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Humanidade por excesso e as linhas de fuga que se abrem para o dias seguidos. Tragédia anunciada.

a anunciada. Não foi a morte de um outro


gueto Antonio Rafael Barbosa rapaz, filho de imigrantes, quinze anos antes, que fez eclodir um
levante que, se não teve a magnitude desse, ao menos era idêntico
em seus principais elementos-a perda de uma vida, a revolta
~O INTOLERÁVEL dos jovens, as bombas incendiárias, as estratégias de enfretamen-
O que é intolerável? Diga o que é intolerável para você. Uma res- to, a ação policial originária e subseqüente?
posta (dentre tantas possíveis) foi enunciada em I9JI, na contra- Deixando a França, atravessando o Atlântico e toda a
capa de um livreto que levava justamente o título de lntoleráble: América do Norte. Os acontecimentos em Los Angeles em 1992
"são intoleráveis os tribunais, os tiras, os hospitais, os asilos, a es- trazem a intifada para dentro da cidade, onde se levanta o gueto
cola, o serviço militar, a imprensa, a televisão, o Estado" (Eribon, d e South Central. O motivo ? O espancamento brutal de um mo-
1990: 208). Quem o publicava era um grupo recém-criado por ini- torista negro em uma batida policial e a posterior absolvição dos
ciativa de Michel Foucault. Atendia pela denominação Groupe quatro policiais brancos envolvidos. O antídoto é o próprio vene-
d' lnformation sur les Prisons e, como o nome já diz, dentre todas as no (como na França de 1990 e 2005): mais polícia. E se ela não dá
instituições inaceitáveis, a prisão era o alvo privilegiado do exame conta, então a Guarda Nacional e os marines estão prontos para
e da denúncia. coibir a desordem pública. O que foi feito na época. O saldo final:
Os jovens na França, no ano de 2005, também foram às 45 mortos; 2.400 feridos; ro.ooo presos.
ruas diante do intolerável. A morte acidental de dois adolescen- Dois acontecimentos que guardam uma semelhança entre
tes, ao fugir de uma batida policial, propiciou o início de uma si (para além da constatação de que aconteceram em áreas pobres
cadeia de eventos que fez arder as banlieues (periferias, bolsões de de grandes cidades e que são apenas os dois exemplos mais co-
emigrantes e seus filhos, onde grassa o desemprego) por muitos nhecidos dentre uma infinidade de outros levantes da m esma na-
tureza): em ambos um limiar foi atingido. Um ponto sem retorno. distanciado que se satisfaz com o exotismo). Não tanto em razão
Uma linha que uma vez ultrapassada não permite mais retornar dos contextos nacionais ou regionais onde estão inseridas, mas em
ao estado de coisas anterior. Nesse caso, isso aconteceu porque os razão do percurso histórico que as constituiu como formações só-
limites estavam sendo testados. Tentava-se esticar cada vez mais cio-espaciais distintas em tais contextos (Wacquant, 2001: 9). Co-
a corda, transformar aquilo que é inaceitável em algo possível (e mo se articulam com as cidades das quais fazem parte? Como
com o tempo, corriqueiro). Surge, então, a linha de corte, a linha seus habitantes conduzem suas vidas dentro das "comunidades"
que marca a ruptura definitiva. E daí por diante já se é ou se faz e fora delas, ao "descer", como se diz nos morros do Rio, para o
outra coisa. O limiar do intolerável reinventa a resistência. "asfalto"? Como traçam seu caminho entre a integração e a segre-
São muitos os nomes: favela, morro, comunidade, perife- gação experimentadas, entre o pertencimento e a inclusão?
ria, cortiço, mocambo, palafita, vila, jardim. Poblacione (Chile), Sobre elas, sobre as recentes revoltas (o caso do Rio de Ja-
viLla miséria (Argentina), cantegril (Uruguai), rancho (Venezuela), neiro nós vamos examinar adiante) um velho direito permanece
banlieue (França), guetos e barrios (América do Norte), inner city na impossibilidade de realização de um outro. O "direito de alo-
(Inglaterra) (cf. Wacquant, 2001). Por toda parte, seus habitantes jamento", criado e sustentado sobre a promessa de um "direito à
experimentam, em um grau maior ou menor, alguma modalida- cidade" que nunca se realizou (Virilio, 1996: 21). Se as primeiras
de de estigma ou preconceito. São "áreas de risco", lugares a se- gerações de imigrantes (voltemos ao caso francês) ainda podiam se
rem evitados, territórios do crime, da violência, da droga. Senão contentar com esse estado de coisas, com uma participação mar-
isso, lugares onde se concentram a pobreza e o abandono. Assim ginal ou periférica na vida da cidade, provando, talvez, em alguns
são representados. Mas importa perceber (sob o mesmo nome ou momentos, das benesses materiais e espirituais oferecidas, seus fi-
com nomes diversos) as diferenças e similitudes existentes entre lhos já não se satisfazem com isso. Querem mais, demandam uma
essas comunidades. (O que é impossível se optamos por um olhar participação no consumo de bens (inclusive os ditos "culturais" ou, lO
propriamente ditos, "imateriais") e na igualdade de direitos (de
fornecidas por Foucault-a lista dos intoleráveis, reproduzida
segunda e terceira gerações) e oportunidades no mesmo momento
antes, é a própria rede disciplinar). Diz Deleuze:
em que tudo se paralisa e retroage (o precário "direito de aloja-
Foucault situou as sociedades disciplinares nos séculos xvm
mento" já não é facultado às novas gerações de imigrantes-o
e xrx; atingem seu apogeu no início do século xx. Elas pro-
que permite classificar essas populações como "ilegais"). Um ve-
cedem à organização dos grandes meios de confinamento.
lho pertencimento social está por ser abandonado. Se um dia tais
O indivíduo não cessa de passar de um espaço fechado a
localidades serviram de verdadeiros celeiros de mão-de-obra de
outro; cada um com suas leis: primeiro a família, depois a
baixa qualificação prontos para alimentar a indústria e o setor de
escola( ... ), depois a caserna( ... ), depois a fábrica, de vez
serviços, hoje já não servem mais. Experimenta-se, para o tempo
em quando o hospital, eventualmente a prisão, que é o
que se inaugura, a erosão do estado de bem-estar social, com a
meio de confinamento por excelência.( ... ) Mas o que Fou-
conseqüente dissolução da rede de proteção social; a desindustria-
cault também sabia era a brevidade desse modelo( ... ). En-
lização; o desassalariamento; e a afirmação crescente do mercado
contramo-nos numa crise generalizada de todos os meios
informal. Experimenta-se, em resumo, a obsolescência humana. E
de confinamento, prisão, hospital, fábrica, escola, família.
a pergunta que martela na cabeça dos gestores das políticas públi-
( ... )Os ministros competentes não param de enunciar re-
cas é: o que fazer com essa humanidade por excesso que simples-
formas supostamente necessárias. ( ... ) mas todos sabem
mente não tem mais utilidade econômica e política identificável?
que essas instituições estão condenadas, num prazo mais
/t)p DISCIPLINA E CONTROLE ou menos longo. Trata-se de gerir sua agonia e ocupar as
Num pequeno artigo (embora extremamente denso) escrito em pessoas, até a instalação das novas forças que se anunciam.
1990, Gilles Deleuze aponta para a efetuação gradativa de um no- São as sociedades de controle que estão substituindo as socie-
vo regime de poder. (Ele irá utilizar as ferramentas conceituais dades disciplinares (1992: 219-20; grifos do autor).
Uma das principais diferenças entre as sociedades disciplinares e negócios. Ou retirando dali aqueles que representam um peri-
as sociedades de controle é que a rede disciplinar comporta suas go ainda maior: os que atacam os transeuntes, os que atravessam
brechas, seus espaços e durações intersticiais. É o espaço da rua, o as ruas como lobos ao traçar suas linhas de fuga. E no horizonte
espaço-tempo entre os meios de confinamento: quando é possível cinza, limite intransponível da rede disciplinar, a prisão. Está ali
ao operário se desligar da fábrica, ao estudante abandonar seus para abrigar aqueles para quem os meios de confinamento setor-
cadernos, ao soldado retirar a farda. naram espaços interditados (passar por ali só reafirma essa inter-
Isso fica claro quando examinamos o principal aparelho dição). Uma vez que a polícia e a prisão capturam entre, deixando
de desterritorializaçãol reterritorialização do regime disciplinar: que cada formação de meio lide com seus desviantes à sua manei-
a polícia. Tal instituição teve como missão inaugural zelar pelo ra: castigos, sanções administrativas ou trabalhistas, expulsão dos
arejamento desses espaços intermediários. (Daí por que Foucault seus quadros etc.
irá dizer que a polícia está em toda parte, que ela inclui tudo). Mas o que estamos deixando para trás? Em primeiro lugar,
De que maneira o fez? Acelerando a circulação para dentro e os pólos conceituais-massa e indivíduo-em torno dos quais se
para fora dos meios de confinamento, evitando o surgimento de constitui a sociedade disciplinar. Já não temos indivíduos, mas di-
aglomerações que representavam, por si mesmas, focos potenciais viduais (Deleuze, 1992: 222): subjetividades fracionadas que ope-
de instabilidade. Tal é a palavra de ordem por excelência sob o ram e se desenvolvem por modulação e não mais por moldagem
regime disciplinar: "circulando!". Ainda deveria esvaziar as ruas (quando da travessia do indivíduo pelos meios de confinamento).
daqueles que representavam a ameaça de transformá-las, mes- Dividuais-cada um torna-se uma fábrica em si mesmo, com
mo que de modo caricatura!, em novo meio disciplinar: os que seus patrões, seus operários trabalhando, suas máquinas ran-
fizeram dela a sua casa; a constituíram com outros "arruaceiros" gendo nos porões e relógios espalhados pelo corpo. Cada um é
numa grande família; os que nela "botaram a banca" dos seus um pequeno tribunal, com seus juízes, policiais e réus, com seus 12
pequenos criminosos nos quais a lei ainda não conseguiu pôr as cidade de se endividar e consumir é, hoje, o passaporte para a
mãos. Cada um é o seu próprio terapeuta, enquanto se proliferam cidadania. Passamos a existir para o consumo e o consumidor, ele
os livros de auto-ajuda. mesmo, é um produto a ser vendido e a ser comprado (é a merca-
Já não é mais necessário que nos ordenem o que fazer, que doria que os spammers negociam na web ).
nos indiquem uma posição na fila ou na linha de produção. Saber Por outro lado desaparece, sob o novo regime, o segundo
onde intervir, com quem se associar, como criar suas próprias li- pólo disciplinar: a massa cuja estratificação (molarização) implica-
nhas de produção é a própria garantia de permanecer empregado. va as di vagens de classe. Uma "multidão plural de subjetividades"
Não são mais indispensáveis os diplomas e as cartas de recomen- (Hardt e Negri, 2oor: 79; grifo meu) toma o lugar daquela e os
dação que assinalam o término de nossos períodos de formação e bancos de dados, carregados com os perfis de consumo, tornam-
a conseqüente capacitação para o cumprimento de uma tarefa. A se os novos instrumentos de estratificação da multidão. (A noção
formação se torna interminável e fica a cargo do próprio aprendiz de classe passa a ser utilizada de maneira banal como sinônimo
e de sua capacidade de acessar o conhecimento (o acesso substitui de capacidade de consumo; completamente dissociada do mode-
a propriedade como símbolo e suporte da riqueza). N ão é mais ne- lo marxista de análise das relações de produção). Tendo mesmo
cessário um número de matrícula, que indica sua posição na massa, o controle policial a se adequar ao novo estado de coisas: além
ou uma assinatura, por onde corre a linha da trajetória genética da proliferação dos circuitos de vigilância eletrônica, temos uma
de um indivíduo. É -se convidado à existência não mais como um infinidade de etiquetas miniaturizadas que se colam nos produ-
"produtor disciplinado" mas como um "consumidor controlado" tos para que não sejam furtados. Temos coleiras eletrônicas para
(Sibilia, 2002: 30-8). Nossas identidades tornam-se targets, cifras humanos sendo testadas (os celulares,pagers e laptops já cumprem,
compostas por diversas senhas, códigos e cartões magnéticos, por de certa maneira, esse papel, ao permitirem que as empresas
nossas potencialidades e d esejos de consumo. A dívida, a capa- achem seu pessoal em qualquer lugar. Mas estes ainda podem ser
desligados-ou você já não pode mais desligar o seu?). Temos de Vias Especiais no Rio de Janeiro). A ênfase na circulação e na
rastreadores de celulares que permitem a captura de traficantes velocidade ganha uma outra potência, uma outra dimensão nas
ou a escuta de conversas entre os presos. Temos a expectativa de sociedades de controle.
que futuramente confluam os bancos de dados criminal e merca- Humanidade por acesso a quem é dada a possibilidade de
dológico. Captura pelo consumo. existir contra aquela que se vê excluída por excesso, paradoxal-
A polícia ainda mantém seu Batalhão de Choque (um cor- mente num mundo em que não existe mais um fora. Pois essa é
po policial talhado para as demandas do regime disciplinar-co- uma das principais características das sociedades de controle: a
mo o nome já diz, está destinado a acelerar a trombada, o choque inexistência de processos de exclusão e inclusão em espaços ex-
direto com qualquer manifestação de rua. Uma máquina huma- tensivos. Já não é possível estar fora, à margem do que quer que
na que tem como alvo a massa). Mas hoje investe cada vez mais seja. Estamos todos na "terceira margem do rio" (Rosa, 1981), de-
na criação e reprodução de grupamentos especiais, seus "homens rivando, sem sair do lugar. (E daí a ambigüidade que marca os
de preto" (o BOPE da PM do Rio de Janeiro, a coRE da Polícia Civil, discursos sobre as comunidades pobres - "inclusão pela exclusão"
o soE no Sistema Penitenciário). Tais grupos apontam para uma etc.). Para além da crise dos meios de confinamento, é o espaço-
mutação significativa na composição dos organismos policiais. tempo intersticial que desaparece e, com ele, seus personagens
São corpos desterritorializados, fundamentalmente criados para (os velhos malandros capturados como moscas em torno das m á-
funcionar como bando, para identificar, caçar e aniquilar outros quinas de vídeo-pôquer). O espaço-tempo se comprime em cada
bandos (de criminosos). Juntam-se a eles os grupos especializados um: já não há divisa entre o tempo de trabalho, de descanso ou
em limpar não mais a rua (da massa ou dos "miasmas" políticos diversão; já não d eixamos de ser alguma coisa para nos tornamos
produzidos pelas aglomerações) mas as auto-estradas, combaten- um outro; já não há lugares onde não podemos ser encontrados;
do os bandos de traficantes e suas blitz (GETAM e Grupamento já não há resultados que não sejam resultados de um combate.
Perde-se ou ganha-se o tempo todo. Losers and winners-o mo- por onde corre o limiar do intolerável, no Rio de Janeiro, pode
delo norte-americano de avaliação das performances toma conta nos fornecer a resposta.
dos corações e mentes. Existe um momento em que os moradores dos morros e
O que fazer, então (retomo a pergunta que deixei no ar an- favelas tomam as ruas, queimam ônibus, levantam bloqueios nas
tes de enveredar nessa digressão sobre disciplina e controle), com vias públicas. Na quase totalidade dos casos, o grito contra o in-
a massa composta pelos que não têm mais utilidade identificável tolerável brota em razão de uma violência policial injustificada:
para os senhores do capital, com a multidão de excluídos em um as balas "perdidas" que vitimam moradores "inocentes" (não en-
mundo sem espaço de exclusão, sem um fora? A prisão-o velho volvidos com o tráfico). Em alguns casos ainda (mas não todos),
ponto de escape da rede disciplinar? Vê-se bem a encruzilhada: tais manifestações podem resultar do extermínio brutal e covar-
o estado de São Paulo necessita construir uma cadeia para 700 de de jovens envolvidos com o tráfico. Quando já estão rendidos
homens, por mês, para dar conta da demanda atual. É possível? e são levados para o "pico" (parte alta do morro onde se dão as
Mais do que isso: é desejável? É justo? Que belo lugar sobre a execuções) ou fuzilados ali mesmo onde se renderam. As mortes
Terra seria esse . .. Deleuze já enunciava em seu artigo de 1990 cotidianas (em número altíssimo), resultantes das guerras do trá-
(:224): "pobres demais para a dívida, numerosos demais para o fico pela disputa de um território ou em confronto direto com a
confinamento". polícia, não geram manifestações. O grito fica preso na garganta.
/f:yo A MORTE ANDA DE MOTOC ICLETA Por onde passa a linha de separação entre o que deve mor-
"Conter populações hoje é uma tarefa radicalmente diversa em rer e o que deve viver? - essa é a indagação (biopolítica) que sur-
comparação com o passado". A frase da antropóloga Manoela ge, trazida pelo intolerável. E viver em que condições? -agora
Cunha (2002: 48) nos remete ao centro do problema: como conter que nos vemos cercados de preocupações difusas sobre a "quali-
essa população relegada aos guetos e favelas? Olhar para a linha dade de vida", da "vida que é possível" ou da "sobrevida". Aos
jovens das favelas restam algumas alternativas entre a velocidade de Estado. E ainda ganha o direito à cidadania política, pelo vo-
e a paralisia. A primeira delas é acreditar no passado, no arran- to naquele que te alimenta. TV, um pouco de álcool e maconha,
jo disciplinar que fez de tais comunidades pobres depósitos de quando for possível. Como na prisão. As favelas transformadas
mão-de-obra de baixa qualificação. Uma má escolha. Ou, ainda em prisões sem grades. O problema numérico do confinamento
permanecendo no objetivo de adentrar o mercado formal, acre- solucionado, a rede de controle criando sua exterioridade para
ditar no futuro, investindo todas as suas energias em sua própria dentro, criando suas dobras. (Isso pode ser feito se não houver re-
qualificação profissional. Mas não é, definitivamente, no qua- sistência, como aconteceu recentemente na França. Daí o imenso
dro atual, um caminho aberto para muitos. A segunda maneira perigo contido em tais levantes). A quarta alternativa é montar
é-lá onde se mistura velocidade e paralisia-estar na correria. no corpo da velocidade. Embarcar em uma linha de fuga que po-
O mercado informal é a inserção mais atrativa que se abre para a de ser dita suicidária ou de destruição. Entrar para o movimento
maioria. Se bem-sucedido, pode pleitear sua cidadania pelo con- (como é conhecido o comércio de drogas nas favelas do Rio). Vida
sumo. Porque nas ruas não vai encontrá-la, ainda caminha por lá louca, vida bandida, vida com prazo de validade determinado. O
o velho paquiderme da polícia de choque (agora substituído pelas máximo do consumo possível no mínimo de tempo. Inauguran-
guardas municipais) que irá se encarregar de lhe atazanar a vi- do a segunda modalidade de captura do Estado [e do mercado]
da. Resta uma terceira alternativa, quedar-se molemente sobre o disponível aos moradores das favelas: o extermínio.
batente da porta e esperar pela assistência. Essa virá na forma de Espera-se que o caô venha a se instalar nas ruas no Rio de
uma "bolsa" -auxílio de qualquer coisa (alimentação, escola etc.), Janeiro? Um levante simultâneo dos grupos armados que do-
garantindo o direito à sobrevida. Não saia daí, não se "envolva" minam o tráfico nas centenas de comunidades espalhadas pela
com o crime, porque quando formos aí tudo irá continuar "bem" cidade? Improvável, neste momento. A própria polícia e o apa-
para você. Vida em suspenso, paralisia garantida pela máquina relho carcerário se encarregam da manutenção das divisões entre
as facções. Não será desse modo que os jovens ganharão as ruas. ANTONIO RAFAEL BARBOSA é doutor em antropologia pelo M useu Nacional/uFRJ e bolsista
H oje os jovens envolvidos no crime as atravessam nos bondes que do PRoooc, Universidade F ederal Fluminense (uFF}.

pa rtem para os assaltos ou para a tomada de territórios. Vetores


da insegu rança, referendando a demanda por m ais segurança e Re fe rências bibliográficas

(principal palavra de ordem nas sociedades d e controle), abraça- CUNHA, Manuel a I vone. Entre o bairro e a prisão: tráficos e trajetos. Lisboa: Fim d e sécu lo,
dos com a morte na garupa de uma motocicleta. 2002.

Por fim, uma outra linha de fuga possível que se abre para os DELEUZE, G illes. Conversações. Rio de Janeiro: Edito ra 34, 1992.
jovens das comunidades. Mas essa, ao contrário do tráfico, é uma ERIBON, Didier. Michel Foucault (1926- 1984) . São Paulo: Compa nhia d as Letras, 1990.
linha da vida, uma vez que implica na recriação dos códigos de HARDT, Michael e NEGRI, Anton io. Império. Rio d e Ja ne iro: Record, 2001.
comportamento; na reinvenção dos modelos e relações de produ- ROSA, João Guimarães. Primeiras estórias. Rio de Janeiro: José O lym pio Editora, 1981.
ção; no redirecionamento da conexão e do acesso através de canais SIBILIA, Paula. O homem pós-<Jrgânico: corpo, subjetividade e tecnologias digitais . Rio d e
alternativos; na redefinição do consumo (trazendo para dentro Jan eiro: Rel ume-Duma rá, 2002.
dessa dimensão, tão central para o tempo que se inaugura e tão na- vrRruo, Paul. Velocidade e política. São Paulo: Estação Libe rdade, 1996.
turalizada, o desconforto, o questionamento sobre a necessidade, a WACQUANT, Lo.ic. Os condenados da cidade: estudo sobre marginalidade avançada. Rio d e
utilidade, o desejo e a satisfação). O Hip -hop é o modelo, o ponto de Jane iro: Revani FASE, 2001.
abertura, um exemplo atual para o que virá. Talvez, não o caô, mas
o caos criativo já esteja ganhando as ruas. No ritmo das batidas
dos DJS, na voz dos Mcs, dissolvendo a pa ralisia e o convite para o
extermínio que é endereçado aos jovens das comunidades pobres.
Estreitando os limites do intolerável, inaugurando o futuro.

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