüentemente vista como
merecem ser destacadas. Por um lado, o Brasil não sendo um domínio da mulher ou com a qual
é dotado de instrumentos legislativos e insti- elas deveriam tratar. E muitas mulheres, quando
tucionais que oferecem as bases para que esta entrevistadas, dizem que ‘não estão interessa-
desigual realidade seja alterada: existe um orga- das em política’, ou que a política ‘é coisa de
nismo de políticas com status de ministério, há homem’”17.
uma lei de cotas (que passa agora por um pro- De fato, esta dimensão cultural acaba por
cesso importante de aprimoramento), a Cedaw se constituir em pano de fundo para a maior par-
foi ratificada e, ainda que não exista uma Lei te dos outros fatores que podem ser levantados
da Igualdade, há um Plano Nacional de Políticas para explicar as desigualdades existentes na es-
para as Mulheres, instituído por meio de um De- fera política, dentre os quais destacam-se: i) as
creto Presidencial. Por outro lado, no entanto, a resistências e preconceitos presentes nas organi-
análise comparativa nos coloca, invariavelmen- zações partidárias; ii) os fundamentos dos siste-
te, nas piores posições dos rankings construídos mas de cotas eleitorais; iii) o acesso seletivo aos
a partir de qualquer indicador de participação recursos econômicos e sociais; iv) a necessidade
política. de conciliar vida pública e privada; v) o desigual
Há, portanto, muito ainda o que se fazer, acúmulo de capital político e social; etc.
especialmente porque as causas que contribuí- A desigualdade de participação entre ho-
ram para conformar este quadro persistente de mens e mulheres na política institucional só se
exclusão são muitas e não são de fácil modi- configurou, porém, em uma questão para o Esta-
ficação. Não é o objetivo deste artigo discutir do brasileiro a partir da década de 2000. Até en-
estas causas, uma vez que isto demandaria uma tão, muito pouco se fez em termos de iniciativas
reflexão teórico-conceitual que não cabe para governamentais que pudessem contribuir para a
os propósitos desta Revista. Ainda assim, alguns construção de um cenário mais democrático nas
fatores podem ser rapidamente citados, apenas esferas pública e política. A falta de ação do
para pontuar e direcionar análises futuras que governo federal em relação ao tema foi reco-
possam ser feitas sobre os dados aqui apresen- nhecida quando, na II Conferência Nacional de
tados. Políticas para as Mulheres, se apresentou este
Num espectro mais amplo, pode-se dizer, tema como um dos objetivos centrais a serem

17. TABAK, Fanny. Mulheres Públicas: parti cipação políti ca e poder. Rio de Janeiro: Letra Capital, 2002 ,p.104. 63
DOSSIÊ MULHERES E PODER
discutidos. Tal centralidade se justifica pela do Fundo Partidário tem de ser aplicado na for-
necessidade e importância da participação mação política das mulheres; 10% do tempo de
como ação transformadora das estruturas de propaganda partidária dos partidos serão utili-
poder e das instituições, e também da cultura zados pelas mulheres dos partidos; passa a ser
e das mentalidades, gerando novas relações obrigatório o preenchimento pelos partidos dos
sociais. No que se refere às mulheres, esta 30% de vagas destinadas ao sexo oposto; e se
participação torna-se ainda mais fundamental o partido não cumprir o preenchimento dessas
pela situação desigual e discriminatória que cotas, a sanção será de 2,5% a mais do Fundo
vivenciam, sendo essencial para a elaboração Partidário destinado à formação das mulheres.
das leis e para a implementação de políticas As mudanças ainda precisam ser confirmadas
que promovam a igualdade e a equidade de pelo Senado Federal e devem passar a valer nas
gênero. eleições de 2010.
A partir da construção do II Plano Nacional A luta pela igualdade de gênero é, sem dú-
de Políticas para as Mulheres, diversas inicia- vida, uma luta pela igualdade de poder entre
tivas começaram a ser desenvolvidas, cabendo homens e mulheres e, portanto, uma luta polí-
mencionar aqui a instituição da Comissão Tri- tica, que precisa ser travada, simultaneamente,
partite – composta por representantes do Po- nos domínios dos espaços públicos e privados.
der Executivo, Legislativo e da sociedade civil Representa a luta por uma democracia completa
– para discutir, elaborar e encaminhar proposta que seja capaz de assegurar as mesmas oportu-
de revisão da Lei 9.504/97, a Lei de Cotas. Dos nidades e condições de disputa e participação e
trabalhos da Comissão, resultou a aprovação, que reconheça a experiência, a capacidade e a
no plenário da Câmara dos Deputados, de im- contribuição que as mulheres tem a dar para a
portantes pontos da lei eleitoral em favor das construção de um país no qual as diferenças não
mulheres. A nova redação estabelece que 5% se traduzam em desigualdades.

64
DOSSIÊ MULHERES E PODER
Mulheres na Política
Fátima Pacheco Jordão1

São raras as pesquisas de opinião que ofe- As razões alegadas são várias e os entrevis-
recem resultados que podem ser analisados em tados oferecem algumas possibilidades de ga-
uma perspectiva de tempo que vai muito além nhos gerais, caso mais mulheres fossem eleitas:
do período de sua realização. É o caso da pes- aumentaria a competência na prática política
quisa do Instituto Patrícia Galvão, Cultura Data (75%); na ética (honestidade) dos procedimen-
e Ibope2 que entrevistou 2002 brasileiros, no tos políticos (74%) e daria mais consistência
início deste ano, sobre percepção e expectativas ao compromisso dos eleitos com os eleitores
da população sobre a participação das mulheres (74%). Agregando outros valores e atributos
na política. igualmente virtuosos, os eleitores passam um
Neste artigo, vamos explorar quatro verten- recado claro: a imagem do fazer política está
tes bem delineadas no estudo em questão e que deteriorada e novos atores (as mulheres) pode-
oferecem luzes sobre o que está ocorrendo neste riam trazer novos valores.
momento e que estarão no horizonte político do Este discurso progressista poderia ser lido
país ainda por alguns meses. como idealizado, “politicamente correto”. Além
Estes cortes de análise referem-se aos se- do que, o pequeno crescimento de mulheres em
guintes aspectos: 1) necessidade percebida de cargos eletivos não tem expressado a visão cap-
reforma do sistema político que permita maior tada nesta pesquisa. A nossa interpretação é de
representação em postos de poder para mulhe- que está ocorrendo, de fato, um descompasso
res; 2) mudanças e aberturas dos partidos polí- entre o alto desempenho de algumas mulheres
ticos para uma agenda mais ampla e mais com- e sua participação numérica nos espaços políti-
plexa que, aliás, já estão postas na sociedade e cos ou administrativos. Dois exemplos recentes
não encontram brechas no repertório tradicional e gritantes: a chefia da casa civil da presidên-
dos partidos atuais; 3) a percepção do descom- cia, acumulada com a gerência dos projetos de
passo entre o protagonismo feminino atual e a infra-estrutura do governo federal (PAC), criou
exígua representação nos postos atuais de poder um espaço de poder inédito na trajetória da Re-
e 4) a capacidade destes novos conteúdos e ato- pública. E nesta posição está uma mulher, Dilma
res representarem um aperfeiçoamento ou novos Roussef.
degraus civilizatórios da democracia no Brasil. A entrada de Marina Silva no PV põe em
Não é pouco o que a sociedade está percebendo perspectiva novos arranjos na agenda do Brasil
e, em conseqüência, demandando: quer-se uma no que se refere a meio ambiente e às premissas
urgente atualização do jogo político nacional. do desenvolvimento econômico do país. Como
Nos quatro cantos do país, 4 em cada 5 ela mesma diz, “não se trata de um novo cami-
entrevistados concordam com as premissas de nho, mas de uma nova maneira de caminhar”.
que mais mulheres na política e nos espaços de Não é novidade nenhuma que, na Conferência
poder melhoram a democracia e os próprios es- de Copenhage (dezembro de 2009), o protago-
paços públicos em que atuam: 77% dos homens, nismo desta brasileira da Amazônia será muito
80% das mulheres. No nordeste, sul e sudeste, mais proeminente do que o de muitos políticos
a proporção é de 80%. Menos enfáticos, mas importantes dos vários países que vão participar
ainda assim assertivos, 70% dos brasileiros das da reunião. E sua voz política tem ressonância
regiões Centro e Norte confirmam esta visão. global, o que também é uma novidade.

1. Fáti ma Pacheco Jordão é pesquisadora e assessora do Cultura Data e membro do Conselho Diretor do Insti tuto Patrícia Galvão.
2 Pesquisa quanti tati va que contou com as parcerias do Insti tuto Ibope Inteligência, Insti tuto Patrícia Galvão de Comunicação e Mídia e Cultura
Data da TV Cultura. As entrevistas foram realizadas em fevereiro de 2009, com 2002 entrevistas representando a população adulta brasileira. A
pesquisa está disponível nos sites dos realizadores (Ibope, Cultura Data ,Instuto Patrícia Galvão) e do apoiador (Secretaria Especial de Políti cas para
as Mulheres). 65
DOSSIÊ MULHERES E PODER
A pesquisa que analisamos antecipa com legislativas estaduais e o Congresso Nacional
clareza esta necessidade de mudar a forma da tivessem metade de homens e metade de mu-
caminhada da política brasileira e, mais pre- lheres”.
cisamente, de que os brasileiros se colocam a Os brasileiros apontam claramente para um
favor de medidas legislativas que promovam ambiente político mais avançado e mais compa-
mais igualdade entre homens e mulheres. Ex- tível com a complexidade da dinâmica social,
pectativas que contrastam com a apatia de política e econômica do país. Neste sentido, a
governantes, partidos e políticos em concre- pesquisa Mulheres na Política tem uma atualida-
tizar medidas necessárias. A pesquisa mostra de e, provavelmente, permanência que poderá
uma taxa de concordância muito alta (79%) explicar muitos novos aspectos do cenário elei-
com idéias como a de que “deveria ser obriga- toral de 2010, em todos os níveis de disputa
tório que câmaras de vereadores, assembléias daquelas eleições.

66
DOSSIÊ MULHERES E PODER
Existe democracia sem
as mulheres? Uma
reflexão sobre a função
e o apoio às ações
afirmativas na política.
Patrícia Rangel1

Introdução Deste diagnóstico, pode-se tirar facilmente


um prognóstico: ações afirmativas para as mu-
A sub-representação das mulheres na polí- lheres são necessárias para equalizar o acesso à
tica institucional é reconhecida como um grave política institucional, levando em conta a pers-
problema em regimes eletivos, e vem sedo apon- pectiva social e as trajetórias diferenciadas. As
tada como sintoma do déficit democrático que cotas são indicadas por funcionarem como me-
atinge diversos governos representativos. Em canismos de discriminação positiva para comba-
1995, a Conferência Mundial sobre a Mulher das ter o problema estrutural da baixa participação
Nações Unidas (a Conferência de Beijing) esta- feminina.
beleceu um mínimo de 30% como meta mundial O Brasil vem adotando mecanismos para
de participação feminina em casas legislativas. aumentar a participação das mulheres na polí-
Entretanto, dados da União Interparlamentar tica institucional, das quais merece destaque a
(IPU, da sigla em inglês), órgão vinculado à Or- reserva de vagas de candidatura para o sexo mi-
ganização das Nações Unidas (ONU), mostraram noritário em eleições proporcionais. Tais ferra-
que, 13 anos depois, essa meta foi alcançada em mentas, segundo pesquisas recentes, são ampla-
somente 20 Câmaras de Deputados no mundo. mente apoiadas pela população, mas não caíram
O Brasil é um dos países que não alcançaram nas graças de nossos parlamentares. Além disso,
a meta: em 2006, foram eleitas apenas 45 depu- a eficácia das cotas vem sendo crescentemente
tadas federais (8,7% do total) e 123 deputadas questionada por acadêmicos, mulheres dos par-
estaduais (11,6%), ao passo que, em 2008, so- tidos políticos e militantes feministas.
mente 6.508 mulheres se tornaram vereadoras Tendo tais questões em mente, este artigo
(12,5%). Em setembro de 2008, a IPU registrou pretende analisar a lei de cotas eleitorais sob o
que as brasileiras eram apenas 9% na Câmara pano de fundo de três pesquisas recentes que
Federal, colocando o Brasil 142a colocação no abordam o tema: a pesquisa IBOPE/Patrícia Gal-
ranking de 188 países. O número impressiona ao vão/Cultura Data sobre mulheres na política e
compararmos com a posição de outros países da em espaços de tomada de decisão; a sondagem
região: Cuba – 43,2%; Argentina – 40%; Peru – DIAP/INESC com parlamentares sobre a reforma
29,2%; Equador – 25%; Venezuela – 18,6%, Bo- política; e uma pesquisa conduzida pelo CFEMEA
lívia – 16,9%; Chile – 15%; Paraguai – 12,5%. sobre a reforma eleitoral. Em um primeiro mo-
O Brasil, nas Américas, fica à frente somente de mento, recuperaremos o processo de adoção das
Colômbia, Haiti e Belize. cotas e explicaremos sua utilidade para, num

1. Doutoranda no Insti tuto de Ciência Políti ca da Universidade de Brasília (Ipol/UnB) e assessora técnica do CFEMEA para as áreas de “Trabalho &
Previdência” e “Poder & Políti ca”. 67
DOSSIÊ MULHERES E PODER
segundo momento, vinculá-lo à opinião da po- duzida de 30%, no texto original, para 20%, no
pulação e dos parlamentares sobre as ações afir- texto final.
mativas expressas nas pesquisas supracitadas. Esta última observação adianta a terceira
Por fim, apresentaremos as soluções que têm ressalva, em relação às modificações no projeto
sido levantadas em tempos recentes, sobretudo original: além de reduzir o percentual reservado
com base na experiência de três espaços de re- às candidaturas femininas, a lei permitiu que os
flexão sobre o tema: a Plataforma dos Movimen- partidos apresentassem mais candidatos do que
tos Sociais pela Reforma do Sistema Político, a o estipulado (até 120% do número de vagas a
Comissão Tripartite para revisão da Lei de Cotas ocupar). Ou seja, o efeito das cotas fora neutra-
e a Frente Parlamentar pela Reforma Política lizado. Segundo Marta Suplicy, a reivindicação
com Participação Popular. das mulheres foi manipulada para aumentar o
número de candidaturas, diluindo a possibilida-
I. Aniversário da lei de cotas: de de que a cota contribuísse para um maior
felicitação ou necessidade de revisão? investimento nas campanhas de mulheres can-
didatas.
Há 14 anos, em 29 de setembro de 1995, os Menos de um ano depois das eleições de
parlamentares brasileiros aprovavam a primeira 1996, em 30 de setembro de 1997, foi sancio-
legislação destinada a aumentar a presença fe- nada uma nova lei eleitoral: a Lei N. 9.504/97,
minina no Legislativo: a Lei N. 9.100/95, que que elevava o percentual de vagas destinadas ao
reservava 20% das candidaturas dos partidos sexo minoritário nas listas eleitorais para 30%2.
políticos para mulheres. A Lei N. 9.504/97 possui três grandes diferenças
Fruto de um movimento internacional de em relação à Lei N. 9.100/95: 1) o percentual
incentivo a mecanismos para incrementar a re- de candidaturas femininas estipuladas pelas co-
presentação parlamentar feminina, a proposta tas; 2) ela não institui uma cota mínima para
de adoção de cotas no Brasil foi apresentada mulheres, e sim estabelece um sistema de co-
por Marta Suplicy (PT/SP) e contou com a as- tas mínimas e máximas para as candidaturas de
sinatura de mais de 20 deputadas de diversos mulheres e homens; e 3) a lei amplia o âmbito
partidos, tendo sido introduzida na Câmara Fe- de aplicação aos cargos legislativos de todos os
deral em agosto de 1995, quando se discutia a níveis.
Lei Eleitoral que regulamentaria as eleições de A norma, contudo, autorizou cada partido
1996. O documento entrou como uma emenda a registrar candidatos até 150% do número de
à proposta de lei e sugeria a reserva de vagas lugares a preencher. Tal elevação pode ser en-
para candidatas mulheres nas listas dos parti- tendida como uma “cláusula de escape”, uma
dos e outras medidas de apoio a elas. A apro- vez que um partido pode apresentar uma lista
vação da norma foi uma conquista excepcional completa de candidatos sem incluir sequer uma
para o movimento feminista e a coletividade de mulher. Assim, se um determinado distrito pode
mulheres brasileiras. Entretanto, vale fazer al- eleger 100 deputados, cada partido pode ofere-
gumas ressalvas em relação ao conteúdo e aos cer 150 candidatos (150% das vagas). Sob a le-
efeitos da norma e ao processo de aprovação tra da lei 9.504/97, 45 desses devem ser do sexo
do projeto. feminino, mas o partido pode então apresentar
Uma primeira observação se refere à ini- 115 candidatos homens e deixar as candidaturas
ciativa: a cota não foi resultado de uma luta femininas em aberto sem violar a lei. A única
conjunta de legisladoras de partidos distintos, sanção para o não cumprimento é o impedimen-
mas sim fruto da iniciativa individual de uma to de substituir as vagas reservadas por candi-
deputada federal no contexto da Conferência de datos de outro sexo.
Beijing. A segunda é em relação à sua eficácia:
no fim das contas, o objetivo da proposta não O que são e para que servem as cotas?
foi alcançado. Não só os mecanismos de apoio
às candidaturas deixaram de ser incorporados, As cotas se apresentam como um instru-
como a porcentagem de reserva de vagas foi re- mento de impacto imediato no processo de fe-

68 2. Por conta de uma cláusula transitória, o arti go 80º estabelecia tais porcentagens em 25% e 75% para as eleições de outubro de
1998, quando a lei 9.504/97 foi testada.
DOSSIÊ MULHERES E PODER
minização das casas legislativas. Elas funcionam feminina. Outra crítica é que a cota não obriga
como mecanismos de discriminação positiva a eleita a assumir o cargo. Há uma prática co-
para combater o problema estrutural da baixa mum em países que adotaram cotas na qual os
participação feminina e corrigir a injustiça do dirigentes partidários pressionam a legisladora
monopólio da representação masculina e dos in- a renunciar pouco tempo após se eleger para
teresses desse grupo social, como explica Lúcia que um homem ocupe sua vaga. Apesar das res-
Avelar (2001). A adoção de cotas é um artifício salvas, é preciso reconhecer a importância das
positivo nas estratégias eleitorais, num momen- cotas para a participação feminina e admitir que
to em que os partidos políticos perdem sua fun- o mecanismo forçou a entrada no poder de mu-
ção tradicional, a política se torna personaliza- lheres muito capazes que, sem as cotas, perma-
da e sofre de enorme volatilidade. neceriam excluídas da política institucional.
Esse artifício foi recomendado em 1986
pela 1ª Conferência Ministerial Europeia sobre Por que as cotas não parecem
a igualdade entre homens e mulheres. O ponto eficazes no Brasil?
de partida institucional para a adoção das cotas
como políticas de ação afirmativa, contudo, fo- Para alcançar a paridade de participação
ram as recomendações das Nações Unidas, que política entre homens e mulheres, não basta
instauraram o debate acerca da exclusão políti- apenas instituir um mecanismo de ação afirma-
ca feminina a partir da década de 1970. A ONU tiva como as cotas. Diversas outras variáveis
desenvolveu uma Convenção sobre a Eliminação precisam interagir de forma a beneficiar o siste-
de Todas as Formas de Discriminação Contra as ma, para que as cotas alcancem seus objetivos.
Mulheres em 1979 e posteriores Recomendações Entre essas variáveis, estão: o sistema político
e Plataformas de Ação das Conferências Mun- como um todo, o sistema eleitoral, a cultura,
diais de Nairobi (1985) e Beijing (1995), que fatores sócio-econômicos, entre outros.
marcaram as pautas. Esses instrumentos inter- Em grande medida, o não-sucesso da legis-
nacionais tiveram grande impacto nas agendas lação se deve às singularidades tanto da norma
dos governos e motivaram o desenvolvimento de quanto do sistema eleitoral do país. A adoção
três tipos de estratégias institucionais para a de listas abertas e a forte individualização das
promoção da mulher em processos e arenas de campanhas políticas contribuem para que as
decisão política: Planos e Programas de Igualda- mulheres tenham muitas dificuldades para en-
de e Tratamento, Escritórios da Mulher (nos Exe- trar no jogo eleitoral com possibilidades reais
cutivos) e a incorporação de Ações Afirmativas de eleição. É importante lembrar que as cotas
ou cotas no sistema político. só atuam no processo de seleção de candidatos.
Os países que possuem maior número de E, como ressalta Clara Araújo (2008), a porcen-
mulheres em seus parlamentos são os que de- tagem de mulheres eleitas não cresce propor-
senvolvem leis de igualdade entre os sexos. No cionalmente à porcentagem de candidatas (ver
mundo, segundo o International Institute for gráfico abaixo).
Democracy and Electoral Assistance (IDEA), 74 14
países dos 186 que possuem instituições legis- 12
10
lativas têm alguma legislação eleitoral de cotas 8 Candidatas

por sexo, seja ela de cunho constitucional, ordi- 6 Eleitas


4
nário ou partidário. Cerca de 40 países do mundo 2

(entre eles 10 Estados latino-americanos) ado- 0


1994 1998 2002 2006
tam cotas obrigatórias para eleições legislativas Fonte: CFEMEA/Eleições 2006.

nacionais, e em mais de 50 países, há partidos


políticos que adotaram cotas voluntárias. Ainda para Araújo (2008), outra crítica é
Uma das críticas ao sistema de cotas é o que não foi desenhado um mecanismo de san-
argumento de que elas contribuiriam para se ções em caso de descumprimento da norma.
conformar um “teto de vidro”, representando a A ausência de penalidades para o não-cum-
cota mínima, na verdade, o topo da participação primento acaba tornando inúteis as estraté-

69
DOSSIÊ MULHERES E PODER
gias voltadas para monitorar se as cotas são II. Ações afirmativas 14 anos depois:
corretamente aplicadas, dando um efeito de como são vistas pela população
caráter simbólico, não efetivo, à legislação. e pelos parlamentares?
Desde a implementação da Lei N. 9.504/97,
quase nenhum partido respeitou o sistema de Recentemente, o Instituto Patrícia Galvão
cotas nas eleições que se sucederam. Tal fato lançou, em parceria com o Instituto Brasileiro
nos leva a concluir que, além de não se em- de Opinião Pública e Estatística (Ibope) e o Cul-
penhar em preencher as vagas reservadas às tura Data, uma pesquisa intitulada “Mulheres na
mulheres nas listas, os partidos não lançam Política”, que foi realizada com mais de duas
candidatas com chances reais de se eleger. mil pessoas em todo o Brasil. Esse levantamen-
As mulheres também têm como barreira o to apontou, entre diversas coisas, que a maio-
fato de muitos homens, com carreiras políticas ria dos brasileiros: votaria em mulheres (94%),
consolidadas, conseguirem facilmente se ree- acha que a presença feminina na política traz
leger. A possibilidade de reeleição é um fator ganhos para a democracia e a sociedade (83%) e
de conservação da composição de gênero e um defende a lei de cotas para mulheres e punição a
obstáculo à renovação da distribuição de gênero quem não cumpri-la (86%). Além disso, mais da
em cargos políticos. Entre outros motivos, é por metade (55%) acha que a lista de candidaturas
isso que as mulheres demoram mais para cons- deveria ter número igual de mulheres e homens
truir uma carreira política: 52% das deputadas e a grande maioria (80%) defende leis para pro-
federais têm entre 45 e 59 anos, em oposição mover igualdade entre os sexos no cenário polí-
aos 48% de legisladores homens. tico3.
Também o alto grau de desigualdade na Contudo, no âmbito institucional, a ex-
divisão sexual do trabalho social na sociedade clusão política é tomada como um não-pro-
brasileira, combinado ao peso da dupla jorna- blema, ou pior, como algo que não deve ser
da, possui impacto direto na desmobilização alterado. Por isso, as conquistas que ocorre-
das mulheres comuns em relação à política. ram no plano da política institucional para as
Com o acúmulo dos trabalhos remunerado e mulheres estão presas a uma igualdade for-
não remunerado, elas não dispõem de tempo mal e demonstraram sua insuficiência. Quando
ou incentivo para se envolver em atividades olhamos para a opinião do outro lado, ou seja,
sindicais, partidárias ou comunitárias. Em para os representantes, não para os represen-
96% dos domicílios em que residem mulheres, tados, isso fica muito claro. É o que aponta a
uma mulher é a principal responsável pelos pesquisa “Parlamentares opinam sobre refor-
afazeres domésticos. Somente essa informa- ma política”, realizada pelo Instituto Nacio-
ção já nos auxilia a entender, ao menos em nal de Estudos Sócio-Econômicos (INESC) com
parte, porque as mulheres permanecem fora 150 parlamentares formadores de opinião no
da política partidária. Nas últimas cinco dé- Congresso. Ao contrário da população brasi-
cadas, segundo Almira Rodrigues (2003), as leira, somente uma minoria (14,7%) defende
mulheres construíram um projeto profissional ações afirmativas para mulheres, mais especi-
(portanto, individual) que se tornou valoriza- ficamente, a alternância de uma mulher e um
do e reconhecido pela sociedade. Isso contri- homem em lista fechada.
buiu para a consolidação de uma mentalidade Em linhas gerais, essas pesquisas indicam
que não exige mais que as mulheres deixem o que os parlamentares parecem não querer mais
trabalho remunerado e se dediquem somente mulheres no Congresso. Há vários projetos de
à casa, mas a entrada no campo da política é lei tramitando na Casa que pleiteiam mais parti-
mais recente. Ainda não conseguimos transpor cipação feminina na política, mas, pelos dados
a condição de eleitora à de eleita, ultrapassar disponibilizados, os parlamentares que atual-
a influência pessoal sobre representantes po- mente ocupam assentos na Casa não estão dis-
líticos, nem ocupar espaços próprios de dire- postos a promover a pluralidade de gênero.
ção política. O CFEMEA também realizou, em 2008, uma

3. Esses resultados, contudo, podem revelar menos a opinião real dos entrevistados do que um padrão de “respostas desejáveis”. Em

70 democracias liberais, a discriminação é considerada um valor socialmente negati vo, o que pode contribuir para que perguntas diretas
acerca de um preconceito sejam respondidas com base em valores aceitos amplamente, não na opinião do entrevistado.
DOSSIÊ MULHERES E PODER
pesquisa com parlamentares que confirma os re- vicções religiosas pessoais (67% contra 59%).
sultados da pesquisa do INESC e apresenta mais Talvez isso explique o baixo número de mulheres
dados sobre suas posições em relação a questões integrando bancadas fundamentalistas e a baixa
de gênero. Apesar de o levantamento ainda não ocorrência de projetos de lei contra a despenali-
ter sido publicado, alguns dos resultados foram zação do aborto, geralmente fundamentados em
disponibilizados no texto “O que os parlamen- argumentos religiosos e/ou morais, formulados
tares pensam sobre as mulheres na política?” por mulheres.
(RANGEL, 2009), apontando algumas impressões Falando especificamente de participação
sobre o que os parlamentares pensam no que política, pelos resultados da pesquisa, os par-
tange à participacao política das mulheres. lamentares parecem estar dispostos a perpetuar
Além de questões apresentadas sobre os a sub-representação parlamentar feminina. Em
projetos de reforma política que visam a au- relação às propostas de reforma política que
mentar a participação das mulheres, a pesqui- visam a aumentar a participação das mulheres,
sa traçou o perfil da composição do Congresso, eles tendem a concordar com medidas de caráter
ilustrado pela amostra analisada: dos 594 parla- simbólico, mas não com políticas efetivas e de
mentares (513 deputados e 81 senadores), 321 caráter obrigatório. A medida punitiva para os
responderam ao questionário (sendo a maior partidos que descumprirem as cotas não é bem
parte composta de deputados federais - 86% dos vista, da mesma forma que a ação afirmativa
321). Os homens foram 92% dos entrevistados e que almeja equalizar de vez a participação – a
os brancos, 60%. A maior parte deles é casada paridade na distribuição das listas. Vejamos os
(80%), sendo que havia menos legisladoras ca- dados abaixo:
sadas do que legisladores homens casados (56%
contra 82%). Isso reforça o que afirma Rodri- 1) 60% discordam da punição de partidos que
gues (2001): a combinação de atuação política não alcançarem o mínimo de 30% de candi-
e vida conjugal é mais comum entre homens do daturas femininas;
que entre mulheres. Essa situação não parece no 2) 60% concordam em destinar parte dos fun-
caminho de se alterar. dos partidários e parte do tempo de propa-
Sobre a religião, 90% declaram professar ganda para promover a participação políti-
uma fé e 25% concordam em legislar seguindo ca das mulheres;
convicções religiosas particulares, o que com- 3) 72% discordam em adotar lista fechada
promete o desenvolvimento de políticas públi- com alternância de sexo;
cas no Estado laico. Em um país em que religião 4) 73% concordam em regulamentar o finan-
e governo são oficialmente separados, não é ciamento público exclusivo das campanhas
adequado que legisladores federais pautem sua eleitorais.
conduta em pressupostos religiosos. Limitando
a formulação de legislação ao que permite a re- Essas opiniões, contudo, representam o po-
ligião, o deputado/senador corre o risco de não sicionamento de parlamentares homens e mu-
atender a demandas e necessidades da popula- lheres. É interessante, neste ponto, analisar as
ção. Na amostra consultada, a maior parte dos respostas de mulheres parlamentares e de ho-
legisladores que trabalhavam a partir de suas mens parlamentares em separado. Vejamos os
convicções religiosos era católica (70%) e evan- dados:
gélica (22%). 74% das mulheres entrevistadas concordam
Observamos diferenças relevantes de perfil com punições para o partido que não preencher
entre legisladoras mulheres e legisladores ho- as cotas de candidaturas femininas, contra 27%
mens nessa pesquisa. Percentualmente, as mu- dos homens. Em relação à adoção de lista fecha-
lheres se declaram mais de esquerda e centro- da com alternância de sexo, 63% das mulheres
esquerda que os homens (67% contra 50%); e 16% dos homens concordam com a medida.
declaram mais que os homens não possuir ne- Sobre o fundo partidário, que proporciona re-
nhuma religião (15% contra 9%); e discordam cursos financeiros para as campanhas eleitorais
mais que eles de legislar a partir de suas con- e acesso a instalações públicas para reuniões e

71
DOSSIÊ MULHERES E PODER
comícios, 85% das mulheres entrevistadas con- 57% dos homens. Por último, 93% das mulheres
cordam com a destinação de parte do fundo para e 71% dos homens são a favor do financiamento
instâncias de mulheres nos partidos, em oposi- público exclusivo das campanhas eleitorais.
ção aos 57% dos homens que o fazem. A desti- Para facilitar a visulização dos dados, segue
nação de parte do tempo de propaganda política esquema das propostas e a comparação do grau de
foi apoiada por 89% das mulheres consultadas e aceitação de acordo com o sexo do entrevistado:

Demanda Posição Geral Homens Mulheres


Punir os partidos que não alcançarem o Concorda 31 27 74
mínimo de 30% de candidaturas femininas.
Concorda em parte 6 5 11
(não incluído no Ponto de Vista Feminista sobre Discorda em parte 2 2
a Reforma Política)
Discorda 60 65 15
Recusa 0 0
Não sabe 1 1
Lista fechada de candidat@s com alternância Concorda 20 16 63
de sexos.
Concorda em parte 5 5 4
Discorda em parte 1 1
Discorda 72 75 33
Recusa 0 0
Não sabe 2 2
Pelo menos 30% do fundo partidário às Concorda 60 57 85
instâncias de mulheres dos partidos.
Concorda em parte 4 4 4
Discorda em parte 1 1
Discorda 34 36 7
Recusa 0 0
Não sabe 1 1 4
Pelo menos 30% do tempo de propaganda Concorda 60 57 89
partidária gratuita na mídia para a promoção
Concorda em parte 6 6 4
da participação política das mulheres.
Discorda em parte 0 0
Discorda 33 35 7
Recusa 0 0
Não sabe 1 1
Financiamento público exclusivo de campanhas Concorda 73 71 93
eleitorais.
Concorda em parte 2 2
Discorda em parte 1 1
Discorda 22 23 7
Recusa 0 0
Não sabe 2 2
Total 100 100 100

72
DOSSIÊ MULHERES E PODER
III. Conclusões sobre mulheres em facilmente burlado; 2) garantir a aplicação das
cargos de poder: necessidade cotas, estabelecendo uma punição didática aos
de mudança e sugestões partidos que não preenchem o percentual de
candidaturas femininas – atualmente, a única
Todas as eleições municipais e federais sanção para o não cumprimento da lei é o impe-
que ocorrem no país apontam que as mulheres dimento de substituir as vagas reservadas para
são sub-representadas no campo da política. A um sexo por candidatos de outro; 3) incluir o
democracia como um todo sofre de problemas critério raça/cor nas fichas de candidatura do
estruturais, e a exclusão de grupos sociais his- TSE, para gerar dados estatísticos sobre a par-
toricamente marginalizados (mulheres, negros, ticipação de negras, negros e indígenas nas
indígenas, pobres, homossexuais, deficientes) eleições, atualmente inexistentes; 4) incorporar
está longe de ser superada, perpetuando um po- outras ações afirmativas, reservando tempo de
der institucional que é masculino, branco, cris- propaganda eleitoral e parte do fundo partidário
tão e proprietário. para ações de incentivo às candidaturas femini-
A política de ação afirmativa para incre- nas.
mentar a participação feminina na política ins- A proposta de reforma eleitoral aprovada
titucional brasileira se restringe às eleições pro- no Plenário da Câmara dos Deputados (Proje-
porcionais (vereadores, deputados estaduais e to de Lei 5.498/09) em julho de 2009 incluiu,
federais) e deixa de fora a escolha de cargos ma- mesmo que de forma minimizante, parte dessas
joritários (prefeito, governador, senador e pre- sugestões: o projeto estabelece a destinação de
sidente). Por esse motivo, o esforço para vencer 5% do Fundo Partidário na formação política das
a marginalização das mulheres na política parti- mulheres, assim como de 10% do tempo de pro-
dária precisa ter como principal frente de ação a paganda partidária (fora de anos eleitorais) para
busca pela superação da resistência dos partidos promover e difundir a participação feminina. O
em apoiar as candidaturas femininas. Para que texto incluiu uma punição para o partido que
isso ocorra, é necessário dar um fim deliberado não cumprir a regra dos 5%: se não destinar
e planejado ao problema por meio de mudanças esse percentual, deverá acrescentar mais 2,5%
institucionais. dos recursos do fundo no ano.
Por sua vez, mudanças institucionais efica- Essas conquistas, alcançadas graças à atua-
zes só terão lugar com uma ampla e profunda ção firme da Bancada Feminina, representam um
transformação no sistema político do Brasil. Daí avanço para a participação política das mulhe-
a necessidade de uma reforma no sistema elei- res. Além do valor simbólico que a medida exer-
toral e no sistema político como um todo no ce, será possível destinar milhares de reais por
país. ano, mesmo nos menores partidos, a atividades
Nesse sentido, o ano de 2009 foi rico em que promovam a participação feminina, como
experiências de reflexões. A Comissão Triparti- eventos de formação política, congressos, en-
te para revisão da Lei de Cotas, composta por contros, atos. Também representou avanço a de-
representantes do Poder Executivo, do Poder terminação mais explícita, no texto, de que ao
Legislativo e da sociedade civil, conclamou a menos 30% dos candidatos lançados pelo parti-
Câmara dos Deputados a promover alterações do devem ser do sexo feminino. O texto inicial
para combater a subrepresentação feminina se referia a “reserva de candidaturas” e agora o
no Parlamento. As propostas apresentadas aos texto da Câmara passa a ser “preencherá”.
parlamentares, num momento em que um gru- Por outro lado, avaliou-se como um retro-
po de deputados era designado pelo presidente cesso a rejeição da proposta de incluir o crité-
da Câmara dos Deputados (Michel Temer) para rio raça/cor nas fichas de candidatura do TSE.
pensar a reforma política, foram no sentido de: Essa sugestão, motivada pela necessidade de
1) aprimorar o mecanismo de cotas, minando a gerar dados estatísticos sobre a participação
“cláusula de escape” presente na Lei 9.504/97, de negros/as e indígenas nas eleições (e, pos-
que autoriza os partidos a elevar o número de teriormente, de políticas para combater a sub-
candidatos, permitindo que o mecanismo seja representação destes) não foi aceita, apesar da

73
DOSSIÊ MULHERES E PODER
inexistência dessas estatísticas na política ins- lugar para a idéia de paridade, é preciso luta
titucional. O debate entre líderes também não para democratizar o poder, é necessário mudá-lo
assimilou a punição para os partidos que não inteira e internamente.
cumprirem as cotas, nem mesmo a diminuição As propostas que acabaram de ser listadas
das vagas de candidaturas de 150% para 100%, têm em comum a percepção de que nenhuma re-
mudança que auxiliaria o cumprimento das co- forma política que não contemple a coletividade
tas para mulheres. feminina conseguirá transformar as relações de
Além da Comissão Tripartite, dois outros poder profundamente. Esperando que as mudan-
espaços de articulação e reflexão merecem ças no sistema político, tão necessárias para que
destaque aqui: a Plataforma dos Movimentos o número de mulheres em cargos políticos suba,
Sociais pela Reforma do Sistema Político e a não tardem, comemoramos o aniversário da lei
Frente Parlamentar pela Reforma Política com de cotas e torcemos então para que, no futuro,
Participação Popular. Com algumas diferenças, seus efeitos sejam mais amplos e profundos.
esses dois grupos propõem a adoção de listas
fechadas com alternância de sexo (o que dimi- Referências bibliográficas
nui o caráter individualista e os altos custos da
campanha, a competição intra-partidária e a ARAÚJO, C. (2008). “Mujeres y elecciones legis-
debilitação do sistema partidário); o financia- lativas en Brasil: las cuotas y su (in) eficácia.
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a destinação de um percentual do fundo par- dicadores Sociais e do Sistema Eleitoral sobre as
tidário para as mulheres realizarem atividades Chances das Mulheres nas Eleições e suas Intera-
que fortaleçam suas candidaturas; a diminuição ções com as Cotas. Rio de Janeiro: DADOS – Re-
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evitar que legisladores troquem de partido para
FGV.
ganhos de benefícios e cargos).
Ambos os grupos buscam também transfor- ARCHENTI, N. & TULA, M.I. (2008). Mujeres y
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regulamentando formas de participação popular. y cuotas de género. Buenos Aires: Heliasta.
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75
DOSSIÊ MULHERES E PODER

Cotas eleitorais para


mulheres: uma revisão da
jurisprudência dos Tribunais
Eleitorais Brasileiros1
CEBRAP – Núcleo Direito e Democracia

Introdução ao Judiciário, em matéria trabalhista e eleitoral,


e uma discussão de direito comparado.
Este artigo visa apresentar os principais re- No âmbito do Poder Judiciário, foi elabo-
sultados da análise jurisprudencial dos Tribunais rada uma compilação e classificação de casos
eleitorais sobre reserva de cotas eleitorais para julgados em matéria de cotas políticas e discri-
mulheres e apresentar algumas recomendações minação no trabalho pelo Tribunal Superior do
pontuais de medidas que podem ajudar a efeti- Trabalho e pelos Tribunais Regionais Eleitorais e
var a legislação. Tribunal Superior Eleitoral. Este texto irá tratar
Tais resultados apontam para a seguinte apenas dos dados sobre cotas eleitorais.
conclusão: a justiça eleitoral não tem sido utili-
zada como espaço de discussão do tema das co- 1. Metodologia de pesquisa e
tas eleitorais pelas mulheres. Predominam ações principais resultados
propostas por homens que se sentem prejudi-
cados pela legislação de cotas, conforme será Para o levantamento da jurisprudência so-
exposto abaixo. bre cotas eleitorais foi utilizado o sistema de
Os dados apresentados adiante foram ob- busca integrada disponível no site do Tribunal
tidos na pesquisa “Mulheres e Políticas de Re- Superior de Justiça (TSE)3. Este sistema reali-
conhecimento no Brasil” 2, cuja finalidade foi za a busca nos bancos de dados do TSE e dos
estudar as relações entre a política de reconhe- Tribunais Regionais Eleitorais de todos os Esta-
cimento das mulheres e o Direito. A pesquisa dos. O termo-chave utilizado na busca boleana
se desenvolveu em três frentes: uma análise do para acessar os acórdãos foi “Lei 9504/97 e art.
trabalho legislativo (leis e projetos de lei sobre 10,§3º”.4
o tema da mulher); uma análise de casos levados Dos 22 acórdãos encontrados nos seis Tri-

1. Este texto é a reelaboração de parte do relatório fi nal da pesquisa “Mulheres e Políti cas de Reconhecimento no Brasil”, fi nanciada pela Secretaria
de Assuntos Legislati vos do Ministério da Justi ça e pelo Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD), no âmbito do Projeto
“Pensando o Direito”. Esta parte do relatório foi redigida originalmente por Ana Carolina Alfi nito Vieira.
2. Integraram a equipe de pesquisa: Marcos Nobre e José Rodrigo Rodriguez (coordenadores), Ana Carolina Alfi nito Vieira, Carolina Cutrupi Ferreira,
Evorah Lusci Costa Cardoso, Fabiola Fanti , Felipe Gonçalves, Geraldo Miniuci, Luciana Silva Reis, Mariana Giorgetti
Valente, Marina Zanatt a
Ganzarolli, Marta Rodriguez de Assis Machado e Nathalie Bressiani.
3. Endereço do site: htt p://www.tse.gov.br/internet/jurisprudencia/index.htm. A busca foi realizada no dia 04 de outubro de 2008.
4. O dispositi vo da Lei 9.504/97 que se refere às cotas eleitorais tem a seguinte redação:
Art. 10. Cada parti do poderá registrar candidatos para a Câmara dos Deputados, Câmara Legislati va, Assembléias Legislati vas e Câmaras Municipais,
até cento e cinqüenta por cento do número de lugares a preencher.
§ lº No caso de coligação para as eleições proporcionais, independentemente do número de parti dos que a integrem, poderão ser registrados
candidatos até o dobro do número de lugares a preencher.
§ 2º Nas unidades da Federação em que o número de lugares a preencher para a Câmara dos Deputados não exceder de vinte, cada parti do
poderá registrar candidatos a Deputado Federal e a Deputado Estadual ou Distrital até o dobro das respecti vas vagas; havendo coligação, estes
números poderão ser acrescidos de até mais cinqüenta por cento.
§ 3º Do número de vagas resultante das regras previstas neste arti go, cada parti do ou coligação deverá reservar o mínimo de trinta por cento
e o máximo de setenta por cento para candidaturas de cada sexo.
§ 4º Em todos os cálculos, será sempre desprezada a fração, se inferior a meio, e igualada a um, se igual ou superior.

76 § 5º No caso de as convenções para a escolha de candidatos não indicarem o número máximo de candidatos previsto no caput e nos §§ 1º e
2º deste arti go, os órgãos de direção dos parti dos respecti vos poderão preencher as vagas remanescentes até sessenta dias antes do pleito.
DOSSIÊ MULHERES E PODER
bunais Eleitorais, apenas 13 discutiam tópicos 2. Caracterização dos pedidos levados
relacionados à reserva de cotas políticas. As de- à justiça eleitoral
mais decisões referiam-se a outros artigos da Lei
9.504/97, ou tratavam de respostas dadas pelos A maior parte dos recursos analisados foi
Tribunais a consultas pleiteadas por coligações proposta contra decisão judicial que havia inde-
que nada tinham a ver com a reserva de vagas ferido o registro de candidato do sexo masculino
de candidatura. Portanto, importa ressaltar que em decorrência da violação do art. 10, §3º da
o número total de acórdãos referentes à reserva Lei 9.504/97 (9 casos sobre 14)7. Nestes casos,
de vagas prevista na lei 9.405/97 efetivamente as coligações, partidos e candidatos excluídos
encontrado e analisado é 14, distribuídos entre da lista de candidatura argumentavam que as
os Tribunais da seguinte forma: vagas não preenchidas por mulheres poderiam
ser ocupadas por homens ou que a proporção
TSE: três decisões; mínima de 30%/70% poderia ser desrespeitada
TER-SP: quatro decisões; em caso de fracionamento da quantidade per-
TER-SC: duas decisões; mitida de candidaturas. O pedido, portanto, era
TER-MG: duas decisões; pelo deferimento de candidaturas masculinas
TER-BA: três decisões. em quantidade maior do que o limite legal per-
mitido.
Grande parte dos recursos analisados eram Foram encontrados três recursos que bus-
recursos eleitorais e não houve nenhum caso cavam excluir da lista dos partidos candidatos
em que a recorrente fosse uma mulher. Em seis do sexo masculino registrados em vagas que
recursos, o pólo ativo contava com a presença deveriam ser reservadas para mulheres.8 São ca-
de um interessado do sexo masculino, que, via sos nos quais o partido não preencheu 30% das
de regra, buscava garantir no Poder Judiciário vagas com candidatas do sexo feminino, e usou
o seu alegado direito de se registrar nas vagas estes lugares para candidatos homens. Dois des-
originalmente reservadas para mulheres mas não tes recursos foram indeferidos com base nos se-
preenchidas, ou que buscava uma interpretação guintes argumentos:
da Lei 9.504/97 que fosse benéfica para os ho- “A douta sentença não merece reparos. Os
mens5. impugnantes não indicaram nenhum fato
Houve também processos nos quais coli- que pudesse revelar posição discriminató-
gações ou partidos eram recorrentes e um caso ria da Coligação recorrida. Ao contrário, o
no qual o Ministério Público Estadual de Santa fato de não haver preenchido a totalidade
Catarina entrou com um recurso pleiteando uma das vagas, a que tinha direito, já revela a
interpretação da Lei n.º 9.504/97 que seria mais sua carência de quadros. Ademais, ainda
benéfica para as mulheres6. que procedentes fossem as razões dos im-
Numa análise inicial, percebe-se claramen- pugnantes, a determinação judicial haveria
te que o Judiciário não tem sido um espaço de de ser para excluir um candidato do sexo
tematização de direitos eleitorais por parte das masculino e não para indeferir o registro
mulheres. Pelo contrário, trata-se de um foro de todos, como requerido. (...) Não ha-
mais explorado pelos políticos do sexo mascu- vendo qualquer ato da coligação recorrida
lino que se sentem prejudicados pela criação de revelador de discriminação, inexiste ofen-
cotas eleitorais. sa ao quanto estatuído no art. 10°, § 3°,
da Lei n° 9504/97, principalmente quando

5. Ver as seguintes decisões: TSE, Resp. n.º 16.632, Relator Costa Porto, julgado em 9/5/2000; TREMG, Recurso n.° 2282, Relator Welington Militão,
julgado em 23/08/2004; TREMG, Recurso n.º 1.808, Relator Oscar Dias Corrêa Júnior, julgado em 26/08/2004; TRESP, Recurso Cível n.º 20.822,
Relatora Suzana Camargo, julgado em 20/08/2004; TRESP, Recurso n.º 161.381, Relator Nuevo Campos, julgado em 8/7/2008; TREBA, Recurso n.º
1.411, Relator Orlando Isaac Kalil Filho, julgado em 10/09/2000.
6. TRESC, Rec. 16.368/00, Relator Ricardo Teixeira do Valle Pereira
7. Ver as seguintes decisões: TSE, Resp. n.º 16.632, Relator Costa Porto, julgado em 9/5/2000; TREMG, Recurso n.° 2282, Relator Welington Militão,
julgado em 23/08/2004; TREMG, Recurso n.º 1808, Relator Oscar Dias Corrêa Júnior, julgado em 26/08/2004; TRESP, Recurso Cível n.º 20.822,
Relatora Suzana Camargo, julgado em 20/08/2004; TRESC, Recurso n.º 19.222, Relator Oswaldo José Pereira Horn, julgado em 31/08/2004; TSE,
Resp. n.º 29.190, Relator Arnaldo Versiani, julgado em 9/4/2008; TRESP, Recurso n.º 161.381, Relator Nuevo Campos, julgado em 8/7/2008;
Relator Orlando Isaac Kalil Filho, julgado em 10/09/2000; TRESP, Recurso 161.539, Relator Flávio Yarshell, julgado em 8/12/2008; TRESP, Recurso
nº 161.539, Relator Nuevo Campos, julgado em 8/12/2008.
8. TRESC, Recurso n.º 16.368, Relator Ricardo Teixeira do Valle Pereira, julgado em 22/08/00; TREBA, Recurso Eleitoral n.º1411, julgado em
10/09/2000, Relator Orlando Isaac Kalil Filho; e TREBA, Recurso Eleitoral n.º 1470, julgado em 11/09/2000, Relator Orlando Isaac Kalil Filho. 77
DOSSIÊ MULHERES E PODER
se percebe que, pela carência de quadros, postos com base no art. 10, § 3º e 4º da Lei
os partidos coligados não lograram preen- 9.504/97, redigidos da seguinte forma:
cher todas as vagas a que fariam jus” (TRE- “Art. 10. Cada partido poderá registrar
BA, Recurso Eleitoral n.º1411, julgado em candidatos para a Câmara dos Deputados,
10/09/2000, Relator Orlando Isaac Kalil Câmara Legislativa, Assembléias Legislati-
Filho e TREBA, Recurso Eleitoral n.º 1470, vas e Câmaras Municipais, até cento e cin-
julgado em 11/09/2000, Relator Orlando qüenta por cento do número de lugares a
Isaac Kalil Filho). preencher.
Portanto, o tribunal decidiu nestes casos § 3º Do número de vagas resultante das
que seria necessário provar a existência de dis- regras previstas neste artigo, cada partido
criminação para que a reserva de vagas vincu- ou coligação deverá reservar o mínimo de
lasse o partido. trinta por cento e o máximo de setenta por
Houve ainda um pedido do Ministério Pú- cento para candidaturas de cada sexo.
blico do Estado de Santa Catariana no qual se § 4º Em todos os cálculos, será sempre
reivindica uma interpretação da Lei 9.504/97 desprezada a fração, se inferior a meio, e
que pode ter conseqüências importantes para igualada a um, se igual ou superior”.
políticas eleitorais de igualdade de gênero. O conflito ocorre no momento de decidir
Defende-se que a reserva legal de 30% das va- qual norma deve prevalecer no caso de conflito
gas de candidatura deve ser feita sobre o total entre o §3º e o §4º.
de candidatos efetivamente registrados, e não O TSE pacificou seu entendimento sobre o
sobre o total de candidatos possíveis. Esta in- assunto por meio das Resoluções n.º 21.608/04
terpretação poderia fazer com que os partidos e 22.717/08, nas quais se dispôs que, na re-
fossem incentivados a buscar candidatas do serva de vagas, qualquer fração resultante será
sexo feminino, sob risco de perder muitas vagas igualada a um no cálculo do percentual mínimo
nas eleições. Embora o pedido tenha sido nega- estabelecido para cada um dos sexos e despre-
do, houve uma decisão proferida pelo TRESP em zada no cálculo das vagas restantes para o outro
que a tese sustentada pelo Ministério Público de sexo. O entendimento de todos os tribunais vai
Santa Catarina é acolhida pelo Poder Judiciário neste mesmo sentido.
(TRESP, Recurso Eleitoral n.º 161.495, julgado
em 8/12/2008; Relator Flávio Yarshell). (b) Possibilidade de homens ocuparem
vagas remanescentes reservadas
2.1. Principais temas abordados para mulheres
nos acórdãos Este foi o conflito mais recorrente nas de-
Os assuntos abordados nas decisões foram cisões, presente em 10 dos 14 acórdãos analisa-
divididos em quatro categorias, referentes aos dos. Trata-se de discussão sobre a possibilidade
seguintes temas discutidos nos acórdãos: legal de candidatos de um sexo ocuparem vagas
(a) O arredondamento da fração da reserva reservadas para o outro sexo no caso em que
legal; estas vagas não venham a ser preenchidas.
(b) A possibilidade de homens ocuparem as Nestas hipóteses, o TSE de São Paulo deci-
vagas reservadas para as mulheres ou diu reiteradas vezes que os homens não podem
vice-versa; ocupar mais que 70% das candidaturas, nem que
(c) A base de cálculo que deve ser utilizada as vagas estejam disponíveis, uma vez que isso
para determinar a quantidade de cotas atentaria contra o princípio da proporcionalida-
reservadas; de, objetivado pela Lei 9.504/97 e pelas regu-
(d) Constitucionalidade da reserva de cotas lamentações do TSE (TSESP, Recurso Cível n.º
políticas. 149420, julgado em 30/08/04, Relatora Suzana
Camargo).
(a) Arredondamento da fração Já o TRE da Bahia decidiu que as vagas não
da reserva legal ocupadas poderão ser preenchidas por candida-
Muitos dos recursos analisados foram inter- tos do sexo oposto, mesmo que isto fira a reser-

78
DOSSIÊ MULHERES E PODER
va de vagas de candidatura. O Tribunal afirmou dos, obrigatoriamente, ainda que de ofício,
que o preenchimento de vagas reservadas para para que se garanta a possibilidade de pre-
mulheres por homens não fere a legislação uma enchimento das vagas destinadas ao sexo
vez que a falta de mulheres candidatas é decor- minoritário (TRESC Recurso n.º 16.368, jul-
rente da ausência de interesse por parte destas, gado em 22/08/2000, Relator Ricardo Tei-
e não da discriminação. xeira do Valle Pereira).
A questão foi resolvida de forma distinta
(c) Base de cálculo que deve ser pelo Juiz Flávio Yarshell do TRE de São Paulo,
utilizada para determinar a quantidade em decisão que enfatizou ser “com base no nú-
de cotas reservadas para cada sexo mero de candidatos efetivamente lançados pela
Dois acórdãos analisados trouxeram uma coligação que deve ser feito o cálculo da re-
disputa sobre a interpretação da Lei 9.504/97 serva legal, prevista no par. 3º do art. 10º da
referente a qual número deve ser tomado como Lei 9.504 e da Resolução TSE 22.717. Trata-se
base para o cálculo das cotas políticas. De um de uma interpretação inovadora da lei, uma vez
lado, é possível afirmar que se deve tomar como que ela restringe a quantidade de candidatos
base o total de candidaturas permitidas em tese, que podem ser lançados por partido político ou
ou seja, posto que existem 10 vagas disponíveis coligação nos casos em que a cota mínima re-
em determinada casa legislativa, o partido tem servada para cada gênero não for preenchida.
direito a registrar um total de 15 candidatos, e Assim, por exemplo, se houver 10 vagas a
é com base neste número que se deve calcular serem preenchidas em uma Assembléia Legisla-
a reserva de 30% das candidaturas para ambos tiva, um partido poderia registrar, no máximo,
os sexos. Este foi o entendimento que o TER de 15 candidatos, sendo que 5 teriam que ser mu-
Santa Catarina adotou no julgamento do Recurso lheres (30% de 15 é 4,5). Se o partido decidir
n.º 16.368 de 2000. De acordo com a sentença: registrar apenas candidatos homens, ele estará
Se a lei quisesse a representação mí- registrando apenas 10 candidatos, fato que, de
nima de cada sexo fosse calculada sobre o acordo com a interpretação do Juiz Flávio Yar-
número de candidatos indicado, tenho que shell, deve levar a um novo cálculo de reserva de
teria redação diferente, isto é, não reme- cotas. Tal reserva deverá ser feita com base no
teria a proporção, como o fez claramente, número de candidatos efetivamente lançados,
ao número de vagas obtidas através das re- levando a uma nova limitação da quantidade de
gras do artigo 10 do cânon já citado [ ] candidatos do sexo masculino que poderão ser
A vontade do legislador não é essa e está registrados, que passa a ser 7, contra 3 candi-
bem demonstrada, repiso, quando ele usa a daturas femininas, no mínimo. Esta interpreta-
locução verbal deverá reservar. Se a lei diz ção pode ser um incentivo para que os partidos
que o partido ou coligação deverá reservar se tornem proativos na busca de candidatas do
parcela do total de vagas, ela quer dizer sexo feminino, sob pena de perder suas vagas de
que está garantido um número mínimo de candidatura.
vagas para cada sexo. Não quer dizer que,
obrigatoriamente, deverão 30% de candida- (d) Constitucionalidade da reserva
tos de um dos sexos, seja do total de vagas de cotas políticas
ou do número de candidatos indicados na A constitucionalidade da reserva de vagas
convenção. Se, por exemplo, na convenção em partidos políticos foi tema de duas deci-
existirem seis mulheres que pretendem ser sões analisadas: o Recurso Especial Eleitoral
candidatas e, no entanto, essa convenção n.º 16.632, julgado pelo TSE em 09/05/00 e
indicar apenas quatro delas e dezesseis ho- o Recurso n.º 19.222, julgado pelo TRESC em
mens, as duas que foram preteridas terão o 31/03/2004. No primeiro acórdão, reitera-se a
direito de registrar a sua candidatura ante a posição adotada pelo TSE em julgamentos ante-
reserva legal obrigatória, podendo postular riores, segundo a qual a reserva de percentuais
esse direito diretamente ao Poder Judiciá- para candidaturas não é incompatível com o art.
rio. Dois dos homens terão que ser excluí- 5º da CF9. De acordo com a decisão, o princípio

9. Neste senti do, ver o acórdão nº 13.759C, de relatoria do Min. Nilson Naves. 79
DOSSIÊ MULHERES E PODER
da igualdade (art. 5º, CF) comporta a possibili- E o voto segue citando o livro do Min. Joa-
dade de se reservar cotas em partidos políticos quim Barbosa:
para candidatas do sexo feminino. Portanto, as A Constituição de 1988 (art. 5º, I) não
cotas eleitorais não seriam inconstitucionais. apenas aboliu essa discriminação chance-
A segunda decisão, proferida pelo TRESC, lada pelas leis, mas também, através dos
discute um incidente de inconstitucionalidade diversos dispositivos antidiscriminatórios
suscitado pelo juiz de 1ª instância, que enten- já mencionados, permitiu que se buscassem
deu que a reserva de vagas para mulheres do art. mecanismos aptos a promover a igualda-
10, Lei 9.504/97 violaria o princípio da igualda- de entre homens e mulheres. Assim, com
de. A inconstitucionalidade da norma foi afasta- vistas a minimizar essa flagrante desigual-
da pela decisão do Tribunal sob a argumentação dade existente em detrimento das mulhe-
de que o princípio da igualdade consiste em res, nasceu, entre nós, a modalidade de
conferir igual tratamento aos iguais, e desigual ação afirmativa hoje corporificada nas Leis
tratamento aos desiguais. 9.100/95 e 9.504/97, que estabelecem co-
Neste sentido, uma lei poderia estabelecer tas mínimas para as eleições.
critérios de diferenciação entre grupos de pes- As mencionadas leis representam, em
soas, deste que tais critérios fossem justificados primeiro lugar, o reconhecimento pelo
ou justificáveis de forma a preencher os requisi- Estado de um fato inegável: a existência
tos da razoabilidade, da racionalidade e da pro- de discriminação contra as brasileiras,
porcionalidade. Desta forma, a justificação do cujo resultado mais visível é a exasperan-
estabelecimento da diferença seria uma condi- te sub-representação feminina em um dos
ção sine qua non para a constitucionalidade da setores-chave da vida nacional - o processo
diferenciação, a fim de evitar a arbitrariedade. político. Com efeito, o legislador ordiná-
De acordo com a decisão, apoiada sobre argu- rio, consciente de que em toda a história
mentação desenvolvida pelo Ministro Joaquim política do país foi sempre desprezível a
Barbosa em seu livro intitulado O Debate Consti- participação feminina, resolveu remediar a
tucional sobre as Ações Afirmativas: situação através de um corretivo que nada
“Esta justificação deve ter um conteú- mais é do que uma das muitas técnicas
do, baseado na razoabilidade, ou seja, num através das quais, em direito comparado,
fundamento razoável para a diferenciação; são concebidas e implementadas as ações
na racionalidade, no sentido de que a moti- afirmativas: o mecanismo das cotas.
vação deve ser objetiva, racional e suficien- Neste sentido, o voto do juiz relator define
te; e na proporcionalidade, isto é, que a os dispositivos da lei 9.504/97 que consagram a
diferenciação seja um reajuste de situações reserva de cotas como mecanismos de superação
desiguais. Aliado a isto, a legislação infra- da discriminação, concorrendo, portanto, para
constitucional deve respeitar três critérios uma realização maior do princípio constitucio-
concomitantes para que atenda ao princípio nal da igualdade. Declara-se, desta forma, sua
da igualdade material: a diferenciação deve constitucionalidade.
(a) decorrer de um comando-dever consti-
tucional, no sentido de que deve obediên- 3. Análise e recomendações da
cia a uma norma pragmática que determina equipe de pesquisa.
a redução das desigualdades sociais; (b)
ser específica, estabelecendo exatamente Não houve sequer um caso em que a re-
aquelas situações ou indivíduos que serão corrente fosse uma mulher buscando disputar a
“beneficiados” com a diferenciação; e (c) interpretação da Lei 9.504/97 ou buscando con-
ser eficiente, ou seja, é necessária a exis- cretizar seus direitos à participação política.
tência de um nexo causal entre a prioridade Diante desta evidência, talvez fosse produ-
legal concedida e a igualdade socioeconô- tivo criar dever legal, acompanhado de sanção,
mica pretendida (...)”; de os partidos cumprirem as cotas com o fim

80
DOSSIÊ MULHERES E PODER
de incentivar a proposição de ações de mulhe- casos em que mulheres reclamem o cumprimen-
res eventualmente prejudicadas pelo processo to da lei.
de escolha interno de candidatos. Tal legisla- Disputa-se também no Judiciário se a
ção poderia obrigar os partidos a desenvolverem base de cálculo usada deveria ser o número
programas de recrutamento e formação de mu- de candidatos efetivamente lançados pelo
lheres candidatas. partido ou coligação, e não o número de re-
Uma medida como esta tiraria os partidos gistros permitido em tese. Esta interpretação
da posição passiva em que se encontram, atri- poderá incentivar os partidos a preencherem
buindo-lhes o dever de promover ativamente a a maior quantidade possível das vagas desti-
participação política feminina. Soluções como nadas a ambos os sexos, uma vez que, se não
esta foram utilizadas, por exemplo, para fazer houver mulheres concorrendo ao pleito, trinta
com que as universidades norte-americanas por cento das vagas originalmente preenchi-
criassem políticas ativas de recrutamento de das por homens terá que se converter em co-
afro-descendentes, latinos, nativos dos Estados tas reservadas, de forma a causar um prejuízo
Unidos e outros grupos não favorecidos pelo sis- considerável ao partido. Para solucionar este
tema universitário. problema, vale a pena criar lei específica que
De qualquer forma, é importante perceber ponha fim na disputa.
que o Judiciário, instância inerte que só funcio- No que se refere ao arredondamento das
na se acionado, não tem sido colocado diante de frações decorrentes do cálculo da reserva legal,
pedidos referentes a este tema cuja autoria seja como já mencionado, o assunto já foi regula-
de mulheres. Quando se manifestou, decidiu mentado pelo Tribunal Superior Eleitoral em duas
pela constitucionalidade da legislação que criou resoluções. Os acórdãos analisados referem-se a
a cota, sem ter tido a oportunidade de examinar casos anteriores a esta regulamentação.

81
DOSSIÊ MULHERES E PODER

Sub-representação feminina
na política é constatada
também nos Secretariados
dos Estados e das Capitais
Alessandra Soares Muniz Gomes1

A sub-representação das mulheres na polí- Especial de Políticas para as Mulheres.


tica é uma realidade mundial. Segundo os dados O capítulo 5 do II Plano Nacional de Políti-
mais atualizados2 da União Interparlamentar cas para as Mulheres “Participação das mulheres
(IPU), que mede a presença feminina nos Par- nos espaços de poder e decisão” tem como obje-
lamentos Mundiais, apenas 18,6% de mulheres tivo geral “promover e fortalecer a participação
ocupam cadeiras no Poder Legislativo nos 187 igualitária, plural e multirracial das mulheres
países analisados. A única nação a alcançar nos espaços de poder e decisão”. A importância
mais de 50% de representação feminina é Ruan- desta maior participação também se deve à situ-
da, na África, com 56,3% de parlamentares na ação desigual e discriminatória vivenciada pelas
Câmara dos Deputados. Os países nórdicos com- mulheres, sendo essencial a elaboração de leis e
põem a região que mais se aproxima da paridade a implementação de políticas públicas que pro-
de gênero, com 42% de participação feminina movam a igualdade e a equidade de gênero.
nos Parlamentos. Nas Américas, este percentual A necessidade de empoderamento das mu-
cai para 22,4%. O Brasil ocupa uma das pio- lheres brasileiras também é uma das recomen-
res posições na região, com 9% de deputadas e dações do Comitê para a Eliminação de todas as
12,3% de senadoras, ficando na 109ª colocação Formas de Discriminação contra a Mulher (Ce-
no ranking mundial da IPU. daw): “O Comitê recomenda que o Estado-parte
As mulheres são mais de 50% da popula- realize campanhas de conscientização, tanto en-
ção brasileira, mais da metade dos concluintes tre homens como mulheres, sobre a importância
do Ensino Superior, quase 45% da população da participação plena e igualitária da mulher na
economicamente ativa do país e 51,73% do vida política e pública e na tomada de decisão,
eleitorado - podendo decidir eleições majo- como um componente necessário de uma socie-
ritárias. A situação de sub-representação nos dade democrática, e criar condições favoráveis
espaços de poder e decisão, principalmente na que propiciem e estimulem essa participação”.
política, revela uma democracia não represen- Concretizando tais objetivos da Cedaw e do
tativa de todos os segmentos sociais e que não II Plano Nacional de Políticas para as Mulheres,
reflete as conquistas das mulheres nas últimas foi lançada, em setembro de 2008, a Campanha
décadas. Nacional “Mais Mulheres no Poder: Eu Assumo
Diante dessa realidade, espaços institucio- este Compromisso!”. Idealizada pelo Conselho
nais e movimentos de mulheres no Brasil vêm Nacional dos Direitos da Mulher, pelo Fórum
reivindicando uma maior participação feminina Nacional de Instâncias de Mulheres de Partidos
nos esferas de poder político, o que ficou eviden- Políticos e pela Secretaria Especial de Políticas
ciado nas Conferências Municipais e Estaduais para as Mulheres, a campanha tem como princi-
de Mulheres que culminaram na elaboração do II pal instrumento de ação o site www.maismulhe-
Plano Nacional de Políticas para as Mulheres, em resnopoderbrasil.com.br. O site tem informações
2007, com base nos resultados da II Conferência sobre mulheres no poder em cinco áreas: Execu-
Nacional de Políticas para as Mulheres, promo- tivo, Legislativo, Judiciário, Empresa e Socieda-
vida pelo Governo Federal através da Secretaria de. Reportagens, dados estatísticos, links, víde-
1. Editora e jornalista responsável pelo site www.maismulheresnopoderbrasil.com.br

82 2 A últi ma atualização do ranking da União Interparlamentar foi em 31/08/2009. htt p://www.ipu.org/wmn-e/world.htm e htt p://www.ipu.org/
wmn-e/classif.htm
DOSSIÊ MULHERES E PODER
os e pesquisas sobre todas as áreas citadas têm çar a paridade, Belém (PA) e Boa Vista (RR).
possibilitado conhecimento e reflexões sobre a O desempenho do Norte e Nordeste é parecido
realidade, peculiaridades e dificuldades que as com o que tiveram nas estatísticas de candida-
mulheres encontram para o ingresso nos espa- tas4 e eleitas5 nas Eleições 2008. A Região Sul
ços de poder e decisão em todos estes setores, apresenta o menor percentual, mais baixo que a
especialmente no Executivo e Legislativo. média nacional.
Tais empecilhos foram evidenciados por
nosso trabalho já na cobertura das Eleições Mulheres em Secretarias Municipais
2008. As candidaturas femininas para as prefei- nas Capitais Brasileiras – Regiões
turas representaram 10,41% e para as Câmaras
Municipais, 22,07%, esta última abaixo dos 30% Região % de Mulheres
estipulados pela Lei de Cotas. Do total de elei- Norte 31,81%
tas, foram 9,09% de prefeitas e 12,53% de vere- Nordeste 23,13%
adoras. Pesam para as mulheres fatores como a Centro Oeste 13,33%
falta de investimento dos partidos na formação Sudeste 12,98%
política de mulheres; menos recursos financei- Sul 7,4%
ros, essenciais para campanhas, que são caras; brasil 19,85%
menor visibilidade nos meios de comunicação,
um dos reflexos do preconceito de gênero; e Mulheres em Secretarias Municipais
menor rede de contatos, já que culturalmente nas Capitais Brasileiras
coube ao homem a vida pública e à mulher a
Capitais % de Mulheres
vida privada.
Belém 50%
Boa Vista 50%
Sub-representação nos Secretariados
Fortaleza 35,71%
Municipais nas Capitais
João Pessoa 33,33%
Manaus 33,33%
Após as Eleições 2008, o site www.maismu-
Porto Velho 31,25%
lheresnopoderbrasil.com.br e a Secretaria Espe-
Aracaju 30%
cial de Políticas para as Mulheres realizaram um
Teresina 27,27%
levantamento sobre a formação do secretariado
Macapá 27,27%
dos novos executivos nas capitais brasileiras3. O
Rio Branco 25%
estudo mostra que as mulheres representam ape-
São Luis 23,8%
nas 19,85% do primeiro escalão dos recém em-
Vitória 20%
possados Executivos Municipais nas 26 capitais
Campo Grande 20%
analisadas. São 79 secretárias (19,85%) e 319
Recife 18,75%
secretários (80,15%) nas 398 secretarias apura-
Rio de Janeiro 18,18%
das. O percentual representa mais que o dobro
Maceió 17,64%
de prefeitas eleitas e mais que o percentual de
Porto Alegre 16,16%
vereadoras, mas fica aquém do peso e impor-
Natal 12,5%
tância das mulheres na sociedade e no eleitora-
Goiânia 11,76%
do, mostrando que elas encontram dificuldades
Cuiabá 11,11%
também para serem indicadas para cargos de
Belo Horizonte 11,11%
confiança em administrações majoritariamente
Salvador 9,09%
governadas por homens, apesar de sua crescente
Palmas 8,33%
escolaridade e qualificação profissional.
Curitiba 5,55%
Mesmo com esta sub-representação, as re-
São Paulo 3,84%
giões Norte e Nordeste surpreendem com índices
Florianópolis 0
maiores que a média nacional, sendo localizadas
brasil 19,85%
na região Norte as duas únicas capitais a alcan-
3. Levantamento realizado entre os dias 15/01 a 02/02 de 2009 junto às 26 capitais. Foram consideradas as estruturas de governo que ti nham
especifi camente a denominação de “secretaria”. As informações foram obti das nas respecti vas assessorias de comunicação dos governos das
administrações municipais.
4. Percentual de candidatas a prefeitas por regiões brasileiras nas eleições 2008: Nordeste – 13,31%; Norte – 11,76%; Centro Oeste – 10,18%; Sudeste
– 8,53% e Sul – 7,69%. Candidatas a vereadoras por regiões: Norte – 22,58%; Sudeste – 22,45%; Nordeste – 21,87%; Centro Oeste – 22,1%; Sul –
21,08%.
5. Percentual de prefeitas eleitas por regiões brasileiras nas eleições 2008: Nordeste – 12,85%; Norte – 11,39%; Centro Oeste – 8%; Sudeste – 7,14%;
Sul – 5,72%. O Nordeste elegeu 230 das 505 novas prefeitas. Percentual de vereadoras eleitas por regiões brasileiras nas eleições 2008: Nordeste:
14,82%; Norte – 13,6%; Centro Oeste – 12,44%; Sul – 11,46% e Sudeste – 10,61%. 83
DOSSIÊ MULHERES E PODER
Outro fator que despertou a atenção no es- Sul mantém o último lugar da lista, como nas
tudo foi a concentração de mulheres secretárias capitais. Nenhum estado alcança a paridade, mas
em áreas relacionadas a Políticas Sociais, se- Mato Grosso do Sul, no Centro Oeste, é o que
cretarias de Assistência Social, Educação, Saú- mais se aproxima, com 45,45%.
de, Meio Ambiente, entre outras, representando
59,49%. O dado mostra uma forte tendência de Mulheres em Secretarias
ainda delegar às mulheres pastas relacionadas Estaduais Brasileiras - Regiões
ao cuidado e à extensão do doméstico. No Cen-
tro Oeste, esse percentual alcança 83,33%. Mais Região % de Mulheres
Norte 21,32%
da metade das capitais brasileiras, 15, tem uma
Centro Oeste e Distrito Federal 17,65%
mulher à frente da Secretaria de Educação, e
Sudeste 16,87%
outras 14 capitais têm mulheres administrando
Nordeste 13,48%
Secretarias de Assistência Social. As secretarias
Sul 12,7%
ligadas à área Econômica-Gestão aparecem bem brasil 16,48%
atrás, com 25,31% de presença feminina, e a
soma das demais áreas totaliza 15,19%. Mulheres em Secretarias
Municipais nos Estados Brasileiros
Áreas Administradas por Mulheres
em Secretarias Municipais nas Estados e Distrito Federal % de Mulheres
Capitais Brasileiras Mato Grosso do Sul 45,45%
Pará 27,27%
59,49% Goiás 26,66%
60,00% Roraima 26,66%
Rio de Janeiro 26,31%
40,00% 25,31% Alagoas 26,31%
15,19% Amazonas 23,53%
20,00%
Paraná 22,72%
0,00% Piauí 22,22%
1 Amapá 21,43%
Minas Gerais 21,05
Políticas Sociais Economia-Gestão Outros
Ceará 20%
Rondônia 18,18%
Paraíba 17,64%
Sub-representação nos
Tocantins 17,39%
Secretariados Estaduais
Acre 15%
Espírito Santo 15%
Após a constatação da sub-representação fe-
Sergipe 15%
minina na formação dos governos municipais nas Maranhão 12%
capitais, outro levantamento realizado pelo site Rio Grande do Sul 10,52%
www.maismulheresnopoderbrasil.com.br e pela Mato Grosso 9,52%
Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres São Paulo 8%
analisou a distribuição entre mulheres e homens Rio Grande do Norte 5,55%
nos primeiros escalões dos governos estaduais6. Bahia 5%
Os dados mostram que nos 26 estados e no Dis- Distrito Federal 4,76%
trito Federal é ainda menor a presença femini- Santa Catarina 4,54%
na nas secretarias de governo: apenas 16,48%, Pernambuco 3,84%
percentual inferior aos 19,85% nas capitais. São brasil 16,48%
528 secretarias, 87 mulheres (16,48%) e 441
homens (83,52%). A Região Norte novamente é A concentração de secretárias em pastas
destaque, ocupando a primeira colocação quanto relacionadas a Políticas Sociais é maior em rela-
ao percentual de mulheres secretárias, e a Região ção às capitais, representa 73,56%, novamente

6. Levantamento realizado entre os dias 04/05 e 04/07 de 2009 junto aos 26 estados e ao Distrito Federal. Foram consideradas as estruturas de

84 governo que ti nham especifi camente a denominação de “secretaria”. As informações foram obti das nos respecti vos cerimoniais dos governos das
administrações estaduais.
DOSSIÊ MULHERES E PODER
demonstrando uma clara tendência de delegar “lugar” feminino na sociedade. O fato reforça
às mulheres pastas relacionadas ao cuidado e à estereótipos de gênero, já que relacionam a mu-
extensão do doméstico. No Centro Oeste, esse lher com o papel de mãe e cuidadora, desvalo-
percentual chega novamente a 83,33%. Secre- riza seu trabalho frente a questões que não são
tárias estaduais administram apenas 21,84% de menos importantes na área de Políticas Sociais
pastas relacionadas à Administração-Economia e e dificulta sua inserção em outras pastas, como
4,6% das demais áreas. a Econômica, Administrativa e Tecnológica, con-
sideradas “mais sérias”.
Áreas Administradas por Mulheres Também merece ser destacado que, nas
em Secretarias Estaduais Brasileiras grandes cidades e estados com melhores recur-
sos econômicos e sociais, principalmente no Su-
73,56% deste e no Sul, as mulheres encontram maior di-
80,00%
ficuldade em alcançar postos de decisão, apesar
60,00%
da maior escolaridade. Nessas regiões, há uma
40,00% 21,84%
grande concorrência entre mulheres e homens
20,00% 4,60%
para a ocupação de espaços, ainda mais em car-
0,00%
1 gos de maior status, como a secretaria de um
governo em capital ou estadual, acarretando em
Políticas Sociais Administração e Economia Outros
uma clara desvantagem para as mulheres. Tam-
bém a disputa no mercado de trabalho faz com
que as mulheres tenham que estudar mais para
Quanto maior a hierarquia no poder,
se qualificarem, restando pouco tempo para o
menor é a participação feminina
engajamento político.
Mulheres são 9,09% das prefeitas e 14,81% Mas é interessante ressaltar que, espe-
das governadoras, 19,85% das secretárias mu- cialmente nas regiões Norte e no Nordeste,
nicipais nas capitais e 16,48% das secretárias as mulheres estão protagonizando mudanças,
estaduais, índices não condizentes com a im- organizando-se através de movimentos sociais
portância em termos populacionais, eleitorais, e de mulheres, lutando por maior participa-
sociais e econômicos das mulheres no Brasil. Os ção nas decisões da vida de suas comunidades
estudos descritos acima mostram que à medida e alcançando lugar de destaque, como reve-
que aumenta a hierarquia no poder, menor é a laram os dados analisados, mostrando que a
presença feminina, demonstrando a dificuldade Região Norte concentra os maiores percentu-
encontrada pelas mulheres para alcançar os es- ais de secretárias nos governos municipais e
paços de poder e decisão, seja participando de estaduais.
eleições ou competindo com os homens pela in-
dicação a postos de confiança. Isto demonstra
um preconceito de gênero que alicerça a socie- Referência Bibliográfica
dade brasileira, ainda patriarcal e machista, com
toda uma desconfiança da capacidade e compe- II Plano Nacional de Políticas para as Mulheres.
tência do trabalho das mulheres. Brasília: Secretaria Especial de Políticas para as
Os levantamentos também revelam como Mulheres, 2008.
ainda há a tendência de reservar às mulheres
www.maismulheresnopoderbrasil.com.br
os postos mais tradicionais (a área social), re-
afirmando uma visão bastante conservadora do www.ipu.org

85
DOSSIÊ MULHERES E PODER

A participação das mulheres


nas Centrais Sindicais
Lilian Arruda Marques
Patrícia Costa

O mercado de trabalho brasileiro começou mas o embate de projetos diferentes não permi-
a se estruturar no final do século XIX, quando tiu a unidade em uma única central. Assim, uma
negros “livres” viram-se obrigados a buscar seu parte dos sindicalistas permaneceu na Conclat
sustento e trabalhadores imigrantes chegaram que, em 1986, transformou-se na Confederação
ao país à procura de melhores condições de Geral dos Trabalhadores – CGT. De um lado, hou-
vida. ve a consolidação da CGT e, de outro, surgiu a
O primeiro Congresso Operário foi realizado CGTB, Central Geral dos Trabalhadores do Brasil,
em 1906, no Rio de Janeiro, e a CGT (Central Ge- criada em 1988, após perder na justiça o direito
ral dos Trabalhadores), que pode ser considerada ao uso da sigla CGT. Outro grupo se organizou
a primeira central sindical do Brasil, fundada em em uma Comissão pró-CUT (Central Única dos
1929. Após períodos de curtas democracias e de Trabalhadores), fundada efetivamente em 1983.
longas ditaduras, que impediram a atuação da Muitas entidades sindicais, na época, não
CGT, e de várias tentativas de retomar as ações se alinharam a nenhuma dessas centrais e vie-
da entidade, foi criado, em 1962, o Comando ram a fundar outras entidades nos anos 1990.
Geral dos Trabalhadores, desarticulado pelo Gol- Em 1991, foi criada a Força Sindical. Em 1995, a
pe de 1964. Central Autônoma dos Trabalhadores e, em 1997,
Depois disso e por mais de uma década, a Social Democracia Sindical. Mais recentemen-
o movimento sindical, sob intensa repressão, te, em 2005, foi criada a Coordenação Nacional
recolheu-se a algumas ações isoladas, mas mar- de Lutas (Conlutas) e a Nova Central Sindical
cantes, como as greves de Contagem, em Minas dos Trabalhadores (NCST). Em 2007, nasceu a
Gerais, e da Cobrasma, em Osasco. No final dos União Geral dos Trabalhadores (UGT), fruto da
anos 1970, com a explosão de uma série de pa- união de três centrais sindicais: CGT, SDS e CAT.
ralisações que tiveram início no ABC paulista, a No mesmo ano, foi criada a Central dos Traba-
ação sindical foi rearticulada. lhadores e Trabalhadoras do Brasil (CTB).
Em 1981, foi realizada na Praia Grande, em
São Paulo, a 1° Conclat (Conferência Nacional da A luta das mulheres pela
Classe Trabalhadora), na qual estavam presentes representação sindical
5.036 delegados de diversas facções políticas,
com o objetivo de criar uma central sindical uni- A presença das mulheres nos sindicatos
tária. Esta foi a primeira reunião intersindical é antiga, mas, com o crescimento da força de
realizada no Brasil após 1964 e contou com a trabalho feminina, essa participação aumentou.
presença de entidades sindicais já reconhecidas, Além disso, houve expansão dos movimentos
bem como de associações de servidores públicos feministas no mundo e no Brasil. Muitas discus-
e de associações pré-sindicais. Até esse período, sões e reivindicações caminharam juntas, prin-
embora a participação das mulheres no mercado cipalmente no processo de redemocratização
de trabalho e nas mobilizações já fosse bastante da sociedade brasileira, quando o movimento
significativa, eram poucas as que ocupavam car- sindical também retomou as lutas e as centrais
gos de direção. sindicais começaram a se organizar no país.
A Conferência girou em torno da unificação, Os dados sobre o mercado de trabalho evi-

86
DOSSIÊ MULHERES E PODER
denciam maior dificuldade para a inserção das sociedade, permitindo que outras políticas de
mulheres. Além disso, quando ocupadas, elas cotas fossem pensadas para outros segmentos
encontram-se em situações de maior vulnerabi- também discriminados.
lidade: postos de trabalho mais precários, com No Brasil, quase todas as centrais sindicais
baixa formalização e menores rendimentos. estabeleceram cotas para mulheres nas diversas
Muitas mulheres, porém, inseriram-se no instâncias sindicais (sindicatos, federações e
mercado de trabalho para evitar a queda do pa- confederações).
drão de vida de suas famílias, seja por perda do
poder aquisitivo dos salários em geral, ausência As cotas hoje nas Centrais Sindicais
de cônjuge ou desemprego dele. Ao mesmo tem-
po, o aumento da presença feminina no mercado A CUT, CGT e Força Sindical (as primeiras
de trabalho também ocorreu devido à busca por centrais a se organizarem no período mais re-
emancipação e realização profissional e pesso- cente) enfrentaram, desde o início, o debate so-
al, da luta por maior autonomia e por direitos bre a participação das mulheres em suas estru-
iguais. turas. Em 1986, foi criada, durante o 2º Concut,
Além da busca pelos mesmos direitos no no Rio de Janeiro, a Comissão Nacional sobre
mercado de trabalho, as mulheres travaram ba- a Questão da Mulher Trabalhadora. Mais tarde,
talha pela representação política nos partidos e esta Comissão viria a constituir uma secretaria,
nas entidades sindicais. Esse processo não foi cujas representantes passaram a fazer parte da
fácil e esteve sujeito a contradições, tensões e direção da entidade. A cota de gênero na CUT foi
conquistas, exigindo alto grau de mobilização, aprovada em 1993. Na Força Sindical, a Secreta-
que acabou por ganhar corpo nos diferentes ní- ria da Mulher surgiu na fundação da central, em
veis da estrutura sindical. Uma das formas en- 1991, e na CGT, em abril de 1986.
contradas para o aumento da participação femi- Essas informações mostram ser cada vez
nina foi o estabelecimento de cotas. mais evidentes os compromissos do movimento
A luta pelas cotas no interior do movi- sindical com a luta contra a discriminação e pela
mento sindical foi estabelecida a partir da base promoção da igualdade de oportunidades e de
sindical e foi sendo adotada formalmente pe- tratamento entre homens e mulheres. Atualmen-
las centrais sindicas e demais estruturas. Essa te, as mulheres estão presentes em todas as di-
discussão promoveu uma reflexão e um debate reções sindicais das centrais, mesmo quando não
que envolveram diferentes espaços públicos da há determinação estatutária (ver tabelas 3 e 4).

Tabela 1
Direção das Centrais sindicais
Total MULHERES % DE MULHERES
715 151 21,18
Fonte: DIEESE

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DOSSIÊ MULHERES E PODER
Tabela 2
DIREÇÃO DAs CENTRAIs sINDICAIs
TOTAL MULHEREs % DE MULHEREs COMENTÁRIOs
NCST 80 10 12,5
UGT 247 58 23,48 Mulheres empregadas em secretarias
como: da mulher; assuntos culturais;
diversidade humana; assuntos
comunitários; políticas sociais; do
servidor público; povos indígenas. Há
mulheres na secretaria executiva.
FORÇA SINDICAL 234 53 22,64 Há mulheres na vice-presidência e
uma 2ª. Secretária. As secretarias
coordenadas por mulheres são:
Cidadania e Direitos Humanos; da
Mulher; Políticas da Juventude;
da Criança e do Adolescente; de
Servidores Públicos; de Saúde;
da Economia Informal. Há, ainda,
mulheres na Direção Nacional
Executiva
CUT 28 7 25 As mulheres estão empregadas nas
secretarias de comunicação; sobre a
mulher trabalhadora; de organização.
Há duas diretoras executivas, uma
componente do conselho fiscal e a
Vice Presidente.
CTB 72 19 26,4 As mulheres estão empregadas em
áreas relacionadas a políticas sociais,
mulheres, juventude, educação,
racismo, meio ambiente. Há, ainda,
mulheres na direção plena e no
conselho fiscal.
CGTB 54 4 7,4
Fonte: DIEESE
 CTB- Central dos Trabalhadores do Brasil
 CUT- Central Única dos Trabalhadores
 CGTB- Central Geral dos Trabalhadores dói Brasil
 NCST- Nova Central Sindical de Trabalhadores

 UGT- União Geral dos Trabalhadores

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