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APRENDENDO COM IMAGENS também o que está envolvido em sua leitura. Esta é considerada um
processo de construção de sentidos, no qual jogam a intencionali-
dade do autor, a materialidade do texto e as possibilidades de ressig-
nificação do leitor (21).
Isabel Martins, Guaracira Gouvêa e Cláudia Piccinini Com vistas a explorar as questões propostas para investigação foram

I
realizados três estudos de caso em escolas do nível fundamental,
magens são importantes recursos para a comunicação de envolvendo levantamentos, entrevistas e observação de sala de aula,
idéias científicas. No entanto, além da indiscutível impor- objetivando: 1. documentar a freqüência de ocorrência das imagens
tância como recursos para a visualização, contribuindo e analisar os diferentes papéis por elas desempenhados em livros
para a inteligibilidade de diversos textos científicos, as ima- didáticos de ciências; 2. analisar a leitura das imagens em livros didá-
gens também desempenham um papel fundamental na ticos de ciências feitas por estudantes do ensino fundamental – 3º e
constituição das idéias científicas e na sua conceitualização. Essas 4º ciclos; e 3. analisar as formas de utilização das imagens em situa-
questões têm sido objeto de um crescente conjunto de inve s t i g a- ções de ensino em sala de aula. A seguir descrevemos os principais
ções no campo da educação em ciências que, mesmo organizado a resultados obtidos nos diferentes estudos.
partir de quadros teórico-metodológicos tão distintos quanto a
semiótica social, a psicologia cognitiva e os estudos culturais entre LIVROS DO ENSINO FUNDAMENTAL Vimos que é grande o número de
o u t ros, compartilha o interesse de melhor compreender as relações imagens presentes nos livros didáticos de ciências, mas que
e n t re imagens, conhecimento científico e ensino de ciências (1). enquanto nas primeiras séries encontramos tipicamente imagens
Exemplos de resultados desses estudos incluem a idéia de que ima- naturalistas e realistas, remetendo o leitor a cenários familiares do
gens são mais facilmente lembradas do que suas correspondentes cotidiano, nas séries finais a essas se somam re p resentações abstra-
re p resentações verbais (2-5) e o efeito positivo de ilustrações na tas e ilustrações esquemáticas de situações microscópicas. Vale des-
aprendizagem dos alunos (2, 3, 6, 7). Ainda, extensas revisões da tacar que, nas últimas séries, passa a ser mais evidente a manipula-
literatura educacional documentaram investigações acerca do ção de elementos composicionais, tais como cor e escala, e a
papel da imagem na aprendizagem (8-10), entre eles, modelos que conseqüente necessidade de seu entendimento para a significação
analisam texto, imagem e suas inter-relações (11); análises das das entidades re p resentadas. Os livros destas séries também passam
expectativas de autores e leitores acerca da imagem (12). Imagens a incluir localidades e tempos remotos, alguns sem corre s p o n d ê n-
também foram analisadas no contexto da legibilidade de livro s cia no cotidiano do aluno. Essa necessidade de ampliação da noção
didáticos (13) e de uma comparação entre apresentações em papel de tempo e espaço por parte do estudante é acompanhada por uma
e tela de computador (14). Análises de imagens em livros didáti- ampliação do poder explicativo da ciência, do exemplo para a gene-
cos, de leituras de imagens por estudantes e de usos em sala de aula ralização, do local para o global, do particular para o geral, no sen-
também foram investigadas, a partir de um quadro teórico da tido de construir um caráter mais universal para o conhecimento
semiótica social (15), re velando engajamentos culturais, afetivos e científico. Em outras palavras, diferenciam-se e se complexificam
estéticos (16, 17). Ou t ros estudos incluem dados sobre a va l o r i z a- as estratégias de leitura desses textos.
ção pelos pro f e s s o res sobre as imagens no livro como critério para No que diz respeito às marcantes diferenças na variedade de tipos de
escolha dos mesmos (18) e análises do potencial didático e dos imagens encontradas nos livros de ensino fundamental, podemos
limites da imagem como facilitadoras da aprendizagem do ponto questionar em que medida a opção por apresentar aos estudantes
de vista cognitivo (19). uma maior diversidade de representações pode revelar duas poten-
Neste trabalho, realizado ao longo de dois anos por uma equipe de ciais fontes de dificuldade para a aprendizagem científica. Por um
professores e pesquisadores em educação em ciências, foram explo- lado, essa parcimônia indicaria a expectativa de que os estudantes
radas questões relativas à natureza híbrida, do ponto de vista semió- não possuem habilidades para a leitura de certos tipos de represen-
tico, dos textos científicos (20), visando a uma melhor compreensão tação como, por exemplo, esquemas abstratos. Nesse caso, a dificul-
e avaliação da natureza das demandas desses textos, das suas possibi- dade percebida re f e re-se à conseqüente impossibilidade de que o
lidades de leitura, crítica e utilização por professores e alunos em sala estudante adquira desde cedo familiaridade com tipos de represen-
de aula e do seu papel em contextos de divulgação científica. tação essenciais para a ciência. Por outro lado, a marcada ru p t u r a
e n t re as formas de re p resentação, típicas do primeiro e segundo
LINGUAGEM VISUAL Em nossos estudos questionamos a “transparên- ciclos e aquelas do terceiro e quarto ciclos, podem reforçar diferen-
cia” da imagem, isto é, desafiamos a idéia de que as imagens comu- tes visões no que diz respeito aos objetos de conhecimento e às for-
nicam de forma mais direta e objetiva do que as palavras. Ao consi- mas de conhecer do empreendimento científico.
derarmos, junto com Kress e van Leeuwen (15), que a linguagem Assim, enquanto nos livros de primeiro e segundo ciclos destaca-se
visual se constitui em um sistema de representação simbólica, pro- a construção de habilidades relacionadas à observação de fenôme-
fundamente influenciado por princípios que organizam possibilida- nos, é somente nos livros de terc e i ro e quarto ciclos que encontra-
des de representação e de significação em uma dada cultura, abrimos mos o embrião de uma discussão mais abrangente acerca de aspec-
espaço para problematizar não só a própria linguagem visual, mas tos da natureza da ciência e da atividade científica, de forma a

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incluir, além de questões relacionadas a método e fenomenologia,  dão atenção aos aspectos composicionais das imagens. Im a g e n s
uma discussão sobre as implicações sociais da ciência e tecnologia. mais nítidas favorecem o entendimento.
Esses dois tipos de introdução tardia a aspectos fundamentais da Nossas análises revelam uma diversidade de formas de engajamento
ciência podem não corresponder nem às expectativas, nem aos inte- com a imagem (afetivo, cognitivo, estético) e uma variedade de
resses, nem às necessidades e nem às habilidades que as crianças estratégias de leitura, que destacam o papel do conhecimento pré-
demonstram ter. Os meios de comunicação apresentam às crianças vio, de experiências de leitura anteriores realizadas no ambiente
não só diferentes possibilidades re p resentacionais, quanto infor- escolar e de estratégias de leitura que integram informações verbais
mações a respeito de descobertas científicas que fornecem elemen- e contextualizam as imagens no espaço gráfico da página.
tos para a construção de re p resentações acerca, por exemplo, do que
é ciência, de quem é o cientista e qual seu papel social. Uma inicia- IMAGENS EM SALA DE AULA Em uma terceira etapa realizamos obser-
ção precoce ao discurso científico, auxiliada por conjuntos de ima- vações de situações de aulas de ciências com o objetivo de identificar
gens mais diversificados, poderia pro p o rcionar maior riqueza nesse como as imagens são trabalhadas, por pro f e s s o res e alunos, nos dive r-
p rocesso de construção de atitudes e identidades em relação ao sos aspectos relacionados à sua construção, leitura e interpretação em
conhecimento científico. contextos de aprendizagem (22). Discutimos, também, diferentes
possibilidadesde utilização das imagens na sala de aula analisando sua
LEITURA DE IMAG E N S Durante entrevistas, com duplas de estudan- relação com os conteúdos curriculares. O registro dessas observa ç õ e s
tes do 3º e 4º ciclos do ensino fundamental, tivemos a oportuni- foi realizado por meio de gravação em áudio e vídeo, que foram trans-
dade de verificar várias estratégias de leitura das imagens realizadas critos na íntegra, focando-se aspectos de comunicação verbal e não
por esses estudantes. A análise destas re velou que, na busca de uma verbal. Documentamos vários momentos em que as explicações do
significação para a imagem, eles se engajam em procedimentos ela- conceito de célula e de conceitos adjacentes foram realizadas pelo uso
borados que envo l vem análises de elementos com- de diferentes modos semióticos – ação/gestual, ima-
posicionais, buscas na memória por experiências gem e verbal – na orquestração retórica para a cons-
re l e vantes, estabelecimento de relações com situa- trução de significados. Na análise dos episódios,
ções do seu cotidiano (incluindo experiências esco- examinando a articulação e o fluxo dos modos, veri-
l a res). Observamos que os alunos: O TEXTO ficamos tanto exemplos das relações de cooperação
 fazem leituras descritivas, especialmente de AO REDOR e n t reeles, quanto momentos nos quais se estabelece
aspectos comuns e cotidianos das imagens, re ve- a centralidade de um dado modo. Ob s e rvamos,
DA IMAGEM É
lando dificuldades para identificar elementos abs- ainda, que os modos criaram sentidos de difere n t e s
tratos e que não possuem uma representatividade IGNORADO. maneiras, configurando de forma particular a expli-
em seu universo mais próximo; cação e a re-significação do conhecimento. Verifica-
 necessitam de um tempo para a observação e sig- mos também que os modos desempenharam papéis
nificação das imagens. Imagens com maior densi- específicos na explicação das entidades científicas,
dade de informações remeteram a uma necessi- ou seja, possuem maior capacidade de re p re s e n t a-
dade de pausa para pensar e analisar as possibilidades descritivas; ção em alguns momentos, sendo menos eficientes em outros e, por-
 estabelecem intertextos com outras imagens. Imagens que remetem a tanto, pro p o rcionando distintos sentidos.
outras imagens, a outros contextos interpre t a t i vos aumentam a possibi- Em especial, observamos que nas aulas documentadas as imagens
lidade de entendimentos. Estas funcionam também como um recurso permitiram:
de memória, onde através de outras imagens podem se recordar;  localizar estruturas (e suas possíveis funções) e torná-las dinâmicas
 comparam imagens distintas. Foram atribuídos novos significa- (movimentos, mudanças de lugar etc.), possibilitando mostrar rela-
dos às imagens a partir de exercícios de comparação; ções espaciais entre parte e todo;
 realizam uma leitura seletiva. Destacaram apenas um aspecto pre-  fornecer um cenário no qual alunos e professora podiam pensar,
sente na imagem; localizar e identificar as entidades e suas partes, apresentando e deta-
 utilizam-se de diversos modos semióticos para identificar ou lhando essas entidades;
acompanhar a leitura. Apontar e acompanhar com o dedo das mãos  conduzir os processos de construção de representações, seja atra-
ajuda na leitura e detalhamento da imagem; vés de descrições ou estabelecendo analogias;
 nem sempre fazem uma leitura da imagem no contexto do texto  momentos em que as explicações assumiram um caráter menos
ao redor. O texto ao redor da imagem é ignorado. Em alguns rígido e possibilitaram uma expressão mais criativa e representativa,
momentos os alunos atribuem facilidade à leitura da imagem e acre- inclusive da participação dos alunos na mediação de conceitos e/ou
ditam que o texto não é necessário para o entendimento da mesma; idéias (por exemplo, com o uso de analogias);
 lêem o texto ao redor. Atribuem dificuldade de compreensão da  influenciar na memorização dos alunos (analogias visuais ajuda-
imagem, sem a leitura dos textos anexos. Atribuem importância e ram a lembrar o nome das organelas) e que os alunos se aproximas-
papel pedagógico à legenda. Realizam uma leitura situada das ima- sem de um universo invisível, inacessível, aumentando a possibili-
gens na página, em relação ao texto ao redor; dade de “convencimento” desses alunos.

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CONSIDERA Ç Õ ESFINAISEmconclusão, nossosresultadoscontribuem 12. Vézin, J-F. & Vézin, L. Bulletin de Psychologie, XLI, (386), 655-666.
para a consolidação de uma área de investigação no campo da educa- 1990.
ção em ciências. A importância dessa pesquisa se traduz no seu poten- 13. Kearsey, J. & Turner, S. Journal Of Biological Education. 33 (2) 87–94.
cial para fornecer subsídios para uma melhorcompreensão e avaliação 1999.
danatureza das demandas desses textos e das suas possibilidadesde lei- 14. Reid, D. & Bevridge, M. “Effects of text illustration on children’s lear-
tura, crítica e utilização por professores e alunos em sala de aula. Os ning of a school sc i e n ce topic”, in British Journal of Ed u ca t i o n a l
resultados enfatizam, também, a necessidade de problematizar tanto Psychology, 56, 294-303. 1986.
as condições sociais de produção das imagens, quanto às condições 15. Kress, G. & Van Le e u wen, T. Reading images: the grammar of visual
sociais de produção da leitura das imagens. A primeira perspectiva nos design. London: Routledge. 1996.
chama atenção para a necessidade de considerar as tecnologias e suas 16. Martins, I. “O papel das representações visuais no ensino e na apren-
linguagens específicas no entendimento de imagens. A segunda diz dizagem de ciências”, in: Moreira, A. (org.). Atas do I Encontro de Pes-
respeito às dimensões envolvidas ao considerarmos a leitura na pers- quisa e Educação em Ciências. Águas de Lindóia, 23 a 26 de novem-
pectiva discursiva, isto é, a relação leitor-texto-autor, sentidos de lei- bro, pp. 294-299. 1996.
tura, modos de leitura e suas relações com contextos, espaços e finali- 17. Martins, I. Ensaio – Pesquisa em educação em ciências. Vol. 1, nº 1, set,
dades específicas como, por exemplo, a leitura na escola. 29-46. 1999.
18. Carneiro, M. H. S. “As imagens no livro didático”, in Moreira, A. (org.).
Isabel Martins é professora adjunta do Núcleo de Tecnologia Educacional para a Saúde da Atas do I Encontro de Pesquisa e Educação em Ciências. Águas de Lin-
UFRJ. dóia, 23 a 26 de novembro, pp 366-373. 1997.
Guaracira Gouvêa é professora adjunta da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro 19. Otero, M. R. & Greca, I. M. Cadernos Brasileiros de Ensino de Física. Vol
(Unirio).
Cláudia Piccinini é professora substituta da Faculdade de Educação da UFRJ,da SME/RJ e do 21, nº 1, abr, 35-64. 2004.
NADC/Projeto Fundão, da Biologia (UFRJ). 20. Le m ke, J. L. “Multiplying meaning: visual and ve r bal se m i ot i cs in
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