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A iconografia sobre
a produção caribenha
de açúcar nos
séculos XVII e XVIII
152 REVISTA USP, São Paulo, n.55, p. 152-184, setembro/novembro 2002
sou despercebido aos historiadores da Este artigo faz parte de um projeto
mais amplo que contou com o
apoio da Fapesp. Agradeço os
economia açucareira escravista das comentários e sugestões de
Ulpiano T. Bezerra de Meneses e
Américas. Em realidade, há um bom Antonio Penalves Rocha.
A
tempo as fontes iconográficas sobre a
s primeiras representações produção de açúcar do Novo Mundo
visuais de que se tem co- vêm sendo exploradas pela historio-
nhecimento sobre a produ- grafia. Os pesquisadores, entretanto,
ção de açúcar do Novo têm se limitado apenas ao que esses
Mundo datam da segun- registros visuais oferecem para o estu-
da metade do século do da história das técnicas. Dois exem-
XVI. Entre o final dos Quinhentos e o plos servirão aqui para demonstrar os
início dos Seiscentos, foram compos- procedimentos e os limites desse tipo
tas poucas representações visuais so- de abordagem.
bre a indústria açucareira estabelecida Em primeiro lugar, tome-se a ino-
nas Américas; a partir de meados do vadora monografia de Alice Piffer
século XVII, contudo, avolumou-se a Canabrava, datada de 1946. Trata-se
quantidade de imagens sobre o assun- de um estudo pioneiro e ainda atual
to. Afora a iconografia produzida pe- sobre as técnicas produtivas adotadas
los holandeses, durante e após o domí- nos engenhos de açúcar caribenhos
nio sobre a costa nordeste brasileira, o entre os séculos XVII e XVIII. O
século XVII viu aparecer um número corpus documental da pesquisa de
apreciável de relatos de viagem e tra- Canabrava foi constituído principal-
tados de história natural que traziam mente pelos relatos de viagem, trata-
representações visuais sobre as unida- dos de história natural, livros e memó-
des açucareiras fundadas por ingleses rias agronômicas referentes à indús-
e franceses no Mar do Caribe, ao que tria açucareira antilhana coeva. Algu-
se deve somar a série de imagens pro- mas das imagens contidas nesses rela-
RAFAEL DE BIVAR
duzidas sobre o tema ao longo do sé- tos textuais foram examinadas pela MARQUESE é doutor em
História pela FFLCH-USP,
culo seguinte e inseridas em dicioná- autora, em especial as que traziam re- autor de Administração &
Escravidão. Idéias sobre a
rios, enciclopédias, álbuns ilustrados presentações visuais das moendas, Gestão da Agricultura
Escravista Brasileira
e livros técnicos. casas das caldeiras e fornalhas dos en- (Hucitec) e organizador da
edição de Manual do
No século XX, o valor documental genhos caribenhos. Nessa pesquisa, as Agricultor Brasileiro de
C. A. Taunay (Companhia
desse repertório de imagens não pas- imagens foram encaradas como depo- das Letras).
Figura 1
da história das técnicas, não se pode deixar ganhos substanciais ao conhecimento his-
de mencionar os trabalhos sobre a geogra- tórico, pois tal opção implica examinar o
fia histórica da indústria açucareira de conjunto dos esquemas mentais e das prá-
Galloway e Watts (6). ticas sociais que se fazem presentes nos
Não cabe aqui desvalorizar o emprego atos de elaboração, circulação e consumo
que se fez da iconografia sobre o açúcar no dos registros visuais. As imagens, na medi-
campo da história das técnicas, haja vista os da em que servem de suporte para as repre-
serviços que essa prática prestou ao conhe- sentações sociais, e que, portanto, procu-
cimento histórico sobre o assunto. Contudo, ram apreender uma dada realidade e de certo
a reiteração dos procedimentos menciona- modo guiar a prática sobre ela, são parte
dos já não basta, notadamente em vista dos integrante dos discursos produzidos nas lu-
limites que eles colocam à melhor compre- tas sociais. Afirmar que os registros visuais
ensão dos documentos visuais. O principal são gestados dentro dos quadros dos emba- 6 Ver: J. H. Galloway, “Tradition
and Innovation in the American
limite, sem dúvida, reporta-se ao processo tes sociais significa então que eles devem Sugar Industry, c.1500-1800:
An Explanation”, in Annals of
de reificação das imagens. Como se viu, nos ser entendidos não apenas como decorrên- the Association of American
estudos correntes os documentos visuais são cia das práticas sociais, mas também como Geographers, 75(3), 1985,
pp. 334-51; The Sugar Cane
entendidos como registros fiéis e neutros das discursos que têm impacto na sociedade; há, Industry . An Historical
Geography from its Origins to
práticas materiais das unidades açucareiras. com efeito, mútuas determinações entre o
1914, Cambridge, Cambridge
Como advertiu Bezerra de Meneses em ar- registro visual e a ação social, e neste senti- University Press, 1989; David
Watts, Las Indias Occidentales.
tigo a respeito das fontes iconográficas ur- do a imagem não é mero epifenômeno, sen- Modalidades de Desarrollo, Cul-
banas e de seus usos na produção do saber do igualmente determinante das ações dos tura y Cambio Medioambiental
desde 1492 , trad. esp.,
histórico, “a reificação é tal processo de trans- sujeitos sociais (8). O estudo dos documen- Madrid, Alianza Editoral, 1992.
ferência que impede o reconhecimento do tos visuais, assim, pode servir como uma 7 Ulpiano T. Bezerra de
Meneses, “Morfologia das Ci-
lugar de geração das formas, dos valores e “estratégia para o conhecimento da socieda- dades Brasileiras: Introdução
dos sentidos que elas implicam e das fun- de”, para tomarmos de empréstimo a ex- ao Estudo da Iconografia Ur-
bana”, in Revista USP, no 30
ções que desempenham e efeitos que provo- pressão de Bezerra de Meneses (9). (Dossiê Brasil dos Viajantes),
cam” (7). Noutras palavras, ao seguirem pro- Tendo em vista essas questões teóricas, São Paulo, CCS-USP, junho-
agosto, 1996, p. 148.
cedimentos que invariavelmente acabaram o presente artigo tem por propósito reexa-
8 Cf. Norman Bryson, “Semiology
por reificar os registros visuais sobre a pro- minar uma das séries de imagens mais uti- and Visual Interpretation”, in N.
Bryson; M. A. Holly; K. Moxey
dução de açúcar do Novo Mundo, os histo- lizadas pela historiografia das técnicas (eds.), Visual Theory. Painting
riadores não puderam prestar a atenção de- açucareiras do Novo Mundo. Trata-se de and Interpretation, Cambridge,
Polity Press, 1992.
vida ao papel das imagens como suportes de uma série composta por pranchas e gravu-
9 Ulpiano T. Bezerra de
representações sociais. ras contidas em livros de história natural, Meneses, “Imagem, História e
Analisar essas imagens assumindo-as relatos de viagem, artigos de enciclopédia Semiótica: Comentário III”, in
Anais do Museu Paulista, Nova
como representações sociais pode trazer e manuais agrícolas sobre a produção de Série, 1, 1993, p. 45.
de açúcar inglesa de Barbados (10). ilha, prometendo dinamizar as trocas comer- 11 Svetlana Alpers, The Art of
Describing. Dutch Art in the
Nesse contexto é que foi composta a ciais com a metrópole. Dado que poucos Seventeenth Century, Chicago,
obra de Richard Ligon, A True & Exact ingleses conheciam as técnicas de feitura do The University of Chicago
Press, 1983, p. 152.
History of the Island of Barbados. O livro açúcar, Ligon descreveu em detalhes a ati-
12 Cf. James McClellan III,
se reportou aos anos em que o autor viveu vidade, valendo-se inclusive de pranchas Colonialism and Science. Saint
Domingue in the Old Regime,
em Barbados (1647 a 1650), fugindo da para complementar suas considerações ver- Baltimore, The Johns Hopkins
perseguição de Oliver Cromwell contra os bais sobre o assunto (Figuras 3 e 4). University Press, 1992, p. 111.
a partir da passagem do século XVI para o gravuras sobre a flora de Barbados (Figu- 15 Cf. Michel Foucault, As Pala-
vras e as Coisas. Uma Arqueo-
XVII conferiram um novo estatuto às ima- ras 5 e 6), por exemplo, seguiram à risca os logia das Ciências Humanas,
gens: estas passavam a informar sobre as modelos de representação visual dos trata- trad. port., São Paulo, Martins
Fontes, 1982, pp. 144-5.
coisas da natureza tanto quanto os relatos dos coevos de história natural.
16 Cf. S. Alpers, op. cit., p. 79.
verbais. Expressando o sentimento dos his- Em realidade, as imagens sobre a pro-
17 Apud Gill Saunders, Picturing
toriadores da natureza dos Seiscentos, o dução do açúcar antilhano elaboradas a Plants. An Analytical History of
botântico inglês John Ray afirmou que Botanical Illustration, Berkeley,
partir de meados do século XVII acompa- University of California Press,
muitos sábios “looked upon a history of nharam de perto os princípios de represen- 1995, p. 7.
Figura 7
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Figura 21