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Açúcar, representação visual e poder

RAFAEL DE BIVAR MARQUESE

A iconografia sobre
a produção caribenha
de açúcar nos
séculos XVII e XVIII
152 REVISTA USP, São Paulo, n.55, p. 152-184, setembro/novembro 2002
sou despercebido aos historiadores da Este artigo faz parte de um projeto
mais amplo que contou com o
apoio da Fapesp. Agradeço os
economia açucareira escravista das comentários e sugestões de
Ulpiano T. Bezerra de Meneses e
Américas. Em realidade, há um bom Antonio Penalves Rocha.

A
tempo as fontes iconográficas sobre a
s primeiras representações produção de açúcar do Novo Mundo
visuais de que se tem co- vêm sendo exploradas pela historio-
nhecimento sobre a produ- grafia. Os pesquisadores, entretanto,
ção de açúcar do Novo têm se limitado apenas ao que esses
Mundo datam da segun- registros visuais oferecem para o estu-
da metade do século do da história das técnicas. Dois exem-
XVI. Entre o final dos Quinhentos e o plos servirão aqui para demonstrar os
início dos Seiscentos, foram compos- procedimentos e os limites desse tipo
tas poucas representações visuais so- de abordagem.
bre a indústria açucareira estabelecida Em primeiro lugar, tome-se a ino-
nas Américas; a partir de meados do vadora monografia de Alice Piffer
século XVII, contudo, avolumou-se a Canabrava, datada de 1946. Trata-se
quantidade de imagens sobre o assun- de um estudo pioneiro e ainda atual
to. Afora a iconografia produzida pe- sobre as técnicas produtivas adotadas
los holandeses, durante e após o domí- nos engenhos de açúcar caribenhos
nio sobre a costa nordeste brasileira, o entre os séculos XVII e XVIII. O
século XVII viu aparecer um número corpus documental da pesquisa de
apreciável de relatos de viagem e tra- Canabrava foi constituído principal-
tados de história natural que traziam mente pelos relatos de viagem, trata-
representações visuais sobre as unida- dos de história natural, livros e memó-
des açucareiras fundadas por ingleses rias agronômicas referentes à indús-
e franceses no Mar do Caribe, ao que tria açucareira antilhana coeva. Algu-
se deve somar a série de imagens pro- mas das imagens contidas nesses rela-
RAFAEL DE BIVAR
duzidas sobre o tema ao longo do sé- tos textuais foram examinadas pela MARQUESE é doutor em
História pela FFLCH-USP,
culo seguinte e inseridas em dicioná- autora, em especial as que traziam re- autor de Administração &
Escravidão. Idéias sobre a
rios, enciclopédias, álbuns ilustrados presentações visuais das moendas, Gestão da Agricultura
Escravista Brasileira
e livros técnicos. casas das caldeiras e fornalhas dos en- (Hucitec) e organizador da
edição de Manual do
No século XX, o valor documental genhos caribenhos. Nessa pesquisa, as Agricultor Brasileiro de
C. A. Taunay (Companhia
desse repertório de imagens não pas- imagens foram encaradas como depo- das Letras).

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sitárias de informações sobre as técnicas reiros caribenhos nos séculos XVII e XVIII.
produtivas das unidades açucareiras cari- Nesse texto, as imagens tiveram uma fun-
benhas; ao investigador, portanto, caberia ção documental ainda mais importante do
apenas extrair os dados fornecidos de for- que no trabalho de Canabrava, pois elas
ma direta pela imagem. O procedimento de serviram para analisar não só o nível técni-
reprodução dos registros visuais utilizados co dos engenhos, mas também a planta
muito revela sobre o método empregado na arquitetônica das plantations e os padrões
análise dos mesmos. O tipo de preocupa- de ocupação do espaço. Assim, após exa-
ção que a norteou (ao que se deve somar as minar a mesma gravura de Du Tertre,
prováveis dificuldades de reprodução grá- Barrett afirmou que ela
fica no momento da elaboração do texto
original em 1946) levou Canabrava a com- “shows how well the early settlers recognized
1 Cf. A. P. Canabrava, O Açú- por uma espécie de síntese visual das ima- the advantages of the wide diversity of terrain
car nas Antilhas (1697-1755),
São Paulo, IPE-USP, 1981, gens, reduzindo-as a uns poucos traços bá- found within small areas in many of the
p.140. sicos capazes de representar os aspectos Antilles. The mill and processing works are
2 W. Barrett, “Caribbean Sugar- fundamentais da técnica produtiva anali- set upon a slope […], to permit gravity flow
production Standarts in the
Seventeenth and Eigtheenth sada. Um bom exemplo desse procedimen- during processing. The canefields occupy a
Centuries”, in J. Parker (ed.), to encontra-se na reordenação dada a uma
Merchants & Scholars. Essays
small flat area, perhaps an alluvial plain,
in the History of Exploration and gravura de Jean Baptiste Du Tertre, que and an oceangoing vessel floats in the small
Trade, Minneapolis, University
of Minnesota Press, 1965, p. traz uma representação “do tipo de forno cove adjacent to the plantation” (2).
151. vulgarizado nas Antilhas na segunda meta-
3 Cf. Ruy Gama, Engenho e de do século XVII”: Canabrava destacou Da mesma forma que no estudo de
Tecnologia, São Paulo, Duas
Cidades, 1983; Vera Lúcia da gravura de Du Tertre o que lhe mais Canabrava, no artigo de Barrett a represen-
Amaral Ferlini, Terra, Trabalho
e Poder. O Mundo dos Enge-
interessava (no caso, o terno de caldeiras tação visual foi tomada como registro fiel,
nhos no Nordeste Colonial, São com alimentação dos fornos individuais neutro e objetivo das práticas materiais
Paulo, Brasiliense, 1988;
Esterzilda B. de Azevedo, Ar- para cada caldeira), suprimindo da imagem adotadas pelos proprietários escravistas
quitetura do Açúcar, São Pau- as fôrmas de barro e os dois escravos caribenhos. Esse tipo de uso documental
lo, Nobel, 1990.
caldeireiros (Figuras 1 e 2) (1). dos registros visuais sobre a produção de
4 Cf. Richard Sheridan, Sugar
and Slavery . An Economic Poucos historiadores seguiram o méto- açúcar foi seguido por diversos outros his-
History of the British West Indies,
1623-1775 (1a ed. 1974),
do de reprodução das imagens empregado toriadores das técnicas açucareiras, para
Kingston-Jamaica, Canoe Press, por Canabrava, mas o procedimento de regiões e tempos distintos: Brasil entre os
1994.
examiná-las com os olhos voltados apenas séculos XVI e XIX (3), Caribe inglês no
5 Cf. Manuel Moreno Fraginals,
El Ingenio. Complejo Econó- para as informações técnicas tornou-se século XVIII (4), Cuba no século XIX (5).
mico Social Cubano del usual. Tal é o caso de um artigo de Ward Como exemplos de estudos que igualmen-
Azúcar, Habana, Editorial de
Ciencias Sociales, 1978. Barrett sobre os padrões produtivos açuca- te se valeram da iconografia para o exame

Figura 1
da história das técnicas, não se pode deixar ganhos substanciais ao conhecimento his-
de mencionar os trabalhos sobre a geogra- tórico, pois tal opção implica examinar o
fia histórica da indústria açucareira de conjunto dos esquemas mentais e das prá-
Galloway e Watts (6). ticas sociais que se fazem presentes nos
Não cabe aqui desvalorizar o emprego atos de elaboração, circulação e consumo
que se fez da iconografia sobre o açúcar no dos registros visuais. As imagens, na medi-
campo da história das técnicas, haja vista os da em que servem de suporte para as repre-
serviços que essa prática prestou ao conhe- sentações sociais, e que, portanto, procu-
cimento histórico sobre o assunto. Contudo, ram apreender uma dada realidade e de certo
a reiteração dos procedimentos menciona- modo guiar a prática sobre ela, são parte
dos já não basta, notadamente em vista dos integrante dos discursos produzidos nas lu-
limites que eles colocam à melhor compre- tas sociais. Afirmar que os registros visuais
ensão dos documentos visuais. O principal são gestados dentro dos quadros dos emba- 6 Ver: J. H. Galloway, “Tradition
and Innovation in the American
limite, sem dúvida, reporta-se ao processo tes sociais significa então que eles devem Sugar Industry, c.1500-1800:
An Explanation”, in Annals of
de reificação das imagens. Como se viu, nos ser entendidos não apenas como decorrên- the Association of American
estudos correntes os documentos visuais são cia das práticas sociais, mas também como Geographers, 75(3), 1985,
pp. 334-51; The Sugar Cane
entendidos como registros fiéis e neutros das discursos que têm impacto na sociedade; há, Industry . An Historical
Geography from its Origins to
práticas materiais das unidades açucareiras. com efeito, mútuas determinações entre o
1914, Cambridge, Cambridge
Como advertiu Bezerra de Meneses em ar- registro visual e a ação social, e neste senti- University Press, 1989; David
Watts, Las Indias Occidentales.
tigo a respeito das fontes iconográficas ur- do a imagem não é mero epifenômeno, sen- Modalidades de Desarrollo, Cul-
banas e de seus usos na produção do saber do igualmente determinante das ações dos tura y Cambio Medioambiental
desde 1492 , trad. esp.,
histórico, “a reificação é tal processo de trans- sujeitos sociais (8). O estudo dos documen- Madrid, Alianza Editoral, 1992.
ferência que impede o reconhecimento do tos visuais, assim, pode servir como uma 7 Ulpiano T. Bezerra de
Meneses, “Morfologia das Ci-
lugar de geração das formas, dos valores e “estratégia para o conhecimento da socieda- dades Brasileiras: Introdução
dos sentidos que elas implicam e das fun- de”, para tomarmos de empréstimo a ex- ao Estudo da Iconografia Ur-
bana”, in Revista USP, no 30
ções que desempenham e efeitos que provo- pressão de Bezerra de Meneses (9). (Dossiê Brasil dos Viajantes),
cam” (7). Noutras palavras, ao seguirem pro- Tendo em vista essas questões teóricas, São Paulo, CCS-USP, junho-
agosto, 1996, p. 148.
cedimentos que invariavelmente acabaram o presente artigo tem por propósito reexa-
8 Cf. Norman Bryson, “Semiology
por reificar os registros visuais sobre a pro- minar uma das séries de imagens mais uti- and Visual Interpretation”, in N.
Bryson; M. A. Holly; K. Moxey
dução de açúcar do Novo Mundo, os histo- lizadas pela historiografia das técnicas (eds.), Visual Theory. Painting
riadores não puderam prestar a atenção de- açucareiras do Novo Mundo. Trata-se de and Interpretation, Cambridge,
Polity Press, 1992.
vida ao papel das imagens como suportes de uma série composta por pranchas e gravu-
9 Ulpiano T. Bezerra de
representações sociais. ras contidas em livros de história natural, Meneses, “Imagem, História e
Analisar essas imagens assumindo-as relatos de viagem, artigos de enciclopédia Semiótica: Comentário III”, in
Anais do Museu Paulista, Nova
como representações sociais pode trazer e manuais agrícolas sobre a produção de Série, 1, 1993, p. 45.

Reprodução: Cecília Bastos


Figura 2
açúcar caribenhos publicados na segunda minar dois modos de funcionamento des-
metade do século XVII e ao longo do sécu- sas imagens como dispositivos de poder:
lo XVIII. Refiro-me às imagens que cons- por um lado, o uso da representação visual
tam das obras de Richard Ligon, A True & como mecanismo de apropriação metropo-
Exact History of the Island of Barbados litana dos espaços ultramarinos; por outro,
(1657), de Jean Baptiste Du Tertre, Histoire o emprego das imagens como instrumento
Générale des Antilles Habitées par les de controle senhorial sobre os trabalhado-
François (1667), de Jean Baptiste Labat, res escravos. Para efetuar a análise, é pre-
Nouveau Voyage aux Isles de l’Amerique ciso levar em conta os contextos de produ-
(1722), de Jacques François Dutrône, Précis ção, os circuitos de difusão e a audiência
sur la Canne (1790), e às pranchas que original dessas imagens. Além do mais, não
complementam o artigo sobre o açúcar in- se pode deixar de examinar os registros vi-
serido na Encyclopédie (1765). A escolha suais juntamente com suas matrizes textu-
dessa série justifica-se não tanto por conta ais, isto é, os livros nos quais eles se inscre-
de sua linguagem pictórica, que não é vem. Seguindo-se tais procedimentos será
unívoca, mas fundamentalmente devido ao possível entender as diferentes funções que
padrão técnico de feitura do açúcar que é as representações visuais sobre a produção
representado e ao fato de ela se encontrar açucareira desempenharam nos séculos
inserida em relatos verbais impressos. XVII e XVIII.
Há, nesse corpus, duas formas distintas
de representação visual da produção açu- •••
careira caribenha, não excludentes, que
podem ser denominadas como o modelo da O livro de Richard Ligon, publicado
história natural e o modelo do desenho ar- originalmente em 1657, é o primeiro relato
quitetônico. Essas duas formas cumpriram impresso disponível sobre a colonização
funções diferentes ao longo do tempo, o inglesa no Caribe. Quando foi editada a
que indica a existência de modos distintos obra, a colonização da ilha de Barbados
de apropriação visual do espaço produtivo datava de apenas três décadas. Essa ilha,
colonial caribenho. O artigo pretende exa- parte das Pequenas Antilhas e completa-
Figura 3

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mente despovoada no início do século XVII, partidários dos Stuarts, e foi organizado na
começou a ser colonizada pelos ingleses forma de um relato de viagem que combi-
em 1627. Sua ocupação ocorreu de forma nava a narração dos eventos mais impor-
relativamente rápida, pois em 1638 prati- tantes da ilha com os elementos de sua his-
camente todas as terras úteis da ilha já es- tória natural. Nesse sentido, o livro de Ligon
tavam sendo cultivadas, em geral por pe- foi um dos pioneiros numa linhagem de
quenos proprietários que contavam com o escritos que estava se instituindo na Euro-
trabalho dos indentured servants, os ser- pa do período. De fato, a partir do início do
vos por contrato brancos. O principal pro- século XVII os livros de viagem europeus
duto granjeado na primeira década da colo- passaram a se apresentar como descrições
nização inglesa de Barbados foi o tabaco, dos locais que haviam sido visitados por
secundado pela cultura de mantimentos. No seus autores, e a função primeira desses
entanto, a queda acentuada dos preços do textos era a de trazer ao público do país de
tabaco verificada no mercado europeu a origem do viajante o que poderia ser en-
partir de 1635 forçou os colonos a busca- contrado nas regiões distantes. Em resu-
rem o cultivo de outros gêneros, especial- mo, tratava-se de oferecer “the pleasure of
mente o algodão e o gengibre. Dada a im- travel to those at home” (11). Todavia, as
possibilidade de se obter com os dois últi- funções dos relatos de viagem do período
mos produtos taxas de retorno ao menos não se resumiam somente à satisfação do
equivalentes às do tabaco, a passagem da gosto pelo pitoresco do público leitor euro-
década de 1630 para a de 1640 foi de inten- peu. Em geral, tais relatos adotavam uma
sa depressão em Barbados. Nesse mesmo concepção de história que lhes permitia
momento, a desorganização da economia tratar tanto dos costumes, dos eventos po-
açucareira de Pernambuco (então a maior líticos e dos ramos de comércio quanto da
região produtora mundial do artigo), acar- história natural, o que por sua vez lhes abria
retada pela invasão holandesa, trouxe a a possibilidade de prestar serviços à comu-
elevação dos preços do açúcar no mercado nidade científica e ao poder metropolita-
europeu. Os holandeses, incapazes de re- nos (12). Como é de se esperar, a obra de
organizar a produção de suas instáveis con- Ligon, ao obedecer ao caráter dos livros de
quistas na América portuguesa e ansiosos viagem coevos, trouxe – ao lado do arrola-
10 Cf. Robert C. Batie, “Why Su-
por encontrar novos fornecedores de açú- mento das características da população da gar? Economic Cycles and the
Changing of Staples in the
car, ofereceram logo no início da década de ilha e das instituições coloniais – descri- English and French Antilles,
1640 técnicas, capitais e escravos aos plan- ções da flora e da fauna de Barbados, da sua 1624-1654” (1a ed. 1976),
in H. Beckles; V. Shepherd
tadores franceses e ingleses do Caribe. A geografia, das mercadorias importadas da (eds.), Caribbean Slave
Society and Economy ,
conjunção entre crise do tabaco e alta do Inglaterra e dos diversos gêneros produzi- Kingston-Jamaica, Ian Randle
açúcar, somada à fertilidade dos solos de dos e exportados para a metrópole. Publishers-London, James
Currey Publishers, 1991, pp.
Barbados e à sua segurança quanto ao ata- Ligon se preocupou também em forne- 37-55; Hilary Beckles, A
que dos índios caraíbas e dos inimigos es- cer algumas informações para os eventuais History of Barbados . From
Amerindian Settlement to
panhóis e franceses, facilitou a rápida mon- colonos ingleses que se dirigissem a Nation-state , Cambridge,
Cambridge University Press,
tagem do complexo açucareiro nessa ilha, Barbados. Nesse ponto, as observações so- 1991, pp. 20-3; Richard
base para a posterior expansão do produto bre o fabrico de açúcar adquiriam uma im- Dunn, Sugar and Slaves. The
Rise of the Planter Class in the
pelas Antilhas. De fato, como demonstra- portância considerável. Afinal, desde mea- English West Indies, 1624-
1713 , New York, W. W.
ram diversos estudos, a década de 1650 dos da década de 1640 a produção do artigo Norton & Company, 1973,
marcou o arranque definitivo da produção vinha demonstrando grande vitalidade na pp. 49-67.

de açúcar inglesa de Barbados (10). ilha, prometendo dinamizar as trocas comer- 11 Svetlana Alpers, The Art of
Describing. Dutch Art in the
Nesse contexto é que foi composta a ciais com a metrópole. Dado que poucos Seventeenth Century, Chicago,
obra de Richard Ligon, A True & Exact ingleses conheciam as técnicas de feitura do The University of Chicago
Press, 1983, p. 152.
History of the Island of Barbados. O livro açúcar, Ligon descreveu em detalhes a ati-
12 Cf. James McClellan III,
se reportou aos anos em que o autor viveu vidade, valendo-se inclusive de pranchas Colonialism and Science. Saint
Domingue in the Old Regime,
em Barbados (1647 a 1650), fugindo da para complementar suas considerações ver- Baltimore, The Johns Hopkins
perseguição de Oliver Cromwell contra os bais sobre o assunto (Figuras 3 e 4). University Press, 1992, p. 111.

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Figura 4

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caldeiras. Nas palavras de Ligon, o terreno
destinado à construção do engenho

“must be the brow of a small hill, that hath


within the compasse of eighty foot, twelve
foot descent, viz. from the griding place,
which is the highest ground, and stands
upon a flat, to the Still house, and that by
these descents: From the grinding place to
the boyling house, four foot and a halfe,
from thence to the fire-room, seven foot and
a halfe; and some little descent to the Still-
house. And the reason of these descents are
these; the top of the Cistern, into which the
first liquor runs, is, and must be, somewhat
lower than the Pipe that convaies it, and
that is a little under ground. Then, the liquor
which runs from the Cistern must went it
selfe at the bottom, otherwise it cannot run
at all out; and that Cistern is two foot and
a halfe deep: and so, running upon a little
descent, to the claryfing Copper, which is
a foot and halfe above the flowre of the
Boyling house, (and so is the whole Frame,
Figura 5 where all the Coppers stand); it must of
As pranchas foram inseridas logo nas necessity fall out, that the flowre of the
primeiras páginas sobre a descrição do pro- Boyling house must be bellow the flowre of
cesso de fabrico do açúcar e denotam a aten- the Mill house, four foot and a halfe” (13).
ção de Richard Ligon em explicar a lógica
espacial do espaço manufatureiro. Não por Caso se detivesse apenas ao relato tex-
acaso, a forma de representação visual esco- tual, não seria possível ao leitor ter uma
lhida pelo autor foi a do desenho arquite- idéia precisa da organização espacial do
tônico. De início, cabe esclarecer que as edifício que reunia a moenda, as caldeiras,
imagens são de autoria do próprio Ligon. A as fornalhas e a destilaria. Foi para solucio-
primeira imagem (Figura 3) é um plano nar esse problema que Ligon compôs a
vertical da moenda (movida a energia ani- planta baixa do edifício. Tal como na pri-
mal) e de seu edifício, com legendas que meira imagem, nesse desenho o autor vol-
especificam as partes que os constituem. O tou-se para a correta visualização do espa-
desenho não é muito sofisticado, e seu pro- ço manufatureiro. Assim, afora o fato de
pósito é tão-só o de instruir visualmente o precisar as dimensões exatas da edifício por
leitor sobre a estrutura e as dimensões da meio de uma escala, Ligon procurou de-
casa da moenda. A segunda imagem (Figura monstrar qual era a solução arquitetônica
4) é um plano arquitetônico horizontal do que permitiria a contigüidade entre o espa-
edifício de planta única que engloba a casa ço da moenda e a casa das caldeiras. Con-
da moenda, a casa das caldeiras, a casa das tudo, apesar de se tratar de um desenho
fornalhas e a destilaria. O relato textual que arquitetônico, essa planta baixa não se des-
tratou desse edifício advertiu sobre a neces- tinava a servir de guia para a construção do
sidade de ele ser erigido em terreno ligeira- edifício manufatureiro. Os propósitos de
13 Richard Ligon, A True & Exact
History of the Island of mente inclinado, para que o caldo extraído Ligon consistiam basicamente em expor ao
Barbados, London, Printed for na moenda pudesse contar com a força da público metropolitano o padrão arquite-
Humphrey Moseley, 1657, p.
87. gravidade ao ser transposto para a casa das tônico dos engenhos antilhanos, e nesse

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sentido as imagens desempenhavam um
papel antes descritivo do que prescritivo.
Aos registros visuais, portanto, cabia a fun-
ção de completar o texto, prestando escla-
recimentos que o relato textual, por suas
características intrínsecas, não poderia for-
necer. Afinal, na avaliação de Ligon as pran-
chas seriam capazes de expressar “more
than language can do” (14).
As pranchas arquitetônicas de Ligon
guardaram uma conexão basilar com os
princípios descritivos da história natural.
Em primeiro lugar, é importante ressaltar
que para Ligon a produção de açúcar anti-
lhana fazia parte das coisas da natureza das
Índias Ocidentais. Essa concepção, por
certo, era tributária das noções de Francis
Bacon sobre as divisões da história natural.
Segundo o filósofo inglês, a história natu-
ral dividia-se em três partes: 1) as obras da
natureza; 2) os desvios da natureza; 3) a
natureza transformada pela ação humana,
isto é, a história das artes. A manufatura do
açúcar, portanto, pertencia à terceira parte
da história natural. Como indicou a análise
de Michel Foucault, a história da natureza
Figura 6
que se constituiu no século XVII baseava-
se no princípio de “pousar pela primeira plants without figures as a book of
vez um olhar minucioso sobre as coisas e geography without maps” (17). O que im-
de transcrever, em seguida, o que ele reco- porta para os efeitos da presente análise é o
lhe em palavras lisas, neutralizadas e fi- fato de o novo papel reservado às imagens
éis”. O procedimento básico da história para o conhecimento do mundo natural ser
natural, tal como praticada nos Seiscentos, bem evidente no livro de Ligon. As pran-
consistia em observar inicialmente a natu- chas arquitetônicas que trataram da produ-
reza para, num segundo momento, descre- ção de açúcar são eminentemente descriti-
ver e classificar o que foi observado numa vas, procurando informar com precisão o
rede taxionômica (15). Alpers, complemen- público metropolitano sobre os padrões de
tando as considerações de Foucault, de- fabrico do artigo colonial. As conexões
monstrou a centralidade dos registros visu- desse caráter descritivo e informativo das
ais para o impulso descritivo e classifi- pranchas sobre o açúcar com os princípios
catório do saber sobre a natureza construído da história natural tornam-se ainda mais
no século XVII (16). Com efeito, os trata- manifestas se levarmos em conta as demais
dos publicados sobre a matéria na Europa imagens que constam do livro de Ligon: as 14 Idem, ibidem.

a partir da passagem do século XVI para o gravuras sobre a flora de Barbados (Figu- 15 Cf. Michel Foucault, As Pala-
vras e as Coisas. Uma Arqueo-
XVII conferiram um novo estatuto às ima- ras 5 e 6), por exemplo, seguiram à risca os logia das Ciências Humanas,
gens: estas passavam a informar sobre as modelos de representação visual dos trata- trad. port., São Paulo, Martins
Fontes, 1982, pp. 144-5.
coisas da natureza tanto quanto os relatos dos coevos de história natural.
16 Cf. S. Alpers, op. cit., p. 79.
verbais. Expressando o sentimento dos his- Em realidade, as imagens sobre a pro-
17 Apud Gill Saunders, Picturing
toriadores da natureza dos Seiscentos, o dução do açúcar antilhano elaboradas a Plants. An Analytical History of
botântico inglês John Ray afirmou que Botanical Illustration, Berkeley,
partir de meados do século XVII acompa- University of California Press,
muitos sábios “looked upon a history of nharam de perto os princípios de represen- 1995, p. 7.

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tação visual correntes no campo da história Tendo-se em conta que as considera-
natural. O exemplo das gravuras inseridas ções de Du Tertre sobre a produção de açú-
no livro de Jean Baptiste Du Tertre, Histoire car foram inseridas no volume que tratou
Générale des Antilles Habitées par les da história natural, cabe esclarecer por que
François, publicado em quatro tomos en- o autor dedicou um tomo inteiro de sua obra
tre 1667 e 1671, é outro indicativo disso. ao assunto. Segundo o dominicano, o lei-
Tal como o relato de Richard Ligon, a obra tor, ao se informar sobre os sucessos da
de Du Tertre foi composta nas primeiras colonização francesa no Caribe, deveria
décadas da colonização francesa no Caribe. conhecer, “dans le détail & en particulier,
De forma análoga ao que vinha acontecen- tout ce qui regarde les terres qui ont servy
do nos núcleos ingleses, nos anos iniciais comme de theatre à tous les évenems dont
dos estabelecimentos franceses das Antilhas j’ay fait le recit” (19). Ou seja, o conheci-
(décadas de 1630-40, ilhas de St. Christophe, mento das coisas da natureza das Antilhas
Martinica e Guadalupe) os principais gêne- era indispensável para que o leitor pudesse
ros cultivados eram o tabaco, o anil e o algo- melhor visualizar o cenário onde se desen-
dão, obtidos com o concurso do trabalho dos rolavam os acontecimentos narrados ao
engagés, termo francês que designava os longo do livro. Ademais, Du Tertre preten-
servos brancos por contrato. No correr das dia municiar a comunidade letrada metro-
décadas de 1640 e 1650, contando com o politana com informações mais acuradas
auxílio dos mercadores holandeses para o sobre a natureza das Índias Ocidentais, pre-
fornecimento de capitais, técnicas e escra- enchendo assim as lacunas deixadas por
vos, os colonos franceses também efetua- autores como Acosta e Piso. Para ressaltar
ram em suas ilhas a montagem das primei- a relevância de suas descrições da natureza
ras plantations açucareiras (18). antilhana, Du Tertre lembrou a importância
Jean Baptiste Du Tertre residiu nas do testemunho ocular e da documentação
Antilhas por um período de tempo bem mais visual como formas de garantia da acuidade
longo do que Richard Ligon. Du Tertre tra- das informações dadas. O conhecimento per-
balhou por quase duas décadas (1640-58) feito das regiões descritas só seria possível
como missionário dominicano nas Antilhas caso seu autor as houvesse observado dire-
francesas e pôde verificar durante sua esta- tamente, representando com o máximo de
dia no Caribe o início da construção da rede fidelidade o que foi examinado. A exatidão
de engenhos pertencentes aos franceses. das imagens contidas em seu livro compro-
Ainda em 1654 o dominicano publicou a vava, segundo Du Tertre, a relevância de seu
primeira versão de sua obra, em apenas um volume sobre a história natural. Em seus ter-
volume, intitulada Histoire Générale des mos, “je l’ay enrichi de plusiers belles Figu-
Isles de S. Christophe, de la Guadeloupe, res, qui sont les plus conformes aux choses
de la Martinique, et autres dans l’Amérique. qu’elles representent, que toutes celles qui se
Essa edição trazia a narrativa dos eventos sont faites jusques à present” (20).
relacionados à colonização das ilhas fran- As observações de Du Tertre sobre a
18 R. Batie, op. cit.; Robin
Blackburn, The Making of New cesas e rápidas descrições da geografia, da produção de açúcar encontram-se no ter-
World Slavery . From the flora e da fauna das Antilhas. Ao regressar ceiro tratado do volume sobre história na-
Barroque to the Modern, 1492-
1800, London, Verso, 1997, de vez para a França em 1658, Du Tertre tural, intitulado “Des Plantes & des Arbres
pp.280-2; Ch. Schnakenbourg,
“Note Sur les Origines de
resolveu ampliar sua obra, dando-lhe um des Antilles”, e vêm acompanhadas de uma
l’Industrie Sucrière en formato diferente. Assim, o livro passou a gravura em cobre que foi reproduzida à
Guadeloupe au XVIIe. Siècle”,
in Revue Française d’Histoire ter quatro volumes, sendo que o primeiro exaustão pela historiografia das técnicas
d’Outre-Mer, 200, 1968, pp. narrava os acontecimentos das colônias açucareiras (Figura 2). Tal como as outras
267-315.
francesas até o final da década de 1650, o imagens inseridas no tratado, a gravura
19 Cf. Jean Baptiste Du Tertre,
Histoire Générale des Antilles segundo cuidava exclusivamente da histó- sobre o açúcar – denominada Sucrerie – foi
Habitées par les François, Pa-
ris, Chez Thomas Iolly, 1667- ria natural das Antilhas francesas e os dois composta por Sébastien Le Clerc a partir
71, t.II, pp. 1-2. últimos descreviam os principais eventos de desenhos fornecidos por Du Tertre. Le
20 Idem, ibidem, t.I, “Preface”. ocorridos nas ilhas na década de 1660. Clerc era um dos mais requisitados grava-

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dores da França na segunda metade do sé- caribenha que compõem o repertório vi-
culo XVII, com vasta experiência na ela- sual da obra de Du Tertre.
boração de gravuras de história natural (21). Como se leu há pouco, Du Tertre afir-
É importante examinar com cuidado a mou que o território caribenho havia servi-
relação que há, no livro de Du Tertre, entre do de teatro para os eventos que sua obra se
as considerações textuais sobre a produção encarregava de narrar. A idéia de teatro tem
de açúcar e a representação visual do mes- grande importância para a representação
mo tema. O verbete que tratou do açúcar – visual européia nos séculos XVI e XVII, e
“Des Cannes de Sucre: & de la maniere ela pode ser observada nessa gravura. A
qu’on le fait” – traz uma descrição muito plantation está nitidamente disposta na
sintética da questão. A cana-de-açúcar é forma de um teatro, e assim como o
examinada em poucas palavras, assim como theatrum mundi renascentista, tal arranjo
o modo de plantá-la; em seguida, há rápi- procura ativar a memória do observador. O
das descrições da moenda, da prensagem cenário compõe-se pela topografia, pelos
das canas, do processamento do caldo no edifícios e pela vegetação, e os homens
terno de caldeiras, da etapa de purgação e (feitor e escravos) desempenham o papel
da feitura de aguardente (22). Com exce- dos atores. Em realidade, ao cenário, e em
ção dos vários cavaletes paralelos que sus- especial à topografia, cabe um estatuto tão
tentam as fôrmas, tudo o que está descrito importante quanto o dos atores. A repre-
textualmente acha-se representado na ima- sentação topográfica, além de marcar posi-
gem. Por outro lado, uma série de elemen- ções hierárquicas e produtivas (canavial na
tos que são representados visualmente não planície que se estende até o mar, instala-
se encontram no relato textual: a casa do ções produtivas na encosta da elevação,
senhor, as senzalas, o feitor, os escravos, a inclinação destinada a facilitar o fluxo pro-
flora com numeração de legendas. O que se dutivo, senzalas na parte inferior, casa gran-
pode perceber é que a gravura inventaria e de na porção mais elevada do terreno), ser-
sintetiza, em um só quadro, todos os ele- ve para inventariar a diversidade de terre-
mentos que compõem uma plantation nos que há nas Antilhas (montanha, planí-
açucareira, e para tanto não se limita às con- cie e mar). Ao observador da gravura são
siderações textuais que constam do verbe- dadas a ver não as feições dos atores, mas
te sobre o assunto. Os elementos que estão sim suas atitudes corporais, que por sua vez
inscritos apenas na imagem sobre a produ- expressam o conteúdo das relações sociais
ção de açúcar, e que, portanto, estão ausen- vigentes nas unidades açucareiras: o feitor
tes do verbete correspondente, dizem res- em gesto de comando e os escravos desem-
peito basicamente à vegetação e às figuras penhando as diversas atividades produti-
humanas. Em relação às plantas, há cinco vas envolvidas no fabrico do açúcar. Por
espécies que contêm numeração indican- fim, vale salientar a presença de barcos ao
do as legendas na parte inferior da gravu- fundo da gravura, certamente aqui incluí-
ra: coqueiros, palmiteiros, couves dos para dar conta visualmente da
caraíbas, bananeira e pajamarioba. Abai- destinação última da produção do engenho,
xo ou ao lado de cada legenda, há a indi- qual seja, o abastecimento dos mercados
cação da página onde se encontra a descri- metropolitanos.
ção verbal da planta. O que se pode notar Os padrões produtivos açucareiros da
é que todas essas plantas guardam valor segunda metade do século XVII eram os
utilitário para a plantation açucareira. No mesmos nas Antilhas francesas e inglesas.
entanto, cumpre assinalar que elas foram As instalações produtivas dos engenhos,
inseridas na gravura sobre a sucrerie não em especial a moenda e a casa das caldei-
21 Cf. John Harthan, The History
só devido à sua evidente utilidade para as ras, estavam inseridas em edifícios fecha- of the Illustrated Book. The
Western Tradition , London,
unidades açucareiras, mas também por dos, característica esta representada visu- Thames and Hudson Ltd,
conta da dificuldade de inseri-las a con- almente na planta arquitetônica composta 1981, p. 115.
tento nas demais pranchas sobre a flora por Richard Ligon. Ora, na gravura que Le 22 Du Tertre, op. cit., t.II, pp. 122-5.

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Clerc compôs para o livro de Du Tertre, as das Antilhas e de marcar o controle metro-
instalações produtivas, salvo uma pequena politano sobre as colônias caribenhas ad-
cobertura, encontram-se abertas. A explica- quirem novos contornos. Por certo não é
ção para tanto reside no fato de o engenho fortuito o fato de Le Clerc ter sido o grava-
estar disposto na forma de teatro. Se tal es- dor de todo o livro de Du Tertre: basta lem-
colha denota o cuidado com a visualização brar que o apoio dado por Luís XIV às ci-
completa de todas as partes que compõem a ências na França foi celebrado numa famo-
manufatura, em contrapartida ela exige a sa gravura de Le Clerc, que serviu de
retirada das paredes da casa das caldeiras frontispício às Mémoires pour Servir à
para permitir a observação de todo o proces- l’Histoire des Plantes de Dionys Dodart,
so produtivo em um só registro visual. publicadas pela tipografia real em 1676
A imagem sobre a plantation açucareira (Figura 7).
contida na obra de Jean Baptiste Du Tertre O repertório de gravuras elaborado por
adotou uma linguagem pictórica substan- Le Clerc para a obra de Du Tertre teve uma
cialmente distinta da seguida por Richard longa história, pois foi reaproveitado com
Ligon. Entretanto, as duas formas de repre- constância no final do século XVII e ao
sentação visual foram mobilizadas para longo do século XVIII por diversas publi-
cumprir papéis análogos: ambas pretendi- cações que trataram das coisas da natureza
am expor ao público metropolitano as téc- das Índias Ocidentais. Um dos exemplos
nicas de feitura do açúcar vigentes nas Ín- mais relevantes desse tipo de procedimen-
dias Ocidentais, e para tanto recorreram aos to é o do mais notável sucessor de Du Tertre,
princípios descritivos da história natural. o também dominicano Jean Baptiste Labat.
Afora as funções específicas que desempe- Tal como seu predecessor, Labat viveu por
nhou por estar incluída em um tratado de um bom tempo nas Antilhas francesas, entre
história natural, a gravura de Du Tertre pode 1694 e 1705. Durante sua estada no Caribe,
ser tomada, como de resto todo o seu livro, Labat foi o responsável pela administração
como uma expressão do poder metropoli- do engenho de açúcar pertencente aos
tano francês sobre o espaço antilhano. Há dominicanos na Martinica, função em que
uma evidente filiação da Histoire Générale pôde obter conhecimento aprofundado so-
des Antilles Françaises Habitées par les bre os problemas envolvidos na direção de
François à literatura de caráter mercantilista uma unidade produtiva escravista. Em
do período colbertiano. A Compagnie des 1705, Labat voltou à França, e logo em se-
Indes Occidentales, fundada em 1664 pelo guida foi para a Itália, onde permaneceu
ministro das Finanças de Luís XIV com o até 1716. Nesse ano retornou à França, de
objetivo de recuperar o controle sobre o onde não mais sairia até sua morte em 1738,
comércio colonial francês, então nas mãos e, ainda em 1716, começou a redigir suas
dos mercadores holandeses, recebeu apoio memórias sobre o período em que viveu no
explícito de Du Tertre. Para o dominicano, Caribe. Em 1721, foi nomeado bibliotecá-
a Companhia estabelecida por Colbert ti- rio do Convento dos Jacobinos em Paris,
nha totais condições de “retirer tout le cargo que lhe permitiu finalizar a redação
commerce de ces lieux des mains des de seu relato de viagem às Antilhas (24).
Etrangers, et de le ramener dans nos ports, A obra de Labat inscreveu-se na tradi-
pour en faire profiter les sujets de ce ção das narrativas de viagem ao Novo Mun-
Royaume” (23). Tendo-se em conta a im- do que combinavam a “história moral” com
portância crescente do açúcar na segunda a história natural das ilhas. No seu julga-
metade do século XVII para o comércio mento, o livro mais importante dessa lite-
23 Idem, ibidem, t.III, pp. 36-7. internacional europeu em geral e para o ratura sobre as Antilhas era exatamente o
24 Cf. Marcel Chantillon, Le Père sistema colonial francês em particular, as de Jean Baptiste Du Tertre. A maior justi-
Labat à Travers ses Manuscrits,
Extrait du Bulletin de la Société relações existentes na obra de Du Tertre ficativa para a composição de uma Nouveau
d’Histoire de la Guadeloupe, entre os propósitos de dar a ver à comuni- Voyage aux Isles de l’Amerique, título do
n o 40-2, 2e.-4e. trimestres,
1979. dade científica francesa o mundo natural livro de Labat publicado em 1722 em seis

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volumes, residia no fato de as informações entre os assuntos referentes à história polí-
trazidas pela obra de Du Tertre estarem ul- tica das ilhas e os que diziam respeito à
trapassadas, pois reportavam-se à segunda história natural: o primeiro volume narra-
metade do século XVII. A nova situação va os acontecimentos de 1625 a 1664, o
colonial das Antilhas francesas no início do segundo, a história natural do Caribe fran-
século XVIII, com uma produção escravista cês, e os volumes III e IV, os eventos ocor-
em larga escala – notadamente a do açúcar ridos entre 1664 e 1670. O livro de Labat
– firmada sobre bases sólidas, exigia a pu- afastou-se desse padrão rígido: sua exposi-
blicação de um novo relato de viagem (25). ção assemelhou-se a um diário de viagem,
A Nouveau Voyage aux Isles de pois o encadeamento dos assuntos
l’Amerique trouxe uma modificação impor- registrados obedeceu à seqüência cronoló-
tante em relação à organização formal que gica da vivência do dominicano nas Anti- 25 Cf. Jean Baptiste Labat,
havia sido empregada por Du Tertre. No lhas. Quando os assuntos descritos mere- Nouveau Voyage aux Isles de
l’Amerique, Paris, 1722, v.I,
livro do último, houve uma clara divisão ceram “une explication longue & un ample pp.ix-x.

Figura 7

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détail”, Labat interrompeu o fluxo da nar-
rativa para abordá-los sistematicamente. O
livro trouxe assim desde capítulos reserva-
dos exclusivamente à história natural das
ilhas até capítulos com teor agronômico
sobre as plantas de maior relevância eco-
nômica para a metrópole.
Para os fins da presente análise, o que
interessa é o fato de Labat ter se valido do
repertório de gravuras compostas por Le
Clerc para a obra de Du Tertre ao represen-
tar visualmente as coisas da natureza das
Antilhas. Noutras palavras, quase todas as
gravuras de plantas e animais que constam
da Nouveau Voyage foram retiradas do li-
vro de Du Tertre. Uma das poucas exce-
ções a tal procedimento foram justamente
as imagens sobre a produção de açúcar. Não
se sabe ao certo quem foi o gravador da
Figura 8
Reprodução: Cecília Bastos

Nouveau Voyage; seja como for, Labat in-


seriu em seu livro um conjunto inédito de
imagens que representavam a indústria
açucareira antilhana.
As gravuras sobre o assunto encontram-
se distribuídas pelo capítulo cinco do tomo
III da Nouveau Voyage, intitulado “Du
Sucre, & de tout ce qui regarde sa fabrique,
& ses differents especes”. A composição
do relato verbal diferenciou-se substanci-
almente do que fora sido escrito até então.
Esse capítulo equivale a um tratado agro-
nômico sobre a produção de açúcar, con-
tando com mais de trezentas páginas, e traz
instruções detalhadas sobre cada uma das
etapas do processo de fabrico do artigo. Ao
invés de se contentar apenas em descrever
os padrões produtivos vigentes nos enge-
nhos antilhanos, o texto de Labat contém
igualmente prescrições sobre como devem
ser conduzidas determinadas operações dos
engenhos. Por esse motivo, ele se afastou
das convenções que governaram a compo-
sição dos escritos que o precederam. Con-
tudo, no que se refere às imagens, a despei-
to das modificações introduzidas nas re-
presentações visuais, elas observaram as
mesmas regras de composição que até en-
tão haviam vigorado. Labat recorreu à lin-
guagem pictórica da história natural e do
desenho arquitetônico para elaborar suas
Figura 9 representações visuais sobre a produção de

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açúcar. Além do mais, as imagens desempe- uma planta arquitetônica e um corte hori-
nham funções eminentemente descritivas, zontal da casa das caldeiras; finalmente,
no que aliás coadunam com os princípios de uma planta baixa da casa de purgar (Figu-
construção visual da história natural. Na ras 8, 9, 10 e 11). Nota-se nesse conjunto de
Nouveau Voyage, há, assim, um aparente imagens o predomínio de representações
descompasso entre o texto, que procura que seguem o modelo do desenho
normatizar a prática produtiva, e as imagens, arquitetônico, o que se explica pela função
que obedecem a fins descritivos. que é atribuída aos registros visuais, qual
Para cumprir a contento esses objetivos seja, conferir concretude e precisão às in-
descritivos, os registros visuais sobre a formações fornecidas pelo relato textual
produção de açúcar contidos no livro de sobre os espaços produtivos. Sendo assim,
Labat efetuaram a decomposição visual do desfaz-se a idéia de que haja descompasso
engenho. De fato, ao invés de representar – entre texto e registro visual. Assinalar que
como havia feito Du Tertre – todas as téc- o relato textual tem caráter prescritivo e a
nicas da plantation em uma só imagem, imagem caráter descritivo não significa que
Labat esquadrinhou cada uma das partes ambos exerçam papéis contraditórios.
da unidade açucareira. Destarte, foram Muito pelo contrário, pois, devido ao cui-
inseridas no relato imagens específicas dado com a informação técnica precisa, há
sobre a cana-de-açúcar, sua folha e sua na Nouveau Voyage aux Isles de l’Amérique
florada; diversas representações da moenda uma complementaridade estreita entre tex-
(plano horizontal, vistas frontais perspec- to e imagem. Os registros visuais, contudo,
tivadas de moendas movidas por diferen- vêm a reboque do texto, servindo para
tes fontes de energia); uma gravura que traz ilustrá-lo somente.

Figura 10

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Figura 11

Reprodução: Cecília Bastos

Se em sua obra publicada em 1722 Labat detalhamentos sobre a construção do forno


não reservou um estatuto prescritivo às (Figura 12) (26).
imagens sobre a produção de açúcar, em Com o procedimento adotado por Labat
1730, ao editar o relato de viagem do em 1730, o registro visual sobre a manufa-
Chevalier des Marchais à África e à Amé- tura açucareira recebeu uma nova atribui-
rica, os registros visuais adquiriram outra ção: difundir inovações técnicas. Essa nova
importância. Labat havia saído definitiva- atribuição, por sua vez, tornava factível o
mente do Caribe em 1705. Quando estava funcionamento da imagem como um ins-
redigindo suas memórias, que seriam im- trumento prescritivo, e não apenas como
pressas em 1722, o dominicano fora infor- uma instância meramente descritiva. Nes-
mado de que havia sido inventado um novo se sentido, abria-se aqui a possibilidade de
tipo de forno para o aquecimento do terno se romper com os princípios de representa-
de caldeiras dos engenhos antilhanos que ção visual da história natural. No entanto,
possibilitava uma apreciável economia de a imagem veiculada por Labat em 1730 não
combustível. Entretanto, dado que não ha- chegou a desenvolver plenamente seus efei-
via visto o invento em operação, Labat não tos prescritivos, pois ela não se voltou aos
pôde fornecer informações sobre o meca- agentes que comandavam a produção de
nismo na Nouveau Voyage. Atendendo a açúcar nas colônias. O relato de viagem em
seus apelos por instruções mais precisas questão dirigiu-se antes ao público metro-
acerca do novo forno, alguns amigos de politano: a representação visual do novo
Labat residentes na Martinica lhe envia- forno pretendia atualizar as informações
ram, após 1722, “les desseins des nouveaux sobre a indústria açucareira das Antilhas.
fourneaux des sucreries, inventées par les Afinal, o forno inglês fora adotado em vá-
Anglois pour diminuer la consommation rios engenhos caribenhos antes mesmo de
prodigieuse de bois que se faisoit dans les 1722, algo que não havia sido registrado na
anciens fourneuax”. Como o novo forno Nouveau Voyage aux Isles de l’Amérique.
(denominado nas Antilhas francesas de Os procedimentos de composição das
“forno inglês”) fora implantado rapidamen- representações visuais sobre a produção de
te nos engenhos da Martinica após 1705, açúcar empregados por Labat foram reitera-
por conta da economia de lenha e do perfei- dos na obra máxima da ilustração européia,
to cozimento propiciado, Labat não hesi- a Encyclopédie de Diderot e D’Alembert.
tou em veicular as informações sobre a no- Os artigos sobre o assunto nela inseridos
26 Cf. Jean Baptiste Labat, Voyage vidade na Voyage du Chevalier des foram redigidos por M. Le Romain, um ex-
du Chevalier des Marchais en
Guinée, Isles Voisines, et a Marchais en Guinée, Isles Voisines, et a administrador colonial que havia trabalha-
Cayenne, fait en 1725, 1726 Cayenne, fait en 1725, 1726 & 1727, so- do como engenheiro-chefe na Ilha de Grana-
& 1727, Paris, 1730, t.III, p.
232. bressaindo-se nesse caso a imagem com os da. Romain não só se responsabilizou pela

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redação dos textos sobre o açúcar, mas igual- tos e das imagens sobre a produção
mente por todos os demais temas referentes açucareira e as concepções agronômicas
à “História Natural das Ilhas da América”. correntes na obra dirigida por Diderot e
Percebe-se, logo, que os artigos sobre a pro- D’Alembert. Como demonstrou a análise
dução de açúcar e suas respectivas gravuras de Brandenburg sobre a agricultura na
seguiram as convenções intelectuais e pic- Encyclopédie (27), os artigos que trataram
tóricas da história natural. Os artigos sobre do assunto nessa obra – por volta de uma
a questão se encontram no tomo XV, publi- centena – não se preocuparam em difundir
cado em 1765; três anos antes, já haviam as mais recentes inovações técnicas agrí-
sido impressas as pranchas relativas ao tema, colas, mas sim em sintetizar o “estado atu-
incluídas no volume de estampas sobre al” das técnicas vigentes em diversas ativi-
27 Cf. David J. Brandenburg,
Agriculture et Economie Rustique. dades rurais. Por esse motivo, o conjunto “Agriculture in the Encyclopédie.
Há uma relação direta entre as conven- desses artigos se ocupou essencialmente em An Essay in French Intellectual
History”, in Agricultural History,
ções que governaram a construção dos tex- descrever o que poderia ser observado nos 24, 1950, pp. 96-108.

Figura 12

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campos franceses, na Europa e no ultra- arquitetônica da casa das caldeiras (Figura
mar, o que de certo modo se harmonizava 16). Dentro da combinação dessas diversas
com o próprio projeto da Encyclopédie. Os formas de representação visual, houve o
organizadores da empreitada intelectual e predomínio dos artifícios do desenho ar-
editorial pretendiam efetuar uma síntese de quitetônico (cortes segmentados dos edifí-
todos os campos do conhecimento huma- cios, cortes verticais, plantas baixas), o que
no, isto é, “traçar um quadro geral dos es- denota o cuidado com a representação pre-
forços da mente humana, em todos os gê- cisa dos diferentes espaços produtivos. Ali-
neros, em todos os tempos”, articulando os ás, a preocupação com a exatidão do regis-
“conhecimentos dispersos pela superfície tro visual indica inclusive um certo prima-
da terra” (28). do das imagens sobre os textos. Em alguns
A partir deste quadro geral, depreende- casos, as estampas contêm tal carga infor-
se que os artigos sobre o açúcar inseridos mativa que podem mesmo dar conta de toda
na Encyclopédie não foram dirigidos para a explanação sobre o assunto examinado
a instrução técnica dos produtores de açú- sem a necessidade do discurso verbal. Isso
car. Isso pode ser notado nas pranchas so- já havia sido previsto no próprio Discours
bre a questão que, tal como os artigos cor- Preliminaire de Diderot: em suas palavras,
respondentes, tomaram por base os relatos muitas vezes “uma olhada ao objeto ou à
de Labat. Se as informações contidas nos sua representação diz mais do que uma
artigos de Romain se limitaram a resumir página de exposição”. No caso específico
os dados fornecidos pelo dominicano, as das estampas sobre o açúcar, por exemplo,
estampas da Recueil de Planches trouxe- Le Romain, ao justificar por que não efetu-
ram um aprimoramento estético conside- aria uma descrição textual detalhada a res-
rável. Nelas, procedeu-se a uma espécie de peito da moenda movida a tração animal,
síntese de todas as formas de representação afirmou que “leur méchanisme est si simple,
visual que haviam sido adotadas até então, que l’inspection seule de la figure suffit pour
com o reaproveitamento dos modelos vi- le concevoir” (29).
suais anteriormente empregados – desenhos Para compreender devidamente as re-
arquitetônicos, teatro da plantation, dese- presentações sociais sobre a produção de
nhos de história natural. Do mesmo modo açúcar veiculadas nos registros visuais da
que Labat, os gravadores da Encyclopédie Encyclopédie, faz-se necessário um maior
efetuaram o esquadrinhamento de todas as vagar no exame da vinheta da plantation
facetas do engenho de açúcar. A partir da açucareira. Essa representação visual foi
representação da habitation em sua totali- composta a partir do modelo de organiza-
dade (primeira vinheta, parte superior da ção espacial exposto no artigo de Le Romain
Figura 13), foram decompostas visualmente sobre a habitation sucrière. Trata-se de uma
as diversas partes da unidade açucareira, imagem de uma unidade produtiva ideal,
segundo diferentes modelos pictóricos: construída na forma de teatro para garantir
corte vertical da estufa, desenhos frontais melhor visualização e memorização do que
das ferramentas para o trabalho agrícola está sendo observado; temos aqui, portanto,
manual, desenho da cana-de-açúcar con- o mesmo tipo de representação visual que
forme as regras da história natural (Figura foi empregado por Du Tertre em 1667. A
28 Apud Cecília Helena de Salles
Oliveira, “A Encyclopédie de 13, parte inferior), cortes dos edifícios das forma do teatro, ademais, presta-se muito
Diderot: de Tratado a Álbum moendas para permitir a visualização em bem à demonstração de qual deve ser a lógi-
Ilustrado. Observações sobre
os Riscos de Interpretações Edi- perspectiva dos mecanismos de moagem ca de ocupação do espaço na plantation. O
toriais”, in Anais do Museu
Paulista, Nova Série, 1, 1993,
(Figura 14), corte vertical das fornalhas para artigo de Le Romain recomendara que a casa
pp. 293-6. visualizar o sistema de funcionamento do do senhor deveria localizar-se numa eleva-
29 M. Le Romain, “Sucre”, in forno inglês, desenhos perspectivados dos ção, “d’où l’on puisse aisément découvrir
Encyclopédie ou Dicionnaire
Raisonné des Sciences, des Arts diversos utensílios de cozimento e destila- ce qui se passe dans l’habitation”; as insta-
et des Métiers, par Une Societé ção do açúcar (Figura 15, partes superior e lações produtivas, por seu turno, deveriam
des Gens de Lettres, Tome XV,
Neufchastel, 1765, p. 609. inferior respectivamente), vinheta e planta estar próximas a um curso d’água para

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Figura 13

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Figura 14

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Figura 15

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Figura 16

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mover a moenda e facilitar as operações da É importante ressaltar uma vez mais que
manufatura; os canaviais seriam plantados a audiência original do repertório de imagens
em quadrados, e seriam todos eqüidistantes até aqui analisado, composto pelos registros
da moenda; finalmente, as senzalas deveri- visuais que constavam das obras de Ligon,
am ser erigidas em alinhamento, à vista da Du Tertre, Labat e da Encyclopédie, encon-
casa do senhor (30). Pelo que se pode no- trava-se antes no espaço metropolitano do
tar, a composição visual seguiu todas as que no espaço colonial. Noutros termos,
recomendações de Le Romain, atenuando essas imagens não se voltavam para a ins-
porém algumas tensões que eram latentes trução técnica dos produtores de açúcar
no texto, em especial as que se referiam às escravistas caribenhos, mas sim para a in-
relações sociais escravistas. formação do público letrado europeu. Como
O artigo de Le Romain afirmara com to- já se afirmou anteriormente, os relatos e
das as letras que os escravos negros eram tratados sobre as coisas da natureza das Ín-
preguiçosos e viciosos por natureza; para fazê- dias Ocidentais, afora suas funções relacio-
los trabalhar, por conseguinte, o senhor deve- nadas à ampliação do conhecimento sobre
ria impor padrões disciplinares rigorosos (31). a história natural, representavam uma das
Ora, diferentemente do teatro da plantation formas de apropriação do espaço produti-
contido na obra de Du Tertre e do artigo de Le vo colonial pelos metropolitanos. Tanto é
Romain, não há representações das relações assim que os estudos disponíveis indicam
escravistas na vinheta sobre a habitation que foi praticamente inexistente a circula-
sucrière da Encyclopédie. Nas vinhetas das ção desses relatos e de suas respectivas
moendas e da casa das caldeiras (Figuras 14 imagens no espaço antilhano, ao passo que
e 16), os escravos que são representados tra- eles obtiveram uma considerável circula-
balhando tampouco são comandados por fei- ção em certos meios letrados europeus.
tores. As imagens se ocupam apenas das coi- Esses livros tornaram-se obras de referên-
sas materiais do mundo da produção de açú- cia sobre o Novo Mundo para a ilustração
car, privilegiando os aspectos técnicos da européia; a Nouveau Voyage de Labat foi 30 Idem, ibidem, p. 618.
plantation açucareira e escamoteando as re- reeditada várias vezes na primeira metade 31 Idem, ibidem, pp. 618-9.
lações sociais escravistas. Tal procedimento do século XVIII (1724, 1725, 1738, 1742), 32 Cf. Jean Ehrard, “L’Esclavage
certamente não é fortuito. A crítica que a sem contar suas traduções para outras lín- Devant la Conscience Morale
des Lumières Françaises:
ilustração francesa começou a erigir a par- guas (33); ademais, as imagens sobre a Indifférence, Gêne, Révolte”, in
Marcel Dorigny (ed.), Les
tir de Montesquieu contra a escravidão ne- produção de açúcar contidas nas obras de Abolitions de l’Esclavage. De
gra colonial encontrou uma resposta dúbia Du Tertre e Labat foram reaproveitadas em L. F.Sonthonax à V. Schoelcher,
Paris, Presses Universitaires de
na Encylopédie. Nos artigos a respeito do diversas copilações de relatos de viagem Vincennes/Unesco, 1995.
assunto na obra máxima da Ilustração fran- editadas na Europa ao longo do século 33 Cf. Russell P. Jameson,
cesa, ao lado dos autores que encamparam XVIII, dentre as quais vale citar as de Montesquieu et l ’Esclavage .
Étude sur les Origines de
o teor da crítica de Montesquieu, houve Prévost e de Il Gazzettiere Americano (34). l’Opinion Antiesclavagiste en
France au XVIIIe. Siècle (1a ed.
aqueles que defenderam com ardor a insti- A despeito de as imagens analisadas 1911), New York, Burt Franklin,
tuição, dentre os quais Le Romain figura documentarem o avanço técnico das ma- 1971, pp. 191-2, J. McClellan
III, op. cit., pp. 111-4.
como um dos mais relevantes (32). Nesse nufaturas açucareiras antilhanas entre os
34 Cf. Abbé Prévost, Histoire
sentido, as representações visuais sobre os séculos XVII e XVIII, elas desempenha- Générale des Voyages , ou
engenhos de açúcar antilhanos poderiam ram um papel insignificante no processo Nouvelle Collection de Toutes
les Relations de Voyages, par
perfeitamente prestar-se à defesa da escra- de divulgação dessas técnicas para os se- Mer et par Terre, Qui Ont Été
Publiées Jusqu’à Present dans
vidão. O que se apresentava nas imagens nhores de engenho. Até o último terço dos les Différents Langues de Toutes
era um quadro das habitations esvaziado Setecentos, o principal veículo de difusão les Nations Connues , Paris,
Didot, 1759, v. XV, pp. 562-
de suas tensões, apaziguado, e não o infer- das novas técnicas de produção açucareira 9; Il Gazzettiere Americano.
Contienente un Distinto
no pintado pelos antiescravistas. Afinal, nas no espaço caribenho foi a observação dire- l’Agguaglio di Tutte le parti del
vinhetas da Encyclopédie as senzalas em ta por meio da circulação de proprietários Nouvo Mundo della Loro
Situazione , Clima , Terreno ,
nada diferiam de uma vila camponesa eu- e trabalhadores especializados entre as Prodotti, Stato Antico e Moder-
ropéia, e os escravos trabalhavam sem ne- ilhas: em momento algum registrou-se o no, Merci, Manifatture, e Co-
mercio, Livorno, 1763, v. II, pp.
nhum tipo de coerção senhorial. uso das representações visuais até aqui 110-1.

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examinadas para a propagação de inova- visual açucareira é o manual de Jacques-
ções técnicas (35). François Dutrône, Précis sur la Canne,
Contudo, em fins do século XVIII, o publicado originalmente em 1790 e redigi-
papel reservado aos registros visuais ins- do durante a estada do autor em Saint
critos em relatos textuais que trataram da Domingue.
produção de açúcar antilhana sofreu uma No entanto, antes de se efetuar a análise
alteração substancial. Ainda que recorres- das imagens contidas no livro de Dutrône, é
sem aos mesmos modelos pictóricos que necessário examinar em poucas linhas as
haviam sido mobilizados até então, as ima- condições de produção dessa obra, atentan-
gens passaram a ser produzidas com um do não só à situação de Saint Domingue no
propósito diferente, voltando-se a um ou- conjunto do sistema colonial francês na se-
tro tipo de público. Isso se explica, em gran- gunda metade do século XVIII, mas princi-
de parte, por conta da constituição de um palmente ao papel desempenhado pela socie-
saber agronômico autônomo em relação à dade científica Cercle des Philadelphes em
história natural. Até a primeira metade do sua composição.
século XVIII, o campo da literatura agro- O desenvolvimento da colônia de Saint
nômica não se encontrava plenamente cons- Domingue foi relativamente tardio. Os fran-
tituído no continente europeu. Nos textos ceses vinham ocupando a parte ocidental
latinos que serviram de base para o pensa- da Ilha de Hispaniola, pertencente aos es-
mento agronômico da Europa Ocidental panhóis, desde meados do século XVII, mas
entre os séculos XV e XVII, por exemplo, somente após 1697 a região tornou-se par-
não havia uma fronteira rígida entre a his- te definitiva do império colonial francês. A
tória natural e a agronomia. Os tratados de partir do início do século XVIII, a econo-
Catão, Varrão e Columella sobre a res mia escravista da colônia verificou cresci-
rustica eram utilizados como fonte de in- mento muito acelerado. Entre as décadas
formações para a composição de tratados de 1730 e 1740, por exemplo, a produção
sobre as coisas da natureza, assim como a de açúcar de Saint Domingue saltou de dez
História Natural de Plínio trazia elemen- para quarenta mil toneladas anuais, trans-
tos que caberiam perfeitamente num texto formando-a em meados do século XVIII
agronômico (36). Essa ausência de limites na maior região produtora mundial do arti-
fixos entre história natural e agronomia tam- go. Essa tendência ampliou-se ainda mais
bém esteve presente nos textos sobre a pro- após a Guerra dos Sete Anos (1763), em
dução escravista das Antilhas compostos especial na década de 1780, quando o açú-
no século XVII e na primeira metade dos car de Saint Domingue chegou a abastecer
Setecentos. Em realidade, não foram mais da metade dos mercados continentais
publicadas obras verdadeiramente agronô- europeus. Aliás, a colônia foi responsável
micas sobre a produção de açúcar no Caribe por mais de 50% da produção mundial de
35 Cf. David Watts, op. cit., p.
433. até meados do século XVIII. café nos anos 80. O enorme sucesso de Saint
36 Cf. R. Martin, Recherches sur A formação na segunda metade dos Domingue lhe valeu, na década de 1780, a
les Agronomes Latins et Leurs
Conceptions Économiques et
Setecentos de um saber especificamente alcunha de “pérola das Antilhas”, mas se-
Sociales, Paris, Belles Lettres, agronômico, calcado na grade conceitual ria mais preciso denominá-la a “pérola da
1971; André Bourde,
Agronomie et Agronomes en do discurso econômico (37), trouxe modi- França”: afinal, os gêneros tropicais obti-
France au XVIIIe. Siècle, Paris, ficações importantes para o quadro das re- dos em Saint Domingue permitiam à sua
S.E.V.P.E.N, 1967, v.I, pp. 11-
20. presentações visuais sobre a produção de metrópole a manutenção de um comércio
37 Cf. K.Tribe, Land, Labour and açúcar antilhana. Pela primeira vez vieram de reexportação altamente lucrativo. Entre
Economic Discourse, London,
Routledge & Kegan Paul, 1978,
a lume textos que tratavam exclusivamen- 1785 e 1789, cerca de três quartos do açú-
pp. 66-79. te de assuntos agronômicos, dirigidos aos car haitiano enviado à França foram reex-
38 Cf. Michel Devèze, Antilles, proprietários rurais escravistas, e que con- portados para os mercados continentais
Guyanes, La Mer des Caraïbes
de 1492 à 1789, Paris, Se- feriam um novo estatuto aos registros visu- europeus (38).
des, 1977, pp. 267-75; R. ais. O melhor exemplo para se examinar Nesse ambiente de pujança econômica
Blackburn, op. cit., pp. 431-
51. essa alteração na ordem de representação foi fundado, em 1784, no Cap François, o

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Cercle des Philadelphes, uma sociedade das Ciências de Paris para submeter seu
científica inspirada no modelo das acade- manuscrito à apreciação da última. O pare-
mias provinciais francesas do século XVIII. cer da Academia de Paris – assinado em
Como demonstrou o cuidadoso estudo de maio de 1788 por Darcet, Fougeroux de
James McClellan, Saint Domingue na dé- Bondaroy, Bertholet e Condorcet – foi al-
cada de 1780 era não só a mais rica colônia tamente favorável, sugerindo a publicação
escravista européia do Novo Mundo, mas do tratado com poucas modificações (40).
igualmente um dos maiores centros cientí- Ao nos determos na avaliação das con-
ficos do hemisfério ocidental. A melhor dições de produção da obra de Dutrône,
expressão do avanço científico de Saint não podemos deixar de ressaltar que ela foi
Domingue no Antigo Regime foi justamen- composta tendo em mira um público bem
te o estabelecimento de uma instituição específico: os proprietários, administrado-
como o Cercle des Philadelphes. O objeti- res e técnicos dos engenhos de açúcar de
vo central da instituição era o de elaborar Saint Domingue. Esses grupos coloniais
um corpo de conhecimentos científicos que formavam já, no fim do século XVIII, um
fosse útil aos colonos, contribuindo assim público leitor não desprezível. O inquérito
para o aumento da prosperidade da colô- proposto pelo Cercle des Philadelphes em
nia. Nesse sentido, o programa da socieda- 1787 sobre o estado geral da agricultura,
de previa a copilação de informações sobre escravidão e economia rural de Saint
a história natural e a economia de Saint Domingue, por exemplo, encontrou viva
Domingue, a realização de estudos sobre receptividade de vários proprietários rurais,
doenças tropicais, pesquisas sobre aclimata- que se dispuseram a responder todas as 250
ção de novas espécies vegetais e animais e perguntas acerca das condições produtivas
investigações sobre técnicas agrícolas e das plantations da ilha (41). Esses mesmos
manufatureiras (39). proprietários (e também seus administra-
O que nos interessa é o fato de a cons- dores) começaram a se valer com constân-
trução do Précis sur la Canne ter ocorrido cia cada vez maior no final do século XVIII
dentro dos marcos institucionais dessa so- de obras agronômicas e folhetos médicos
ciedade científica. O seu autor tornou-se para dirigirem suas unidades produtivas
membro do Cercle des Philadelphes em escravistas (42).
setembro de 1784, na segunda leva de Foi a esse público que Dutrône dirigiu
filiações à instituição, atrás apenas dos fun- seu manual, dividido em duas partes. A pri-
39 Cf. J. McClellan III, op. cit.,
dadores da sociedade. Médico de profis- meira continha uma análise botânica da cana- pp. 183-210.
são, Dutrône residia já havia algum tempo de-açúcar e de seu suco, e a segunda trazia 40 Cf. J. McClellan III, op. cit.,
em Saint Domingue, exercendo seu ofício as propostas de Dutrône para a modificação pp. 211, 213; J. F. Dutrône,
Précis sur la Canne, et sur les
em diversas plantations açucareiras da re- dos padrões técnicos da manufatura açu- Moyens d’en Extraire le Sel
Essentiel , Suivi de Plusieurs
gião norte da ilha. Em fevereiro de 1785, careira. Ambas as partes se fizeram acom- Mémoires sur le Sucre, sur le
ele obteve do proprietário M. de Ladebate panhar por imagens elaboradas pelo próprio Vin de Canne, sur l’Indigo, sur
les Habitations & sur l ’ État
a autorização para realizar experiências em autor. No caso da primeira, Dutrône inseriu Actuel de Saint-Domingue ,
Paris, Debure-De Seine, 1790,
sua habitation sucrière, com vistas a modi- em uma só prancha várias representações pp. x, xx-xxix.
ficar o padrão técnico da manufatura. Apro- visuais sobre a cana-de-açúcar, e, na segun-
41 Cf. J. McClellan III, op. cit.,
veitando-se dos encontros periódicos do da parte do livro, pranchas com desenhos pp. 238-40.
Cercle para apresentar os resultados de suas arquitetônicos da casa das caldeiras, casa de 42 A monografia de Jacques
Cauna (Au Temps des Isles à
experiências na propriedade de Ladebate, purgar e casa das fornalhas. Sucre. Histoire d’une plantation
Dutrône expôs numa reunião privada da No que se refere às representações so- de Saint Domingue au XVIIIe
Siècle, Paris, Karthala, 1987)
sociedade científica em outubro de 1785 os bre a cana-de-açúcar, elas seguiram as con- sobre a habitation sucrière da
primeiros resultados de suas pesquisas. família Fleuriau, localizada nas
venções estabelecidas pela história natu-
planícies irrigadas da parte
Concluída uma primeira versão do tratado ral. No entanto, se compararmos os dese- oeste de Saint Domingue, indi-
cou como os administradores
Précis sur la Canne no final de 1787, seu nhos de Dutrône com as representações dessa propriedade utilizavam
autor se valeu dos nexos existentes entre o visuais da cana-de-açúcar contidas nas manuais agrícolas e médicos
para guiar a prática adminis-
Cercle des Philadelphes e a Academia Real obras de Du Tertre e de Labat e nas gravu- trativa.

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ras da Encyclopédie, será possível obser- conduit nécessairement encore à la
var algumas diferenças significativas. As connoisance de la nature & de la qualité de
imagens até agora examinadas representa- ses produits” (43). Por conseguinte, a im-
ram a cana-de-açúcar apenas em um dado portância da análise da história natural da
momento de sua maturidade, em geral no cana-de-açúcar residia nos ganhos a serem
período de florescência. Dutrône, pelo con- obtidos com a maximização do rendimen-
trário, optou por representar a cana em seus to do vegetal. Tais concepções, por seu
diversos estágios de crescimento, decom- turno, denotam que as relações entre a his-
pondo visualmente suas partes externas tória natural e a agronomia na segunda
(raízes, caule, folhas, flores) e internas (va- metade do século XVIII assentavam-se
sos condutores, isolados e em conjunto, sobre novos fundamentos. De fato, a histó-
corte seccionado vertical e horizontal da ria natural lineana, prevalecente no perío-
cana) (Figura 17). do, manteve nexos inegáveis com a busca
Há uma conexão estreita entre essas esco- do ganho econômico, tratando-se portanto
43 J. F. Dutrône, op. cit., pp. 37-
8. lhas visuais e as concepções do autor sobre o de uma botânica com fins claramente utili-
44 Cf. Lisbet Koerner, “Purposes of papel do estudo da história natural da cana- tários (44). Esta foi a noção de história
Linnaean Travel: a Preliminary
Research Report”, in David P. de-açúcar. “Cette étude”, escreveu Dutrône, natural que se fez presente na obra de
Miller; Peter H. Reill (eds.), Visions “bien approfundie, apprend quel sol, quel Dutrône, e que esteve na base da represen-
of Empire. Voyages, Botany, and
Representations of Nature , climat conviennent le mieux à la plante; en tação visual da cana-de-açúcar: a visuali-
Cambridge, Cambridge
University Press, 1996.
éclairant sur les circonstances les plus zação minuciosa do vegetal deveria pres-
favorables à sa végétation, elle rend raison tar-se exatamente aos propósitos de maxi-
45 Cf. Dutrône, op. cit., pp. 99-
141. de tous les accidents qui l’accompagnent, elle mização de seu rendimento.

Figura 17

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A respeito das gravuras contidas na se-
gunda parte do Précis sur la Canne, o que Figura 18
se pode observar é a proposta de uma nova
organização da planta arquitetônica do
engenho de açúcar. Dutrône pretendia alte-
rar substancialmente os padrões produti-
vos das unidades açucareiras francesas, e,
para tanto, era preciso diagnosticar quais
seriam os problemas mais agudos nos mé-
todos vigentes. Em sua avaliação, os pro-
cedimentos correntes de fabrico do açúcar
padeciam de alguns graves inconvenien-
tes. O principal deles era a enorme deman-
da de trabalho dos escravos e mestres. Com
as imposições laborais do curso da safra,
tornava-se inviável a exigência de traba-
lhos bem feitos: os escravos trabalhavam
não raro por até vinte horas seguidas, o que
os levava a “fazer corpo mole” com fre-
qüência para suportar o serviço, e ao mes-
tre era impossível supervisionar todas as
atividades que se realizavam ao mesmo
tempo (45). Para a melhor compreensão de
sua proposta, Dutrône incluiu uma prancha
(Figura 18) que representava o padrão
arquitetônico vigente na casa das caldei-
ras. Trata-se de uma representação de um
engenho com um duplo terno de caldeiras,
o que indica sua grande capacidade produ-
tiva; depreende-se da prancha que os for-
nos das caldeiras são alimentados externa-
mente, no espaço L, e que a casa de purgar
localiza-se em edifício contíguo, mas se-
parado. A prancha traduz visualmente a im-
possibilidade para o mestre de açúcar su-
pervisionar simultaneamente os trabalhos
na casa das caldeiras e na casa de purgar.
O método proposto por Dutrône procu-
rava encontrar uma solução para esses in-
convenientes, grande parte dos quais tribu-
tários do pouco conhecimento científico que
se tinha sobre o fabrico do açúcar, em espe-
cial sobre a composição exata do sumo da
cana. Valendo-se de conhecimentos quí-
micos precisos, afirmava Dutrône, seria
possível rever a ordem de processamento,
obtendo-se maior controle sobre o proces-
so produtivo. O sumo, segundo o autor,
compunha-se de duas partes, uma sólida e
outra fluida. O principal elemento da parte
sólida eram as féculas. Portanto, a primeira

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Figura 19

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operação de processamento deveria ser a Dutrône. Nela se pode observar dois ternos
separação completa das féculas do restante de caldeiras (Fig. 1 e Fig. 2, B), cada qual
do caldo, empregando-se para tanto os ál- com quatro caldeiras. As caldeiras de
calis e o calor. A parte fluida do caldo, de- defecação (a e b), evaporação (c) e cozi-
pois de retiradas as féculas, consistia de mento (d) têm as mesmas dimensões, mas
água e matéria açucarada: o restante do pro- essas dimensões são bem maiores do que
cessamento do caldo, assim, evaporaria a as de um terno de caldeiras comum, cujas
água para concentrar a matéria açucarada caldeiras aliás tinham tamanho decrescen-
em melaço. As operações que exigia o tra- te. Outra diferença digna de monta em re-
balho do sumo da cana, então, dividiam-se lação ao método tradicional foram os gran-
em três: defecação, isto é, separação com- des tanques de filtragem e decantação (Fig.
pleta das partes sólidas do caldo, evapora- 3 e Fig. 4, E), que se comunicavam com o
ção da água do caldo e cozimento final para terno de caldeiras por meio de canais sub-
concentrar o melado até o ponto da crista- terrâneos.
lização. O calor e os álcalis, contudo, seri- Tal solução arquitetônica implicava
am incapazes de limpar completamente o modificações na disposição dos fornos. De
caldo. Além de defecado, o caldo precisa- acordo com as técnicas usuais, o forno in-
va ser filtrado para ter todas as impurezas glês se localizava na mesma parede do terno
retiradas, em especial as sólidas como a de caldeiras, sendo alimentado pelo espaço
terra; essa limpeza seria completada em externo da sucrerie. O projeto de Dutrône,
tanques de filtragem e decantação (46). por sua vez, previa a alimentação por baixo.
A adoção desses tanques forçava a revi- Para tanto, seria aberta uma câmara embai-
são profunda da planta arquitetônica tradi- xo da sucrerie, sustentada por abóbadas (L),
cional das sucreries caribenhas. Dada a como indica a Figura 20; o forno seria ali-
novidade do método prescrito por Dutrône, mentado por suas bocas (d, d), localizadas
às representações visuais da nova arquite- sob a caldeira de cozimento; de acordo com
tura dos espaços produtivos cabia uma fun- o mesmo princípio do forno inglês, o calor
ção explicativa da maior importância. A seria transmitido para as demais caldeiras
Figura 19, por exemplo, expôs uma das por meio de um canal, sendo a fumaça exau-
46 Idem, ibidem, pp. 75-95, 155-
novas disposições espaciais propostas por rida por meio de uma chaminé (K). 62.

Figura 20

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Essas pranchas, pelo que se pode notar, suma, os tanques de filtragem e decanta-
eram imprescindíveis para a compreensão ção, sem aumentar a força de trabalho,
e a difusão do novo modelo técnico pro- “rendent le Raffineur maître de toutes ses
posto por Dutrône. Sem elas, tornava-se opérations”, dando-lhe a certeza de levar
impossível aos senhores de engenho o en- “le vesou au plus haut degré de pureté,
tendimento do que estava sendo prescrito. malgré la négligence des Nègres” (48). A
A forma visual da planta arquitetônica pres- atenção de Dutrône com o controle do tra-
tava-se à perfeição para se dar as instruções
necessárias sobre o novo desenho das ins-
talações produtivas. Como vimos, desde
Richard Ligon o modelo da planta arquite-
tônica vinha sendo mobilizado para deno-
tar cuidados com a representação da ordem
produtiva dos engenhos de açúcar cari-
benhos. Dutrône, por certo, seguiu essa
mesma linha, conferindo porém um novo
sentido às plantas arquitetônicas, pois essa
forma de representação visual da produção
de açúcar traduziu, em seu livro, a preocu-
pação com a produtividade e o controle do
trabalhador escravo.
Cabem alguns esclarecimentos sobre a
última assertiva. O modelo de Dutrône pre-
tendia aprimorar a qualidade e aumentar a
quantidade de açúcar produzido por unida-
de manufatureira. Segundo ele, o uso dos
tanques de decantação não implicaria de-
manda por mais mão-de-obra. Seu plano se
gabava de ter aumentado consideravelmen-
te a quantidade e a qualidade do caldo pro-
cessado se valendo do mesmo número de
escravos empregados no método antigo. A
revisão da planta da sucrerie atendeu exa-
tamente a este objetivo: a disposição do
terno das caldeiras foi modificada “afin que
le service soit aisé & qu’on puisse exécuter,
avec la plus grande économie de Négres,
de temps & de moyens, tout ce qu’il convient
de faire pour la plus grande perfection du
travail” (47). Além do mais, seguindo-se o
novo método, o trabalho noturno seria con-
sideravelmente reduzido, não sendo mais
necessária a supervisão de todas as ativida-
des pelo mestre de açúcar branco. Graças
aos controles técnicos obtidos com os tan-
ques de decantação, as tarefas noturnas de
clarificação e evaporação poderiam ser
vigiadas por um feitor negro, e a operação
de cozimento do caldo seria realizada ape-
47 Idem, ibidem, p. 159. nas durante o dia, facilitando em muito a
48 Idem, ibidem, p. 218. supervisão do mestre sobre os escravos. Em

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balho escravo pode ser apreendida ainda palavras de Dutrône, “ces bâtimens doivent
pelo fato de em seu plano a casa de purgar être très-large & construits sur la même
localizar-se no mesmo edifício da casa das ligne; afin qu’on ait moins d’étendue à
caldeiras (Figura 19, parte superior). A nova parcourir pour le service & qu’on puisse
solução arquitetônica pretendia reduzir os voir, d’un coup d’oeil, tout ce qui s’y pas-
custos de transporte e aumentar a supervi- se” (49).
são sobre todo o processo produtivo: nas Resumindo: as pranchas sobre os espa- 49 Idem, ibidem, p. 185.

Figura 21

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ços produtivos manufatureiros do engenho imagens que foram inseridas nesses regis-
de açúcar, além de possibilitarem a compa- tros verbais. A novidade nesse aspecto cou-
ração entre os métodos de processamento be às pranchas do Précis sur la Canne.
tradicionais e os que estavam sendo pro- Como nota final, cabem algumas pala-
postos por Dutrône, permitiam visualizar vras a respeito das relações entre o repertó-
os ganhos a serem obtidos em supervisão e rio de imagens aqui analisado e o poder,
economia de trabalho. Essa inquietação ou, noutros termos, dos registros visuais
com a produtividade e o controle dos cati- como dispositivos de poder. É possível
vos, aliás, foi uma das questões centrais do identificar, no conjunto dos representações
Précis sur la Canne. Tanto é assim que visuais examinadas, duas formas distintas
Dutrône incluiu ao final de seu livro um de funcionamento dessas relações. As ima-
modelo de tabela que permitiria mensurar gens produzidas entre meados do século
e controlar todas as atividades dos escra- XVII e meados do XVIII pretendiam, a par-
vos, dia-a-dia, ao longo do ano (Figura 21). tir das convenções intelectuais e pictóricas
50 Simon Schaffer, “Visions of
Se é certo que a preocupação com o contro- da história natural, dar a ver nas respecti-
Empire: Afterword”, in David P. le do trabalho escravo esteve presente em vas metrópoles a produção colonial de açú-
Miller; Peter H. Reill (eds.),
Visions of Empire . Voyages, alguns dos relatos textuais compostos até car, e, neste sentido, expressavam meca-
Botany, and Representations of meados do século XVIII, notadamente o de nismos específicos de apropriação do es-
Nature, Cambridge, op. cit.,
p. 337. Labat, ela no entanto não se apresentou nas paço colonial. Para tomarmos de emprésti-
mo as observações de Schaffer acerca das
investigações sobre a história natural dos
impérios ultramarinos europeus no curso
do século XVIII, “study of living nature
was an exercise of power” (50). Não por
acaso, os produtores dessas imagens esti-
veram ligados de uma forma ou de outra ao
aparelho colonialista (missionários, admi-
nistradores, etc.).
Essa relação com a obra colonizadora e
imperial se fez igualmente presente nas
plantas arquitetônicas de Dutrône. Nesse
caso, contudo, se as imagens também
funcionaram como dispositivos de poder,
elas o fizeram em um sentido diverso do que
ocorreu com os registros visuais preceden-
tes. Em Dutrône, as plantas arquitetônicas
foram uma manifestação do poder senhorial
sobre os espaços produtivos manufatureiros
e, principalmente, sobre os escravos. Ade-
mais, os consumidores dessas imagens pas-
saram a ser os próprios senhores de engenho
e técnicos açucareiros. É muito sugestivo o
fato de o livro de Dutrône ter se transforma-
do, no primeiro terço do século XIX, em
obra de referência para o incremento técni-
co das unidades açucareiras das Américas.
A inclusão de pranchas e estampas em ma-
nuais agrícolas açucareiros, com o objetivo
de instruir os proprietários a respeito das
mais recentes inovações técnicas, tornou-se
algo usual ao longo do século XIX.

184 REVISTA USP, São Paulo, n.55, p. 152-184, setembro/novembro 2002


livros
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