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O cinema é família. Fazer cinema é um É difícil falar de CLÍNICO sem lembrar da obra “Esperando a Godott”, a eterna espera.

spera. Fortaleza é a cidade


processo longo e difícil. Sentimos que em da espera, dos engarrafamentos, das filas em casas lotéricas, nos supermercados... O tempo e nada
alguns momentos estamos caminhando mais. Como expressar de uma forma nova este tempo carregado de tédio? A longa espera em um
no escuro, tocando, encontrando o filme consultório médico? Talvez esta seja a grande descoberta deste filme. Os rostos... rostos anônimos,
ao longo do caminho que existe desde a cansados, que esperam, olham-se, bocejam, bebem água e... esperam.  Discutem e esperam. Olham a TV
ideia até e esperam. Vêem a chuva cair e esperam. Essa espera raspa com o absurdo, mas, por acaso, nossa vida
sua finalização. Mergulhando entre não é assim de absurda? Algo trágico e cômico se escondem nessa espera, nesse tempo vazio de nada. E,
imagens para transmitir uma emoção, um neste vazio, tudo vai ganhando um peso, até o ar que os personagens respiram.
sentimento. De todo esse processo,
nascem laços, relações, amizades e ARIANAS tem a força da escuridade. Uma imagem: as luzes de um carro que nos deslumbra, o ruído do
equipes de trabalho que colaboram, motor, o carro que sai e nos deixa na escuridão de uma garagem vazia. Com este simples início, temos a
apenas por uma única razão: o amor a sensação de que a angustia se empodera de nós... Sabemos que algo grave vai passar, ficamos de guarda
arte e a paixão pelo cinema. e não tardamos em sentir medo pelo
casal de mulheres que protagoniza o filme. Um casal de duas belas mulheres, em meio a uma casa
“O ser humano se comunica melhor  perdida no interior. Elas, indefesas, compartilham seu amor. O temido e esperado golpe não demora a
através das imagens e dos sons do que chegar. As luzes, que nos deslumbraram no inicio, regressam transformadas em um grupo de homens, que
com as palavras”, segundo observa o invadem a casa dispostos a violar o casal. É aqui onde o filme cresce em qualidade e encontra seu melhor
diretor espanhol Victor Erice. Todo mundo momento: quando estamos preparados para assistir a um estupro, a câmera sai seguindo a um das
sabe que o cinema é imagem e som, mas garotas, em meio a escuridade da noite. A tela em negro - não se vê nada. Essa imagem roubada,
também tem algo mais: o cinema é escondida, causa um sofrimento maior, obrigando-nos a recriar a violação em nossas cabeças. Neste
imagem, som e sentimento. Sem ponto, o filme começa a voar. Cria camadas de sofrimento ao incluir na trilha sonora gritos que se
sentimento, as imagens e os sons se misturam com o das mulheres estupradas. Há grunhidos de porcos, ruídos incompreensíveis que reforçam
esvaziam. Cada plano, cada ruído, tem a ideia de que o cinema é expressividade.
que estar dotado de expressividade, de
No filme TALVEZ FULANA, o mundo parece ter parado. Existe uma atmosfera claustrofóbica, enquadres
um sentimento, de uma força, uma pulso,
precisos, planos fechados, que reforçam esta prisão. Personagens que, encurralados no tédio do seu
um pequeno fragmento de vida. Isto é a
trabalho diário, não podem fazer mais do que sonhar, imaginar, criar histórias, fabular. O diretor consegue,
imagem narrativa, imagem expressiva,
graças a uma boa direção de atores, transmitir o peso do que representa o tempo. Tudo ocorre numa
imagem que conta, que vibra.
farmácia, que fica sem eletricidade. Não há janelas, nem portas. Apenas importa a fotografia, que
O início do processo dos seis curtas-me- sobrevive através da imaginação dos protagonistas.
tragens, que os estudantes do Curso de
CIDADE ETERNA é, antes de tudo, uma experiência, um caminho de retorno ao útero materno, ao mundo
Realização das Vila das Artes (EAV)
das sensações, às luzes, aos sons. Existe nele uma reflexão sobre a falta de certeza, o mundo natural e a
realizaram, nasce desse princípio. Seus
sensação de que somos apenas uma parte ínfima da natureza, bichos que vagam pelo mundo sem rumo,
realizadores buscaram um sentimento
sem um destino marcado. A história começa com um homem que na metade de qualquer estrada perdida
através das imagens que criavam. Seis
fica sem gasolina e tem que seguir a pé, em busca de combustível. O que num principio parece uma
filmes, como seis mensagens em
historia simples, vai se convertendo em algo maior. Assim como o carangueijo que está a ponto de ser
garrafas lançadas ao mar. Seis pequenas
atropelado numa sequência do inicio do filme, nosso homem empreende um caminho sem retorno, onde as
histórias para despertar emoções.
cores já não são as mesmas. Cidade Eterna está ligado à transcedência, ao mundo dos sentidos.

Cada um dos planos de CARTAS PARA SI MESMO estão cobertos de mistério e decadência numa história
onde imergimos numa realidade volátil. O mundo é visto pelos olhos de uma  protagonista alucinada. Uma
cidade e um personagem em ruínas. Tudo é decadência e destruição. Como diz o personagem, tudo está
morto, já não existe história, não existe psicologia, não existe filosofia, me atreveria dizer que não existe
vida. Onde está a vida se não há amor? Cartas Para Si Mesmo não é uma historia linear, é uma historia que
se expande para os lados, que cresce em todas as dimensões. É puro cinema carregado de imagens
explosivas, que mostram o desespero dos personagens. Há boas imagens ligadas à vídeo-arte e a
vídeo-dança. O corpo é utilizado como veículo de sentimentos, a densidade do mar, a câmera lenta, o
tempo paralisado, quebrado em mil pedaços, o homem que se arrasta e dança entre vidros e ruínas de
edifícios. Cartas para Si Mesmo é um filme que te arrasta como espectador, passeia por caminhos úmidos,
por Pablo Arellano sujos e desconhecidos.
cineasta e professor
Talvez a grande descoberta de MIRAGEM não seja unicamente construir uma historia através de fotografi-
Os seis filmes aqui descritos buscam um as, que foram encontradas pela diretora, fotografias sem referente. E não seja haver criado, com estas
caminho na diversidade de um mar de fotografias encontradas, uma historia presente unicamente no som, nas pequenas narrações que dão
imagens e sons. São seis filmes que sentido a estas imagens. A grande descoberta deste trabalho é, sobretudo, realizar uma reflexão sobre a
transmitem uma paixão pelo cinema, que memória, sobre o ouvido, sobre a desaparição das lembranças. Tudo é realizado através de fotografias e
permitem criar novas sensações e sons, imagens que vão perdendo sua cor, que vão deixando de ser palpáveis, imagens molhadas, que se
olhares. Uma porta que se abre para derretem, evaporam com o passo do tempo. Miragem repousa sua beleza no ato de olhar e relembrar, por
novas emoções. Obrigado todos pelos mais que estas lembranças sejam uma mentira, estão vivas. Miragem é um belo trabalho sobre o passo do
seis belos presentes. tempo, o vazio, o desvanecimento de tudo, a perda da imagem, na tela em negro.

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