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Cadernos de História da Educação – v. 11, n. 1 – jan./jun.

2012 307

SOBRE A CIVILIZAÇÃO OCIDENTAL


About the western civilization

Miriam,
Mais que uma teoria, trago em mim os fundamentos
disso que chamei de civilização ocidental.
Para você!

José Maria de Paiva1

RESUMO
Os povos da Europa passaram por duas experiências que estruturaram dois modelos de civilização:
a pós-romana (séc. V-X) em que predominaram as relações afetivas, a unidade sendo privilegiada;
e a subsequente (séc. XI em diante) em que predominaram as relações mercantis, privilegiando o
distanciamento. Este se concretiza marcadamente no individualismo e na racionalidade, moldando
toda a forma de ser do europeu.

Palavras-chave: civilização ocidental, afetividade, distanciamento

ABSTRACT
European peoples went through two experiences that structured two different models of civiliza-
tion: the post-Roman civilization (5th-10th Centuries), in which affective relationships prevailed
and the ‘unit’ was emphasized; and the civilization that followed it (11th century onwards), in
which commercial relationships predominated, emphasizing the ‘distancing’. This ‘distancing’ as-
sumed the form of individualism and rationality, shaping the whole european form of being.

Keywords: western civilization; affectivity; distancing.

Civilização é o termo que designa as culturas praticadas na cidade. Cidade designa


um tipo de sociedade2, grande e complexa, em contraponto com sociedades pequenas,
“primitivas”. Tanto as grandes sociedades quanto as pequenas têm cultura. É preciso,
primeiro, compreender o significado de cultura, para só depois fazer considerações sobre
a cultura da cidade.
As pessoas agem buscando afirmar, mais e melhor, o seu viver. E esse agir, se favorece
suas pretensões, tende a se firmar como costume, gerando um modo compartilhado de
proceder. É preciso pensar esse agir desde as formas mais básicas, como alimentação,
habitação, segurança, reprodução sexual, até as mais elaboradas, como a etiqueta, o

1
Professor do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Metodista de Piracicaba - Unimep;
coordenador do grupo de pesquisa DEHSCUBRA: “Educação, História e Cultura: Brasil, séculos XVI a XVIII”. E-mail:
jmpaiva@unimep.br Observação: Este artigo não está e nem pode estar em sua forma definitiva. Gostaria de receber
contribuições que me ajudassem a aprofundar sua tese e de instigar novos pesquisadores que ampliassem e consolidassem a
hipótese aqui levantada. - Agradeço aos professores Renata Cristina Oliveira Barrichelo Cunha, Luzia Batista de Oliveira
Silva e Valdemar Sguissardi pelas colaborações.
2
Sociedade é uma abstração: o fato de as pessoas estarem sempre em relação não cria uma entidade à parte. O
termo é usado para designar pessoas num grupo estável de convivência.
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pensamento filosófico, a organização social etc. Todo agir visa à sobrevivência em termos
de duração e em termos de qualidade.
O agir é a pessoa se pondo, elaborando seu ser3. E esse se pôr acontece na
relação com as pessoas ao seu redor. A ação de uma pessoa alimenta a ela própria, mas é
configurada pela aceitação das pessoas circunstantes. A convivência, com efeito, leva as
pessoas a modelarem seu agir em conformidade com o agir das demais, possibilitando um
entendimento compartilhado do que seja a vida, a vida pessoal e a vida em comum. Essa
conformação4 dos agires se diz cultura. O desenho concreto que cada agir vai tomando
é resultado dos contatos trocados e, à medida que vai atendendo ao bem viver social, se
põe como modelo, como valor, traduzindo enfim a compreensão que se construiu da
vida. Nada há de a priori: tudo é inventado5. As pessoas em convivência definem, assim,
uma forma6 de ser compartilhada. É isto que entendo por cultura. Assim, não há cultura
padrão, cultura superior: todas exibem a invenção da vida; todas objetivam atender ao
viver em comum, e nisto todas são iguais.
A cultura que se compartilha em dimensões macro, seja em número de habitantes,
seja em termos de território, se diz civilização. Cada civilização tem sua história, ou
seja, causas diferentes podem estar na origem das civilizações existentes. O grande
número de “sócios”, implicando complexidade de relações, leva ao desenvolvimento
de procedimentos e técnicas que atendam com eficácia o modo de vida estabelecido,
promovendo-lhe o bem-estar e o conforto. Leva, ainda, à normatização da vida, gerando
um controle objetivo.
Cada civilização/cultura se fundou sobre princípios que, à distância, poderíamos
descrever em termos abstratos, mas que na verdade são práticos, isto é, são deduzidos
das ações que respondem imediatamente aos objetivos do viver. Eles, de fato, desenham
as ações das pessoas no seu viver social. Em outras palavras, a realização das pessoas
no contexto social a que pertencem se faz por ações modeladas a partir de princípios
historicamente remotos e, por isto, geralmente desconhecidos, mas presentemente
atuantes. Conhecer esses princípios permitiria entender o porquê das ações, do modelo
de ações praticadas, daquilo que resumimos como cultura ou civilização. Todo agir, com
efeito, sabe a realidade7, e expressa os princípios de sua construção. Ele se traduz por

3
Ser é, com efeito, a mais densa de todas as palavras, pois designa e resume toda(s) a(s) realidade(s), enfatizando-
a(s) não como substantivo mas como ação, isto é, em contínua transformação. Pessoalmente, prefiro, em vez de ser, usar
“o é”.
4
Conformação diz de uma forma que se põe, no contexto de múltiplas relações. A conformação sinaliza que a
forma das pessoas se realiza, a cada passo, ao contato com outras pessoas, assimilando o que é delas segundo sua própria
disposição. A conformação leva à similitude.
5
Invenção vem de in venire, chegar a. A expressão enfatiza o papel do chegante, que cria seu próprio caminho,
cria sua forma de vida.
6
Forma é sinônimo de desenho, de configuração. O desenho representa o ser; a configuração faz o mesmo,
subentendendo que o ser é múltiplo, todas as suas partes compondo sua unidade. As palavras têm sua origem na experiência
sensível. Aristóteles, no entanto, usa da forma para significar a realidade tal e qual do ser, compreendendo pois não só as
qualidades sensíveis mas também as qualidades para além do sensível. Não se trata, pois, de uma adjetivação, focando um
aspecto, mas a tentativa de dizer, trazer, expor o é na sua totalidade/integridade. // Forma substantialis definitur: actus
materiae primae (est actus substantialis substantialiter determinans et actuans seu evolvens potentiam materiae primae) (Gredt,
n.253)
7
Os significados são dados na prática: o fazer já comporta seu sentido; não existe atribuição de sentido, somente
explicitação.Com efeito, a própria prática diz. A própria prática é signo. O signo, com efeito, remete a um entendimento:
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experiência8 social, mas a maioria das pessoas aí envolvidas não se dão conta do caráter
inventivo dos gestos.
Para se ter ideia da dimensão do que aqui se chama de princípio ou fundamento
da cultura e da civilização, é útil uma comparação. Suponhamos o mundo, constituído
de objetos variados. Diante dele se postam várias pessoas, cada qual com um aparelho
ocular específico. A primeira tem seu aparelho ocular preparado para ver branco; a
segunda, para ver cor de rosa; a terceira, para ver vermelho; a quarta, para ver preto.
Acontece que os objetos9 são o que são, independentemente das pessoas que os veem.
No entanto, as pessoas vão disputar entre si, cada qual afirmando que os objetos são
da cor que seu aparelho ocular lhes permite ver. A afirmação do que as coisas são – e
isto passa despercebido entre os contendedores – deveria obrigar imediatamente a uma
reflexão sobre si mesmos, se perguntando como acontece o entendimento. Mas ninguém
o faz: tem-se como espontâneo e natural, e portanto inquestionável, o entendimento
compartilhado, como se fosse o modelo único. O entendimento, no entanto, nasce da
prática que, inventando gestos, o inventa. Não se trata, pois, de uma faculdade adjunta,
que tem por função atribuir sentido: a prática, ela é de per si significante. A prática,
sozinha, já diz!10 Isto nos instiga e permite inquirir sobre a prática que levou ao que
chamamos de civilização ocidental.
Comparando culturas diversas, com efeito, observamos gestos muito diferentes
para expressar o viver. Cada sociedade entende o real à sua maneira, define o real para
ela, tem um olhar próprio sobre o que a envolve, isto é, vive à sua maneira, cada qual
com seu globo ocular específico e, portanto, com sua visão, com sua leitura.É isto que
vamos encontrar na História das culturas/civilizações: princípios diferentes que moldam
diferentemente o real, ou seja, a vida social, a vida. Por isto, se afirmou acima que cada
cultura/civilização tem sua história.
Estamos afeitos à estrutura11 da civilização europeia, de tal forma que não
questionamos sua explicitação, aceitando seu modo de pensar o real como se fosse, se não

remete, pois, à pessoa, e esse entendimento se compartilhacom os demais membros do grupo. Esse entendimento traduz o
próprio ser da pessoa que o tem: o éda pessoa que se põe se desenharia nesse momento com essa forma. Se pôr é se saber! Se
pôr é sinônimo de prática. Prática é, pois, sinônimo de se saber, de conter significado. Este entendimento, por sua vez, leva
à conclusão de que todo o real procede da pessoa, agora devidamente posta como sujeito. As coisas são pertinentemente
postas como objeto, não como algo dizendo de si, mas como significadas por outro; nunca se chega ao objeto como ele é,
e tão somente como ele é percebido. Esta relação não é abstrata, mas determinada pela subjetividade de quem se põe em
contato com, o significado assumindo a determinação afetiva, portanto pessoal.
8
O vocábulo experiência e seus derivados têm uma carga muito forte de significado: querem explicitar
precisamente o ato do viver, tal qual acontece. Experiência não deve ser tomada como adjetivação do sujeito, mas como
expressão do seu próprio sendo. Etimologicamente, o ex indica um movimento “para fora”, um como sair de si; o per,
segundo Bréal e Bailly (1911, p. 259), vem do latim sperior, verbo desusado, (em grego, πειραω) significando ensaiar, tentar,
pôr à prova. Περάω, atravessar, περαινω, ir até o limite, sugerem uma travessia que o eu realiza como que para fora, dentro
dos seus limites, isto é, de suas possibilidades (potentia), dentro pois do seu eu,o que nos permite pensar a experiência
como a forma de ser do eu.
9
Objeto, etimologicamente, quer dizer (algo) posto diante de. A própria palavra diz relação: não diz a coisa; diz
a coisa em relação com.
10
Este entendimento da prática obriga a um questionamento sobre o intelecto, tido comumente como uma
faculdade voltada para o teórico, agindo em terreno específico independente e próprio,e, por isto,desobrigada(afastada de
laços). Ver nota 13.
11
Entendo por estrutura o princípio de disposição das partes, princípio este que reúne as múltiplas partes no uno,
explicitando sua coerência e seu significado. As partes pareciam soltas, quase in se. O princípio estrutural as traz à unidade.
A unidade não é consequência, mas origem, arché: as partes são manifestações.
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o único, o mais perfeito. Por várias razões é preciso conhecer seus fundamentos. Destaco
duas: primeiro, para entendermos o que seja conhecimento, isto que estabelecemos como
excelência humana; segundo, porque também essa civilização é provisória, achando-se
com efeito em estado de contínua transformação.
É evidente que num artigo é impossível conjugar sequer as principais raízes dessa
civilização. A multiplicidade de expressões da vida humana, feita de relações interpessoais,
não se resume a alguns traços, ainda que se lhes atribua importância categórica. Um
estudo, para merecer consideração, deve se deter sobre a conformação das relações.
A conformação sugere pistas para o entendimento que as pessoas têm do seu próprio
viver, sempre em relações – o que implica combinação da variedade de comportamentos,
reduzindo-os a um ato, que é o ato de vida. Este é uno, se expressando em multidão de
gestos, sempre inventados. Não há como isolar, mesmo que para análise, um campo da
vida social: todos devem estar pressupostos e comprometidos, senão a vida se torna uma
abstração vazia. A escolha, pois, de um aspecto não isenta, antes o obriga, de mostrá-lo
na cumplicidade com todos os demais, porque esta é sua realidade.
Isto pressuposto, o objetivo deste artigo sobre a civilização ocidental é realçar um
fator que se distingue pela fecundidade e plausibilidade de explicação, compreendendo
o desdobramentodas pregas da roupagem social. Toda explicação, com efeito, desdobra,
artificialmente, a unidade do ser, a unidade da pessoa. A unidade, em si, compreende
sem agitação todas as expressões da vida, conformando-as definitivamente12. Por isto o
historiador deve pressupor sempre o “funcionamento” da unidade, a ela se referindo na
explicação que dá dos fatos.
O fator, que aqui assinalamos para o estudo da civilização ocidental, é a prática
mercantil, em maior exposição no grande comércio13. A análise histórica deve enfatizar
este fator, sempre insistindo que seu surgimento se deu no contexto das demais expressões
da vida em sociedade, ou seja, referindo-o à sua unidade. A unidade se explicita em cada
modo seu, informando cada um deles. Assim, a prática mercantil deve ser historicamente
descrita a partir da sociedade que a exercitou, em harmonia com todas as demais práticas.
Não há uma prática determinante em si e por si, autônoma, independente, e eficaz. É
preciso voltar sempre à sociedade, que esta, sim, põe uniformemente o seu é. A ênfase
num fator, só se justifica pois, pela conformidade e pela fidelidade ao todo. Isto é o que
lhe garante a plausibilidade.
Falta a uma grande parte dos historiadores a sensibilidade para perceber os fatos
históricos como expressões sintéticas das relações entre pessoas, pessoas com uma
determinada significação do mundo, isto é, da realidade. As pessoas às mais das vezes

12
As palavras definir e determinar se compõem de finis e terminus mais a preposição de. Tanto finis quanto
terminus se traduzem por fronteira, marco divisório, limite. De significa vindo de, procedendo de, saído de. Definição e
determinação assinalam primeiramente os limites, a partir dos quais, como que num processo de convergência, se compõe
o campo. Definir e determinar expressam, assim, primeiramente a convergência; só com a evolução dos significados
passaram a expressar prescrição; dizem, primeiramente, o campo dentro, só secundariamente o campo fora.
13
Comércio, que etimologicamente significa mercar com, substituiu a palavra mercancia usada nos primeiros
tempos. Grande comércio quer indicar não só a extensão territorial que há entre o vendedor e o comprador, mas sobretudo
o complexo estrutural desenvolvido. Mercancia tanto significa o ato de comerciar, quanto a coisa mercanciada, ou seja, a
mercadoria. Neste artigo, usamos o vocábulo no primeiro significado. O adjetivo próprio é mercantil.
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desaparecem, os fatos se sobressaindo. Os fatos parecem subsistir em si, sem pessoas.


A narração dos fatos, contudo, está umbilicalmente ligada à compreensão do viver, este
se dando sempre em sociedade, por pessoas. A pergunta que está, pois, na base de toda
História é esta: – que compreensão do viver tinha a sociedade em foco? O significado
não procede do fato em si, mas das pessoas que, inter-relacionadamente, o praticam.
Os significados, como assinala a nota seis, são postos enquanto prática.É nestes termos
que afirmamos que a prática detonadora14 da virada civilizacional da Europa foi a prática
mercantil, o grande comércio15.
O objetivo deste artigo é, efetivamente, demonstrar, via grande comércio, a
transformação da civilização ocidental. Trata-se de um processo multissecular. Este
estudo poderia ser feito analisando o período greco-romano, como poderia ser feito
sobre a experiência dos egípcios, assírios, caldeus, palestinos, persas, chineses, indianos,
fenícios, observando como interferiu em cada cultura16. Tomamos, no entanto, como
ponto de partida a experiência europeia ao tempo dos “bárbaros”17 para fazer o contraste
com o renascimento do grande comércio por volta do século X, gerando a cultura até
hoje vigente.
Os romanos, nas pegadas dos gregos, tinham desenvolvido uma cultura racional, o
comércio e a guerra de expansão contribuindo para isto. Roma assimilara a cultura grega,
adequando-a a seu estilo. Este marcou os limites do processo de assimilação. O grego se
caracterizava pela abertura de entendimento da realidade, ou seja, pela disposição de des-
cobri-la; o romano, por sua vez, tinha uma tendência contrária: enquadrava a realidade
num sistema, a fixidez e a imobilidade aparecendo como características singulares.
Desde o início do séc. II d.C., o Império Romano18 se vê atingido por hordas
bárbaras, que procedem da Ásia, como os Hunos, ou do Norte da Europa, como os
normandos, em busca de solução de problemas vividos. São muitos povos. Eles descem
e se assentam, convivendo com os romanos. Esses povos, diversamente de romanos e
gregos, não estavam estabelecidos, não se prendiam a territórios: acomodavam-se onde
as condições eram favoráveis à sobrevivência. A falta de território sinaliza a compreensão
que esses povos tinham da vida: a fixação, com efeito, está ligada à provisão do que se
julga necessário para ela; prover implica cálculo; cálculo implica distinção.

14
Detonar >detonare → tonare é a ação do trovão, tonitruum, o de indicando intensidade. Implica o sentido de
algo que causa medo, por fugir às regras e ao domínio do homem.
15
Seria necessário analisar o comércio na história dos povos nos últimos cinquenta séculos, observando como se
conformou e como interferiu em cada cultura.
16
Não se pode inferir que a ação mercantil sobre a forma de ser aconteceu da mesma maneira em todos os povos:
outras propriedades podem ter-se imposto com maior força, destacando-se no conjunto de “influências” sobre o modelo
de relações construído. Os estudos históricos devem destacá-lo. Nossa análise se restringe à cultura ocidental, marcada
pela presença primeiramente grega e depois romana. E se limita aos aspectos mercantis, aguardando pois novos estudos que
relacionem entre si os mais diversos fatores da vida em sociedade, como religião, língua, sociabilidade, organização política,
organização familiar etc.
17
Bárbaro, palavra grega, significa estrangeiro, aquele que é estranho. Daí também o estranhamento, pelo grego,
da cultura dessa gente, atribuindo a seus gestos qualificativos depreciativos. Não se trata de povos “primitivos”, na acepção
da primeira Antropologia: eles tinham mesmo uma cultura complexa.
18
A imagem que trazemos do povo romano é a de uma civilização democrática ─ só possível quando há indivíduos
─ e letrada. No início vivia do campo (agricultura, pastoreio) e, com a expansão, o comércio preponderou. A expansão
aconteceu gradativamente, desde o século III a.C., por toda a região do Mediterrâneo, e se estendeu ao Oriente, para onde,
já no século IV d.C., se transferiu a sede do governo central (Constantinopla).
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Insiste-se nos livros na rudimentariedade19 de sua organização social, de suas artes,


de suas técnicas, justificando subliminarmente a inferioridade do bárbaro que os define.
Na verdade, esses povos tinham uma cultura desenvolvida. Ela era marcada por duas
qualidades que informavam todos os seus gestos, inclusive o contato com outros povos:
contrastando com o romano, o bárbaro se sentia presente20 ao mundo em que vivia e,
segundo, praticava a forma comunitária de vida21. Isto precisa ser realçado. Comunidade
implica envolvimento, a ponto de cada um se sentir parte do outro. Esta compreensão
foi, mais tarde, chamada de corpo social, segundo a qual todos participavam igualmente
da realização do bem comum, cada qual segundo sua competência. A diversidade de
competências, ao contrário de ensejar oposição, enfatizava a complementação mútua,
a necessidade da participação, a contribuição de cada parte, valorizando-as enquanto
integrantes e integradoras do todo social. Desta forma, a variedade de competências
acontecia no aconchego das relações sociais, estas plasmando atividades que atendessem à
vida comum. É desta forma que devemos observar seu modo de organizar a família, a vida
social, o governo, a guerra, as artes, as técnicas, os cultos, as profissões, as soluções que se
davam a cada tipo de problema que se punha, as explicações que davam para justificar os
modelos de comportamento e os valores. O ser comunidade preponderava em todos os
gestos e explicações,22 a afetividade23 expressando o que de mais próprio o define.

19
Le Goff (1983, p. 37-38) assim expõe: “... tinham já evoluído bastante durante as deslocações, em vários casos
seculares, que por fim os lançaram sobre o mundo romano. Tinham visto muito, tinham aprendido muito e não tinham
deixado de o fixar. Os caminhos percorridos tinham-nos levado a contactar com culturas e civilizações em que recolheram
costumes, artes e técnicas. A maior parte deles tinha sofrido, direta ou indiretamente, a influência das culturas asiáticas,
do mundo iraniano e do próprio mundo greco-romano especialmente da região oriental deste, que, enquanto se ia fazendo
bizantina, continuava a ser a mais rica e mais esplendorosa. // Traziam consigo técnicas metalúrgicas muito evoluídas, as
incrustações, as técnicas da ourivesaria, a arte do couro e a admirável arte das estepes, com os seus motivos animalescos
estilizados. Tinham sido, em muitos casos, seduzidos pela cultura de impérios vizinhos e criara-se neles uma admiração
pelo seu saber e pelo seu luxo ...”
20
Duas observações: a) presente, de prae esse(ns), sendo “diante”: toda a realidade estando ali. Por isto, o presente
não combina com o distante. O tempo, por exemplo, se con-fundia com a própria existência, enquanto percebida como
sucessão de experiências na unidade do sujeito. b) Autores há que qualificam o modo de os bárbaros se relacionarem de
personalismo, assinalando como exemplificação as diferenças de status.
21
A comunidade se funda na pertença afetiva de cada um ao grupo, por cada um ser parte do todo – o todo sendo
indivisível; as partes se unindo, pelo que lhes é específico, para o bem estar do todo. O sentir-se parte conforma as ações, as
relações. (Sobre esta abordagem, consultar Hespanha, 1994, 297-307). Segundo Bréal & Bailly (1911, p 206), comunidade
vem de cum mais munus, cargo: o communis tem o mesmo “cargo”, ou seja, no grupo todos são iguais no desempenho
da função mais importante, a manutenção da unidade. Eles afirmam ainda um parentesco entre munus e moenia, muralha,
cerca: as comunidades demarcavam seu espaço por cercas ou muros; ali é que era seu lugar.
22
Comunidade não se opõe a diferenças; antes, implica-as. Estas se dão em termos de posição social (nobreza,
plebeu, escravo), de funções (governo, magistratura, sacerdócio, comércio, ofícios etc.), de benefícios (riqueza, moradia,
conhecimentos, status etc.), como se dão também em termos de entendimento e interesses pessoais, cada qual acreditando
estar buscando o melhor. O ser comunidade não supõe conformidade, mas conformação (Ver nota 3). O que, de fato,
perpassa todos os membros é o saber-se partícipe, comungando pois com os demais dos destinos da vida. O leitor tente
descobrir a unidade que marca a vida em comunidade, evitando a leitura anacrônica pautada na sociedade individualista.
23
Entendo por afetividade (de ad factus, feito para, feito/transformado na direção de, segundo) a relação
participante, isto é, em que as pessoas se põem como partes de um todo, como feitas para o outro. O oposto de afetividade
é distanciamento, em que as pessoas se põem como totalidades. O afeto é a disposição do eu para o outro; o eu se dispõe,
i.e. se põe em aberto, se deixando transformar segundo o outro que se lhe põe em contato. O afeto diz respeito ao
estado do eu; traduz uma nova qualidade. Não é adjetivação, mas transformação qualitativa, ou seja, essencial (de vida).
Contrapõe-se, assim, a racionalidade, que implica distanciamento. O afetivo se põe como marca da relação familiar, da
relação feudal (vassalagem), da relação de amizade.
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O assentamento destes povos em terras do Império levou a uma transformação,


de parte a parte, da forma própria de ser24. Racionalidade romana e afetividade
bárbara se encontraram. A afetividade bárbara predominou a partir do século V, com
o desmoronamento do Império Ocidental,25 já não encontrando resistência para suas
expressões culturais. A religião cristã romanizada sintonizou bem com essa cultura, pelo
seu caráter moralista26, e assim se difundiu pelos diversos povos federados27.
Do ponto de vista de organização política dois fatores devem ser observados: de
um lado, o caráter comunitário das sociedades bárbaras, que levou à valorização do grupo
pequeno, à mão; de outro lado, a diluição do comércio romano, que levou à decadência
das cidades e, instrumento de sobrevivência, ao estabelecimento no campo.28 Este se fez
na dependência do proprietário da terra, originando-se então uma forma de convivência
pautada na produção dos bens necessários à sobrevivência e na efetivação da segurança. A
forma desenvolvida foi o feudo, ou seja, a pequena comunidade, fundada na aliança pela
sobrevivência. Os bárbaros predispuseram o quadro em que o feudo se faria solução.
Por as pessoas, neste tipo comunitário de sociedade, se porem inteiras nas relações,
o senhor exercia seu poder plenamente, não distinguindo pois trabalho, família, ordem
social, Direito etc. As pessoas, revestidas de suas competências, eram o critério de
modelagem dos costumes, dos valores, das crenças, da produção, do discurso. Tudo isto
se fazia segundo a conveniência da sobrevivência. A convivência se plasmou, assim, pela
adesão29. Deste modo, a comunidade se punha de uma forma acabada, completa, nada lhe
faltando, ou seja, o presente se lhe punha como totalidade. O fim se realizava em quietude.
Isto se constata nas relações, em que a diferença de posição não significa exclusão, mas
explicita a complementaridade. Isto se constata nos gestos repetidos, voltados para a
reprodução do que é: a produção de alimentos e o mais necessário para a vida cotidiana,
as celebrações religiosas sempre repetição da eterna Presença, a etiqueta explicitando as
posições dentro da ordem, o muro (cerca) como prática expressiva da unidade, expondo
o perigo do estranho, o isolamento se fazendo constância. Isto se constata nas artes,
de uma ingenuidade (naïveté) que compreende o todo numa visão que não fragmenta.
Isto se observa na percepção do tempo, que não se dá como medida, exterior pois, mas
como vivência sucessiva, um ser nos seus estares harmoniosos – o que nada tem de
atemporalidade nem de indiferença.

24
Aqui seria o lugar para descrever a compenetração das culturas, em todos os seus aspectos. - Um caminho
bastante ilustrativo seria o estudo da legislação, evidenciando tanto o entendimento que se tem quanto o modelo da ação a
se praticar.
25
O Império Oriental continuou vigoroso, se distanciando cada vez mais da Europa bárbara, por razões mercantis,
conformadas, mais adiante, com o islamismo. // Uma descrição vívida dos efeitos sociais da queda de Roma, encontramo-la
em P. Courcelle, Histoire littéraire des grandes invasions germaniques.
26
Moral diz dos princípios que regem o comportamento. Entendendo o ser como ação, a Moral se põe como
o fundamento da significação da realidade, o significado procedendo d’o que vale. O cristianismo não pregou princípios
teóricos, mas modelos de comportamento.
27
Esta qualificação se acha em P. Courcelle (1948, p. 10).
28
Para se imaginar o contexto destas mudanças, considerando a população e o espaço geográfico, ler, de Jacques
Le Goff, a segunda parte de A civilização do Ocidente medieval.
29
Adesão vem de adhaesio, ad haereo, prender-se a: a adesão é um estado de compartilhamento; tem o significado
de afeto.
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A sociedade europeia foi se fazendo, assim, numa sociabilidade que denominaríamos


familiar, as relações se modelando sobre os interesses30 das pessoas e, não, sobre o papel
que elas exerceriam no contexto social. Os traços marcantes da cultura romana foram se
acomodando às expressões bárbaras, a lógica perdendo espaço. O desaparecimento do
comércio, o perigo do inimigo à vista, a perda de referência a um centro dirigente levaram
à concentração em área rural, favorecendo desta forma o convívio familiar. As distâncias
entre os povoados e os limites impostos pela floresta31 confirmavam a excelência desse
modo de convívio. Costumes e valores foram se adequando ao modelo. A linguagem,
explicitadora desses costumes e valores, se pôs em termos religiosos: tudo resplandecendo
a presença divina.
Foi assim que se compreendeu o universo como uma ordem32 em que a presença e
a atuação de Deus se punham como princípio germinativo. Todas as partes dessa ordem
como que testemunhavam essa presença e, destarte, agiam como expressões de Deus.33
Quer dizer, tudo o que faziam era para a glória34 de Deus, fossem atos de culto, fossem
atos de governo, atos militares, atos políticos, atos comerciais, relações familiares e
sociais etc. O Homem se sabia parte de Deus, e como tal agia.A própria distribuição das
pessoas na ordem obedecia ao grau de proximidade com Deus e com seu representante
imediato, cabeça do corpo social, o rei. Por isto, a vassalagem, sinteticamente expressa
pela honra, exibia bem o modelo social. Religiosidade se pôs, assim, como expressão
síntese da percepção que se tinha então do mundo.
Há que se analisar os documentos dessa época para perceber como os mais diversos
atores sociais comungavam desse entendimento. Não só a Teologia se põe como expressão
de vivência, vivência em Deus, mas também o Direito e a scientia, e ainda o linguajar
do dia-a-dia. Desaparece a preocupação filosófica, abrindo-se espaço para a busca da
felicidade que, em termos cristãos, se chamou de salvação.
A prática social deste modelo assentou-se sobre o sagrado. A religião se pôs, assim,
como linguagem. Não se trata de abstração! Por isto é importante observar como essa
sociedade se organizou. Assim, se entenderá, sem preconceitos, por que o clero, investido
que estava das funções sacrificiais, se destacou, a Igreja se firmando como instituição de
prestígio. Assim, se entenderá por que os governantes argumentam através do sagrado
para justificar suas decisões; por que também o povo explica os acontecimentos e seu
comportamento pelo sagrado. A linguagem traduzia a motivação. A motivação desenhava
a vivência.

30
Interesse vem de interest → aquilo que importa a. O interesse essencial é o que diz respeito à vida. A vida, a
pessoa, com efeito, se define bem pelo interesse, este ditando o caminho a seguir, configurando as expressões.
31
A vida dos europeus desta época acontecia em pequenos povoados, rodeados por grandes regiões vazias, por
florestas. O significado de floresta se aproximou de vazio, de deserto, representando o desconhecido, a solidão, o perigo,
a falta de proteção, a ameaça.
32
ordem → disposição das partes formando um todo. [disposição → posição das partes em lugares diferentes)
33
Isto não quer dizer que não houvesse pessoas que discordassem. O consenso se pautava na única verdade. O
discordante corria, pois, o perigo de se perder. Daí a necessidade do castigo: trazer de volta o discordante.
34
expressão para a glória de Deus traduz a conformação dos atos humanos segundo a crença de que nele vivemos,
nos movemos e somos (At. 17, 27). Os atos assumem a estrutura divina. A expressão confirma, assim, o entendimento da
pendência de (ab, from) Deus do ser do homem (de-pendência). Não significa, de maneira alguma, algo que se acrescente
a Deus.
Cadernos de História da Educação – v. 11, n. 1 – jan./jun. 2012 315

Este estado de coisas foi se construindo desde o início da era cristã, se consolidando
por volta do século V. Teve-se, então, uma sociedade relativamente homogênea,
caracterizada pelas relações pessoais, numa formatação religiosa cristã. Este modelo
vigorou até por volta do século X. O surgimento do grande comércio35 alterou os
fundamentos da convivência, levando à experiência mercantil36 e provocando, destarte,
uma mudança que lentamente transformou toda a civilização. É preciso nos determos
na análise dessa experiência, observando os móveis fundamentais e como as expressões
foram por eles atingidas e modificadas.
Não basta, com efeito, atribuir ao grande comércio o momento de inflexão da
civilização europeia, como o fazem os historiadores: é preciso mostrar em que consiste a
prática mercantil, para poder observar a nova configuração das expressões sociais.
Para um economista talvez, a prática mercantil poderia ser rigorosamente definida
como a passagem da propriedade de um objeto, de um mercador para um comprador,
mediante dinheiro. Quando me proponho a analisar a prática mercantil, me dou conta de
que prática nada mais é que uma relação entre pessoas, uma agindo sobre a outra. O que
está fundamentalmente em jogo nas práticas sociais são as pessoas como tais, sem reduções,
sem abstrações. Estas têm uma utilidade instrumental, voltada para o entendimento de um
aspecto de uma realidade em pauta, mas se circunscrevem à instrumentalidade delimitada.
As ciências nos têm ensinado o valor dos aspectos e dos conceitos, mas não conseguem
dimensionar a realidade na sua inteireza. Ora, quando se trata de pessoas não há como
se restringir a aspectos: é preciso dar ênfase à totalidade. Nestes termos, mais do que
captar características próprias do conceito prática mercantil, nossa análise deve observar
a transformação que se opera nas pessoas em relação; no caso, nessa relação concreta que
tem como referência o interesse37 por um objeto determinado, um propondo a venda, o
outro propondo a compra. Em outras palavras, na prática mercantil todo mercador se
põe como totalidade, uno na sua multiplicidade. É preciso acompanhá-lo para observar a
alteração que essa prática lhe causa. Os primeiros mercadores fizeram suas experiências
assentados sobre os modos de ser que lhes eram próprios, fundados ainda sobre o afeto.
A prática mercantil foi se firmando, conformando as práticas sociais. Com efeito, uma
vez posta em ação, ela não só recebe a influência das demais práticas, como também
as transforma, segundo sua força38. Por isto, o importante de toda análise é observar
como uma prática mexe com todas as demais, com atenção ao princípio da multiplicidade
na unidade. A análise que faremos da prática mercantil supõe este entendimento. Post
factum, sabemos que ela se sobressaiu na configuração das demais práticas, criando assim
uma nova forma de ser, ou seja, uma nova cultura.

35
Este artigo não faz história do comércio: seu objetivo é analisar a prática mercantil para observar sua influência
na forma de ser do europeu. É importante salientar o papel do Oriente no desabrochar do comércio europeu. - Sobre
a história do comércio, ler, entre outros, de POLANYI, Karl. A grande transformação: as origens da nossa época;
HUBERMAN, Leo. A riqueza do Homem.; LE GOFF, Jacques. Mercadores e Banqueiros da Idade Média; FOURQUIN,
Guy. História econômica do Ocidente medieval; DAY, Clive. Historia del Comercio; LEFRANC, Georges. Histoire du
Commerce.
36
Mercantil sinaliza, doravante, toda a modelagem da forma de ser europeia. Extrapolando o restrito campo
econômico, sinaliza a nova formatação do entendimento radicada, como veremos, no distanciamento.
37
Na vigência da civilização mercantil, o interesse se afasta do sentido de fomento à vida e se põe no contexto dos
negócios.
38
Força diz do grau de fomento à vida.
316 Cadernos de História da Educação – v. 11, n. 1 – jan./jun. 2012

Analisemos a prática mercantil. Nela o mercador tenta vender ao comprador um


objeto. Vender e comprar atendem ao interesse de um e do outro. É preciso observar como
um e outro caminham nesta relação, ou seja, como um e outro, realizando o interesse
mercantil, se transformam em sua totalidade. Fiquemos com o mercador.
O vender algo desperta nele imediatamente novas atitudes, novas considerações,
novo modo de pensar e entender a realidade. Do objeto, que se propõe vender, ele tem que
saber o que é, para que serve, que material foi usado em sua fabricação, qual a tecnologia
desenvolvida, sua resistência, durabilidade, estética e outros aspectos. Tem que conhecer os
meios de transporte, de forma que seu produto não seja alterado; a segurança, de tal forma
que a mercadoria chegue sem defeitos; a forma de pagamento, de modo a assegurar o objetivo
último da venda; a concorrência que pode minar lhe os planos. Tem que saber do custo de
todas as operações. Para cada item tem que inventar soluções, como melhoria das estradas,
aperfeiçoamento da tecnologia de transporte, condicionamentos adequados, armazenamento
e provisão, sistema bancário, contabilidade, organização em companhias etc.
Em decorrência da nova prática ele começa a adotar novas maneiras de viver.
Estas novas experiências se traduzem em entendimento, hábitos, valores, instituições,
instrumentos: reinterpretações de toda sorte. Assim, a história do comércio explicita
uma transformação radical da forma de viver em sociedade. É preciso acompanhar essa
história e observar o passo a passo em cada região da Europa, buscando suas diversidades
e compondo o desenho da nova civilização.
Todo este processo, que chamamos de prática mercantil, supõe uma questão básica,
que toda a história do comércio nas suas mais variadas especificidades e originalidades
subentende: – o que visa a pessoa do mercador com o mercar? A resposta imediata é:
–o lucro. Para quem? – Para ele próprio. A mercancia, com efeito, busca a acumulação da
riqueza através do lucro. O lucro, o mercador o busca para si, não mais para a comunidade,
dela se distanciando. Isto induz a separação, quebrando a unidade do corpo social,
instituindo o individualismo. Isto fere a forma afetiva de convivência, em que a pertença
ao grupo determina o entendimento e a reprodução da realidade. Esta prática repercute
nas relações sociais. A prática de realização do seu interesse, agora distinto do interesse
comum, o vai convertendo em separado, em indivíduo. Ponhamos estes termos no plural,
os mercadores buscando, cada um para si, o lucro de sua iniciativa: toda a sociedade vai,
aos poucos, assimilando os efeitos deste gesto, o individualismo se estabelecendo como
padrão de vida social.
Fixa-se, assim, uma característica fundamental de um novo modelo de relações
sociais, de um novo modelo pois de sociedade. No cenário da sociedade, as pessoas
desaparecem, dando lugar ao individuo, aquele que não se divide, aquele que não
compartilha, constituindo um mundo à parte, uma totalidade, um sozinho. Deixando de
se sentir parte viva da comunidade, a pessoa humana se esvazia daquilo que caracterizava
as relações: o afeto, travando doravante com os demais membros uma relação tática,
artificial, funcional, instrumental, estratégica. Deixa de ser pessoa39para ser indivíduo. O

O significado de pessoa, para nós hoje, designa o que de mais próprio cabe a cada ser humano, o que é sinalizado
39

pelo nome. Etimologicamente, pessoa designava a máscara usada pelos atores do teatro, indicando que, por intermédio do
Cadernos de História da Educação – v. 11, n. 1 – jan./jun. 2012 317

indivíduo não se põe, com efeito, como parte do todo, senão como um outro todo; não se
põe como inteiro, senão em um aspecto, escondendo os demais. O individualismo supõe
o desmanche dos laços que faziam de cada pessoa uma parte de um todo, desmanchando
consequentemente o próprio todo. Dá-se uma separação, impõe-se um distanciamento,
tem-se um esvaziamento. Separado, distante, vazio, este é o significado histórico de
indivíduo40.
O objetivo maior do mercador em sua prática mercantil, a obtenção do lucro, levou
à experiência do individualismo, marcando definitivamente pessoas e coisas, conformando
as expressões sociais. Pessoas e coisas já não são postas como tais pessoas, tais coisas, mas,
ao estilo de mercadoria, com qualidades a elas artificialmente sobrepostas41. Ser mercável,
ser vendável, isto é, ser instrumento de lucro, de enriquecimento, esta é, doravante, a face
do real. As qualidades refletem não a beleza do real, mas sua utilidade. Pessoas e coisas são
esvaziadas do que mais propriamente lhes cabe, e se fazem generalidade. As pessoas são
vistas pela sua função42; as coisas, pela sua mercabilidade: função e mercabilidade cabendo
a todas, não sendo de nenhuma. O argumento das relações sociais é a mercabilidade. Daí a
necessidade de propaganda: a arte se impondo; melhor, o artificio. A propaganda, herança
adulterada da retórica, se centra na exaltação de qualidades, reais ou presumidas, visando
criar necessidades por parte do possível comprador, de tal modo que ele sinta precisar
satisfazer-se.
Na ação de mercar há, por parte do mercador, um como sair de si, deixando para trás
o que tem de mais pessoal, para ir impessoalmente em busca de quem possa satisfazer os
seus interesses. O comprador também se relaciona com o mercador nos mesmos termos.
Um e outro aprendem a se comportar assim, o pessoal se desvanecendo, o funcional se
fazendo praxe; o contemplativo perdendo espaço para o ativo43. A distância interposta
entre as pessoas obriga a uma atitude de busca, esse ir ao alcance de, fazendo-se marca
de todos os tipos de relação, modelando uma nova civilização. A distância se põe, então,
como estruturante de toda compreensão, de todo agir.
O pensar assim se modela. Se percebendo distante, o mercador precisa conjugar
o outro, compor o disperso, reduzindo-o à unidade, uma unidade agora artificial, mas

ator, se punha presente alguém que estava ausente. Este era re-presentado. A figura da máscara calharia bem no contexto
mercantil, em que a própria pessoa oculta o que lhe é mais próprio e como que se disfarça para o outro, acentuando o
próprio esvaziamento. Aliás, essa figura foi criada no contexto mercantil da Grécia antiga.
40
Indivíduo é “o que é em si não dividido, dividido porém dos outros”. (S.Th., Iª, q. 19, a.4) Duns Scotus “recorre
à hecceidade, que é a própria determinação indivídua distinta dos outros graus por uma distinção formal real, e pela qual se
tem esta matéria, esta forma ...” (Boyer, 482-483)
41
Na mercadoria se vê a coisa enquanto indutora de lucro. Exaltar suas qualidades tem por fim convencer o
comprador e, não, contemplar a beleza da coisa. A coisa é esvaziada do que mais propriamente lhe cabe, e se faz generalidade:
todas as coisas se definindo pela qualidade de ser vendável. Na convivência social se procede semelhantemente: as funções
se sobrelevam às pessoas, mormente a função de comprador.
42
Função: antes de mais nada, a função é um padrão de relação fundado na divisão do real. O real é dividido em
sub-totalidades, quase que autônomas, a relação podendo se dar em circuito fechado, sem expressar a totalidade. Assim,
a pessoa do mercador, agindo na sub-totalidade “mercancia”, interage como mercador, não expressando senão o que diz
respeito ao mercar.
43
Contemplar é a atitude de quem se acha diante da plenitude. A sociedade dita medieval, fundada na presença
ativa de Deus, constituindo-se pois como um corpo acabado, se via como plenamente constituída. A experiência mercantil,
fundada no distanciamento, levou à necessidade de buscar o outro, fosse o próprio Deus, fossem os homens. Contemplar
se contrapõe a buscar, contemplação a ação, contemplativo a ativo.
318 Cadernos de História da Educação – v. 11, n. 1 – jan./jun. 2012

necessária para enfrentar a vida social. Seu pensar se converte, assim, em instrumento de
organização das variáveis. O mundo desassossegado da mercancia desfaz a unidade do
corpo social, as partes se distanciando umas das outras, fazendo-se absolutas. Leva, com
premência, a um novo pensar, correspondente à desordem das partes. O distanciamento,
com efeito, lhe impõe uma estratégia na tentativa de articular o avulso. A segurança44 urge
a necessidade de combinar o que está espalhado.
Assinalei acima as novas questões que o mercar levanta. Assinalo agora a estrutura,
talvez a consistência, da resposta do mercador. Seu pensar se constitui sobre a distância,
a realidade se pondo por etapas: o mercador é impelido a aprender a calcular, a operar
com a perspectiva, a planejar. O planejar se lhe põe, assim, como exigência da natureza,
ela agora toda fragmentada, de tal modo que se evite a frustração. Planejar é reconhecer a
divisão, a distância. A figura é eloquente: dentro do chão limitado, que é a circunstância,
há que se traçar uma linha reta, isto é, que governe as ações, possibilitando o sucesso. No
espaço desde então distanciado, cada ser em sua própria órbita, o mercador é impelido a
aprender a calcular: joga com variáveis sem número, tentando estabelecer uma ordem que
lhe permita o controle do circunstante.
O pensar se transforma, desta forma, em cálculo. Cálculo, em Latim, se diz ratio.
Daí, razão, racionalidade. A racionalidade se define como a conversão do entendimento
por afinidade em instrumento de combinação das variáveis dissociadas umas das outras,
submetidas à perspectiva. Seu pensar se converte, assim, em instrumento de organização
das variáveis. Deixa de ser entendimento por afinidade e passa a ser entendimento por
montagem. A razão se põe como o novumorganum45 do entendimento humano. Ela atua
à distância, pelo planejamento.
Razão é, pois, o nome que designa o pensar mercantil. O distanciamento, que a
prática mercantil instalou, levou à divisão do uno, não só das coisas, mas do próprio eu.
Inventou o sujeito e o objeto46, a comunhão desfeita. Não dando conta da participação,
busca o controle, numa atitude tipicamente de distância. E assim se tornou um
transformador47 do real.
Individualismo e racionalismo, derivados do mercantil, cujo fundamento é o
distanciamento, plasmaram a nova civilização europeia.Com efeito, a experiência de
indivíduo racional, os homens tendem, dada a sua unidade, a estendê-la a todos os seus
gestos, desde o comercial até as relações mais pessoais, atravessando a religião e as demais
instituições, criando novos padrões de comportamento, novos valores, novos ideais, nova
linguagem, novos hábitos, nova organização social, nova cultura, nova civilização.

44
Segurança diz, etimologicamente, não ter que tomar cuidados: tudo está assentado e, daí, seguro.
45
Organon, em grego, significa precisamente instrumento. Este nome foi dado aos tratados de Lógica de
Aristóteles. Bacon, propondo o caminho da empiria, contrastando com as premissas aristotélicas, intitula seu tratado
de novum organum. Uso da mesma expressão ultrapassando a divisão tradicional do entendimento humano em intelecto
e sentidos e enfatizando a mudança mesmo de natureza (de afetiva fazendo-se racional, pelo distanciamento) do
entendimento, levando em consequência a novo modo de operar.
46
Sujeito vem do Latim: sub jectum, lançado/posto sob, fazendo-se assim condição do que se lhe acrescenta.
Objeto, de ob jectum, lançado/posto diante de.
47
Transformador se emprega aqui no sentido de aparelho que serve para transformar a tensão, a intensidade ou a
forma de uma corrente elétrica (Houaiss): uma máquina, pois. A razão transforma o real, isto é, o faz passar de uma forma
para outra forma; da forma unitiva para a forma disjuntiva.
Cadernos de História da Educação – v. 11, n. 1 – jan./jun. 2012 319

Estamos afeitos à cultura ocidental, mercantil, que pratica o distanciamento como


estratégia de expressão. Pensamos, separando-nos do objeto pensado.48 Poderíamos,
no entanto, pensar sem recorrer à divisão. O ser que somos é, segundo nossa própria
experiência, uno e indivisível: as partes que temos se qualificam pela pertença, ou seja,
explicitam a unidade em qualquer de suas expressões. Ser é, com efeito, unidade/totalidade
em transformação contínua, transformação que acontece ao contato com o outro. É o
uno, o todo, que se transforma: não é uma parte dele. O uno/todo, em se transformando,
se sabe outro e sabe do outro com que(m) entrou em contato. Este se saber, é o que nós
chamamos de pensar, de conhecer. O conhecimento do outro não é algo que se anexa
ao nosso ser: o conhecimento do outro é a transformação que se operou em nós, sabida
porque vivida, “encarnada”; é o desenho novo que temos pelo contato com o outro;
somos nós sendo outros. Pensar, conhecer, é nos sabermos em nossas transformações; é
nos sabermos em nossa última forma, que só é tal por causa das formas anteriores. Nossa
forma não éabstrata: tem uma consistência, tem uma história, envolve pessoas, lugares,
situações etc., pode e deve ser descrita: somos nós! O pensar é efetivamente o é em toda
a sua realidade: um se saber49 que se identifica com a própria práxis essencial50. Aqui reside
toda a fragilidade da cultura ocidental, por ter privilegiado o distanciamento e a abstração.
Que desenho vai tomando esta civilização ocidental? A primeira e mais espontânea
expressão de vivência do real é a sensação de unidade, que implica o compartilhamento.
A exclusão, o pôr-se fora, já é efeito de uma operação artificial. A mercancia realiza isto:
impõe o distanciamento, levando a uma reorganização51 do real. Há que se procurar a
história de como o distanciamento vingou, para entender suas consequências.
O fundamento da ordem mercantil vai ser, doravante, não mais a presença divina
unificadora, que se contempla, mas a vontade52 ou o apetite intelectivo. O intelecto
contempla: a vontade age! O intelecto define o que é bom: a vontade o busca. O princípio
ativo, de busca, que a experiência mercantil estabeleceu, serve de critério para distinguir
intelecto e vontade, e atribuir à vontade o papel principal na configuração do humano.
É importante perceber que na visão de corpo social – tudo estando onde devia estar, o

48
Chegamos ao cúmulo de, numa atitude reflexiva, termos a nós mesmos como objeto separado.
49
Por mais que tenhamos aprendido que pensar, conhecer, saber sejam resultados da atividade de uma “faculdade”,
algo pois que nos sobrevém, precisamos fazer um esforço mental para identificar o ser com o pensar. A dificuldade maior
está na concepção que temos do é como uma substância, fixa e permanente, feita base para sustentar coisas mutáveis e
transitórias. Esta concepção é falsa e contradiz nossa própria experiência. Nosso é se dá de uma vez, inteiro, e ele é tudo
aquilo que dele podemos dizer.
50
Essencial, deesse(ns), ser, forma verbal (particípio presente) designando o que está acontecendo. Trata-se aqui
do ser como atividade, como práxis, isto é, o ser que acontece. O substantivo essência designa a totalidade do ser (esse), hic
et nunc, a totalidade do ser no seu acontecer. Nada tem de abstrato, nem comporta divisões. Ser é melhor compreendido
quando o traduzimos por estar sendo, sinalizando o processo. Essência traduz exatamente o sendo, implicando a(s)
qualidade(s) que determina(m) o ser. Nada, pois, tem de imóvel: é, toda ela, um movimento de transformação.
51
A compreensão do mundo leva ao que chamamos de organização. A mercancia desfez, em passo lentos, é
verdade, a ordem fundada no afeto, a multiplicidade das pessoas se dando na unidade do todo. A reorganização mercantil
se funda, agora, sobre a redução da pessoa a um conceito.
52
“A vontade é a faculdade de tender para o bem, apreendido pelo intelecto como conveniente, e de nele ficar.”
(Boyer, II, 135)Tender se diz, em latim, appetere, donde apetite.Por isto, a vontade é chamada de apetite intelectual. Os
Escolásticos distinguem a vontade, tanto dos sentidos quanto do intelecto. Duns Scotus afirma que a vontade é superior
ao intelecto e, mais, “nega que a vontade seja determinada por algum objeto ou fim. Tomás de Aquino diz o contrário: o
intelecto é, sem discussão, superior à vontade, e a vontade quer necessariamente algo, a saber, a felicidade”. (ib.)
320 Cadernos de História da Educação – v. 11, n. 1 – jan./jun. 2012

universo se pondo como definido, a sociedade se pondo como perfeita53, completa – o


intelecto, contemplando, fazia as pessoas se sentirem no lugar. Isto se rompe com a visão
mercantil, para a qual tudo está em projeto, em construção: é preciso definir o caminho.
O intelecto apresenta as alternativas, a vontade determina o caminho.
A prevalência da vontade explicita o lugar do Homem na cosmovisão mercantil:
ele, agora, o centro. O esvaziamento, marca do mercantil, convulsionando a crença na
ordem cósmica divina, desnudou novamente o homem, fazendo-o perder mais uma vez
sua inocência, levando-o à afirmação da liberdade, que é estar livre de todo e qualquer
vínculo. A nudez do novo paraíso, dizendo agora vazio e dizendo distância, sinalizou
o árido caminho a percorrer: a sociedade seria fruto de determinações da vontade, o
“natural” cedendo lugar ao “contratual”.
Destaco alguns exemplos, instigando o leitor a imaginar mais largamente o processo
que ocorreu.
O comportamento mercantil levou à pergunta o que é o ser?, como conhecer “o
que é”?, numa explicitação da nova experiência: o imediato desaparecia, o outro precisava
ser explicado. A separação se impôs como exigência de conhecimento. A Filosofia, fruto
do distanciamento, trabalha com conceitos que traduzem a distinção, proliferando os
opostos. O imediato não lhe é acessível: faz-se mesmo impossível. A verdade54 se lhe
impõe. Por isto, ela rejeita o mito, linguagem de vida compartilhada. Por isto, induz à
lógica e à ciência, pautadas no planejamento, obrigando ao rigor do método.
A Grécia antiga ensaiou os primeiros passo. Os séculos XII e XIII distinguiram
fé e razão como caminhos independentes para alcançar a verdade. O século XVI
amadureceu a racionalidade, e reconheceu a empiria como caminho para o conhecimento.
O homem acreditou ter encontrado o instrumento seguro para definir o que é. O pensar,
procedendo metodologicamente, encontrou primeiramente essências, depois encontrou
leis. Trabalhou com a perspectiva, na inquietude do ser enquanto projeto.
Já nos finais do século XIX se explicita a insatisfação angustiada da incerteza a que
levou o modelo mercantil. A corrente filosófica do Existencialismo é disso expressão:
os homens já não sabem a que se ater. O Pós-modernismo atesta o estado de perdido do
homem atual, desfazendo-se de tudo que anteriormente representava segurança: valores,
instituições, comportamentos. Põe-se em questão a própria Filosofia.
A comunidade “corpo social” desfeita, proclamada a soberania do indivíduo, há que
se dar nova explicação da sociedade. A liberdade radical do indivíduo estabelece o princípio
da igualdade universal: sendo todos iguais, tem-se uma massa informe. Socialmente, a
comunidade cede lugar à sociedade anônima. Esta característica de esvaziamento se põe,
doravante, como pré-requisito, formatando assim toda a realidade. A experiência do
esvaziamento leva à angústia, produzindo um novo questionamento do ser: se não há
mais laços reais que sustentem a comunidade, têm-se apenas nomes, as pessoas concretas
se fazendo inatingíveis, a singularidade não se compartindo, escapando a conceitos e
definições. O universal, algo em comum se distribuindo uniformemente por todos os

53
Perfeita, de per (indicando acabamento, chegando ao máximo) e factum, feito.
54
A verdade é entendida como plenitude perfeita e imutável.
Cadernos de História da Educação – v. 11, n. 1 – jan./jun. 2012 321

semelhantes, expressando a comunhão, é contestado pela experiência mercantil, a nada


correspondendo na realidade. Faz-se drama a civilização então vivida. O novo modelo de
convivência só seria possível pelo pacto, fruto não mais do afeto mas da conveniência,
gerando o Estado (- a oikía dá lugar à polis!) e o Direito natural.
O campo religioso, pela importância que tem na vida dos homens, é lugar excelente
de observação de como o mercantil operou. A religiosidade, expressão do significado que o
homem tem da vida e, em particular, de Deus, passa da forma afetiva, isto é, baseada numa
relaçãode comunhão e participação, e se conforma agora com o mercantil: individualista e
racional. A relação com Deus se faz, assim, instrumental. O que agora estava em jogo, em
termos de religião, era o resultado, o efeito, algo pois que devia ser produzido e que seria
julgado em definitivo pelo tribunal divino. A morte assumiu a figura de uma encruzilhada
enigmática, pois estava em pendência toda a eternidade55. Desta forma, a vida se tornou uma
preparação dolorida para a morte: fez-se luta, os perigos sendo maiores que a própria força.
A espiritualidade assumiu, então, duas características: a imitação de Cristo56 e o
“penitencial”. Na Imitação enfatiza-se a espiritualidade como decorrente do esforço
individual, visando agradar a Deus. O indivíduo, totalmente desarmado no que toca à
salvação, é levado à perfeição, que consiste no abandono de si e do mundo e na plena
entrega a Deus. Jesus Cristo é apresentado como o modelo. Por outro lado, buscando a
complacência divina, o homem se impõe a penitência como instrumento de correção: o
indivíduo se reconhece impotente pela corrosão que o pecado gerou. Práticas exigentes
se instauram, como a confissão auricular, o eremitismo, a auto-flagelação, a esmola ao
pobre, a destinação de importância significativa para celebração de missas após a morte,
tudo para garantir a salvação.
Quanto à racionalidade, nasce propriamente a Teologia sistemática, com a distinção
de fé e razão. Na sociedade afetiva, o que estava posto estava escrito: a Bíblia era sagrada.
Dela vinha o conhecimento. Não havia lugar para dúvida e discussão. Tudo estava em
seu lugar. Com a prática mercantil, a razão se faz instrumento da verdade, ainda que pelo
caminho da dúvida e da experimentação. Também no que se refere à fé. O surgimento da
Escolástica, trabalhando filosoficamente a Teologia, demonstra esta mudança.
Nas artes surge a perspectiva. Projeta-se o tridimensional em uma superfície plana.
A perspectiva só pôde acontecer com o mercantil. Ela só é possível com o distanciamento,
que supõe o desconhecido e, portanto, implicao cálculo. Os comentadores não têm
percebido que, do século V ao X mais ou menos, era impossível, na Europa, a perspectiva,
dado que a visão de mundo então vigente se assentava sobre o definitivo: a comunidade
humana existia em Deus, todo o universo resplandecia da presença divina; a unidade
estava posta. Nessa visão tudo estava em seu lugar, Deus sendo a presença57 que a tudo
preenche: não havia nada a buscar. Não havia lugar para perspectiva.

55
Na arte dessa época se revela toda a percepção vivida: antes do mercantil, a morte era representada em paz e
tranquilidade (requiescat in pace!); depois, em tormento e inquietação, chegando mesmo ao macabro.
56
Referência de espiritualidade em toda a época moderna, o livro Imitação de Cristo, foi escrito por Tomás de
Kempis (1380-1471), segundo o espírito da Devotio Moderna. São João da Cruz [1542-1591] (2002, p. 180) assim sintetiza:
“Tenha contínuo desejo de imitar a Cristo em todas as coisas, conformando-se com sua vida, que deve meditar para sabê-la
imitar e se haver em todas as circunstâncias como Ele próprio agiria.”
57
Ver nota 19. – Presença se entende como imersão na Divindade. O afeto é sua expressão.
Também o canto, que se fazia a uma só voz, todos cantando unissonamente porque
todos formavam um só corpo social, passa à polifonia, ajustado ao desenvolvimento do
individualismo, a concorrência devendo estar refletida também nas vozes.
Os fundamentos da civilização ocidental, postos na Europa por volta do século
XI pela prática mercantil, desabrocharam e se expandiram por todas as expressões da
vida social. Há que se fazer ainda a história deste movimento, mostrando primeiramente
o potencial dessa prática. Sua capacidade de desencadear, quase que silenciosamente,
comportamentos que atingiam plenamente crenças e valores, levando a novos hábitos e
organizações − exemplos maiores são a cidade e, mais adiante, o Estado − transformando
a forma de ser dos povos europeus, nos obriga a um exame rigoroso da difusão dos seus
princípios (a arché grega!), na combinação com o que já estava estabelecido. Afirmei,
neste trabalho, como característica principal dessa prática o distanciamento, verificado
primeiramente no individualismo assumido e consequentemente na forma de pensar,
feito então racionalidade. O distanciamento, com efeito, reconfigurou todas as demais
práticas, modelando uma nova civilização. É preciso verificar sua presença atuante em
todos os gestos do homem ocidental no decorrer dos séculos subsequentes, chegando à
contemporaneidade.
Não é possível fazer história do Ocidente aceitando simplesmente a sucessão dos
fatos, quase que numa linha de evolução para o melhor. É necessário observar as pessoas:
o que praticavam? como avaliavam sua prática? como, na sua unidade, se exibiam em
todas as demais expressões? A ênfase na prática mercantil − insisto: prática realizada
por pessoas, pessoas situadas, crescidas com um desenho próprio − permite traçar
rapidamente um quadro coerente e consistente das transformações nos mais diversos
campos da vida social, o que afirma plausível a explicação e torna possível o entendimento
do processo social ocidental.
Este artigo não teve a pretensão de mostrar a história do princípio afirmado
do distanciamento. Põe-se como proposta de entendimento da civilização que nos
ambienta. Fiz alusão a alguns movimentos − Filosofia, Política, Religião, Artes −
para indicar o caminho de averiguação, esperando que muitos estudiosos se dediquem
a essa tarefa. Esta tarefa é necessária não simplesmente para recompor a História, mas
sobretudo − e este é realmente o sentido da História − para nos permitir perceber a
nossa realidade e, assim, agir de acordo com aquilo que importa.

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Recebido em agosto de 2011


Aprovado em outubro de 2011

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