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Curso de Psicologia Geral

Volume 1
A presente obra compõe-se de quatro volumes, a saber:
I. Introdução Evolucionista à Psicologia
II. Sensações e Percepção
III. Atenção e Memória
IV. Linguagem e Pensamento
A. R. Luria
Curso de Psicologia Geral
Volume I 2º Edição
Introdução Evolucionista. à Psicologia
Tradução de PAULO BEZERRA
Sociedade Unificada Paulista de Ensino Renovado Objetivo – SUPERO DATA

11/01/99 Nº DA CHAMADA 159.9 – 1967C - 2.ED.V.1 E.3 Nº DE VOLUME

14.013/99 REGISTRADO POR LILIANE

civilização
brasileira \
Título do original em russo:
EVOLYUTSIÕNNOE VVEDÊNIE VPSIKHOLÓGUIYU
Capa: DOUNÊ
Diagramação: LÉA CAULLIRAUX
Revisão:
UMBERTO F. PINTO
e MARIO ELBER CUNHA
1991
Direitos desta edição reservados à
EDITORA CIVILIZAÇÃO BRASILEIRA S.A.
Av. Rio Branco, 99-20? andar - Centro
20040 - Rio de Janeiro - RJ
Tel.: (021) 263-2082 Telex: (21) 33798 Fax: (021) 263-61Í2
Impresso no Brasil Printed in Brazil
Sumário
I — A PSICOLOGIA COMO CIÊNCIA. O OBJETO EA

IMPORTÂNCIA PRÁTICA 1
A história da Psicologia como ciência 2
A Psicologia e outras ciências 7
Partes principais da Psicologia 11
Os métodos em Psicologia 17
A importância prática da Psicologia 23
II — A EVOLUÇÃO DO PSIQUISMO 29
A origem do psiquismo 29
Variabilidade do comportamento dos protozoários 32
Mecanismos do comportamento dos protozoários 34
Origem do sistema nervoso e suas formas mais simples 36
O sistema nervoso ganglionar e o surgimento dos programas de
comportamento mais simples 38 Surgimento das formas complexas de
programação hereditária do comportamento ("instintivo") 42
O sistema nervoso central e o comportamento individualmente variável dos
vertebrados 50 Mecanismos do comportamento individualmente
variável 56 O comportamento
"intelectual" dos animais 62
Fronteiras do comportamento individualmente variável dos animais 68
A ATIVIDADE CONSCIENTE DO HOMEM E SUAS RAÍZES HISTÓRIGO-SOCIAIS 71

Princípios gerais 71
O trabalho e a formação da atividade consciente 95
A linguagem e a consciência do homem 77
A importância da linguagem para a formação dos
processos psíquicos 81
O CÉREBRO E OS PROCESSOS PSÍQUICOS 85
O problema da relação dos processos psíquicos com o cérebro 85
Princípios da organização funcional do cérebro humano 93
Os três "blocos" principais do cérebro 94
O bloco do tônus do córtex ou bloco energético do cérebro 95
Bloco do recebimento, elaboração e conservação da informação 100
O bloco da programação, regulação e controle de atividade 107
O princípio da lateralização no funcionamento dos grandes hemisférios 113
I
A Psicologia Como Ciência.
O Objeto e a Importância
Prática
O HOMEM VIVE e atua em um meio social. Sente necessidades e procura
satisfazê-las, recebe informação do meio circundante e por ele se orienta,
forma imagens conscientes da realidade, cria planos e programas de ação,
compara os resultados de sua atividade com as intenções iniciais, experimenta
estados emocionais e corrige os erros cometidos.
Tudo isto representa a atividade do homem no plano psicológico, que constitui
o objeto de uma ciência: a Psicologia. Esta ciência se propõe a tarefa de
estabelecer as leis básicas da atividade psicológica, estudar as vias de sua
evolução, descobrir os mecanismos que lhe servem de base e descrever as
mudanças que ocorrem nessa atividade nos estados patológicos. Só uma
ciência capaz de estudar as leis da atividade psicológica com uma precisão
possível pode assegurar o conhecimento dessa atividade e sua direção em
bases científicas. É justamente por isso que a Psicologia científica se torna
uma das disciplinas mais importantes, cujo significado crescerá cada vez mais
com o
1
desenvolvimento da sociedade e o contínuo aperfeiçoamento dos seus
métodos.
A história da Psicologia como ciência
É muito breve a história da Psicologia como ciência. No entanto remontam a
um passado muito distante as primeiras tentativas de descrever a vida psíquica
do homem e explicar as causas dos seus atos. Na Antigüidade, por exemplo,
os médicos já entendiam que para identificar as doenças era necessário saber
descrever a consciência do homem e descobrir as causas dos seus atos.
Esse enfoque materialista do comportamento do homem foi, séculos a fio,
combatido pela filosofia idealista e a Igreja, que viam na consciência do homem
uma manifestação da sua vida espiritual, considerando que esta não obedecia
às mesmas leis a que se subordinava toda a natureza material e por isto sua
análise não podia ser feita a partir da explicação causai dos fenômenos.
Por esses motivos o mundo psicológico do homem e sua consciência foram
vistos durante séculos como fenômenos de tipo especial, isolados de todos os
outros processos naturais. Os filósofos assumiam diferentes posições em
relação à consciência, considerando-a manifestação da razão divina ou
resultado de sensações subjetivas, onde eles viam os "elementos" mais
simples que serviam de base à consciência. Mas todos os filósofos idealistas
estavam imbuídos da convicção de que a vida psíquica devia ser entendida
como manifestação de um mundo subjetivo especial, que podia ser revelado
somente na auto-observação, sendo inacessível à análise científica objetiva ou
à explicação científica.
Séculos a fio esse enfoque dos processos psíquicos deteve a evolução da
psicologia científicas e mesmo depois de os processos do mundo exterior se
haverem tornado objeto de estudo científico preciso os fenômenos da vida
psíquica do. homem continuaram sendo vistos como manifestação de um
mundo espiritual específico, acessível apenas à descrição subjetiva.
A divisão de todos os fenômenos em duas grandes categorias — a categoria
dos fenômenos físicos, acessíveis à explicação causai, e a dos fenômenos
psíquicos, inacessíveis à análise cien-
2
tífica objetiva — foi consolidada pelas teses básicas da filosofia dualística de
Descartes, para quem todos os processos físicos, incluindo-se o
comportamento animal, estão subordinados às leis da mecânica, ao passo que
os fenômenos psíquicos devem ser considerados como formas do espírito, cuja
fonte de conhecimento pode ser encontrada apenas na razão ou intuição.
O enfoque dualista se manteve até período recente na filosofia e Psicologia em
muitos países. Se considerarmos que os pensadores do século XIX
começaram a focalizar os processos elementares dos campos físico e psíquico
(incluindo sensações e movimentos) como processos naturais suscetíveis de
estudo por métodos científicos exatos, os fenômenos superiores do campo
psíquico (consciência, pensamento) continuavam a ser considerados
manifestação do campo espiritual, que podia ser abordado somente por meio
da descrição subjetiva dos fenômenos que nele ocorrem. Essa tese levou à
divisão real da Psicologia em dois campos no final do século XIX: a Psicologia
naturalista científica ou Psicologia fisiologista, que tentava estudar com
precisão e explicar pela causalidade os processos psicológicos elementares e
definir-lhes as leis objetivas, e a Psicologia descritiva ou subjetiva, que
estudava as formas superiores do campo consciente do homem, enfocando-as
como manifestações do espírito. O enfoque dualista aos fenômenos do campo
psicológico refletiu-se nos trabalhos dos clássicos da psicologia como os
psicólogos alemães Wilhelm Wundt (1832^1920), Hermann Ebbinghaus (1856-
1909), o psicólogo americano "William James (1842-1910) e o representante
da filosofia idealista Wilhelm Dilthey (1833-1911) e outros.
A influência do enfoque dualista dos fenômenos psicológicos levou a Psicologia
ao impasse e provocou tentativas naturais de superar a estagnação surgida
nessa ciência, de aplicar métodos das ciências naturais ao estudo dos
processos psicológicos e fazer destes a mesma análise que se fazia de todos
os outros fenômenos da natureza.
Essa tendência, que já surgira com os materialistas franceses e ganhara
formulação nítida com os democratas revolucionários russos em meados do
século XIX, teve sua patente mani festação na obra do célebre fisiologista
russo Ivan Mikháylo-vitch Sétchenov (1829-1905).
Em sua famosa obra, Os reflexos do cérebro, Sétchenov expôs a idéia
segundo a qual até os processos mais complexos do campo psíquico devem
receber tratamento materialista e ser
3
abordados como reflexos complexos; segundo essa idéia, o pensamento é um
reflexo igualmente complexo porém inibido, carente de fim motor externo. Para
ele, os fenômenos dg mundo psíquico devem ser estudados pelo naturalista
com os mesmos meios empregados no estudo de outros fenômenos da
natureza. Essa linha de pensamento foi seguida por outro notável fisiologista
russo, Ivan Petrov Pávlov (1849-1936), criador do estudo objetivo da atividade
nervosa (psíquica) superior com a aplicação dos reflexos condicionados.
Outros notáveis representantes da ciência russa, como M. D. Bekhteryev
(1857-1927), A. A. Ukhtomsky (1857-1942) e outros tentaram formalizar um
enfoque das bases objetivas e fisiológicas da atividade psíquica e fundamentar
a possibilidade de uma Psicologia objetiva e naturalista.
São essas as razões pelas quais o mundo psicológico do homem e sua
consciência foram tratados, durante séculos, como fenômenos de tipo especial,
isolados de todos os outros processos naturais.
A doutrina dos reflexos condicionados de Pávlov, que ele mesmo via como
base fisiológica da ciência psicológica, exerceu influência marcante na
evolução da Psicologia americana. Em fins do século XIX, o psicólogo
americano Edward Lee Thorn-dike começou a estudar o comportamento dos
animais, aplicando métodos que permitiam observar como os animais
adquiriam novas habilidades em laboratório. Essas pesquisas serviram de base
a uma nova corrente na Psicologia, denominada behavio-rismo (ciência do
comportamento) pelo psicólogo americano J. B. Watson. Nessa corrente,
Watson via a forma científica natural da ciência psicológica, que devia substituir
a Psicologia. Partindo da tese segundo a qual a "consciência" não passa de um
conceito subjetivo, inacessível à pesquisa objetiva, os beha-vioristas
americanos propuseram que se considerasse objeto da pesquisa científica
apenas o comportamento externo do animal, comportamento esse que eles
consideravam resultado das inclinações (necessidades) biológicas dos animais
e dos reflexos condicionados a eles sobrepostos. Assim surgiu uma nova
corrente na ciência, que abandonava todo o estudo do mundo subjetivo e
limitava-se à descrição das formas exteriores de comportamento, cujas leis
eram tratadas como sistema de habilidades mecanicamente constituído,
inteiramente suscetíveis de análise naturalista.
4
A tentativa de substituir a Psicologia pelo estudo do comportamento exterior e
das leis da aquisição de habilidades complexas era reflexo da luta por uma
Psicologia científica objetiva e teve importância progressista em sua época.
Mas o behaviorismo americano, como exemplo de um enfoque excessivamente
mecanicista da atividade psíquica, iria revelar muito breve as suas limitações e
levar a Psicologia a uma crise não menos patente do que a crise do enfoque
dualista dos fenômenos psíquicos.
Por outro lado, o que ficou evidente alguns anos após a tempestuosa evolução
do behaviorismo americano, a explicação mecanicista nele dominante de
processos como a formação de habilidades não mostrava os autênticos
mecanismos fisiológicos destas e substituía sua pesquisa fisiológica científica
por uma descrição exterior e uma interpretação mecanicista desses
fenômenos. Por outro lado, a imensa parcela de formas complexas da atividade
psíquica do homem, que se manifesta na atividade consciente dos modos e
procedimentos superiores de comportamento especificamente humanos, de
atenção ativa, da memorização arbitrária e do pensamento lógico era
geralmente mantida à margem do campo da pesquisa científica.
Era por isso que nos limites do próprio behaviorismo já começava a surgir a
necessidade de ultrapassar os limites das descrições mecanicistas
simplificadas das habilidades elementares e passar a uma análise científica
das formas mais complexas da. atividade psíquica do homem.
Foi essa necessidade de criação de uma Psicologia autenticamente científica,
capaz de abordar com métodos científicos objetivos as formas mais complexas
da vida psíquica do homem, que se converteu na questão fundamental que a
década de 30 -do nosso século assimilou como condição que podia tirar a
Psicologia do estado de crise.
As vias para superar a crise na Psicologia foram formuladas pela primeira vez
pelo notável psicólogo soviético Lyev Semiônovitch Vigotsky (1896-1934); elas
se converteram na base para a posterior evolução da Psicologia como ciência,
a princípio na URSS e em seguida além de suas fronteiras.
Como já tivemos oportunidade de salientar, o sentido histórico da crise da
Psicologia deveu-se ao fato da evolução desta ciência ter assumido duas
direções. A primeira, que dava continuidade às tradições do enfoque científico-
natural dos fenômenos, propunha-se a tarefa de explicar os processos psí-
5
quicos limitando-se de fato aos processos psicofisiológicas mais elementares e
recusando-se a examinar os fenômenos complexos e especificamente
humanos da atividade consciente. A segunda orientação tomou como objeto de
sua análise justamente esses fenômenos exteriores da atividade consciente
especificamente humanos, limitando-se, porém, à descrição das manifestações
subjetivas de tais fenômenos, considerando-os manifestação do espírito e
recusando-se a dar aos mesmos um enfoque científico causai.
Para Vigotsky, a tarefa principal para superar essa crise consistia em converter
em objeto da pesquisa as formas superiores e especificamente humanas de
atividade consciente e enfocá-las da ótica da análise científica, explicar por via
causai a sua origem e definir as leis objetivas a que elas se subordinam.
Mas a execução dessa tarefa exigia uma revisão radical das teses básicas da
Psicologia.
Como observou Vigotsky, a tentativa de enfocar o psiquismo como função
imediata do cérebro e procurar a sua fonte no recôndito do cérebro é tão inútil
quanto a tentativa de considerar o psiquismo como forma de existência do
espírito. A vida psíquica dos animais surge no processo de sua atividade e é
uma forma de representação da realidade, é realizada pelo cérebro mas pode
ser explicada somente pelas leis objetivas dessa atividade representativa. De
modo semelhante, as formas superiores de atividade consciente, de atenção
ativa, memorização arbitrária e pensamento lógico que são específicas do
homem não podem ser consideradas produto natural da evolução do cérebro,
sendo o resultado da forma social específica de vida, que é característica do
homem. Para explicar por via causai as funções psíquicas superiores do
homem, é necessário ir além dos limites do organismo e procurar-lhes as
fontes não no recôndito da ahna ou nas peculiaridades do cérebro mas na
história social da humanidade, nas formas de linguagem e trabalho social que
se constituíram ao longo da história da sociedade e trouxeram para a vida tipos
mais aperfeiçoados de comunicação e novas formas de atividade consciente.
Ao procurar tornar-se ciência autêntica, a Psicologia deve estudar a origem
socialmente histórica das formas superiores de atividade consciente e
assegurar uma análise científica das leis que lhes servem de base.
6
Essas teses básicas mudam radicalmente as tradições da psicologia dualista e
delineiam nitidamente o objeto de uma Psicologia científica.
A Psicologia do homem deve ocupar-se da análise das formas complexas de
representação da realidade, que se constituíram ao longo da história da
sociedade e são realizadas ]ielo cérebro humano. Ela deve substituir a anterior
descrição subjetiva das formas complexas de atividade consciente por uma
análise científica objetiva dessas formas, sem substituir essa tarefa pelo estudo
dos processos fisiológicos que lhes servem de base nem limitar-se à descrição
exterior dos mesmos. É essa a tarefa da ciência psicológica, que deve
estabelecer as leis da sensação e percepção humana, regular os processos de
atenção e memorização, de realização do pensamento lógico, formação das
necessidades complexas e da personalidade, considerando todos esses
fenômenos como produto da história social e sem separar esse estudo da
análise dos mecanismos fisiológicos que lhes servem de base. É isto que
constituirá a essência da Psicologia geral no todo e da psicologia do homem no
particular.
A Psicologia e outras ciências
A Psicologia só pode desenvolver-se em estreita ligação com outras ciências,
que não a substituem mas lhe asseguram informação importante para que ela
possa ser bem-sucedida na elucidação do seu próprio objeto.
A biologia é a primeira ciência com a qual a Psicologia deve manter a mais
estreita ligação.
Se a Psicologia animal opera com as formas de comportamento dos animais
que se desenvolvem no processo de interação deles com o meio, torna-se
absolutamente claro que a completa interpretação das leis do comportamento
animal é impossível sem o conhecimento das formas básicas de vida que
constituem o objeto da biologia. É necessário ter uma noção suficientemente
nítida das diferenças que existem na vida dos vegetais e animais para perceber
o principal que distingue todo tipo de comportamento ativo, baseado na
orientação no meio circundante, das formas de vida que se esgotam com os
processos de metabolismo e podem ocorrer fora das condições de uma
orientação ativa na realidade. É necessário ter uma noção precisa do que
muda
7
nas condições de vida com a transição da existência de unicelu-lares num meio
aquático homogêneo a formas incomparavelmente mais complexas de vida
multicelular, sobretudo nas condições de existência terrestre, que apresenta
exigências imensas à orientação ativa baseada nas condições do meio,
orientação essa que é a única que pode assegurar sucesso na obtenção de
alimentos e conjuração de perigos. É necessário conhecer bem a diferença de
princípios de vida entre o mundo dos insetos, com sólidos programas
congênitos que asseguram uma sobrevivência bem-sucedida em condições
estáveis e são capazes de conservar a espécie até em condições de mudança,
e o mundo dos vertebrados superiores com seus poucos descendentes, que
podem sobreviver somente com a evolução de novas formas individualmente
mutáveis de comportamento, que garantem a adaptação ao meio em mudança.
Sem esses conhecimentos dos princípios biológicos gerais de adaptação não
se pode assegurar nenhuma compreensão nítida das peculiaridades do
comportamento dos animais e qualquer tentativa de interpretar as complexas
formas de atividade psíquica do homem perderá sua base biológica.
Eis porque é absolutamente necessário para a Psicologia científica levar em
conta as leis básicas da biologia e novas partes delas como a ecologia
(doutrina que estuda as condições do meio e suas influências) e a etologia
(doutrina das formas congênitas de comportamento). É natural que os fatos
constituintes do objeto da ciência psicológica não podem, em hipótese
nenhuma, reduzir-se a fatos biológicos.
A segunda ciência com a qual a Psicologia deve manter a mais estreita ligação
é a jisiologia, sobretudo a parte referente à atividade nervosa superior.
A fisiologia trata dos mecanismos que exercem diferentes funções no
organismo, ocupando-se da atividade nervosa superior dos mecanismos de
trabalho do sistema nervoso que concretizam o "equilíbrio" do organismo com o
meio.
É fácil perceber a absoluta necessidade de conhecer o papel desempenhado
nesse último processo pelas diferentes fases do sistema nervoso, de conhecer
as leis pelas quais realiza-se a regulação dos processos de metabolismo no
organismo, pelas quais se regulam as leis de funcionamento do tecido nervoso,
que materializa os processos de excitação e inibição, e das complexas
formações nervosas que executam os processos de análise e síntese, de
confluência das conexões nervosas, e asseguram os processos de irradiação e
concentração da excitação; é igual-
8
mente importante o^ conhecimento das formas básicas de trabalho das células
nervosas, que se encontram em estado normal ou inibido (fásico). Tudo isso é
absolutamente necessário para que o psicólogo, que estuda os tipos principais
de atividade psíquica do homem, não se limite à simples descrição desses
tipos mas saiba em que mecanismos se baseiam essas formas altamente
complexas de atividade, conheça os dispositivos que as executam, os sistemas
em que elas ocorrem. Desconhecer as leis da fisiologia implicaria em privar a
Psicologia de uma das fontes mais importantes de conhecimento científico.
Para a Psicologia, tem importância decisiva a sua ligação com as ciências
sociais.
As formas principais de atividade psíquica do homem surgem nas condições da
história social, desenvolvem-se no processo de atividade material surgido ao
longo da história, baseiam-se nos meios que se formaram no processo de
trabalho, de emprego dos instrumentos de trabalho e da linguagem. Se não
usasse os instrumentos de trabalho e a linguagem, o homem não disporia
sequer de uma ínfima parte das possibilidades de que dispõe o seu
comportamento concreto, ficaria privado da comunicação com o meio
ambiente, evoluiria à margem das condições do mundo material — surgido no
processo da história da sociedade — nem assimilaria a experiência de toda a
humanidade, que é transmitida por meio da linguagem, esse receptáculo da
informação. É natural que as formas de'atividade do homem são executadas
pelo cérebro e se apoiam nas leis dos seus processos nervosos superiores.
Por si mesmo nenhum sistema nervoso é capaz de assegurar a formação da
capacidade de usar instrumentos de trabalho e linguagem e explicar o
surgimento das formas altamente complexas de atividade humana, surgidas no
processo da história social.
A verdadeira relação entre a Psicologia e a fisiologia consiste em que a
primeira estuda as formas e meios de atividade que surgiram no processo da
história social e determinam o comportamento, enquanto a fisiologia da
atividade nervosa superior estuda os mecanismos naturais que materializam ou
realizam esse comportamento.
Tentar reduzir a Psicologia do homem à fisiologia da atividade nervosa superior
— como em certa época propunham os pensadores mecanicistas — implicaria
em cometer o mesmo erro do arquiteto que tentasse reduzir a origem e a
análise dos estilos gótico e barroco ou o estilo Império às leis da resistência
9
dos materiais que ele naturalmente deve levar em conta mas que em hipótese
nenhuma podem explicar a origem dos estilos arquitetônicos.
O êxito do desenvolvimento da Psicologia depende grandemente da correta
compreensão da correlação dessas duas ciências e tanto o desconhecimento
da fisiologia como a tentativa de reduzir a Psicologia à fisiologia retardariam o
desenvolvimento da ciência psicológica.
O que acabamos de afirmar deixa clara a imensa importância que tem para a
Psicologia a sua ligação com as ciências sociais. Se na formação do
comportamento do animal as condições biológicas de vida desempenham
papel determinante, na formação do comportamento do homem esse papel é
desempenhado pelas condições da história social, que cria formas novas de
uma complexa relação com a realidade, mediada pelas condições de trabalho,
formas essas que são as fontes de novas formas especificamente humanas de
atividade psíquica.
Adiante teremos oportunidade de ver que o primeiro emprego de instrumentos
de trabalho e a primeira forma de trabalho social introduziram mudança radical
nas principais leis biológicas de construção do comportamento e que o
surgimento e, posteriormente, o emprego da linguagem — que permite
conservar e transmitir a experiência de gerações — levaram ao surgimento de
uma nova forma de evolução inexistente entre os animais: a forma de evolução
mediante a assimilação da experiência social. A ciência psicológica atual, que
estuda antes de tudo as formas especificamente humanas de atividade
psíquica, não pode dar um só passo sem levar em conta os dados que obtém
das ciências sociais: do materialismo histórico, que enriquece as leis básicas
do desenvolvimento da sociedade, e da lingüística, que estuda as formas
básicas de linguagem, surgida na história da sociedade.
Só levando minuciosamente em conta as condições sociais, que formam a
atividade psíquica do homem, pode a Psicologia obter uma sólida base
científica. Encontraremos a aplicação desse princípio em todas as páginas
seguintes, quando examinaremos todos os fatos psicológicos concretos. É
essa a relação da Psicologia científica com as outras ciências, com as quais
ela se desenvolve em estreito contato.
10
Partes principais da Psicologia
A Psicologia, que até recentemente não era uma ciência dividida, representa
hoje um sistema amplamente ramificado de disciplinas, que estudam a
atividade psíquica do homem em diferentes aspectos. O que já dissemos antes
deixa claro que algumas partes da Psicologia estudam as bases naturais dos
processos psíquicos, aproximando-se da biologia e fisiologia, enquanto outras
partes estudam os fundamentos sociais da atividade psíquica, aproximando-se
das ciências sociais.
A posição central cabe à Psicologia Geral, que estuda as formas básicas de
atividade psíquica e constitui a viga-mestra de todo o sistema de disciplinas
psicológicas. Afora a introdução teórica evolucionista, o exame de várias partes
científicas faz parte da composição da Psicologia Geral. Entre essas partes
incluímos a análise dos processos cognitivos (começando pelas sensações e
percepções e terminando nas formas mais complexas de pensamento;
compõem essa parte a análise das condições em que ocorrem os processos
psíquicos e a análise das leis do pensamento, da memória, imaginação, etc), a
análise dos processos afetivos (as necessidades do homem, as formas
complexas de emoções), a análise da estrutura psicológica da atividade do
homem e da regulação do seu desempenho e, por último, a análise da
psicologia do indivíduo e das diferenças individuais.
As partes aqui referidas serão objeto de exame das próximas páginas do
presente livro.
A elaboração dos problemas gerais da Psicologia foi objeto de trabalhos de
muitos pensadores célebres, entre os quais sé situam clássicos como W.
Wundt na Alemanha, W. James nos EUA, A. Binet e P. Janet na França e
contemporâneos como-L. S. Vigotsky, S. L. Rubinstein, A. N. Leôntyev, A. A.
Smirnov e V. M. Têplov na URSS, A. Vallon, A. Piéron e P. Fraisse na França, E.
Nolman, G. Miller e J. Bruner nos EUA, Donald Hebb no Canadá e J. Broadbent
na Inglaterra, etc.
É contíguo à Psicologia Geral o grupo de partes biológicas da Psicologia.
Todas elas estudam as bases naturalistas da atividade psíquica do homem.
A primeira dessas disciplinas é a Psicologia comparativa ou Psicologia animal.
Esta disciplina estuda as peculiaridades do comportamento animal em etapas
sucessivas da evolução, aque-
11
Ias peculiaridades que dependem das condições de vida e da estrutura
anatômica dos animais. Ela descreve os processos de mudança das formas de
comportamento animal dependendo das exigências que o meio lhes impõe e
dos principais tipos de adaptação às condições de vida, que são de caráter
muito variado quando se tornam complexas as formas de vida.
A segunda das disciplinas pertencentes ao grupo biológico das ciências
psicológicas é a Psicologia fisiologista ou Psico-jisiologia.
As bases dessa ciência foram lançadas na segunda metade do século XIX por
pensadores que se propunham a tarefa de estudar os processos psicológicos
do homem com a aplicação de diversos métodos fisiológicos, de estudar os
mecanismos fisiológicos dos processos psicológicos. Foram precisamente
esses pensadores que organizaram os primeiros laboratórios de Psicologia e
elaboraram minuciosamente partes da Psicologia como a doutrina das
sensações, sua medida e seus mecanismos básicos, a doutrina das leis
básicas da memória e da atenção, a doutrina dos mecanismos psicofisiológicos
do movimento, etc.
É natural que a Psicologia fisiologista se aproxime da fisiologia, particularmente
da fisiologia dos órgãos dos sentidos e da fisiologia da atividade nervosa
superior. A diferença consiste em que os cientistas que se ocupam desse
problema tomam como objeto a análise das formas concretas de atividade
psíquica, estudando as sensações e percepções, a atenção e a memória do
homem, bem como a estrutura dos seus processos motores e a mudança
destes no processo de exercício e fadiga, procuram, empregando os métodos
mais precisos, estabelecer os mecanismos fisiológicos e as leis pelas quais
esses processos se realizam. A psicofisiologia, permanecendo disciplina
psicológica especial, está para a fisiologia assim como a bioquímica está para
a química ou a biofísica para a física. Ela não abstrai um instante sequer o fato
de que os processos por ela estudados fazem parte da complexa atividade
psíquica do homem, não esquece as complexas peculiaridades da estrutura
desses processos e apenas tenta descobrir os mecanismos fisiológicos que
lhes servem de base.
Uma parcela considerável dos conhecimentos das leis de realização de
processos psíquicos particulares foi acumulada justamente por essa área da
ciência psicológica, à qual estão estreitamente ligados os nomes de grandes
cientistas como Gustav Fechner e Weber (os primeiros a medir as sensações),
Wilhelm
12
Wundt (o primeiro a aplicar amplamente métodos psicofisioló-gicos de estudo
dos processos psíquicos), Hermann Ebbinghâus e Hermann Joseph Müller (os
primeiros a abordar métodos exatos de medição da memória e seus
mecanismos específicos), assim como Piéron na França, Edward Titchener nos
EUA, os grandes psicólogos atuais como O. R. Lindsley (EUA), Broad-bent
(Inglaterra), Fraisse (França) e outros.
Essa área da ciência psicológica recebeu imensa informação dos trabalhos de
clássicos notáveis da fisiologia como Pávlov, criador da doutrina da atividade
nervosa superior, N. E. Vve-densky, criador da doutrina da gênese patológica,
A. A. Ukhtomsky, cujos trabalhos permitiram introduzir uma aova área da
ciência do comportamento: a doutrina dos dominantes, L. A. Orbeli, autor de
importante contribuição à fisiologia evolu-cionista bem como fisiologistas
contemporâneos como P. A. Anokhin, criador da doutrina dos sistemas
funcionais, N. A. Bernstein, introdutor do novo conceito de organização do
movimento, G. V. Gershuni e S. V. Kravkov, que enriqueceram a ciência com
dados relativos ao funcionamento da audição e visão, etc.
A terceira disciplina componente do grupo biológico das ciências psicológicas é
a neuropsicologia.
Esta disciplina tem por tarefa o estudo do papel que desempenham os
aparelhos particulares do sistema nervoso na estruturação dos processos
psíquicos.
É fácil perceber que o papel das formações subcorticais e do paleocórtex no
processo da atividade psíquica é inteiramente diferente do papel do neocórtex
e dos grandes hemisférios cerebrais . Há, porém, fundamentos para supor que
também o papel de algumas regiões do córtex cerebral na organização dos
complexos processuais psíquicos não é idêntico e que todas as áreas do
cérebro — parietais, temporais e occipitais — dão sua contribuição toda
especial para o processo de atividade psicológica.
Esse novo campo da Psicologia emprega em suas pesquisas uma análise
psicológica minuciosa tanto das irritações como das destruições de áreas
isoladas do cérebro, estuda as mudanças dos processos psíquicos que surgem
quando ocorram afecções locais do cérebro e tira, de suas observações,
conclusões relacionadas com a estrutura interna dos processos psíquicos.
Esse campo da Psicologia é representado por estudiosos de diversos países
como K. S. Lashley e K, H. Pribram (EUA),
13
A. R. Luria (URSS), O. L. Zangwill (Inglaterra), B. Milner (Canadá) e outros.
Podemos colocar ao lado da neuropsicologia a psicopatologia, que estuda as
peculiaridades "dos processos psíquicos observáveis nos doentes psíquicos, e
permite que nos aproximemos mais de um estudo científico das doenças
mentais e do descobrimento de algumas leis gerais da atividade psíquica que
se manifesta nos estados patológicos.
A psicopatologia foi elaborada com êxito por muitos psiquiatras (Kraepelin, na
Alemanha, Janet, na França, Békhterev, na Rússia) e pelos psicólogos
contemporâneos (B. V. Zeygar-nik, na URSS, Pecheau, na França, e outros).
Uma área especial, situada nas fronteiras da psicofisiologia e da
neuropsicologia, é representada pelo estudo dos mecanismos neurônicos da
atividade psicológica. Os cientistas que elaboraram essa área (D. H. Hubel e T.
N. Wiesel na Inglaterra, Jung na Alemanha, H. H. Jasper no Canadá, E. N.
Sokolov e O. S. Vinográdov na URSS) se propõem a tarefa de investigar as
formas de funcionamento de grupos isolados de neurônios e efetuar uma
análise dos processos nervosos mais elementares, que servem de base ao
comportamento. Importantes descobertas dos mecanismos fisiológicos de
ativação e habituação foram obtidos no estudo das formas mais simples de
comportamento em base neurônica.
No sistema das ciências psicológicas, cabe posição especial à psicologia
infantil ou genética.
A importância dessa área das ciências psicológicas para a Psicologia geral
consiste em que a Psicologia genética ou infantil estuda a formação da
atividade psíquica no processo de evolução da criança e permite acompanhar a
formação dos complexos processos psíquicos e das etapas pelas quais eles
passam em sua evolução.
A Psicologia genética permite abordar os processos psíquicos superiores do
homem como produto da evolução, dando, com isto, a possibilidade de
considerar as formas complexas de atividade psíquica do homem não como
"propriedades" ou "faculdades" do psiquismo primitivamente existentes mas
como resultado de uma longa formação, que deixou vestígios na estrutura dos
processos psíquicos.
Foi justamente por isto que a Psicologia genética, que estuda a formação
(gênese) das formas superiores de atividade psíquica, adquiriu importância
decisiva tanto para uma área prática
14
como a pedagogia quanto para a Psicologia geral. Foi justamente graças aos
êxitos da Psicologia genética, relacionados com a contribuição dada ao estudo
dessa disciplina pelos notáveis estudiosos Jean Piaget e Lyév S. Vigotsky, que
a Psicologia geral obteve provas convincentes de que as formas básicas dos
processos psíquicos (percepção e ação, memorização e pensamento)
possuem estrutura complexa que se forma no processo de evolução da
criança. A importância da Psicologia genética lhe, permitiu ocupar posição
central na Psicologia atual.
Outro campo da Psicologia, que deve ser colocado ao lado da Psicologia
genética e costuma ser chamado de psicologia diferencial ou psicologia das
diferenças individuais, ocupa posição importante.
Sabe-se que as pessoas têm traços comuns, estudados pela Psicologia geral,
e revelam diferenças individuais. Estas podem ser diferenças de propriedades
do sistema nervoso, de peculiaridades individuais do campo emocional e do
caráter, traços característicos do processo cognitivo e do talento.
A Psicologia diferencial se propõe a tarefa de estudar essas diferenças
individuais, descrever os tipos de comportamento e atividade psíquica das
pessoas que se distinguem umas das outras por traços característicos.
A Psicologia diferencial é de importância decisiva para a avaliação do nível de
evolução da criança, das formas individuais de assimilação do trabalho e para
a análise das peculiaridades tipológicas cujo conhecimento é indispensável à
solução das questões práticas da Psicologia.
Os fundamentos da Psicologia diferencial foram lançados em sua época pelo
psicólogo alemão W. Ster (1871-1938); em nossa época os problemas das
diferenças individuais foram estudados com êxito por cientistas como Charles
Edward Spear-man, na Inglaterra, L. L. Thurstone, nos EUA, e B. M. Teplov, na
URSS.

Aos referidos campos da Psicologia incorpora-se um grupo de áreas


intimamente vinculadas às ciências sociais. Nessas áreas examinam-se as
condições histórico-sociais em que se formou a atividade psíquica do homem e
as formas sociais em que essa atividade se manifesta.
Nesse grupo ocupa posição essencial a etnopsicologia ou ciência das
particularidades que distinguem os processos psíqui-
15
cos em diferentes formações e estruturas históricas e em diferentes culturas.
Nas etapas iniciais do desenvolvimento da Psicologia, fizeram-se tentativas de
criar uma "psicologia dos povos" corr.: forma especial de psicologia social e de
elaborar uma ciência que fosse capaz de revelar as bases psicológicas da
formação da linguagem, dos mitos, crenças, do direito, etc. Fracassou essa
tentativa, que partiu de um dos criadores da Psicologia moderna, W. Wundt,
autor do livro A psicologia dos povos.
Wundt tentou dar uma explicação psicológica dos fenômenos da vida social,
cujas bases não são psicológicas mas econc-micas ou histórico-sociais. Por
este motivo as tentativas de "ps:-cologizar a história" retiveram durante muito
tempo o desenvolvimento desse importante campo da ciência psicológica, qa:
devia investigar um processo inverso: a influência formadora exercida pelas
condições histórico-sociais sobre o desenvoh:-mento da atividade psicológica
do homem.
Essa tarefa se converteu em objeto das pesquisas de grandes cientistas de
diversos países (Frazer e Malinowsky, na Inglaterra, Janet e Lévy-Bruhl, na
França, Turnwald, na Alemanha e M. Mead, nos EUA) e foram justamente essas
pesquisas qu: lançaram as bases da etnopsicologia atual. O estudo das
peculiaridades da atividade psíquica de pessoas pertencentes -diferentes
culturas constitui atualmente uma área importan:; da ciência psicológica.
A psicolingüística, disciplina que nos últimos decênios s: converteu em área
independente e se situa na fronteira entre a Psicologia e a lingüística,
representa um campo especial d-Psicologia. A psicolingüística se propõe o
estudo das leis básica: da linguagem enquanto meio de comunicação, dos
processos d. codificação e decodificação da informação veiculada pela
linguagem e dos processos psicológicos que se baseiam nos códigos da língua
e se materializam na linguagem do homem.
A Psicologia social é uma área importante porém pouco desenvolvida. Esta
disciplina estuda as leis psicológicas da comunicação entre os homens, as
peculiaridades psicológicas da divulgação de informação por meios como a
imprensa e o cinema, as particularidades do comportamento no processo de
trabalho, competição, etc. Um campo especial da Psicologia social tem como
objeto o estudo das inter-relações humanas em pequenos grupos, a análise
dos fatores que servem de base a
16
tipos concretos de interação entre os homens, de formação da autoridade,
promoção de líderes, etc.
Entre essas disciplinas, que mantêm afinidades com as ciências sociais, inclui-
se a Psicologia da arte, que estuda as bases psicológicas da criação artística e
as leis psicológicas que servem de base às obras de arte que aplicam diversos
procedimentos e asseguram uma influência máxima das obras sobre o leitor e
espectador.
Tomamos conhecimento apenas dos ramos fundamentais da Psicologia, mas
estes podem mostrar que sistema ramificado de disciplina a Psicologia
moderna representa.
Os métodos em Psicologia
É condição fundamental da evolução de toda ciência a existência de métodos
suficientemente objetivos, precisos e seguros.
O papel do método de uma ciência deve-se ao fato de que a essência do
processo em estudo não coincide com as manifestações em que ela aparece.
São necessários procedimentos especiais, que permitam penetrar além dos
limites dos fenômenos acessíveis à observação imediata, penetrar nas leis
internas que constituem a essência do processo em estudo. Esse caminho do
fenômeno à essência, que lança mão de toda uma série de procedimentos
objetivos de pesquisa, caracteriza as pesquisas verdadeiramente científicas.
Em que consistem os métodos empregados pela Psicologia?
Houve um longo período em que a Psicologia era definida como ciência do
mundo subjetivo do homem; à definição do conteúdo da ciência correspondia a
escolha dos seus métodos. Segundo a concepção idealista, que separava o
psiquismo de todos os outros fenômenos da natureza e da sociedade, a
Psicologia tinha como objeto o estudo dos estados subjetivos da consciência.
Segundo os psicólogos idealistas, esses- processos da consciência se
distinguiam dos outros processos da realidade objetiva pelo fato de que o
fenômeno coincidia com a essência: as formas de consciência que o homem
podia observar em si mesmo (clareza ou imprecisão de consciência, vivência
da liberdade do ato volitivo, etc.) eram consideradas por esses
17
psicólogos como propriedades fundamentais do espírito ou como essência dos
processos psíquicos subjetivos. Para eles, essa coincidência dos fenômenos
com a essência constituía o fundamento da Psicologia e lhe definia o método,
ou seja, consideravam como fundamental e única a descrição subjetiva dos
fenômenos da consciência, descrição essa que se obtinha no processo de
introspecção. O reconhecimento da introspecção como método fundamental da
Psicologia não apenas separava esta ciência das outras como fechava de fato
todos os caminhos para a evolução da Psicologia enquanto ciência autêntica.
Excluía, ainda, a explicação objetiva e causai dos processos psíquicos,
reduzindo a Psicologia à descrição subjetiva de formas da vida espiritual e dos
fenômenos psíquicos.
É fácil entender que uma "ciência" que se negava a considerar os processos
psíquicos como produtos do desenvolvimento objetivo, que não levantava os
problemas da origem e dos mecanismos objetivos desses processos não podia
ter existência própria; durante muito tempo continuou sendo uma área singular
da filosofia idealista sem se incluir no círculo das ciências autênticas.
Por isto mudou radicalmente o tratamento dispensado ao método básico da
Psicologia desde o período em que esta disciplina passou a ser interpretada
como ciência de uma forma específica de atividade psíquica, que permite ao
homem orientar-se na realidade ambiente, refleti-la, formar programas de
comportamento e controlar a sua execução.
A tarefa dos psicólogos consistia em criar métodos objetivos de estudo dos
processos psíquicos do homem, sem nunca se limitar ao método da
introspecção, referindo-se a ele apenas como um procedimento auxiliar de
sentido antes heurístico, que permitia levantar questões, o que dava a
possibilidade de explicar por via causai os fenômenos e encontrar as leis que
lhes serviam de base. A revisão radical da introspecção como método de
conhecimento científico devia-se ao fato de que a própria introspecção passara
a ser vista como um tipo complexo de atividade psíquica, que era produto de
uma longa evolução, empregava formulação discursiva dos fenômenos
observados e tinha aplicação muito restrita porque nem de longe os processos
psíquicos ocorrem todos por via consciente, bem como porque a auto-
observação dos seus processos psíquicos pode introduzir mudanças
consideráveis na ocorrência desses processos.
18
A Psicologia passou a ter como tarefa fundamental a elaboração de métodos
objetivos de pesquisa que usassem os mesmos procedimentos que todas as
outras ciências usavam para observar o desenvolvimento desse ou daquele
tipo de atividade e da mudança experimental das condições do seu exercício,
de métodos que fossem capazes de ir além dos limites da descrição exterior
dessa atividade no sentido das leis que lhe servem de base.
O procedimento principal da Psicologia passou a ser a observação do
comportamento do homem em condições naturais e experimentais, com a
análise das mudanças que ocorrem em determinadas condições que podem
ser mudadas pelo experi-mentador. Foi nesse caminho que surgiram os três
métodos básicos de pesquisa psicológica, convencionalmente chamados de
método de análise estrutural, método genético-experimental e método
patológico-experimental (ou método de análise sindrô-mica).
O método de análise estrutural dos processos psicológicos consiste no
seguinte: o psicólogo, ao estudar essa ou aquela forma de atividade psíquica,
coloca diante do sujeito experimental uma tarefa correspondente e acompanha
a organização estrutural dos processos (procedimentos, meios, formas de
comportamento) mediante os quais o sujeito experimental resolve a tarefa
dada.
Isto significa que o psicólogo não apenas registra o- resultado final
(memorização do material proposto, reação motora ao sinal, resposta à tarefa
proposta) mas acompanha atentamente o processo de solução da tarefa
proposta, os meios auxi-liares em que ele se baseou, etc. Essa descrição da
estrutura psicológica do processo estudado e a análise das suas partes
componentes representam dificuldades consideráveis e exigem vários
procedimentos auxiliares especiais.
Esses procedimentos, que permitem efetuar uma análise estrutural bastante
completa, podem ter caráter direto ou indireto.
Pertence aos procedimentos diretos a mudança da estrutura da tarefa proposta
ao sujeito experimental (com dificultação paulatina, inclusão de novas
exigências, que tornam necessária a inserção de novas operações na solução
da tarefa), bem como a proposta de vários procedimentos que ajudam à
solução (escolha de apoios externos, procedimentos auxiliares, etc). O
emprego desses procedimentos diretos de análise estrutural muda
19
o curso objetivo do processo psicológico e permite estabelecer quais dentre os
procedimentos empregados surtem um efeito máximo.
As referidas formas de análise estrutural se aplicam antes de tudo ao estudo
objetivo de formas contíguas de atividade psíquica como a assimilação ou
memorização do material, a solução das tarefas, a realização de operações
construtivas ou lógicas, o estudo da estrutura das formas complexas dos atos
conscientes.
Entre os procedimentos indiretos ou complementares situa-se o emprego de
indícios, que, não sendo eles mesmos elementos, de atividade do homem,
podem ser índices do seu estado geral, das tensões por ele experimentadas,
etc. Entre esses procedimentos, por exemplo, incluímos a aplicação de
métodos de registro dos processos fisiológicos (eletroencefalogramas, eletro-
miogramas, reação galvânica da pele, pletismograma), que por si mesmos não
revelam as peculiaridades da realização da atividade psíquica mas podem
refletir as condições fisiológicas gerais que caracterizam essa realização.
Ê natural que a aplicação desses procedimentos indiretos ou complementares
pode adquirir sentido somente havendo organização precisa da própria
atividade psíquica estudada pelo psicólogo.
Ao lado do método analítico-estrutural, que ocupa posição central na
Psicologia, podemos colocar o método genético-expe-rimental, que tem
importância especialmente grande para a Psicologia genética.
Sabe-se que todos os processos psicológicos superiores são produto de uma
longa evolução. Por isto é sobretudo importante para o psicólogo acompanhar
a marcha desse processo de evolução, que etapas foram incluídas nele e que
fatores determinam o surgimento de processos psicológicos superiores.
Pode-se obter resposta a esta questão não apenas acompanhando a execução
das mesmas tarefas em fases sucessivas do desenvolvimento da criança (esse
método recebeu na Psicologia a denominação de método dos cortes
genéticos) como também criando condições experimentais que permitam
mostrar como se forma essa ou aquela atividade psíquica. Com este fim
coloca-se em diferentes condições o sujeito experimental, a quem se propõe
resolver essa ou aquela tarefa. Nuns casos exige-se dele solução
independente da tarefa, noutros, presta-se-lhe ajuda, empregando diversos
meios de apoios extremos evidentemente-
20
eficazes, sugerindo em voz alta as vias de solução, por um lado, observando
como ele aproveita essa ajuda, por outro.
Aplicando os procedimentos que constituem a essência do método genético-
experimental, o estudioso se mostra capaz não apenas de revelar as condições
com cujo aproveitamento o sujeito experimental pode assimilar de modo ideal
dada atividade, como também de formular experimentalmente os complexos
processos psíquicos e abordar mais de perto a sua estrutura. O método
genético-experimental foi amplamente aplicado na Psicologia na URSS por
Vigotsky, A. V. Zaporojets, P, Y. Galpe-rina e produziu muitos fatos valiosos
que se incorporaram soli-damente à Psicologia.
O terceiro método da Psicologia, especialmente importante para a
neuropsicologia e psicopatologia, é o método patológico-éxperimental ou
método da análise sindrômica das mudanças de comportamento que ocorrem
nos estados patológicos do cérebro ou num desenvolvimento exclusivo de um
setor dos processos psíquicos.
Esse método é aplicável em casos relativamente raros. Conhecendo um fator
que muda notoriamente o curso dos processos psíquicos, o psicólogo pode
saber qual a influência que esse fator exerce sobre o curso de toda a atividade
psíquica do sujeito.
Esse método se manifesta nas formas mais claras nas pesquisas
neuropsicológicas, consistindo no seguinte: o psicólogo que estuda
minuciosamente os pacientes nos quais a afecção local do cérebro provoca o
deslocamento ou a deformação de uma das condições do curso normal dos
processos psíquicos (por exemplo, da percepção visual, da memória auditiva
ou da sólida manutenção do programa de atividade), analisa detalhadamente a
realização de todo um conjunto de processos psíquicos e define quais desses
processos se mantêm intactos e quais ficam perturbados. Semelhante análise
permite estabelecer quais são precisamente os processos psíquicos
internamente relacionados com o fator perturbado (ou excluído) e quais são
independentes deste; permite descrever toda uma síndrome (por outras
palavras, todo um conjunto de mudanças) que surge com a mudança de uma
função e dá a possibilidade de mostrar a interdependência (correlação) de
processos psicológicos isolados.
O mesmo método pode ser aplicado na Psicologia geral ou na>Psicologia das
diferenças individuais, nas quais a superevolu-ção de um aspecto do campo
psíquico (por exemplo, da memória
21
visual clara) ou alguma peculiaridade individual dos processos nervosos (por
exemplo, a fraqueza ou a mobilidade insuficiente dos processos nervosos)
pode provocar a reestruturação de todos os processos psicológicos e tornar-se
fator decisivo no surgimento de todo um conjunto de peculiaridades individuais
da pessoa.
Todos os métodos que descrevemos em linhas gerais são métodos da
pesquisa psicológica. A par com eles, entretanto, têm grande importância para
a Psicologia os métodos breves de avaliação qualitativa e quantitativa dos
processos psíquicos (dos conhecimentos, habilidades, aptidões) e os métodos
simples de medição do nível de evolução dos processos psíquicos.
Esses métodos se aplicam amplamente na Psicologia e são conhecidos pela
denominação de testes psicológicos. Os testes psicológicos consistem de
tarefas, que se propõem a um amplo círculo de sujeitos experimentais para
estabelecer seus conhecimentos, habilidades ou aptidões. Para que esses
testes possam produzir dados objetivos e mensuráveis, são feitos previamente
com um grande número de sujeitos experimentais (crianças de uma
determinada idade ou pessoas do mesmo nível de educação). Entre essas
tarefas escolhem-se aquelas'que um número considerável (dois terços, por
exemplo) de sujeitos experimentais consegue resolver com êxito e só depois
disto elas são propostas àqueles sujeitos cujos conhecimentos, habilidades ou
aptidões são mensuráveis. Os resultados dessas pesquisas são avaliados por
pontos ou por lugar (indica-se o lugar que um dado sujeito experimental
poderia ocupar em relação ao grupo correspondente de sujeitos).
A aplicação dos testes psicológicos pode ter certa importância para que se
tenha uma orientação, acerca das peculiaridades psicológicas dos grandes
hemisférios. Faremos adiante uma apreciação crítica desse método, quando
examinarmos a sua importância para a medição das diferenças individuais de
diferentes sujeitos.
É fácil ver que a importância de todos os referidos métodos nã.p é a mesma
para as diferentes áreas da Psicologia a que nos referimos, e se o método de
análise estrutural continua sendo o método básico para todas as áreas
psicológicas, o método gené-tico-experimental ocupa posição dominante na
Psicologia genética, ocupando o método de análise sindrômica posição-chave
na Psicologia patológica ou diferencial.
22
A importância prática da Psicologia
A Psicologia tem grande importância não apenas para a solução de uma série
de questões teóricas do campo psicológico e da atividade consciente do
homem.
Ela tem importância também prática, que aumenta à medida que a direção do
comportamento do homem em bases científicas e a consideração do fator
humano na indústria e nas relações sociais se tornam questão central da vida
social.
A ciência psicológica é de grande importância prática para vários campos,
dentre os quais mencionamos apenas os mais importantes.
O primeiro desses campos é o da indústria e do trabalho; a área da Psicologia
aplicada que se dedica a questões ligadas a esses campos é denominada
engenharia psicológica e psicologia do trabalho.
A indústria moderna, que compreende a direção de mecanismos, do transporte,
aviação, etc, subentende uma complexa interação do sistema homem-
máquina. A técnica complexa deve estar adaptada às possibilidades do
homem. É necessário criar condições nas quais a direção dos sistemas
transcorra numa variante ideal e possa realizar-se com a menor perda de
tempo e o menor número de erros. Essas exigências devem referir-se
principalmente à construção racional dos painéis de direção, que nos
mecanismos modernos consistem de grande número de indicadores, que
exigem revisão sumamente rigorosa e que a informação que recebem tenha a
máxima acessibilidade. É natural que essas exigências podem ser atendidas
somente levando-se em conta as leis da percepção humana, o volume da
memória humana e os modos de originalizá-las, que poderiam, da melhor
maneira, adaptar a máquina às possibilidades do homem. Por outro lado, a
indústria moderna coloca uma série de questões atinen-tes à seleção de
pessoas mais aptas para as condições dessas ou daquelas formas de trabalho,
querendo, com isto, que se criem condições que assegurem circunstâncias
ideais para a manutenção da atenção e o menor esgotamento do homem.
Coloca-se a questão: que fatores psicológicos devem-se levar em conta para
garantir a máxima segurança do trabalho e o mínimo de avarias?
Todas essas questões são elaboradas pela engenharia psicológica e pela
Psicologia do trabalho, que estão se convertendo
23
em importante componente da organização cientifica da produção.
Outra área de aplicação prática da Psicologia é o ensino e a educação da
geração adolescente, em suma, a área da pedagogia.
É sabido que o crescente volume de conhecimentos, que devem ser
assimilados no processo de ensino escolar, exige organização mais racional
dos métodos de ensino. Isto depende substancialmente das peculiaridades
psicológicas da criança, da idade e dos seus processos cognitivos na
aprendizagem escolar.
A Psicologia pedagógica é a área da Psicologia aplicada que deve assegurar a
argumentação científica dos programas e métodos de ensino, estabelecer o
círculo dos conceitos acessíveis às crianças da idade correspondente e os
métodos de transmissão do material que garantirão sua melhor assimilação. O
ensino programado (ou teoria da assimilação programada, por etapa, dos
conhecimentos), nova área da pedagogia que se desenvolveu ultimamente,
apresenta a base psicológica científica para a elaboração de uma seqüência
otimal do material proposto bem como a'aplicação dos métodos mais eficazes
de ensino. Questões como o grau de desdobramento do processo de
assimilação dos conhecimentos por etapa, a correlação dos meios direto e
lógico-verbais de ensino, os modos de formulação otimal de regras, os
procedimentos que asseguram assimilação adequada dos conceitos e a
transferência de princípios assimilados no processo de ensino constituem
apenas uma parte das questões estudadas pela psicologia pedagógica, que dá
contribuição substancial para a fundamentação científica do processo
pedagógico.
O segundo aspecto do emprego da Psicologia para a construção racional do
ensino e da educação é a análise das peculiaridades psicológicas das
crianças, que cria obstáculo para levar-lhes instrução com êxito.
É sabido que o sucesso do ensino depende não só dos programas e métodos
racionalmente organizados mas também da própria composição dos alunos.
Em toda classe, paralelamente aos alunos adiantados, há aqueles que não
conseguem assimilar com êxito o programa escolar e retardam o bom
rendimento do trabalho de toda a turma.
O essencial, porém, é o fato de que a falta de aproveitamento que esses
alunos demonstram pode ter fundamento variado.
24
Uns alunos não acompanham o aproveitamento por serem mentalmente
retardados e o atraso orgânico do seu cérebro os torna incapazes de assimilar
material de complexidade mínima. Essas crianças devem ser transferidas da
escola de massa para uma escola especial, auxiliar. As outras são crianças
plenamente normais, mas o seu atraso deve-se ao fato de que, não tendo
assistido a determinada parte do programa, elas não podem avançar com
sucesso porque a assimilação do novo material não encontra nelas a
necessária base de conhecimentos. Essas crianças necessitam de aulas
complementares especiais que possam eliminar as suas lacunas.
Outros alunos (terceiros) demonstram dificuldades na aprendizagem por serem
fisicamente fracos, por terem sofrido uma doença qualquer. Eles são capazes
de concentrar com êxito suas atenções apenas durante tempo limitado, ficam
rapidamente exaustos e não têm condições de assimilar o material
correspondente. Eles devem estudar sujeitos a um regime correspondente e
nessas condições podem cumprir com êxito o programa. Por último, o quarto
grupo de alunos experimenta dificuldades de aprendizagem não porque as
crianças que o compõem sejam mentalmente retardadas mas porque
apresentam algumas deficiências, como deficiências auditivas, que dificultam a
comunicação verbal oportuna e plena e provocam retardamento temporário do
desenvolvimento. Essas crianças devem ser transferidas para escolas
destinadas a alunos de audição difícil, onde procedimentos e métodos
especiais permitirão compensar tais deficiências.
A tarefa mais importante deve ser a identificação oportuna das causas do
atraso de diferentes grupos de crianças e o diagnóstico das diversas formas de
atraso no programa. Essa tarefa pode ser cumprida somente com íntima
participação dos psicólogos, que possam descrever as peculiaridades
psicológicas das crianças que não conseguem acompanhar o programa,
explicar as causas principais do retardamento da sua evolução e prestar ajuda
substancial na eliminação das deficiências descritas.
O terceiro campo de aplicação prática da Psicologia é a medicina.
15 sabido que o desenvolvimento de uma doença depende não apenas do
agente patogênico e do estado do organismo mas também de como o próprio
doente encara sua doença e como a avalia; por outras palavras, depende
daquilo a que os terapeu-tas chamam de "quadro interno da doença". No
entanto, a pró-
25
pria atitude em relação à doença está relacionada com uma série de fatores
psicológicos, com as peculiaridades da estrutura emocional do indivíduo, com o
caráter das generalizações que o indivíduo faz. O estudo das peculiaridades
caracterológicas e da estrutura do indivíduo, estudo esse feito pela Psicologia,
tem por isto grande importância para a medicina, permitindo focalizar mais de
perto o fundamento científico da prática da psico-terapia, da psico-higiene e da
psicoprofilaxia.
A Psicologia ocupa posição especial em áreas específicas da medicina como a
neurologia e a psiquiatria.
Nessa área ela pode prestar ajuda substancial na solução de duas
importantíssimas questões: o diagnóstico e a natureza da doença, por um lado,
e o restabelecimento das funções perturbadas, por outro.
Sabe-se que as afecções locais do cérebro só parcialmente se manifestam em
sintomas da neurologia clássica como a mudança de sensibilidade, dos
reflexos, do tônus e dos movimentos. Parte considerável dos grandes
hemisférios cerebrais não tem relação direta com nenhum dos referidos
processos e a afecção dessas áreas do cérebro não provoca perturbações
visíveis nestes. Essas partes dos grandes hemisférios estão relacionadas com
a realização das formas superiores de atividade psíquica como a análise do
afluxo de informação, a formação de planos e programas de ação e o controle
do desenvolvimento da atividade consciente. É justamente por isto que, sem
provocar sintomas fisiológicos nítidos, a afecção dessas áreas do cérebro
provoca perturbações visíveis das formas complexas de atividade psíquica.
Nos últimos decênios surgiu um novo campo da Psicologia — a
neuropsicologia — já mencionado por nós. Este permitiu ver quais os fatores
que, fazendo parte das formas complexas de atividade psíquica, estão
relacionados com determinadas áreas do cérebro, permitindo ver, ainda, que
tipos de perturbação dos processos psíquicos se verificam na afecção dessas
áreas. Graças a isto tornou-se possível introduzir um método novo e prático de
diagnóstico das afecções locais do cérebro, que aplica a análise psicológica do
caráter das perturbações dos processos psíquicos superiores peio diagnóstico
tópico das afecções cerebrais. Esse método consolidou-se na prática da
neurologia e neurocirurgia clínicas. Nos capítulos correspondentes do presente
livro mostraremos os dados de que dispõe a Psicologia para a solução dessas
questões práticas.
26
Não é menor a importância da Psicologia para precisar o diagnóstico das
doenças mentais. As perturbações da percepção e da ação, da memória e do
pensamento assumem caráter absolutamente diverso sob diferentes formas de
retardamento mental e diferentes doenças mentais. Por isto a aplicação dos
métodos da psicopatologia experimental na psiquiatria clínica permite precisar
substancialmente o diagnóstico das doenças mentais e se converte em
componente essencial da Psicologia geral.
É grande a importância prática da Psicologia na elaboração das bases
científicas do restabelecimento das junções perturbadas nas afecções
cerebrais.
Há relativamente pouco tempo ainda se considerava que as funções,
perturbadas como resultados de afecções locais do cérebro, não se
restabeleciam e a afecção do cérebro (principalmente do seu hemisfério
central, dominante) provocava perturbações irreversíveis e condenava o doente
à total invalidez.
Mas a doutrina da complexa construção sistêmica dos processos psíquicos
superiores mostrou que cada forma complexa de atividade psíquica é realizada
com o auxílio de todo um sistema de zonas cerebrais que trabalham
conjuntamente e permitiu rever radicalmente essas teses. Mostrou que os
sistemas funcionais, que se perturbam com qualquer afecção local do cérebro,
podem ser reestruturados com base na criação de novos sistemas funcionais,
baseados nas áreas cerebrais' não-afetadas. Deste modo, as funções
perturbadas podem ser restabelecidas em novas bases.
A teoria do restabelecimento das funções psíquicas superiores (perturbadas
durante afecções locais do cérebro) por meio de um restaurador especial da
aprendizagem, elaborada pela Psicologia, tornou-se um importante
componente da medicina moderna.
Por último, cabe mencionar o último campo de aplicação prática da Psicologia:
a psicologia forense. O promotor e o juiz estão constantemente diante de
formas complexas de atividade psíquica do homem, dos seus motivos e traços
caracterológicos, da gradação da percepção e da memória, das peculiaridades
do seu pensamento. Por isto a consideração das características psicológicas
desses processos deve ser componente obrigatório da preparação e da
atividade do pessoal de atividade forense.
A Psicologia elaborou um enfoque científico de duas importantes áreas da
prática forense: a análise dos depoimentos das
27
testemunhas e o diagnóstico psicológico da coparticipação no crime.
Ficou demonstrado que os depoimentos de testemunhas asseguram matéria
autêntica apenas em certos limites e que o grau dessa autenticidade pode ser
estabelecido mediante a aplicação de uma investigação psicológico-
experimental.
Por outro lado, o crime cometido deixa vestígios não só na situação externa
como também no próprio psiquismo do criminoso, daí existirem métodos
psicológicos especiais pelos quais esses vestígios podem ser descobertos.
É natural que a incorporação da Psicologia à solução desses problemas
permite dar uma contribuição importante para a construção da causa judicial
em bases científicas e constitui área importante da aplicação prática da
Psicologia.
Deste modo, a Psicologia não é apenas uma área importante da ciência como
tem campos amplamente ramificados de aplicação prática, fornecendo bases
científicas para importantes campos da prática.
28
II
A Evolução do Psiquismo
CAPÍTULO anterior vimos como a ciência moderna entende o objeto da
Psicologia e que aplicações práticas tem esse campo de atividade.
Agora enfocaremos um dos mais importantes problemas da evolução da
atividade psíquica.
A origem do psiquismo
A Psicologia pré-científica, que se desenvolveu nos pri-mórdios da filosofia
idealista, considerava o psiquismo como uma das propriedades primárias do
homem e a consciência como manifestação direta da "vida espiritual". Por esta
razão nem se colocava o problema das raízes naturais do psiquismo, de sua
origem e dos graus de sua evolução. A filosofia dua-lista supunha que a
consciência era tão eterna quanto a matéria, que aquela sempre existia
paralelamente a esta.
29
A Psicologia científica parte de teses inteiramente diversas e se propõe a tarefa
de encontrar uma resposta para o problema da origem do psiquismo, de
descrever as condições nas quais deve ter surgido essa forma altamente
complexa de vida.
Sabe-se que a condição fundamental de surgimento da vida é o surgimento de
complexas moléculas albuminosas, que não podem existir sem um constante
metabolismo com o meio. Para sobreviver, elas devem assimilar do meio
ambiente as substâncias que são objeto de alimentação e necessárias para
mantê-las vivas. Ao mesmo tempo, elas devem segregar para o ambiente
externo os produtos da desintegração cuja assimilação pode perturbar-lhes a
existência normal. Esses dois processos — a assimilação e a eliminação —
Integram o processo de metabolismo e são condição fundamental de existência
dessas complexas formações albuminosas.
É natural que essas moléculas albuminosas altamente complexas (às vezes
são chamadas coacervaíos) possuam propriedades especiais, que respondem
à ação das substâncias úteis ou das condições que contribuem para a
assimilação dessas substâncias, respondendo também à influência nociva que
lhes ameaça a existência. Deste modo, essas moléculas reagem positivamente
tanto às substâncias alimentícias como a condições como a luz e o calor, que
também contribuem para a assimilação. Reagem negativamente aos efeitos
mecânicos ou químicos superfortes que lhes dificultam a existência normal.
Elas não reagem às influências "neutras" estranhas ao processo de
metabolismo.
Chama-se excitabilidade a propriedade que têm os coacervaíos de responder
às influências que integram o processo de metabolismo (sem dar resposta às
influências exteriores "indiferentes" ). Essa propriedade fundamental se
manifesta no processo de transformação da matéria inorgânica em orgânica.
Junta-se a ela uma segunda propriedade: a possibilidade de conservação das
propriedades altamente especializadas da excitabilidade diante das influências,
transmitindo de geração a geração as respectivas modificações das moléculas
albuminosas. Essa última propriedade parece relacionar-se com a modificação
de algumas frações dos aminoácidos (particularmente do ácido ribonucléico,
que constitui o funda-
30
mento molecular da vida) e costuma ser considerada como importante
processo que serve de base à memória biológica.
Os processos de excitação diante de influências bióticas de importância vital, a
aquisição de formas de excitação altamente especializadas e sua conservação
com a transmissão imediata às gerações seguintes caracterizam o estágio de
evolução da vida habitualmente denominado vida vegetativa.
Esses processos caracterizam toda a vida, começando pelas algas mais
simples e terminando com as formas complexas de vida vegetativa. Eles
condicionam os chamados "movimentos dos vegetais", que, em essência, são
apenas formas de uma intensa troca ou crescimento, dirigido pela excitação em
relação às influências bióticas (umidade, iluminação, etc). Fenômenos como o
crescimento da raiz do vegetal no sentido da profundidade do solo ou o
crescimento irregular do tronco dependendo da iluminação ou a inclinação dos
vegetais no sentido dos raios solares constituem apenas o resultado do
fenômenos da "excitação" diante das influências bióticas (não indiferentes
para a vida).
Há uma circunstância que é essencial para a vida vegetativa. O vegetal que
responde com um intenso metabolismo às influências bióticas não reage às
influências exteriores, que integram o processo imediato do metabolismo. Ele
não se orienta ativamente no meio ambiente e pode, por exemplo, morrer por
falta de luz ou umidade, mesmo que as fontes de luz e umidade estejam bem
próximas mas não tenham efeito imediato sobre ele.
Dessa forma passiva de vitalidade distinguem-se acen-tuadamente as formas
de existência na etapa seguinte da evolução: o estágio da vida animal.
Cada organismo animal, a começar pelos protozoários, caracteriza-se pelo fato
de que o animal reage não só às influências bióticas, que integram o processo
imediato do metabolismo, mas também às influências "neutras", não-bióti-cas,
se estas anunciam o surgimento de influências ("bióticas") de importância vital.
Noutros termos, os animais (mesmo os protozoários) se orientam ativamente
na claridade, procuram condições de importância vital e reagem a todas as
mudanças do meio, que são um sinal do surgimento dessas condições. Quanto
mais intenso é o metabolismo, quanto maior é a necessidade de obter
alimentação que o ser vivo simples sente, tanto mais ativos são os seus
movimentos e
31
tanto mais vivificadas são as formas em que se produz sua atividade de
"orientação" ou "procura".
Essa capacidade de reagir aos instigadores "abióticos" neutros sob a condição
de que eles sinalizem para o surgimento de influências de importância vital,
capacidade essa que surge no estágio de transição para o mundo animal, é
chamada sensibilidade, diferentemente dos fenômenos da ex-citabilidade. É o
surgimento da sensibilidade que pode servir de indício biológico objetivo do
surgimento do psiquismo.
Variabilidade do comportamento dos proiozoários
A sensibilidade aos instigadores "neutros", se estes começam a dar sinais do
surgimento de influências de importância vital, provoca mudanças radicais nas
formas de vida. O principal consiste em que o ser vivo começa a "orientar-se"
no meio ambiente, a reagir ativamente a cada mudança que neste se processa,
ou seja, começa a adquirir formas de comportamento individualmente
variáveis, que não existiam no mundo vegetal.
Nos primeiros períodos a aquisição desse comportamento individualmente
variável se processa com relativa lentidão, mas apesar disto consegue-se
observar o fenômeno até em condições de experimento.
Citemos um experimento típico, realizado pelo pesquisador alemão Bramstedt.
Sabe-se que os unicelulares, usados nesse experimento, são sensíveis ao
calor (qué é para eles condição biótica de importância vital, indispensável ao
metabolismo) mas são insensíveis à luz. Por isto se os colocarmos numa
câmara igualmente aquecida, com uma parte clara e outra escura, eles se
distribuem igualmente por toda a câmara. Se, ao contrário, aquecermos uma
parte da câmara igualmente iluminada, eles se concentram no canto aquecido.
Mas se durante longo período iluminarmos o canto aquecido e escurecermos o
não-aquecido, a situação muda e os unicelulares se tornam sensíveis à luz,
que agora adquire para eles o significado de sinal de elevação da temperatura
e começam a concentrar-se no canto iluminado da câmara, apesar
ias.diferenças de temperatura.
32
É fato característico que essa sensibilidade à claridade se forma
paulatinamente entre os unicelulares, podendo desaparecer inteiramente se
durante longo período a luz não for reforçada pelo calor.
Essa mutabilidade individual do comportamento dos pro-tozoários pode ser
provocada com base em suas reações defensivas, se mudarmos as condições
que provocam essas reações. Pode servir de exemplo o experimento do
conhecido pesquisador polonês Edward Dembowski.
Colocados numa proveta arredondada com água, os pro-tozoários fazem
movimentos que lhes são característicos. Co-locados.em tubo idêntico porém
com uma seção quadrangular, eles começam a bater-se contra os vidros dessa
proveta mas logo seus movimentos adquirem caráter modificado, que garantem
o mínimo de batidas contra as paredes do vaso. Por conseguinte, a trajetória
desses movimentos começa a refletir a configuração do vaso. A trajetória por
eles adquirida se mantém inclusive quando eles são recolocados num vaso
arredondado e passam algum tempo fazendo os mesmos movimentos pela
trajetória rômbica.
O processo de mutabilidade do comportamento-individual dos protozoários,
que os distingue acentuadamente dos vegetais, transcorre com relativa lentidão
e as mudanças que surgem desaparecem com a mesma lentidão. Mas essas
mudanças são tão importantes que as novas formas de comportamento
emergentes (de adaptação às novas condições) permitem realizar as respostas
necessárias de adaptação às novas condições de modo muito mais rápido do
que se verificava em nível inferior da escada evolutiva.
Exemplo típico desse processo encontramos no experimento do estudioso
americano A. Smith.
Um ciliado (tipo de protozoário) foi colocado num vaso estreito com seção
microscópica. A seção era tão pequena que para sair do tubo no sentido da
ação do agente biótico (a luz) o ciliado tinha de virar-se, batendo contra as
paredes do tubo. No começo do teste ele gastava de 3 a 6 minutos para virar-
se. Mas se esses experimentos eram repetidos várias vezes durante 10-12
horas, o ciliado começava a virar-se com rapidez bem maior e no final do teste
gastava apenas 1-2 segundos para virar-se. Assim, sob a influência das novas
condições, obtinha-se uma nova "habilidade", que
33
se processava com uma rapidez 180-200 vezes superior à reação inicial.
Como vemos, a formação de um novo tipo de comportamento, que
corresponde às condições mudadas, exige dos protozoários bastante tempo. É
característico que, uma vez surgida, a mudança do comportamento se mantém
entre eles durante período bastante longo, sendo necessário muito tempo para
desaparecer.
Isto pode ser observado tanto entre os protozoários uni-celulares como entre
os pluricelulares de organização relativamente simples.
O exemplo, que mostra esse surgimento tão lento e o desaparecimento
igualmente lento da nova forma de comportamento, pode ser visto no
experimento realizado inicialmente pelo pesquisador belga Blesson,
posteriormente pelo pesquisador soviético A. N. Leôntyev (cf. Leôntyev, A. N.,
Problemas da evolução do psiquismo).
Ainda não conhecemos os mecanismos biológicos dessa manifestação de
sensibilidade ao agente neutro inicial. É possível que ela esteja relacionada
com a mudança paulatina das propriedades bioquímicas do protoplasma. No
entanto o fato da manifestação, em vida, de novas formas de reação indica o
surgimento de urna mutabilidade individual no comportamento dos protozoários
e dá fundamento para falar-se do surgimento de um comportamento autêntico,
embora muito elementar, nessa fase da evolução.
Mecanismos do comportamento dos protozoários
A ciência ainda conhece muito pouco a respeito das condições físico-químicas
do comportamento dos protozoários e das causas dos seus movimentos
positivos ou negativos (movimento no sentido de uns objetos ou o movimento a
partir de outros objetos, respectivamente).
Sabe-se que o protoplasma, que compõe o corpo do animal protozoário
(unicelular), é constituído de uma camada exterior mais sólida (plasma-gel) e
de uma camada interior mais líquida (plasma-sol). Sabe-se também que as
camadas externas do protoplasma do unicelular são mais
34
excitáveis do que as camadas internas, e cada ação externa provoca intenso
metabolismo, que se estende paulatinamente das camadas externas às
internas, extinguindo-se conforme o tipo de.gradiente de excitação
paulatinamente decrescente. Esses gradientes de excitação, ao que parece,
servem de base aos movimentos do unicelular, que surgem tão logo a
influência externa provoca intenso metabolismo no ponto correspondente de
sua superfície ou quando os processos internos levam à necessidade de
procurar ativamente as substâncias necessárias para assegurar semelhante
metabolismo.
Alguns autores supõem que influências adequadas de força moderada
provocam reação positiva do unicelular e levam a um movimento no sentido da
respectiva influência, ao passo que influências inadequadas (ultrafortes ou
nocivas) provocam movimento negativo, dirigido a partir do objeto influente. O
movimento positivo leva a que o ohjeto que provoca irritação é inicialmente
envolvido pelos filetes do protoplasma, que, entre os unicelulares mais simples
(amebas), é depositado no lugar de metabolismo mais intensivo e fecha-se em
torno desse objeto, incíuindo-o na composição do corpo do unicelular. Se esse
objeto é alimentício, ele é absorvido pelo corpo do unicelular, segregando-se
para o meio o produto da desintegração. Não sendo aliníen-tício, ele é rejeitado
para o meio ambiente pelo mesmo caminho que foi apanhado.
Seria, entretanto, incorreto supor que todos os movimentos dos unicelulares se
processam por um esquema tão simples. Uma peculiaridade do
comportamento dos unicelulares é o fato de que as influências que chegam até
eles podem, elas mesmas, sofrer as mais complexas modificações. O próprio
protoplasma do unicelular nunca se encontra em estado de tranqüilidade, mas
se caracteriza por sistemas altamente diferenciados e seletivos de excitação,
que mudam segundo o processo de metabolismo que nele se opera e leva ao
surgimento de formas dominantes de excitação.
Como mostraram os experimentos de Fogler, a influência mecânica de certa
força provoca apenas reações relativamente fracas do protozoário, sendo que
a excitação pela luz pode não provocar nenhuma reação. Mas se sobre o
protozoário agem simultaneamente a instigação mecânica de determinada
força e a excitação por luz, esses dois estímulos se somam e levam a
intensivas reações do protozoário.
35
Sabe-se que a capacidade de reação da ameba faminta é maior do que a
mesma capacidade da ameba saciada, e ela cria elevada disposição de
responder aos estímulos positivos correspondentes ou às instigações que
sinalizam o surgimento destes.
Por último, o unicelular pode "acostumar-se" aos estímulos correspondentes,
reduzindo a resposta a eles na medida do seu prenuncio repetido e longo.
Os mecanismos que servem de base a esse fenômeno ainda são pouco
conhecidos e só as observações ultimamente feitas levam a pensar que o
surgimento e a manutenção desses estímulos são o resultado de certas
modificações e do ácido ribonucléico, que é um dos componentes básicos do
seu plasma.
Cabe observar que o corpo dos protozoários é relativamente homogêneo e que
o processo do metabolismo mais intensivo pode surgir nele no lugar da
excitação que surge imediatamente, formando com isto o extremo "cerebral"
provisório do seu corpo.
Os unicelulares mais complexos têm estrutura incomparavelmente mais
complexa. Neles podemos distinguir "órgãos" permanentes em forma de áreas
sensíveis do protoplas-ma, que formam, por exemplo, os "flagelos" das
bactérias. Esses "flagelos" estão em movimento permanente e são agentes das
funções mais importantes de orientação no meio exterior; é neles que surgem
os gradientes de excitação constante, que, espalhando-se pelo resto do corpo
do unicelular, coloca-o em movimento.
A riqueza de comportamento dos unicelulares é muito grande e ainda será
objeto de estudo especial, assim como os mecanismos que lhe servem de
base. Mas' o que já sabemos a seu respeito nos leva a pensar que, aqui, estão
lançadas as bases da complexa atividade da orientação ativa no meio, que
mais tarde constituirão traço importantíssimo da atividade psíquica.
Origem do sistema nervoso e suas formas mais simples
Os processos descritos de irritação em face das influências bióticas, de
sensibilidade às influências neutras que
36
anunciam o surgimento de influências de importância vital e de conservação
elementar dos vestígios são suficientes para a conservação da vida dos
animais unicelulares.
Mas eles se tornam insuficientes com a transição aos plu-ricelulares.
A transição para os multicelulares complica substancialmente as condições de
vida. A alimentação por meio da difusão direta de substâncias alimentícias, que
ocupou posição central no nível dos protozoários, agora é substituída pelo
consumo de comida discreta (concentrada); eleva-se o papel da orientação
ativa no meio externo. Torna-se necessário assegurar movimentos bem mais
diferenciais e uma con-dutibilidade da excitação bem mais rápida do que
aquela que se obteve por meio da difusão paulatina dos gradientes de
excitação no protoplasma dos unicelulares. É isto que leva a uma considerável
complicação da estrutura do corpo do plu-ricelular, à separação das células de
uma recepção especial de irritações que chegaram ao corpo do animal, e ao
surgimento das primeiras células contrativas, agentes da função que nas
etapas posteriores da evolução será assumida pelas células musculares. Isto
leva, por último, a que nos lugares dos antigos gradientes de excitação
comecem a formar-se passagens do protoplasma mais excitável e se constitua
a forma mais elementar do sistema nervoso, qué entre esses animais tem o
caráter de sistema nervoso difuso e com forma de rede.
Tudo isto pode ser visto com nitidez especial na estrutura dos pluricelulares
relativamente simples, pertencentes à classe dos celenterados, por exemplo,
na estrutura do corpo da medusa, anêmona-do-mar e estrela-do-mar.
Esse estágio da evolução dos pluricelulares se caracteriza pelo fato de que a
condutibilidade da excitação se acelera muitas vezes graças ao surgimento do
sistema nervoso reti-cular. Se o processo da excitação pelo protoplasma não
vai além da velocidade de 1-2 mícrons por segundo, com o surgimento do
sistema nervoso mais simples (reticular) a velocidade do processo é igual a
0,5m por segundo (observemos que com a contínua evolução do sistema
nervoso e a passagem para as etapas seguintes de sua complicação, a
velocidade do processo de excitação aumenta ainda mais, chegando nos
sapos a 35 metros por segundo e a 125 metros por segundo nos vertebrados
superiores).
37
No entanto as vantagens consideráveis, que surgem com o aparecimento do
sistema nervoso difuso primário (reticu-lar), têm também os seus limites. Como
nas etapas da evolução já descritas, os animais com sistema nervoso reticular
ainda não têm extremidade cerebral permanente que dirija o seu
comportamento. A excitação se difunde de maneira igual pelo sistema nervoso
reticular em todo o corpo do animal, e o lugar da aplicação da instigação
exterior se torna c ponto principal provisório. Só entre os celenterados mais
complexos, uma parte do corpo (por exemplo, um raio da estrela-do-mar) não
difere pela estrutura de outras partes do corpo (raios), pode tornar-se
dominante e assume a função de órgão mais ativo no movimento. Se
amputarmos na estrela-do-mar esse raio "dominante", o papel de "dominante"
passará para outro raio, disposto ao lado dele.
É natural que essa falta de um órgão dominante permanente, capaz não só de
receber mas também de processar, codificar a informação recebida e criar
programas de comportamento diferenciado, limita substancialmente as
possibilidades do comportamento nesse nível. Esses defeitos são eliminados
nas etapas posteriores da evolução, sobretudo com a transição para a vida
terrena e com a formação de um sistema nervoso ganglionar de construção
mais complexa.
O sistema nervoso ganglionar e o surgimento dos programas de
comportamento mais simples
A transição para a vida em terra está relacionada com uma considerável
complicação das condições de vida. A difusão direta de substâncias
alimentícias do meio circundante torna-se impossível, tornando-se
incomparavelmente menor a quantidade de comida sólida (discreta) pronta.
Essa alimentação encontra-se agora num meio acentuadamente heterogêneo e
a orientação necessária para obtê-la se torna bem mais difícil.
Tudo isso gera a necessidade de sucessiva complicação do organismo dos
animais, criando antes de tudo uma evolução posterior dos órgãos complexos
de recepção e movimentos e de formação de aparelhos complexos e
centralizados de processamento da informação e regulamento dos movimen-
38
tos. É a isto que corresponde a etapa seguinte da evolução do sistema
nervoso, que leva ao surgimento do sistema nervoso em cadeia ou ganglionar,
que aparece pela primeira vez nos vermes e adquire a máxima complexidade
nos invertebrados superiores, principalmente nos insetos.
Tanto o surgimento do sistema nervoso ganglionar como a formação do
comportamento, que se processa com a ajuda dele, marca um salto de suma
importância na evolução da atividade vital.
Nos invertebrados mais simples (vermes) já se pode observar um princípio
inteiramente novo de organização do sistema nervoso em comparação com o
estágio anterior. Na extremidade frontal do verme, concentram-se filamentos
que terminam em receptores químicos e táteis, distribuídos de maneira
especialmente densa. Esses aparelhos percebem mudanças químicas,
térmicas e de luz que ocorrem no meio exterior, bem como mudanças de
umidade. Os sinais dessas mudanças passam pelos filamentos e chegam ao
núcleo frontal ou gânglio, onde se concentram no primeiro "centro" que surge
pela primeira vez nessa fase da evolução. Aqui esses sinais são codificados, e
os "programas" de comportamento que surgem em forma de impulsos motores
se difundem pela cadeia dos gânglios nervosos; cada um desses gânglios
corresponde a um segmento particular do corpo do verme. Os impulsos que
chegam a esses gânglios provocam movimentos correspondentes cuja direção
é programada e regulada pelo gânglio frontal.
Aqui surge um novo princípio: o da centraiidade do sistema nervoso, que se
distingue acentuadamente do princípio da construção do sistema nervoso
difuso (reticulado). A extremidade da cabeça do verme, onde se concentra uma
rede especialmente densa de hemo,-mecano,-termo,-foto e hi-dro-receptores,
assume papel principal, ao passo que os gânglios segmentares conservam
apenas uma autonomia relativa. Isto é facilmente verificável se dividirmos ao
meio o corpo do verme. Neste caso a parte dianteira se enfiará no chão,
conservando seus movimentos organizados, enquanto a parte traseira se
limitará a simples contorções, sem revelar nenhum indício de movimento
organizado.
A complicação da esrtutura do sistema nervoso no estágio dos vermos permite
observar entre eles tipos mais perfeitos (se bem que ainda muito primitivos) "de
formação de no-
39
vos modelos de comportamento individualmente adquiridos. Isso foi
demonstrado em seu tempo pelo famoso psicólogo americano R. M. Yerkes,
que colocou minhocas num tubo em forma de T, labirinto extremamente
simples. No extremo esquerdo do tubo a minhoca recebia choque elétrico, que
provocava reação defensiva. Com várias repetições desse experimento, a
minhoca podia adquirir a ''habilidade" de evitar o choque elétrico e encaminhar-
se para o lado direito. A lentidão com que se desenvolveu esse processo pode
ser vista no seguinte: foram necessários mais de 150 testes para que o
comportamento da minhoca adquirisse caráter organizado e na grande maioria
do testes ela começasse a encaminhar-se para a direita, evitando o choque
elétrico.
Processo de "ensinamento"
da minhoca no labirinto em forma de T
Testes N" de t
1-40 —
41-80 —
81-120 —
121-160 —
161-200 —
201-240 —
Processo de "reensinamento" da minhoca no labirinto em forma de T
'rr Testes JV? de
os erros
17 Ensiname repetid
nto o
14 1-40 —. 19
13 41-80 — 9
9 81-120 — 4
4 Reensinamento
4 161-165 — 4
166-175 — 7
176-185 — 7
186-195 — 7
196-205 — 5
206-215 — 3
216-225 — 2
Repetindo-se esse mesmo experimento após uma longa pausa, a
"aprendizagem" começa a a processar-se duas vezes mais rápido e depois de
80 experimentos o número de erros já é mínimo. Foi sintomático, ainda, que os
experimentos de "reensinamento" da minhoca (nesses testes a minhoca já
começava a receber choque elétrico da direita e não da esquerda) se
desenvolveram de modo consideravelmente mais lento e só depois de 200
testes começava a manifestar-se algum efeito do "reensinamento".
40
Isto mostra que o sistema nervoso ganglionar dos vermes permite adquirir não
apenas novas formas de comportamento como também conservar as
"habilidades" adquiridas, noutros termos, que a minhoca possui uma forma
primitiva de memória.
Ultimamente têm sido realizados experimentos que per» mitem que nos
convençamos da possibilidade de transmissão dessa "habilidade" e demos
alguns passos no sentido da elucidação dos mecanismos bioquímicos que
servem de base à memória elementar. Nesses experimentos, o pesquisador
americano J. V. Mc Connell "ensinou" a um grupo de vermes o comportamento
necessário num labirinto muito simples. Depois disto, ele triturou os corpos
desses vermes, fez deles um extrato e com este alimentou outros vermes que
nunca haviam sido ensinados. Como mostrou o experimento, os vermes que
absorveram esse extrato "assimilaram" simultaneamente as habilidades
adquiridas pelo primeiro grupo de vermes. Ao serem colocados pela primeira
vez no labirinto, eles cometeram imediatamente bem menos erros do que os
vermes comuns não-ensinados. Esse fato levou Mc Connell ã Supor que a
aquisição de "habilidade" nessas etapas da evolução está relacionada com
profundas mudanças bioquímicas do proto-plasma e que a "habilidade"
adquirida pode ser "transmitida" por via humoral.
A ciência não dispõe de uma apreciação definitiva e pela interpretação dos
dados obtidos nesse experimento pode-se apenas supor que as mudanças,
provocadas por semelhante "aprendizagem", estão relacionadas com a
modificação do ácido ribonucléico (ARN) . Isto foi mostrado pelos experimentos
nos quais os corpos dos vermes "ensinados" foram previamente depositados
em solução de ribonuclease (fermento que dissolve o ARN) . Depois disto o
extrato das partes posteriores do corpo dos vermes "ensinados" não provocou
o efeito necessário, ao passo que o extrato das partes anteriores dos vermes
"ensinados" (incluindo a substância de gânglio frontal) continuou provocando o'
mesmo efeito. Esses experimentos se referem tanto à importância do ácido
ribonucléico para a conservação da "habilidade" como à importância que para a
conservação da "memória" do verme tem o gânglio frontal, cujas células são
imunss ao efeito dis-.solvente do, ribonuclease.
41
Até hoje se discute na ciência se esses experimentos se referem à
"transmissão de informação" por via humoral ou apenas ao aumento geral da
"excitabilídade", verificado na assimilação da substância dos corpos dos
vermes ensinados, Apesar de não haver uma resposta definitiva a essa
questão, os resultados dos experimentos mostram que nessa etapa da
evolução é possível a aquisição de uma "habilidade" estável e que todas as
células do corpo do animal parecem participar da conservação dessa
"habilidade".
Surgimento das formas complexas de programação hereditária do
comportamento ("instintivo")
A evolução posterior do comportamento está relacionada com o surgimento de
aparelhos complexo-diferenciados de recepção, que permitem assimilar uma
informação altamente especializada que vem do meio exterior. Essa evolução
está relacionada, ainda, com o desenvolvimento de programas sumamente
complexos, que permitem ao animal adaptar-se às condições complexas porém
permanentes e estáveis do meio. Tudo isso se torna possível nas etapas
posteriores da evolução do sistema nervoso ganglionar e se manifesta com
nitidez especial nos articulados.
As complexas condições de vida tornam necessária a formação de órgãos
multiformes de sensibilidade, que permitam registrar as diversas influências do
meio exterior. Vejamos isto no exemplo da evolução dos fotorreceptores. A
princípio, as células sensíveis à luz estavam simplesmente concentradas na
superfície frontal do corpo, dando ao animal a possibilidade de assimilar o
efeito da luz mas não permitia localizar a fonte da luz no espaço. Na etapa
seguinte da evolução, as células sensíveis à luz se concentravam em dois
discos sensíveis à luz, localizados nos dois lados da extremidade frontal do
corpo. Isto permitia aos animais orientar-se a respeito da posição espacial da
fonte de luz e voltar o tronco para a direita ou a esquerda mas ainda não
permitia distinguir as propriedades do objeto que agia sobre o organismo. Só
na última etapa da evolução, os discos hipersensíveis se arqueavam,
adquirindo a forma de uma esfera vazia. Um pequeno orifício, que mais tarde
foi preenchido pelo meio refra-tário (o cristalino), permitia a refração da luz
cadente e o efei-
42
to de objeto luminoso se imprimia na camada sensível dessa esfera vazia.
Surgia o órgão do complexo receptor fotossensível — o olho —, que pela
primeira vez permitia não apenas reagir à existência da luz como também
refletir as propriedades do objeto agente.
A estrutura do olho, o mais importante órgão receptor de luz, é diferente em
animais diferentes. Nos insetos ela tem o caráter de "olho de faceta",
construído, às vezes, de muitos milhares de células independentes. Entre os
vertebrados assume a forma do olho único tão familiar entre nós, que permite
perceber o reflexo do objeto e mudar a nitidez do reflexo por meio' de um
sistema auto-regulável de aparelho refratário. Mas em todos os casos o
surgimento de um órgão complexo, que permite reconhecer à distância os
objetos agentes, continua sendo uma das conquistas mais importantes da
evolução.
Os insetos possuem um grande número de receptores altamente diferenciados.
A par com o complexo "fotorrecep-tor (o olho), eles têm receptores químico-
táteis especiais (situados nas antenas), receptores de sabor (situados na
cavidade bucal, nas pernas), que captam as mínimas mudanças de sabor,
receptores de vibração (situados nos tímpanos das pernas), que reagem às
mais ínfimas vibrações ultra-sônicas, às vezes até a 600.000 vibrações por
segundo. É possível que eles ainda tenham toda uma Série de órgãos
receptores por nós desconhecidos, cuja especialização foi por eles
desenvolvida em um processo de milhões de gerações.
As excitações, provocadas pelos efeitos que atingem esses aparelhos
receptores, difundem-se pelos filamentos nervosos e chegam ao gânglio
frontal, que é um protótipo do cérebro e um aparelho que reúne (codifica) os
impulsos que chegam até ele e transferem esses impulsos para os sistemas
ultracomplexos de programas congênitos de comportamento, que servem de
base aos movimentos de adaptação dos insetos .
O gânglio frontal dos insetos superiores, das abelhas, por exemplo, apresenta
uma estrutura muito complexa. É formado por um acúmulo de células nervosas
diferenciadas, às quais chegam os impulsos dos receptores periféricos. Na
parte frontal desse gânglio se situam principalmente as células visuais, na parte
média, as células olfativas, na parte posterior, as células sensíveis da cavidade
bucal. É característi-
43
co que a disposição dessas células tem caráter organizado. Nelas já se pode
observar uma estrutura plana de "vídeo", que permite que as excitações
provocadas se difundam nas estruturas neurôniças do gânglio frontal em forma
organizada, assegurando com isto o reflexo de determinadas influências
estruturalmente organizadas.
Como foi estabelecido pelas últimas pesquisas, é característico que já nessa
fase da evolução façam parte da composição do gânglio frontal os neurônios
altamente especializados, que reagem aos mínimos indícios particulares da
informação que chega ao organismo, dividindo-a em grande número de
elementos componentes e permitindo, posteriormente, reuni-los em estruturas
integrais (adiante falaremos da forma de funcionamento desses neurônios).
Tudo isso torna o gânglio frontal dos insetos superiores um aparelho central
sumamente complexo, que permite captar as múltiplas influências do meio e
codificar as influências captáveis em sistemas integrais.
Os códigos de excitações, que surgem em determinadas irritações no gânglio
frontal dos insetos, são transmitidos na forma de programas complexos de
comportamento ao gânglio toráxico situado abaixo, onde surgem os impulsos
dos complexos movimentos de adaptação do inseto, impulsos esses que lhe
formam o comportamento.
Os complexíssimos programas de comportamento dos insetos representam um
interesse tão grande que exigem análise especial e minuciosa.
A peculiaridade dos programas sumamente complexos, que representam uma
parcela de absoluto predomínio no comportamento dos insetos, consiste em
que tais programas são congênitos e transmissíveis por hereditariedade. Esses
programas são produzidos por milhões de gerações e transmitidos por
hereditariedade do mesmo modo que as peculiaridades da estrutura do corpo
(as formas das asas, as características da tromba, a estrutura dos órgãos
receptores. Eles estão bem adaptados às condições de existência dos insetos).
São inúmeros os exemplos de programas congênitos de comportamento, entre
os insetos. Freqüentemente eles são de tal forma complexos e racionais que
alguns autores os consideraram exemplo de comportamento racional.
É sabido que a larva do gorgulho da bétula corta-lhe a folha numa forma
geométrica ideal, próxima da estrutura
44
ideal matematicamente calculada, para em seguida transformá-la em canudo e
utilizá-lo para metamorfosear-se em cri-sálida. O mosquito deita as células
sobre a superfície da água e nunca na terra, onde elas secam fatalmente. A
vespa esfecídea deita as células no corpo da lagarta para que as larvas que
venham a nascer não sintam falta de alimento. Para tanto ela fura previamente
o gânglio do tronco da lagarta de maneira a que esta não morra mas fique
apenas sem movimento; isto ela faz com admirável precisão. Não é necessário
falar dos programas congênitos de comportamento da aranha, que tece uma
teia impressionante pela construção, ou dos programas congênitos de
comportamento da abelha, que constrói favos de forma economicamente ideal,
enche esses favos de mel e os lacra com cera tão logo eles estejam
suficientemente cheios.
Os exemplos citados de comportamento racional altamente complexo, e muitos
outros, são congênitos, os insetos não precisam estudá-lo, nascem com essas
formas de comportamento assim como nascem com uma estrutura dos órgãos
dos sentidos impressionante pela racionalidade.
Tudo isso deu a muitos autores fundamentos para falar da racionalidade dos
instintos e aproximá-los do comportamento racional.
Só ultimamente as pesquisas dos zoólogos, particularmente da corrente
denominada etologia (etos -— comportamento), deram certa clareza à forma
misteriosa do comportamento e mostraram que essa forma de atividade, que
impressiona pela complexidade e a aparente racionalidade, encobre
mecanismos elementares. Essas pesquisas mostraram que os complexíssimos
programas de comportamento "instintivo" são gerados de fato por estímulos
elementares, que colocam em ação os ciclos congênitos dos atos de
adaptação.
Assim, o brilho da água leva o mosquito a deitar células na superfície aquosa.
Por isto basta substituir a água por um espelho brilhante para o mosquito
começar a depositar células em sua superfície. O complexo programa
congênito de atividade da aranha, que ataca a mosca que se enreda na teia e a
devora, é gerado de fato pela vibração da teia; se um diapasão vibrante toca a
tela, a aranha se lança contra ele assim como se lança contra a mosca.
Os mecanismos descritos permitem avançar consideravelmente no sentido de
melhorar a compreensão dos processos que servem de base ao
comportamento congênito e
45
passar da simples descrição à sua explicação, mostrar o quanto o
comportamento instintivo difere do comportamento racional.
Citemos apenas um exemplo, que mostra a complexidade com que se
desenvolve semelhante pesquisa e que interessantes são os resultados a que
ela conduz.
É sabido que algumas variedades de minhocas, após se abastecerem de
folhas para o inverno, arrastam-nas para os seus buracos pela extremidade
fina. Isto se considerava manifestação da "atividade racional" das minhocas, à
qual Dar-win se referiu em sua época, e levava a supor que a minhoca percebe
a forma da folha e "calcula" por que extremidade é melhor arrastá-la para o
buraco.
Essa hipótese mudou substancialmente depois que o pesquisador alemão
Haneli realizou o seguinte experimento: cortou de uma folha um pedaço,
reproduzindo a forma dessa folha mas com a ponta para baixo. Neste caso a
minhoca tentou arrastar a folha para o buraco não pela ponta fina, mas pela
grossa. A causa desse comportamento da minhoca tornou-se objeto da
pesquisa de outro cientista — Manholdt. Este supôs que o comportamento da
minhoca fosse determinado não pela percepção da forma mas por uma
sensibilidade química bem mais elementar. Para verificar isto ele colocou
diante da minhoca vários pauzinhos iguais, mas passou seiva da parte superior
da folha numa ponta dos pauzinhos, fazendo o mesmo na ponta de outros com
seiva da base da folha e, ainda, seiva da parte superior numa ponta e seiva de
enxerto noutra. Como testes de controle, passou seiva da parte superior ou do
enxerto da folha numa ponta dos pauzinhos, passando gelatina neutra em
outra. Os resultados do teste mostraram que, nesses casos, a freqüência com
que a minhoca arrastava o pauzinho para o buraco por uma ou outra ponta não
era a mesma e que o fator principal que resolvia a questão era a diferença de
distinção química entre a parte superior e seu enxerto.
(a) (b) (a/b)
seiva da parte superior — bases da folha (b) relação de preferên-da folha (s)
cia de uma ou ou-
parte superior da folha (s) — enxerto (t) tra extremidade da
parte superior da folha (s) — gelatina (g) folha
enxerto (e) — gelatina (g) 51:49
68:32 93:7 84:16
46
Assim, se uma ponta do pauzinho estava untada com seiva da parte superior
da folha e a outra ponta com seiva da base, a minhoca não manifestava
qualquer preferência por essa ou aquela ponta. Se uma ponta estava untada
com seiva da parte superior da folha e a outra com seiva do enxerto, a minhoca
preferia duas vezes mais a ponta com seiva da parte superior. No teste de
controle em que se passava* gelatina neutra numa ponta do pauzinho, essa
preferência pela seiva da parte superior da folha foi ainda mais nítida.
Deste modo, a hipótese segundo a qual a minhoca reage à forma da folha foi
abandonada, mostrando-se que um sentido químico bem mais simples
desempenha papel decisivo no processo dessa complexa forma de atividade.
Todas as observações descritas permitiram que nos convencêssemos de que,
apesar dos programas de comportamento congênito muito complexos que
dominam nos invertebrados (principalmente nos insetos), eles podem ser
acionados por sinais relativamente simples. Esses sinais, que acionam
mecanismos congênitos muito complexos, refletem as condições ecológicas de
vida do animal e são produtos de uma longa evolução.
As condições que põem em ação os programas congênitos de comportamento,
manifestaram-se .com nitidez especial na análise dos indícios a que reage o
inseto (a abelha, por exemplo), quando esta pousa seletivamente sobre essas
ou aquelas espécies de flores melíferas.
Verificou-se que esses indícios podem ser constituídos pela forma complexa da
flor e às vezes por seu colorido.
Como mostraram em pesquisa o famoso zoólogo alemão Frisch e
posteriormente Hertz com seus experimentos, nos quais a abelha era treinada
para pousar em xícaras com solução de açúcar, cobertas por desenhos de
diferentes formas geométricas, é com dificuldade que a abelha distingue
formas geométricas simples como o triângulo e o quadrado, mas distingue
facilmente formas complexas como a estrela pentagonal e hexagonal ou figuras
cruciformes, dispostas sob ângulos diversos. Por último, a abelha distingue
com a mesma facilidade o círculo simples e o cortado, não pousando sobre o
primeiro e reagindo seletivamente ao segundo.
Essas pesquisas mostram que o fator que permite à abelha distinguir as formas
correspondentes não é constituí-
47
do pela simplicidade geométrica destas mas por sua semelhança com os
instigadores naturais: a forma das flores.
Deram resultados análogos experimentos em que a abelha distinguiu coloridos
diferentes. Eles mostraram que a abelha distingue com dificuldade as cores
puras, distingue com muito mais facilidade as cores mistas (vermelho-amare-lo,
amarelo-verde, verde-azul, etc), que reproduzem o colorido de flores diferentes.
Tudo isso mostra que o fator decisivo para a distinção dos indícios que
acionam os programas congênitos (instintivos) de comportamento são as
condições naturais de vida (condições ecológicas), que determinam
exatamente o indício distinguido pelo animal.
É muito possível que essa elevada seletividade dos indícios a que reage o
inseto esteja relacionada com o surgimento de neurônios do gânglio frontal
altamente especializados, que, no processo de evolução, adquiriram a
capacidade de responder seletivamente aos estímulos de importância vital
como as cores mistas, o aspecto estrelário ou o corte das formas, a disposição
das formas no espaço, etc.
As pesquisas, realizadas por zoólogos e psicólogos, convenceram de mais
uma importantíssima peculiaridade do comportamento congênito "instintivo".
Verificou-se que os programas congênitos de comportamento "instintivos" são
racionais apenas em determinadas condições rigorosamente padronizadas, de
acordo com as quais esses programas se formaram no processo de evolução.
Mas basta mudar um pouco essas condições para que os programas
congênitos deixem de ser racionais e percam seu caráter "racional".
Essa tese pode ser ilustrada com dois exemplos. Sabe-se que uma espécie de
vespas formou um comportamento muito "racional". Ao chegar com a presa ao
buraco onde a guada, ela deixa a presa junto do buraco, entra nele e depois de
encontrá-lo vazio sai, traz a presa para dentro e se retira.
Mas a questão muda substancialmente quando num experimento especial,
aproveitando o momento em que a vespa faz seu reconhecimento no buraco,
pega-se a presa que está na boca do buraco, afastando-a alguns centímetros.
Neste caso, ao sair do buraco e não encontrar a presa no lugar anterior, a
vespa torna a arrastá-la para a posição anterior e. .. volta a entrar no buraco
que acaba de inspecionar. A
48
vespa pode repetir esse comportamento muitas vezes consecutivas, e sempre
que a presa se desloca alguns centímetros ela continua a repetir
mecanicamente o reconhecimento do buraco, perdendo nessas condições a
sua racionalidade.
Observações análogas foram feitas com abelhas. É sabido que a abelha enche
os favos com mel e, após depositar a quantidade suficiente de mel, lacra os
favos. Mas se em condições de um experimento especial corta-se todo o fundo
dos favos, derramando-se o mel neles depositados pela abelha, esta continua
a lacrar os favos vazios durante o períoSo fixado em seu programa instintivo. E
aqui o comportamento, que fora racional em condições padronizadas e
permanentes de vida, perde sua racionalidade quando essas condições se
modificam.
Tudo isso mostra que os programas congênitos "instintivos" de comportamento,
predominantes na atividade dos insetos, são programas rotineiros, mecânicos,
conservando sua aparente "racionalidade" apenas sob condições padronizadas
permanentes segundo as quais eles foram adquiridos no processo da
evolução.
A racionalidade desse predomínio de programas específicos de
comportamento corresponde ao princípio biológico fundamental de vida dos
insetos. Via de regra, estes depositam um imenso número de células, que se
distingue por um grande excesso. £ó um pequeno número de vespas que
nasce dessas células consegue sobreviver, más esse número já é o suficiente
para a preservação da espécie. Por isto, apesar de que grande número de
vespas morre quando as mudanças das condições tornam os programas
congênitos inadequados, assim mesmo conserva-se a espécie e os programas
congênitos de comportamento "instintivo" são suficientes para a preservação
da espécie.
Esse tipo de adaptação dos programas congênitos de comportamento, com
uma mutabilidade lenta e difícil, é bio-logicamente racional sob as condições de
grande excesso de reprodução que se verifica no mundo dos insetos. No
entanto ele se torna biologicamente insuficiente para outro ramo da evolução
— os vertebrados. Entre estes não se verifica esse excesso de reprodução,
criando-se condições, que tornam racional outro tipo de comportamento: o
comportamento individualmente mutável" no nível mais elevado.
49
O sistema nervoso central e o comportamento individualmente variável dos
vertebrados
Tudo o que sabemos acerca dos modos de vida e do comportamento dos
vertebrados mostra que tanto as formas de vida como as formas de
comportamento dessa espécie obedecem a um princípio inteiramente distinto.
Só os vertebrados inferiores, que habitam o meio aquo-so, apresentam um
excesso de reprodução tão grande que os aproxima da classe dos insetos, pois
sobrevive apenas um número relativamente pequeno de indivíduos que
nascem de ovas fecundas. Por isto só entre os peixes a prevalência de formas
de comportamento pouco variáveis e hereditariamen-te programadas é
suficiente para a preservação da espécie.
Diferente é o quadro que observamos com a passagem dos vertebrados à vida
em terra. As condições de alimentação se tornam mais complexas, o meio mais
mutável, aumentando infinitamente as necessidades de orientação nesse meio
em constante mudança. Muda simultaneamente também o tipo de reprodução:
cada indivíduo reproduz apenas 2-3 e mais raramente 5-6 semelhantes, e a
sobrevivência dos indivíduos isolados se torna uma condição para a
preservação da espécie.
Tudo isso cria uma necessidade biológica para que, paralelamente ao
comportamento "instintivo" (ou de espécie) congênito e pouco mutável, surja
um novo comportamento individualmente variável. Essa nova forma de
comportamento existe em embrião nos vertebrados inferiores mas nas fases
posteriores da evolução começam a ocupar posição cada vez mais destacada
para nos mamíferos superiores (macacos) e, em seguida, no homem, afastar
definitivamente as formas congênitas ("instintivas") inferiores de
comportamento.
A necessidade da complicação das formas de orientação na realidade
ambiente e aquisição de novas possibilidades de orientação individual nas
condições mutáveis do meio e a criação de novas formas individualmente
mutáveis de adaptação levam, no processo de evolução, à criação de órgãos
nervosos basicamente novos, que seriam capazes não apenas de receber os
sinais do meio e pôr em ação os programas de comportamento "instintivo",
transmissíveis pors; hereditarieda-de, como também de analisar a informação
recebida e fechar as novas ligações, assegurando novas formas
individualmente
50
variáveis de comportamento. Esse órgão é o cérebro, cuja estrutura reflete o
longo caminho percorrido pela evolução.
A formação do cérebro do animal obedece ao tipo de série de níveis ou
camadas sobrepostas umas às outras.
Os níveis inferiores, situados no tronco cerebral, garantem os processos de
regulagem do estado interno do organismo — metabolismo (hipófise),
respiração e circulação sangüínea (tronco) e respostas reflexas aos
instigadores elementares qué do meio exterior chegam ao animal (corpo qua-
drigêmeo). Esses órgãos, construídos segundo o tipo de conjuntos nervoso-
secretórios ou de núcleos nervosos (gânglios), predominam entre os
vertebrados inferiores e permitem-lhes realizar programas congênitos mais
elementares de atividade adaptadora, que por pouca coisa diferem dos tipos de
atividade intensiva acima descritos.
Exemplo típico dessa construção de cérebro é o cérebro da rã, que é
constituído de formações do tronco superior com um corpo quadrigêmeo
poderosamente desenvolvido e estruturas mais elevadas apenas esboçadas,
assegurando acima de tudo o cumprimento dos programas "instintivos" e pouco
mutáveis de comportamento que se formaram no processo da evolução. Esses
programas de comportamento apresentam estrutura semelhante à acima
descrita. Ao perceber uma mosca, a rã salta de mandíbulas abertas e a apanha
com sua língua viscosa. Esse comportamento complexo é determinado por um
estímulo relativamente elementar — uma cinti-iaçâo visualmente perceptível —,
não sendo, absolutamente, resposta a um sinal previamente analisado. Isto
pode ser facilmente visto se pendurarmos uma pequena nesga de papel num
fio de cabelo e a pusermos em movimento torcendo esse fio. Neste caso a
cintilaçjío aciona os programas congênitos de comportamento e a rã se lança
automaticamente contra o papel cintilante como o faz contra a mosca.
Sobre o órgão do tronco constituem-se formações mais elevadas, que incluem
inicialmente o sistema talâmico-estria-do (regiões subcorticais) e o córtex
primitivo (olfativo), incluindo posteriormente, nos vertebrados superiores,
formações de uma nova camada de grandes hemisférios, que se desenvolvem
cada vez mais e aos poucos vão começando a dominar inteiramente as
formações de nível inferior.
51
Os órgãos do sistema talâmico-estriado, que começam a predominar nos
répteis e nas aves e, posteriormente, os órgãos da camada antiga, asseguram
formas de comportamento individual mais plásticas do que as formas que se
observavam nos vertebrados inferiores. Mas essas formas de comportamento,
que já adquirem traços de variedade individual, a^nda estão estreitamente
vinculadas a formas congênitas mais elementares de comportamento e
apresentam traços dos tipos de atividade adaptadora que são congênitas no
animal e refletem as peculiaridades da sua ecologia (i. e., das formas
biológicas estáveis de sua existência).
Uma análise atenta mostra que esses programas congênitos de
comportamento, às vezes muito complexos, podem ser gerados por estímulos
relativamente simples, que refletem as formas de vida do animal.
Como mostraram as observações de diversos autores, entre elas as do
fisiologista soviético A. D. Slônim, os complexos movimentos de sucção do
animal recém-nascido são efetivamente provocados por diferentes sinais que
refletem as condições biológicas de sua vida: os movimentos de sucção do
filhote de cão são provocados pela maciez do pêlo (indício principal da fêmea
lactante); no cordeiro, esses movimentos são provocados pelo escurecimento
da teta (que reflete o fato biológico de que o cordeiro que começa a mamar
aproxima-se da ovelha e mama sacudindo a cabeça).
Esse mesmo condicionamento ecológico das reações seletivas caracteriza
muitos animais e depende mais do seu modo de vida do que da classe
zoológica a que eles pertencem.
Assim, o pato doméstico (que se alimenta de comidas vegetais) é indiferente
aos cheiros de podre mas tem o: olfato apurado para os cheiros de vetegais, ao
passo que o esmeri-lhão, que se alimenta de carniça, tem o olfato apurado
para os cheiros de podre mas é indiferente aos cheiros de vegetais.
É sintomático que as peculiaridades ecológicas se refletem também em formas
mais complexas de comportamento animal. É fato bem conhecido que o cão
começa a salivar
52
ao ver uma ave. No entanto, o que é menos conhecido, a raposa que se
prepara para obter alimento-sofre inibição ao vê-lo e retém a saliva.
Todos esses exemplos mostram que as formas complexas de comportamento
natural, realizado pelos órgãos das áreas mais elevadas do cérebro, mantêm a
mais estreita ligação com os programas congênitos de comportamento, que se
formam no processo da evolução sob a influência das condições de existência
(ecologia) dos animais.
Sobre os órgãos que acabamos de descrever, edificam-se os órgãos do nível
seguinte e mais elevado do sistema nervoso dos grandes hemisférios,
particularmente do novo córtex cerebral cujo peso, como mostram os dados
que abaixo citamos, começam a ocupar posição cada vez maior em relação ao
peso do corpo.
baleia leão cão macaco homem
1/10.000 1/540 1/250 1/100 1/40
Os grandes hemisférios cerebrais começam a adquirir não apenas um grande
peso relativo no processo da evolução dos vertebrados superiores como ainda
assumem grande importância. Se nos mamíferos inferiores o córtex ainda não
tem papel dominante e a regulação dos processos de comportamento pode ser
realizada com êxito mesmo que o córtex seja destruído, já nos mamíferos
superiores ele adquire importância de maior peso e os processos de
comportamento, por mais insignificante que seja a sua complexidade, já não
podem ser realizados com a destruição do córtex.
Os fatos que sugerem uma grande dependência das funções em relação ao
córtex cerebral, em outros termos, que sugerem uma verticalização
progressiva das junções podem ser vistos nos resultados das observações do
pesquisador alemão Schafer, que mostram que processos de percepção e que
movimentos podem permanecer em diferentes etapas da evolução dos
mamíferos depois da extinção do córtex.
Colocamos num quadro sinóptico os resultados das observações.
53
Influência da extirpação do córtex cerebral sobre os processos visuais e
motores nas fases sucessivas da evolução (segundo Schafer)
Funções visuais Funções motoras
A ave, depois da extirpação do A ave, depois da extirpação do córtex dos
grandes hemisférios,continua a voar; córtex dos grandes hemisférios,
mantendo os seus movimentos.
Continua a ver, a pousar no lu-
Gar marcado
O rato, depois da extirpação do O gato, depois da extirpação das áreas
correspondentes dos grandes hemis- córtex dos hemisférios, não dis-
férios,recupera seus movimentos algumas horas depois.
Tingue os formas e só reage à luz.
O macaco fica cego após a extir- O cão, 24 horas após a extirpação das áreas
correspondentes do córtex dos pação das ares correspondentes
grandes hemisférios, pode manter-se em pé mas se desorganizam os seus
movimen dos grandes hemisférios, tos independentes.
O macaco, após a extirpação das áreas correspondentes dos grandes
hemisférios, pode manter-se em pé somente ajudado.
Tudo isso mostra que os grandes hemisférios não apenas começam a ocupar
posição de grande destaque em relação ao restante do cérebro como ainda
desempenham papel dominante na regulação da formas complexas de
comportamento animal.
A função principal dos grandes hemisférios e do seu componente fundamental
— o córtex cerebral — consiste em que este é um órgão que não só recebe os
sinais e põe em ação os programas alicerçados de comportamento da espécie
como ainda permite analisar a informação recebida do meio exterior, orientar-
se nas suas mudanças, fechar novas ligações e formar novos programas de
comportamento individualmente variáveis, correspondentes a essas
mudanças.
A essa nova tarefa corresponde a estrutura do córtex dos grandes hemisférios
cerebrais, cuja massa é constituída de um imenso número de células
(neurônios) nervosas isoladas, distribuídas em seis camadas principais; a
quarta destas
54
é o ponto onde terminam os tecidos que levam a irritação dos órgãos, dos
sentidos e das superfícies receptoras do corpo e onde as irritações se
transferem para outros neurônios. A quinta camada é o lugar de onde os
impulsos motores se dirigem aos músculos e, finalmente, o último grupo de
camadas (a segunda e a terceira) concentra um imenso número de neurônios,
que reelaboram (recodificam) os impulsos que chegam ao córtex cerebral e
fecham novas ligações, que asseguram a formação de novos programas de
comportamento individualmente variáveis (no IV capítulo faremos uma
descrição minuciosa da estrutura do córtex dos grandes hemisférios, incluindo
aí as camadas restantes) .
O traço característico do córtex dos grandes hemisférios consiste em que as
suas diversas regiões estão ocupadas com a projeção dos diferentes órgãos
dos sentidos (tato, visão, olfato, audição e sensibilidade neuromuscular). O
princípio ecológico de construção e funcionamento do aparelho nervoso central
se manifesta também aqui, e quanto maior é a importância desse ou daquele
tipo de sensibilidade na vida do animal, tanto mais importante é o seu lugar no
córtex cerebral.
Deste modo, no córtex cerebral do ouriço (este animal se orienta
predominantemente pelo olfato) as regiões olfativas do cérebro ocupam quase
um terço dos hemisférios, ao passo que no homem as regiões olfativas do
cérebro são acentuadamente reduzidas.
No macaco, a orientação no mundo exterior é altamente relevante porque as
áreas visuais do córtex ocupam posição de grande destaque, ao passo que no
cão (animal predominantemente olfativo) as áreas dos grandes hemisférios
ocupam posição bem inferior.
O mesmo podemos dizer da posição relativa que ocupam no córtex cerebral as
projeções dos órgãos do corpo. Isto ficou evidenciado nos experimentos do
fisiologista inglês Adrian, que estabeleceu por um método eletro fisiológico
especial que o território ocupado pela projeção da anca no cérebro do porco é
muito pequeno, ao passo que a projeção do "focinho" do porco (que é para
este o mais importante órgão do tato, do faro, etc.) ocupa um território imenso,
desproporcional ao seu tamanho. É uma peculiaridade que a projeção dos
lábios da ovelha — principal órgão de orientação desse animal — ocupa
idêntica posição desproporcional nos grandes
55
hemisférios desse mamífero. Tudo isso mostra que o córtex dos grandes
hemisférios do cérebro, que se desenvolve de maneira potente nas etapas
tardias da evolução dos vertebrados superiores, forma-se sob a ação direta das
condições ecológicas e é justamente esse fator que o converte em órgão
principal, que assegura as formas mais complexas de análise e síntese da
informação recebida do meio exterior, bem como em órgão fundamental de
regulação do comportamento individualmente variável.
Mecanismos do comportamento individualmente variável
Se os mecanismos dos programas instintivos de comportamento se reduzissem
a que um estímulo qualquer, surgido no processo de evolução de uma espécie,
acionasse programas complexos de comportamento, gerados no processo da
evolução, então seria bem mais complexo o mecanismo do comportamento
individualmente variável, que se realiza através do córtex cerebral. Este se
reduz a que, como resultado de uma ativa orientação do animal nas condições
do meio, o estímulo que tenha sido de importância essencial e dê o sinal do
surgimento de condições de significado vital (alimento, perigo) começa a
distinguir-se do meio ambiente e leva ao fechamento de ligações e ao
surgimento de novos programas de comportamento, por meio dos quais o
animal atinge o fim necessário ou evita o perigo que o ameaça.
Os mecanismos fisiológicos, que levam ao surgimento de novas formas de
comportamento individualmente variáveis, foram estudados em pormenores na
escola de Pávlov e constituem a essência da doutrina das ligações temporárias
e dos reflexos condicionados.
É de interesse, entretanto, a descrição das condições sob as quais surgem
novas formas individualmente modificadas de comportamento adaptador do
animal e as etapas pelas quais eles passam em sua formação.
As condições e etapas do surgimento de novas formas de comportamento
individualmente variáveis foram estudadas minuciosamente por um grande
número de pesquisadores, mas enfatizou-se a atenção na maneira como o
animal atinge o fim necessário e os meios pelos quais ele adquire novas
modalidades de comportamento.
56
Para resolver tais problemas, os estudiosos aplicaram métodos que receberam
a denominação de "aquisição de habilidades" ou "reflexos condicionados
instrumentais ou operativos". Com essa finalidade colocou-se o animal numa
célula especial (a chamada caixa problemática), separando-o do estímulo (a
comida) por um obstáculo (por exemplo, uma porta fechada a ferrolho). O
animal dedvia mover um pedal ou puxar o ferrolho com a pata e então a porta
se abria e o objetivo era atingido.
Outro método de estudo do modo de surgimento de novas formas
individualmente variáveis de comportamento consistia no seguinte: colocava-se
o animal num complicado labirinto, em cujo extremo havia um estímulo
(objetivo). O pesquisador observava como o animal superava paulatinamente
os caminhos errados, encontrando o caminho certo para chegar ao objetivo.
A diferença essencial entre os experimentos de formação de complexas
habilidades ou "reflexos condicionados instrumentais" e o método dos "reflexos
condicionados clássicos", aplicado por Pávlov, consistia em que o êxito ou o
fracasso do animal dependia do seu desempenho ativo, noutros termos, do
caráter das tentativas que ele empreendia. Embora o método de estudo da
aquisição de novas formas individualmente variáveis de comportamento do
animal perdesse em precisão fisiológica em relação ao método dos "reflexos
condicionados clássicos", sem dar as possibilidades de estudo fisiológico dos
processos nervosos (sua irradiação e concentração e indução mútua) que dava
o método de Pávlov, aquele método ganhava no estudo dos modos concretos
de comportamento que o animal aplicava para resolver as tarefas que se lhe
colocavam e assim permitia acompanhar as etapas fundamentais de formação
de novos atos adaptadores, condizentes com as novas condições. O processo
de aquisição de novas formas individualmente variáveis de comportamento,
que levam à solução das tarefas colocadas diante do animal, era explicado de
modo diferente por diversas pesquisas. Uns explicavam esse processo a partir
de posições mecanicistas (partilhavam essas posições os insignes
pesquisadores americanos Thorndike, Watson e muitos representantes do
behaviorismo americano), considerando que as novas formas de
comportamento, que levam o animal a atingir o objetivo, surgem no processo
de testes e erros desordenados. Nesse processo de testes um dos movimentos
do animal le-
57
vava casualmente à abertura da porta e o animal recebia a comida.
Posteriormente, o reforço pelo êxito desses movimentos casualmente surgidos
e sua constante repetição levaram a que os movimentos inadequados fossem
extintos, reforçadores os bem-sucedidos.
Essa explicação do processo de aquisição de novas formas de comportamento
por meio do reforço de movimentos bem-sucedidos casualmente surgidos
explicava bem o reforço dessas formas mas deixava à margem da análise o
próprio processo de seu surgimento.
Outro grupo d& autores mantinha outras posições, ao tentarem examinar as
regras pelas quais se formavam as buscas da solução pelo animal e que
levavam ao surgimento de procedimentos bem-sucedidos de solução das
tarefas colocadas diante do animal.
Esse grupo de pesquisadores (ao qual pertenciam os psicólogos americanos E.
Tolman, D. Krech, o fisiologista soviético V. P. Protopópov e outros) partia da
tese segundo a qual os movimentos que o animal empreende tentando resolver
a tarefa não têm caráter caótico e casual mas surgem no processo de um ativo
desempenho de orientação. Nesse desempenho o animal tenta atingir o
objetivo, analisa a situação, escolhe a direção dos movimentos que
corresponde à posição do objetivo. Essa situação da "tarefa" (que esses
psicólogos entendem como objetivo dado em determinadas condições) ou
como situação "estímulo-obstáculo" leva a que as tentativas do animal,
dirigidas pelo objetivo, restringem-se paulatinamente e o animal vai chegando
pouco a pouco ao ponto em que surgem nele as necessárias reações motoras
adequadas ao objetivo, que são posteriormente reforçadas.
A vantagem dessa teoria consiste em que ela tenta explicar o surgimento das
necessárias formas de solução da tarefa ou surgimento da "habilidade" a partir
de uma análise motora da situação, abandonando a hipótese de que os
movimentos necessários surgem "por acaso".
Várias observações, realizadas por pesquisadores americanos, confirmaram o
fato de que, às vezes, os programas bastante complexos de comportamento do
animal que tenta atingir os objetivos não são adquiridos por acaso mas se
formam no processo de uma orientação ativa nas novas condições e são
dirigidos por essa orientação na situação e por sua análise.
58
Um desses fatos foi estabelecido numa análise minuciosa da maneira pela qual
o animal (o rato) adquire a habilidade de encontrar o caminho certo nas
condições de um labirinto complexo.
Como mostrou o pesquisador americano Dashnul, os testes feitos pelo animal
colocado em labirinto não são casuais, via de regra vão sempre em direção ao
objetivo; por isto, o animal que ao menos uma vez tenha se orientado no
labirinto, cria um sistema geral de direção no qual ele corre e entra nos becos
sem saída do labirinto, situados na direção do caminho dado, com muito mais
freqüência do que nos becos sem saída do labirinto, situados na direção oposta
ao esquema do movimento.
Deste modo, pode-se ver claramente que os movimentos do animal no labirinto
não têm caráter casual mas são subordinados a uma direção que o
pesquisador americano Crich caracterizou como surgimento de uma "hipótese
motora", que orienta o sentido geral das tentativas dos ratos que adquirem
"habilidade" no labirinto. Os testes com a chamada "aprendizagem latente"
confirmam o fato de que as tentativas que o animal empreende no processo de
aquisição de novos programas de comportamento não são casuais mas
constituem o resultado da orientação ativa do animal nas condições do meio.
Nesses testes de "aprendizagem latente", compara-se a rapidez da aquisição
da habilidade nos animais, que são imediatamente colocados no labirinto para
percorrê-lo, com a rapidez dos animais do segundo grupo, aos quais se permite
simplesmente correr pelo labirinto, dandose-lhes a possibilidade de se
orientarem previamente nas condições do labirinto.
Como mostraram esses testes realizados por pesquisadores americanos, o
segundo grupo de animais adquiria a habilidade bem mais rapidamente do que
o primeiro. Foi característico o fato de que a aquisição da habilidade eficiente
era especialmente significativa quando se permitia ao animal orientar-se
ativamente nas condições do labirinto. Esse experimento foi realizado pelo
pesquisador americano Hald, que permitiu ao animal movimentar-se
ativamente pela caixa problema, enquanto outro animal observava
passiva-
59
mente essa caixa do carrinho que havia levado o primeiro animal. Também
neste caso o primeiro animal, que se orientara ativamente na situação, adquiriu
a habilidade motora com rapidez bem maior do que o segundo. Esse fato
mostra o papel desempenhado na aquisição do novo programa de ação pela
orientação prévia do animal nas condições do teste.
O complexo caráter dinâmico da habilidade motora adquirida, que não é mera
finalidade dos movimentos mecanicamente adquiridos, é confirmado,
finalmente, por uma série especial de testes, que mostram que essa
"habilidade" readquirida pode conservar-se inclusive nos casos em que um
conjunto inteiramente novo de movimentos se faz necessário para colocá-la
em prática.
Uma dessas pesquisas foi realizada pelo pesquisador americano Hunter, em
cujo teste o rato adquiriu a habilidade de encontrar o caminho necessário no
labirinto. Depois que essa habilidade foi adquirida, uma parte do labirinto foi
excluída, colocando-se em seu lugar uma bacia com água. Neste caso o rato
devia atravessar a bacia a nado, i. e., fazendo movimentos inteiramente novos;
mas com isto não perdeu a habilidade adquirida.
Fatos análogos foram registrados por outros meios por Lashley. Após formar
no rato a habilidade de encontrar os caminhos no labirinto, destruiu-lhe em
seguida o cerebelo. Como resultado dessa operação, o rato perdeu o equilíbrio
e todos os movimentos anteriores se desorganizaram. Movendo-se, porém, por
cambaleios (i. e., por meio de movimentos inteiramente novos), o rato acabou
se colocando no rumo certo e atingindo o objetivo.
Tudo isso mostra que os programas motores, adquiridos em condições de
tarefas especiais, não são, em hipótese alguma, um fim mecânico dos reflexos;
são, antes, esquemas dinâmicos complexos, que se formam no animal no
processo de •sua atividade orientada. •. J
60
Dois traços são característicos da aquisição dessas novas formas de atividade
adaptadora entre os vertebrados. Um deles consiste em que o processo de
orientação ou busca é inseparável dos movimentos ativos e o descobrimento
da solução necessária não antecede a execução do programa motor mas se
forma no processo dos testes motores.
O segundo traço característico consiste em que o caráter dos atos de
orientação do animal e o caráter das novas formas adquiridas de
comportamento dependem ao máximo das formas naturais de comportamento,
que se constituíram em estreito contato com a peculiaridade da vida (com a
ecologia) do animal. Nos herbívoros, principalmente nos animais que ingerem
alimentação pronta (por exemplo a galinha, a ovelha, a vaca), a atividade
dirigida tem caráter passivo, limitado, os programas naturais de comportamento
predominam e a aquisição de novas fomas de comportamento individualmente
variáveis é um processo lento. Ocorre o.contrário com os carnívoros, que em
condições naturais são obrigados a procurar a comida, a caçar a presa (as
aves de rapina, a raposa); nestes a atividade dirigida se processa na forma de
buscas ativas, sendo bem mais rápida a aquisição de novas formas de
comportamento, que correspondem a uma situação variável.
É um dado essencial o fato de que o caráter das formas adquiridas de um novo
comportamento individualmente variável conserva nesses animais uma estreita
ligação com as suas formas congênitas ("instintivas") de atividade ou "reflexos
naturais". Deste modo, o leão-marinho, no qual o mergulho e a perseguição à
presa fazem parte dos programas congênitos de comportamento, aprende com
especial facilidade a fazer malabarismos com a bola ou agarrá-la. O guaxinim
ou o urso, que se erguem freqüentemente sobre as patas traseiras, deixando
livres as dianteiras, podem aprender facilmente a executar movimentos que
imitam uma "lavagem de roupa", etc.
Essa estreitíssima ligação dos programas congênitos de comportamento (ou
"reflexos naturais") com a aquisição de novas formas de atividade
individualmente variáveis continua sendo característica do comportamento dos
vertebrados superiores em dada etapa da evolução.
61
O comportamento "intelectual" dos animais
A descrição da forma de surgimento do comportamento individualmente
variável não representa o limite supremo da evolução do comportamento no
mundo animal.
Nos vertebrados, que se encontram no topo da escada da evolução,
particularmente os primatas, surgem novas formas de comportamento
individualmente variável, que, com pleno fundamento, podemos denominar
comportamento "intelectual".
A peculiaridade do comportamento "intelectual" dos animais consiste em que o
processo de orientação nas condições da tarefa não ocorre nas condições dos
testes motores mas começa a antecedê-los, distinguindo-se como forma
especial de atividade prévia de orientação. No processo dessa atividade
começa a formar-se o esquema (programa) de solução sucessiva da tarefa, ao
passo que os movimentos se tornam um simples elo executor nessa atividade
de construção complexa. Assim, nas etapas superiores da evolução começam
a formar-se tipos especialmente complexos de comportamento de complexa
estrutura desmembrada, da qual fazem parte:
— a atividade de procura c orientação, que leva à formação do esquema de
solução da tarefa;»
— a formação de programas plasticamente variáveis de movimentos voltados
para a obtenção do objetivo;
— a comparação das ações executadas com a intenção inicial.
Essa estrutura da atividade complexa se caracteriza pelo caráter auto-
regu'ador. Se a ação leva ao efeito necessário, ela cessa; se não leva a esse
efeito, o cérebro do animal recebe sinais da "discordância" dos resultados da
ação com a intenção inicial e reiniciam-se as tentativas de solução da tarefa.
Esse mecanismo de "aceptor da ação" (P. K. Anokhin), i. e., de controle
dinâmico da ação é o elo mais importante de todo comportamento
individualmente variável do animal mas se manifesta com nitidez especial na
fase mais complexa da evolução do comportamento: no comportamento
intelectual.
Dois fenômenos essenciais, cujos embriões já podem ser vistos nas fases
primordiais da evolução dos vertebrados, antecedem a formação dessa
modalidade mais elevada de compor-
62
tamento dos animais. O1 primeiro deles é o surgimento de uma forma especial
de atividade orientada, à qual o pesquisador soviético L. V. Krushinsky chamou
"reflexo extrapolativo". O segundo é o fato das formas de desenvolvimento da
memória dos animais, que se tornam mais complexas.
Nas observações, efetuadas nos últimos anos por Krushinsky, foi estabelecido
que alguns animais mostram em seu comportamento a não-capacidade de
sujeitar-se à percepção imediata do objeto mas de acompanhar-lhe os
movimentos e orientar-se em relação ao deslocamento esperado do objeto.
Sabe-se que o cão que atravessa uma rua não corre diretamente na frente dos
carros em movimento mas dá voltas, considerando o movimento dos carros e
inclusive a velocidade deles. Foi esse reflexo, que "extrapola" o movimento
observado e leva em conta o deslocamento, que Krushinsky observou em
vários testes.
Nesses testes, colocava-se diante do animal um tubo com um furo no centro. À
vista do animal, prendia-se um estimulante a um arame que passava por dentro
do tubo. O estimulante aparecia aos olhos do animal no furo do tubo e
continuava em movimento, tornando a aparecer no final do tubo. O animal se
colocava diante do furo e observava o movimento do estimulante.
Essas observações mostraram que os animais, que se encontram numa fase
inferior de evolução, sobretudo os animais que tinham apenas a propriedade de
apanhar comida pronta (a galinha, por exemplo), reagiam imediatamente ao
lugar onde o alimento aparecia e não se afastava dele. Ao contrário, os animais
que se encontram em fase mais elevada de evolução, especialmente aqueles
que levam modo de vida carnívoro, observam a presa e a perseguem (o corvo,
o cão), observavam os movimentos do alimento e, "extrapolando" esse
movimento (ao que parece, orientando seu comportamento pelo movimento
dos olhos), contornavam o tubo e esperavam o alimento no lugar em que ele
aparecia.
O "reflexo extrapolativo", que tem a forma especial de comportamento
"antecipante", representa uma das importantes fontes para a formação dos
tipos "intelectuais" mais elevados de comportamento individualmente variável
nos vertebrados superiores.
O segundo fato, que cria condições essenciais para a formação do
comportamento "intelectual" dos vertebrados supe-
63
riores, é a crescente complexidade do processo de percepção e a grande
estabilidade da memória nas fases subseqüentes da evolução dos animais.
É sabido que se os vertebrados inferiores reagem apenas a certos indícios de
influências provenientes do meio exterior, já os vertebrados superiores reagem
mais a complexos inteiros de indícios ou às imagens dos objetos circundantes.
Essa reação dos animais foi estudada minuciosamente pelo fisiologista e
acadêmico soviético I. S. Beritov e constitui a condição mais importante para a
evolução das formas mais complexas de comportamento.
Simultaneamente com a formação da percepção por imagem, nas etapas
superiores da evolução dos vertebrados observa-se uma crescente
estabilidade da memória visual. Esse fato foi observado minuciosamente nos
testes com as chamadas "reações retardadas" dos animais.
Os testes com "reações retardadas' foram efetuados por muitos pesquisadores
americanos, pelo psicólogo soviético N. Y. Voitonis e o fisiologista polonês Y.
Konorsky. A essência do teste consistia no seguinte:
Postava-se o animal diante de uma caixa hermetica-mente fechada, na qual se
colocava o estimulante à vista do animal. Este se mantinha algum tempo
amarrado a um pau por um cabresto, sendo depois libertado. Se o animal
retinha na memória algum vestígio do estimulante colocado na caixa, corria
imediatamente para esta, não o fazendo se o vestígio desaparecia.
Em testes mais complexos, cuja tarefa consistia em verificar a precisão do
vestígio conservado no animal, substituía-se o estimulante na caixa sem que o
animal o percebesse. Se o animal conservava o vestígio do primeiro
estimulante e ao correr para a caixa encontrava outro, ele o apanhava. Isto era
indício de que o animal conservava a imagem seletiva do estimulante que havia
visto.
Noutros testes, colocava-se o animal entre duas caixas, numa das quais
colocava-se um estimulante aos olhos do animal. Percorrido certo tempo,
libertava-se o animal do cabresto. Se o vestígio do estimulante colocado numa
das caixas se mantinha, o animal corria para essa caixa; se o vestígio não se
mantinha, o animal não apresentava movimento dirigido.
64
Os testes de "reações retardadas" mostram que, nas fases posteriores da
evolução dos vertebrados, aumenta a duração da conservação das respectivas
imagens.
Duração da conservação dos vestígios de memória visual provocada uma só
vez em animais diferentes
o rato conserva o vestígio da imagem de 10 a 20 segunãos o cão "
" " até 10 minutos
o macaco " " " de 16 a 48 horas.
É natural que a conservação das imagens por longo tempo aumenta na medida
em que se tornam complexas as estruturas cerebrais e cria uma segunda
condição importante para o surgimento de formas "intelectuais" superiores de
comportamento do animal.
O conhecido psicólogo alemão Wolfgang Kiihler inciou, no início da década de
20 do corrente século, pesquisas sistemáticas do comportamento "intelectual"
dos animais superiores (os macacos). Para estudar essa forma de
comportamento, Kõhler colocou macacos (chimpanzés) em condições sob as
quais a obtenção imediata do objetivo era inacessível e o macaco devia
orientar-se em situações complexas nas quais lhe era dado o objetivo, usando
o rodeio a fim de conseguir o chamariz ou aplicando para isto instrumentos
especiais.
Descrevamos três situações típicas nas quais Kõhler fez suas pesquisas do
comportamento "intelectual" dos macacos. A primeira situação exigia "caminho
em rodeio" . Colocava-se o macaco numa grande jaula, ao lado da qual havia
sido colocado o estimulante que se encontrava a uma distância que não
permitia que a mão do macaco o alcançasse. Para atingir o objetivo, o macaco
devia desistir das tentativas de obtenção imediata do objetivo, usando um
contorno por uma porta situada na parede traseira da jaula.
A segunda situação era idêntica à que acabamos de descrever; colocava-se o
macaco numa jaula fechada, desta feita com portas. O estimulante continuava
distante e o animal não conseguia alcançá-lo. Diferentemente da
65
primeira situação, porém, em frente à jaula havia uma vara a uma distância
equivalente a um braço estirado. O macaco podia obter o estimulante se
conseguisse a vara e com esta alcançasse o objetivo. Em testes mais
complexos, o estimulante se encontrava a uma distância ainda maior, mas no
campo de visão do macaco havia duas varas: uma curta, ao alcance do braço,
e outra comprida, um pouco adiante. Para resolver a tarefa, o macaco devia
realizar um programa de comportamento mais complexo. A princípio, devia
alcançar a vara mais próxima — a curta — e, com o auxílio desta, obter em
seguida a vara comprida, situada mais adiante e, já com ajuda desta, obter o
estimulante. Por último, na terceira variante dos testes, pendurava-se o
estimulante de tal modo que o macaco não conseguia alcançá-lo. Mas na
mesma área foram colocados caixotes; para alcançar o estimulante, o animal
devia arrastá-los para perto deste, colocá-los uns sobre os outros e trepar.
As pesquisas de Kõhler permitiram-lhe observar o seguinte quadro. A princípio
o macaco tentava sem êxito obter o estimulante por via direta, estirando-se ou
saltando em sua direção. Essas tentativas inúteis podiam durar muito, até o
macaco ficar exausto e abandoná-las. Em seguida vinha o segundo período, no
qual o animal permanecia sentado, imóvel, limitando-se a examinar a situação;
neste caso a orientação na situação se transferia dos testes motores bem
desenvolvidos para o "campo visual" da percepção e se realizava por meio dos
respectivos movimentos dos olhos. Depois disto vinha o momento decisivo, que
Kõhler descrevia como surgimento inesperado do insight. O macaco se dirigia
imediatamente à porta, situada na parede traseira da jaula e, contornando-a,
obtinha o estimulante ou desistia de suas tentativas e apanhava a vara. Com
ela conseguia o alimento ou uma vara mais comprida, com a qual alcançava o
alimento. Finalmente, na última situação, o macaco abandonava todas as
tentativas de alcançar a comida por via direta, olhava em torno, arrastava
imediatamente os caixotes, colocava-os um sobre o outro, trepava, e obtinha o
alimento. Todos esses testes apresentaram como característica o fato de que a
solução da tarefa se transferia do período dos testes imediatos ao período da
observação antecedente da tentativa, e os alimentos do macaco se tornavam
ato executivo para a realização de um "plano de solução" anteriormente
adquirido.
66
Foram justamente essas observações que deram a Kõhler fundamento para
considerar o comportamento do macaco um exemplo de comportamento
"intelectual".
Se nos experimentos de Kõhler a descrição do comportamento dos macacos é
definitiva, a explicação das vias pelas quais o animal chega à solução
"intelectual" da tarefa apresenta complexidades consideráveis e diferentes
pesquisadores dão a esse processo interpretação diversa.
O conhecido psicólogo americano Yerkes, que repetiu a pesquisa de Kõhler,
acha possível aproximar essas formas de comportamento do macaco do
intelecto humano e considerá-las por via antropomórfica como manifestações
de "iluminação criativa".
O psicólogo austríaco K. Bühler cita a experiência anterior do animal para
explicar esse comportamento e considera que o emprego de instrumentos
pelos macacos deve ser visto como resultado da transferência de uma
experiência anterior (os macacos, que viviam em árvores, tinham de puxar os
frutos para si junto com os ramos).
O próprio Kõhler expressa a hipótese de que, no comportamento "intelectual"
dos macacos, a análise da situação se transfere da área dos movimentos ao
plano da percepção e o macaco, ao examinar a situação, "aproxima" os objetos
que dela fazem parte no "campo visual", fechando-os em certas "estruturas
visuais". A solução posterior da tarefa é, segundo Kõhler, apenas a realização
de estruturas "visuais" em movimentos reais. Kõhler vê a confirmação dessa
hipótese no fato de que, quando a vara e o alimento (uma fruta) ou mesmo as
varas que o macaco deve obter sucessivamente estão dispostas de tal modo
que não caem apenas no campo de visão, a tarefa se torna insolúvel para o
macaco.
Kõhler tenta confirmar sua hipótese com experimentos nos quais o macaco
deve antes preparar o instrumento que usará posteriormente para conseguir o
alimento; por exemplo, o macaco deve enfiar uma vara de bambu em outra
para, alongan-do-a, colher uma fruta. Essas ações se tornam bem mais difíceis
para o macaco e podem ser realizadas somente se as pontas de ambas as
varas estiverem no campo de visão direto. Segundo Kõhler, essa incidência
das duas varas num único campo de visão é o que pode levar à solução
adequada da tarefa.
67
O problema dos mecanismos que servem de base ao surgimento de
comportamento "intelectual" do macaco não poce ser considerado
definitivamente resolvido. Se uns pesquisada»» o opõem às formas mais
elementares de comportamento " dualmente variável dos animais, outros (por
exemplo, que fez observações com o comportamento dos macacc"' possível
não opô-lo às formas mais elementares de mento e consideram o
comportamento "intelec cacos como uma espécie de "pensamento maniu. ,
num processo de testes e erros, que adquire caráter mais r.. -em decorrência
do fato de que as mãos dos macacos, livres da função de andar, começam a
executar formas mais complexas de atividade orientada.
Fronteiras do comportamento individualmente variável dos animais
Vimos que o comportamento adaptador individualmente variável dos
vertebrados superiores pode adquirir formas muito complexas. Surge uma
pergunta natural: quais são os seus traços característicos e quais os limites
que o comportamento dos animais não pode ultrapassar? A análise do
comportamento dos animais permite indicar três traços fundamentais.
O primeiro é o fato de que todo comportamento individualmente variável
(mesmo o mais complexo) do animal conserva sua ligação com os motivos
biológicos e não pode ultrapassar-lhe os limites. Todo comportamento animal
tem por base as inclinações biológicas ou necessidades (necessidade de
alimento, autoconservação ou necessidade sexual). Só nas etapas mais
elevadas da evolução a elas se incorpora a necessidade de orientar-se no meio
ambiente, a -que Pávlov chamava de reflexo orientador e que, no macaco,
atinge desenvolvimento considerável. Nenhuma atividade desvinculada de
todas essas necessidades biológicas é possível para o animal, razão por que o
comportamento do animal pode ser considerado com todo fundamento como
comportamento cortical-subcortical.
O segundo traço, que caracteriza o comportamento de todo animal, consiste
em que esse comportamento é sempre determinado por estímulos
imediatamente perceptíveis ("pelo campo exterior") ou por vestígios da
experiência anterior, não podendo
68
ocorrer abstraindo-os nem muito menos entrando em conflito com eles.
O psicólogo holandês Buytendijk ilustra bem essa tese com uma pesquisa
famosa, de importância capital.
Ele colocou diante de um animal várias caixas nas quais poder-se-ia encontrar
alimento. No primeiro teste o alimento foi posto aos olhos do animal na
primeira caixa, permitindo-se ao animal apanhá-lo. No segundo teste, o
alimento (também aos olhos do animal) foi transferido para uma segunda caixa,
em seguida para uma terceira. Depois, nos experimentos seguintes, começou-
se (já sem que o animal o percebesse) a transferir sucessivamente o alimento
para cada caixa seguinte, permitindo-se sempre ao animal correr livremente
para a caixa onde ele supunha encontrar o alimento.
A pesquisa mostrou que o animal corre sempre para a caixa onde vira que
havia sido posto o alimento, ou para a caixa onde antes se encontrava o
alimento. Nenhum animal pode assimilar o princípio do "deslocamento
sucessivo" e nunca corre para a caixa seguinte na qual ainda não houve
alimento mas onde é fácil esperá-lo caso se leve em conta um princípio
abstrato.
O comportamento do animal é sempre dirigido pela experiência imediata ou
pela experiência passada, e ele nunca pode impedir a reação ao lugar
anteriormente memorizado e dirigir-se a lugar que não tinha sido memorizado.
O experimento de Buytendijk realizado com animais de diferentes grupos,
mostra que o animal, segundo Kõhler, é "um escravo do seu campo visual" ou
"escravo da sua experiência passada", e seu comportamento nunca se liberta
dessas influências diretas, não se dirige pela abstração destas, noutros termos,
não se torna livre.
O terceiro traço do comportamento do animal consiste nas limitações das
fontes desse comportamento.
Podem ser fonte de comportamento do animal os programas alicerçados em
sua experiência de espécie, que se transmitem em códigos hereditários
("comportamento instintivo") ou que se formam na experiência imediata de
dado indivíduo (comportamento individualmente variável ou reflexivo-
condicionado). Os animais não têm nenhuma possibilidade de assimilação da
experiência alheia e de um indivíduo transmiti-la assimilada a outro indivíduo, e
muito menos de transmitir a experiência formada em várias gerações. Os
fenômenos que se descrevem como "imitação" ocupam lugar relativamente
limitado na for-
69
Mação do comportamento dos animais, sendo antes uma forma de
transmissão prática direta da própria experiência que uma transmissão de
informação acumulada na hitória de várias gerações, que lembre o mínimo
sequer a assimilação da experiência material ou intelectual das gerações
passadas, assimilação essa que caracteriza a história social do homem.
São esse três traços que constituem as peculiaridades fundamentais de todo
comportamento e o distinguem radicalmente da atividade consciente do
homem.
70
III
A Atividade Consciente do Homem e Suas Raízes Histórtco-
Sociais
Princípios gerais
1 OR SUAS peculiaridades fundamentais, a atividade consciente do homem
difere acentuadamente do comportamento individualmente variável dos
animais.
As diferenças da atividade consciente do homem sintetizam-se em três traços
fundamentais, opostos àqueles pelos quais acabamos de caracterizar o
comportamento dos animais.
O primeiro desses traços consiste em que a atividade consciente do homem
não está obrigatoriamente ligada a motivos biológicos. Além do mais, a grande
maioria dos nossos atos não se baseia em quaisquer inclinações ou
necessidades biológicas. Via de regra, a atividade do homem é regida por
complexas necessidades, freqüentemente chamadas de "superiores" ou
"intelectuais". Situam-se entre elas as necessidades cognitivas, que incentivam
o homem à aquisição de novos conheci-
71
mentos, a necessidade de comunicação, a necessidade de útil à sociedade, de
ocupar, nesta, determinada posição, ;
Encontramos freqüentemente situações nas quais a atividade consciente do
homem, além de não se sujeitar às influencias e necessidades biológicas,
ainda entra em conflito com e . e chega inclusive a reprimi-las. São
amplamente conhecidas casos de heroísmo em que o homem, movido por
elevados motivos de patriotismo, cobre com seu corpo bocas de fogo ou se
lança à morte sob tanques; esses casos são apenas exemplos da
independência do comportamento do homem em relação aos motivos
biológicos.
Entre os animais não há semelhantes formas de comportamento
"desinteressado", que se baseiam em motivos não-biológicos.
O segundo traço característico da atividade consciente do homem consiste em
que, à diferença do comportamento do animal, ela não é forçosamente
determinada por impressões evidentes, recebidas do meio, ou por vestígios da
experiência individual imediata.
Sabe-se que o homem pode refletir as condições do meio de modo
imediatamente mais profundo do que o animal. Ele pode abstrair a impressão
imediata, penetrar nas conexões e dependências profundas das coisas,
conhecer a dependência causai dos acontecimentos e, após interpretá-los,
tomar come orientação não impressões exteriores porém leis mais profundas.
Assim, ao sair a passeio num claro dia de outono, c homem pode levar guarda-
chuva, pois sabe que o tempo i instável no outono. Aqui ele obedece a um
profundo conhecimento das leis da natureza e não à impressão imediata de um
tempo de sol e céu claro. Sabendo que a água do poço está envenenada, o
homem nunca irá bebê-la, mesmo que esteja cor muita sede; neste caso, seu
comportamento não é orientado pela impressão imediata da água que o atrai
mas por um conhecimento mais profundo que ele tem da situação.
A atividade consciente do homem não pode tomar come orientação a
impressão imediata da situação exterior e sim um conhecimento mais profundo
das leis interiores dessa situação, razão por que há todo fundamento para
afirmar-se que c comportamento humano, baseado no reconhecimento da
necessidade, é livre.
Por último, há o terceiro traço característico, que difere a atividade consciente
do homem do comportamento do animal.
72
Diferentemente do animal, cujo comportamento tem apenas duas fontes ■— 1)
os programas hereditários de comportamento, jacentes no genótipo e 2) os
resultados da experiência individual —, a atividade consciente do homem
possui ainda uma terceira fonte: a grande maioria dos conhecimentos e
habilidades do homem se forma por meio da assimilação da experiência de
toda a humanidade, acumulada no processo da história social e transmissível
no processo de aprendizagem.
Desde o momento em que nasce, a criança forma o seu comportamento sob a
influência das coisas que se formaram na história: senta-se à mesa, come com
colher, bebe em xícara e mais tarde corta o pão com a faca. Ele assimila
aquelas habilidades que foram criadas pela história social ao longo de milênios.
Por meio da fala transmitem-lhe os conhecimentos mais elementares e
posteriormente, por meio da linguagem, ele assimila na escola as mais
importantes aquisições da humanidade. A grande maioria de conhecimentos,
habilidades e procedimentos do comportamento de que dispõe o homem não
são o resultado de sua experiência própria mas adquiridos pela assimilação da
experiência histórico-social de gerações. Este traço diferencia radicalmente a
atividade consciente do homem do comportamento do animal.
Há muito tempo uma questão tem ocupado a filosofia e a Psicologia: como
explicar os traços da atividade consciente do homem que acabamos de
numerar?
Na história da filosofia e da ciência podemos distinguir duas vias inteiramente
diferentes de solução dessa questão.
Uma delas, típica da filosofia idealista, partia das posições do dualismo A tese
básica dessa corrente reduzia-se não só ao reconhecimento de acentuadas
diferenças de princípio entre o comportamento do animal e a consciência do
homem, como também à tentativa de explicar essas diferenças alegando que a
consciência do homem deve ser considerada como manifes: tação de um
princípio espiritual especial de que carece o animal
A tese segundo a qual o animal deve ser visto como uma máquina complexa,
cujo comportamento obedece as leis da mecânica, e o homem como dotado do
princípio espiritual com livre-arbítrio partiu de Descartes, tendo sido repetida
posteriormente pela filosofia idealista sem mudança considerável. É fácil
perceber que, apontando a diferença de princípio entre o comportamento do
animal e a atividade consciente do homem,
73
essa corrente não dá nenhuma explicação científica aos referidos fatos.
A segunda via de solução do problema da originalidade da atividade consciente
caracteriza o positivismo evolucionista. Segundo essa teoria, a atividade
consciente do homem é resultado direto da evolução do mundo animal, já se
podendo observar nos animais todos os fundamentos da consciência humana.
O primeiro cientista a formular essas teses foi Charles Darwin, que em várias
de suas obras tentou mostrar que, na forma embrionária, os animais já têm
todas as formas de atividade racional inerente ao homem e que. não há limites
precisos e basilares entre o comportamento dos animais e a atividade
consciente do homem.
O enfoque naturalista, que tentava estudar uma linha única de desenvolvimento
da consciência dos animais ao homem, desempenhou papel positivo em seu
tempo no combate às concepções dualistas pré-científicas. No entanto as
afirmações de que os animais têm em embrião todas as formas da vida
consciente do homem, o enfoque antropomórfico da "razão" e das "vivências"
dos animais, bem como a falta de vontade de reconhecer as diferenças de
princípio entre o comportamento dos animais e a atividade consciente do
homem continuaram a ser o ponto fraco do positivismo naturalista. Ficava sem
solução o problema da origem das peculiaridades da atividade consciente do
homem, que foram ressaltadas acima.
A Psicologia científica, que parte dos princípios do marxismo, focaliza de
posições inteiramente diferentes o problema da origem da atividade consciente
do homem.
É sabido que toda a atividade psíquica dos animais, que cria a base para a
orientação no meio ambiente, forma-se nas condições das formas de vida que
caracterizam uma espécie de animais.
O que é que caracteriza as formas de vida que diferenciam a atividade
consciente do homem do comportamento dos animais e nas quais devemos
procurar as condições que formam essa atividade consciente?
As peculiaridades da forma superior de vida, inerente apenas ao homem,
devem ser procuradas na forma histórico-social de atividade, que está
relacionada com o trabalho social, com o emprego de instrumentos de trabalho
e com o surgimento da linguagem. Essas formas de vida não existem nos
animais, e a transição da história natural do animal à história social da
74
humanidade deve ser considerada um importante passo assim como a
transição da matéria inanimada à animada ou da vida vegetal à animal.
Por isto as raízes do surgimento da atividade consciente do homem não devem
ser procuradas nas peculiaridades da "alma" nem no íntimo do organismo
humano mas nas condições sociais de vida historicamente formadas.
São justamente essas condições que fazem com que, com a transição para a
história social, mude radicalmente a estrutura do comportamento. Junto com os
motivos biológicos do comportamento, surgem os motivos superiores
("intelectuais") e necessidades, concomitantes com o comportamento que
depende da percepção imediata do meio. Surgem formas superiores de
comportamento, baseadas na abstração das influências imediatas do meio, e,
juntamente com as duas fontes do comportamento — os programas de
comportamento consolidados por via hereditária e a influência da experiência
passada do próprio indivíduo —, surge uma terceira fonte formadora da
atividade: a transmissão e assimilação da experiência de toda a humanidade.
Abordemos mais detidamente as raízes histórico-sociais da complexa atividade
consciente do homem.
O trabalho e a formação da atividade consciente
A ciência histórica destaca dois fatores, que servem de fonte à transição da
história natural dos animais à história social do homem. Um desses fatores é o
trabalho social e o emprego dos instrumentos de trabalho, o outro, o
surgimento da linguagem.
Examinemos o papel desempenhado por esses dois fatores na mudança
radical das formas de atividade psíquica e no surgimento da consciência.
Sabe-se que, à diferença do animal, o homem tanto emprega os instrumentos
de trabalho como prepara esses instrumentos. Os remanescentes desses
instrumentos, que pertencem à época mais antiga da história da humanidade,
mostram que, se as lascas de pedra tosca são os instrumentos de trabalho
mais primitivos, na etapa posterior já surgem os instrumentos (a lâmina, a
flecha) preparados especialmente pelo homem. Nesses instrumentos podemos
distinguir tanto o gume, com o qual o homem
75
primitivo podia esfolar o animal morto ou cortar pedaços de árvore, como a
"lombada", a parte arredondada, que servia para manter-se comodamente na
mão. É natural que arma dessa natureza exige preparo especial, que, pelo
visto, cabia aos preferidos do grupo primitivo ou à mulher, que ficava em casa
enquanto o homem ia à caça.
A preparação dos instrumentos (que às vezes subentendia também a divisão
natural do trabalho) por si só já mudava radicalmente a atividade do homem
primitivo, distinguindo-a do comportamento do animal. O trabalho desenvolvido
na preparação dos instrumentos já não é uma simples atividade, determinada
por motivo biológico imediato (a necessidade de alimento) . Por si só a
atividade de elaboração da pedra carece de sentido e não tem qualquer
justificativa em termos biológicos; ela adquire sentido somente a partir do uso
posterior do instrumento preparado na caça, ou seja, exige, juntamente com o
conhecimento da operação a ser executada, o conhecimento do futuro
emprego do instrumento. É esta a condição fundamental, que surge no
processo de preparação do instrumento de trabalho, e pode ser chamada de
primeiro surgimento da consciência, noutros termos, primeira forma de
atividade consciente.
Essa atividade de preparação dos instrumentos de trabalho leva a uma
mudança radical de toda a estrutura do comportamento .
O comportamento do animal fora sempre voltado imediatamente para a
satisfação de urna necessidade. Diferentemente disto, no homem que
preparava seus instrumentos de trabalho, o comportamento adquiria caráter de
estrutura complexa; da atividade, voltada para a satisfação imediata de uma
necessidade, separa-se uma ação especial, que adquire seu sentido
posteriormente, quando o produto dessa ação ,(preparação do instrumento)
será empregado para matar a vítima e deste modo satisfazer a necessidade de
alimento. A mudança mais importante da estrutura geral do comportamento —
surgida no processo de transição da história natural do animal à história social
do homem — dá-se quando, da atividade geral, separa-se uma "ação" que não
é dirigida imediatamente por motivo biológico e só adquire sentido com o
emprego posterior dos seus resultados. Percebe-se facilmente que, na medida
em que se tornam mais complexas a sociedade e as formas de produção,
essas ações, não dirigidas imediatamente por motivos biológicos,
76
começam a ocupar posição cada vez mais marcante na atividade consciente
do homem.
Contudo, a complicação da estrutura da atividade durante a transição à história
social do homem não se limita à mudança que acabamos de mencionar.
A preparação dos instrumentos de trabalho requer uma série de procedimentos
e modos (desbastar uma pedra com outra, friccionar dois pedaços de madeira
na obtenção do fogo), por outras palavras, exige a separação de várias
operações auxiliares. A separação dessas "operações" é o que constitui a
sucessiva complicação da estrutura da atividade.
Deste modo, a separação entre a atividade biológica geral, e as "ações"
especiais não é determinada imediatamente por motivo biológico, mas é
dirigida pelo objetivo consciente, que adquire sentido apenas na comparação
dessas ações com o resultado final. O surgimento de várias "operações"
auxiliares por meio das quais se executa essa atividade é o que constitui a
mudança radical do comportamento, que é o que representa uma nova
estrutura de atividade consciente do homem. A complexa organização de
"ações" conscientes, que se separa da atividade geral, leva ao surgimento de
formas de comportamento, que não são diretamente dirigidas por motivos
biológicos, podendo inclusive opor-se algumas vezes a eles.
Assim é, por exemplo, a caça na sociedade primitiva, durante a qual um grupo
de caçadores "assusta" e afugenta a caça que deve ser apanhada, enquanto
outro grupo arma emboscada para ela; aqui poderia parecer que as ações do
primeiro grupo contradizem as necessidades naturais de apanhar a caça e só
adquirem sentido a partir das ações do segundo grupo cujo resultado é a caça
da vítima pelos caçadores.
Torna-se claro que a atividade consciente do homem não é produto do
desenvolvimento natural de propriedades jacentes no organismo mas o
resultado de novas formas histórico-sociais de atividade-trabalho.
A linguagem e a consciência do homem
O surgimento da linguagem é a segunda condição que leva à formação da
atividade consciente de estrutura complexa do homem.
77
Costuma-se entender por linguagem um sistema de códigos por meio dos
quais são designados os objetos do mundo exterior, suas ações, qualidades,
relações entre eles, etc. Assim, na linguagem, a palavra "cadeira" designa um
tipo de móvel que serve de assento, a palavra "pão" designa um objeto
comestível, enquanto "dorme", "corre" designam ações, "ácido", "plano"
designam qualidades dos objetos e as palavras auxiliares "sobre", "sob",
"juntamente", "em conseqüência" designam relações diferentes por
complexidade entre os objetos.
É natural que as palavras, unidas em frases, são os principais meios de
comunicação mediante os quais o homem conserva e transmite informação e
assimila a experiência acumulada por gerações inteiras de outras pessoas.
Essa linguagem não existe entre os animais e surge somente no processo de
transição à sociedade humana. O animal possui meios muito variados de
expressão de seus estados, que são percebidos por outros animais e podem
exercer influência substancial sobre o comportamento destes. O guia de um
bando de cegonhas, ao sentir o perigo, solta gritos alarmantes aos quais o
bando reage vivamente. Numa manada de macacos podemos observar todo
um conjunto de sons, que expressa satisfação, agressão, medo ao perigo, etc.
Podemos observar um sistema muito complexo de movimentos expressivos
nas chamadas "danças" das. abelhas, que mudam de caráter dependendo de
ter a abelha regressado do vôo com boa prenda e modificam-se dependendo
da direção e da distância do caminho percorrido. Esses "segredos" são
transmitidos a outros indivíduos e podem orientar de modos diferentes o
comportamento das abelhas.
Mas a "linguagem" dos animais nunca designa coisas, não distingue ações
nem qualidades, portanto, não é linguagem na verdadeira acepção da palavra.
O problema do surgimento da linguagem humana é o objeto de inúmeras
hipóteses e teorias.
Algumas delas consideram a linguagem manifestação do campo espiritual,
atribuindo-lhe, de acordo com a Bíblia, "origem divina". Essas teorias são muito
vagas e omitem o fato de que a linguagem é uma especial "forma simbólica de
existência", que faz distinção entre a vida intelectual e qualquer manifestação
do mundo material.
Outras teorias, seguindo as tradições do positivismo naturalista, tentam,
inutilmente, ver a linguagem como resultado da evolução do mundo animal e
interpretam como formas iniciais
78
da evolução da linguagem os fenômenos de "comunicação" entre os animais
que descrevemos.
Mas a solução científica do problema da origem da linguagem só se tornou
possível quando a filosofia e a ciência abandonaram as tentativas de procurar
as raízes da linguagem no âmago do organismo e de deduzi-la diretamente das
peculiaridades do "espírito" ou do cérebro, concluindo que as condições que
originaram o fenômeno devem ser procuradas nas relações sociais do trabalho
cujos primórdios de surgimento remontam ao período de tratisição da história
natural à história humana.
A ciência não dispõe de métodos que permitam observar imediatamente as
condições que originaram a linguagem, restando para a.área da ciência,
denominada "paleontologia da fala", apenas o caminho das hipóteses que se
confirmam por via indireta. Há muitos fundamentos para se pensar que o
surgimento da linguagem teve seus primórdios nas formas de comunicação
contraídas pelos homens no processo de trabalho.
A forma conjunta de atividade prática faz surgir forçosamente no homem a
necessidade de transmitir a outros certa informação; esta não pode ficar restrita
à expressão de estados subjetivos (vivências), devendo, ao contrário, designar
os objetos (coisas ou instrumento) que fazem parte da atividade do trabalho
conjunto. Segundo as teorias originárias da segunda metade do século XIX, os
primeiros sons que designam objetos surgiram no processo do trabalho
conjunto.
Entretanto seria incorreto pensar que os sons, que assumiram paulatinamente
a função de transmitir certa informação, eram "palavras" capazes de designar
com independência os objetos, suas qualidades, ação ou relações. Os sons,
que começavam a indicar determinados objetos, ainda não tinham existência
autônoma. Estavam entrelaçados na atividade prática, eram acompanhados de
gestos e entonações expressivas, razão por que só era possível interpretar o
seu significado conhecendo a situação evidente em que eles surgiam. Além do
mais, nesse complexo de meios de expressão parece que, a princípio, coube
posição determinante aos atos e gestos; estes, segundo muitos autores,
constituíam os fundamentos de uma original linguagem ativa ou "linear" e só
bem mais tarde o papel determinante passou a ser desempenhado pelos sons,
que propiciaram a base para uma evolução paulatina de uma linguagem de
sons independente. Durante muito tempo, porém, essa linguagem manteve a
mais estreita ligação com o gesto e o ato e por isto o mesmo complexo de sons
(ou "protovocábulo") podia desig-
79
nar o objeto para o qual a mão apontava, a própria mão c a ação produzida
com esse objeto. Só depois de muitos milênios a linguagem dos sons começou
a separar-se da ação prática e a adquirir independência. Ê a essa época que
pertence o surgimento das primeiras palavras autônomas, que designavam
objetos e bem mais tarde passaram a servir para distinguir as ações e as
qualidades dos objetos. Surgiu a língua como um sistema de códigos
independentes, que durante um longo período histórico posterior de
desenvolvimento assumiu a forma que distingue as línguas atuais.
Enquanto sistema de códigos que designam os objetos, suas ações,
qualidades ou relações e serve de meio de transmissão de informação, a
linguagem teve importância decisiva para a posterior reorganização da
atividade consciente do homem. Por isto têm razão os cientistas que afirmam
que, a par com o trabalho, a linguagem é o fator fundamental de formação da
consciência.
O surgimento da linguagem imprime ao menos três mudanças essenciais à
atividade consciente do homem. A primeira dessas mudanças consiste em que,
designando os objetos e eventos do mundo exterior com palavras isoladas ou
combinações de palavras, a linguagem permite discriminar esses objetos,
dirigir a atenção para eles e conservá-los na memória. Resulta daí que o
homem está em condições de lidar com os objetos do mundo exterior inclusive
quando eles estão ausentes. É bastante a pronúncia interna ou externa de uma
palavra para o surgimento da imagem do objeto correspondente e o homem
pôr-se em condições de operar com essa imagem. Por isto podemos dizer que
a linguagem duplica o mundo perceptível, permite conservar a informação
recebida do mundo exterior e cria um mundo de imagens interiores. Percebe-se
facilmente que importância tem o surgimento desse mundo "interior" de
imagens, que surge como base na linguagem e pode ser usado pelo homem
em sua atividade.
O segundo papel essencial da linguagem na formação da consciência consiste
em que as palavras de uma língua não apenas indicam determinadas coisas
como abstraem as propriedades essenciais destas, relacionam as coisas
perceptíveis a determinadas categorias. Essa possibilidade de assegurar o
processo de abstração e generalização representa a segunda contribuição
importantíssima da linguagem para a formação da consciência.
Por exemplo, as palavras "relógio" e "mesa" designam não apenas certos
objetos. A palavra "relógio" indica que esse
8X>
objeto serve para marcar as horas (do latim horologio); a palavra "mesa" indica
que esse objeto serve para ser coberto (do latim mensa). Além do mais, as
palavras "relógio" e "mesa" designam todas as modalidades desses objetos,
independentemente de sua forma exterior ou do tamanho. Isto significa que a
palavra que distingue (abstrai) de fato os respectivos indícios do objeto e
generaliza objetos diferentes pelo aspecto exterior mas pertencentes à mesma
categoria transmite automaticamente ao homem a experiência das gerações e
serve de meio de representação do mundo mais poderoso que a simples
percepção. . . Deste modo, a palavra faz pelo homem o grandioso trabalho de
análise e classificação dos objetos, que se formou no longo processo da
história social. Isto dá à linguagem a possibilidade de tornar-se não apenas
meio de comunicação mas também o veículo mais importante do pensamento,
que assegura a transição do sensorial ao racional na representação do mundo.
O que acaba de ser dito dá fundamento para designar a terceira função
essencial da linguagem na formação da consciência. A linguagem é o veículo
fundamental de transmissão de informação, que se formou na história social da
humanidade, ou seja, ela cria uma terceira fonte de evolução dos processos
psíquicos que, no estágio do homem, aproximam-se das duas fontes (os
programas de comportamento transmissíveis por hereditariedade e as formas
de comportamento resultantes da experiência de dado indivíduo) que se
verificavam nos animais.
Ao transmitir a informação mais complexa, produzida ao longo de muitos
séculos de prática histórico-social, a linguagem permite ao homem assimilar
essa experiência e por meio dela dominar um ciclo imensurável de
conhecimentos, habilidades e modos de comportamento, que em hipótese
alguma poderiam ser resultado da atividade independente de um indivíduo
isolado. Isto significa que com o surgimento da linguagem surge no homem um
tipo inteiramente novo de desenvolvimento psíquico desconhecido dos animais,
e que a linguagem é realmente o meio mais importante de desenvolvimento da
consciência.
A importância da linguagem para a formação dos processos psíquicos
A importância da linguagem para a formação da consciência consiste em que
ela efetivamente penetra em todos os
81
campos da atividade consciente do homem, eleva a um novo nível o desenrolar
dos seus processos psíquicos; Por isto a análise da linguagem e do discurso
(da forma de transmissão da informação que emprega meios de linguagem)
não pode ser vista apenas como capítulo especial da Psicologia mas deve ser
considerada também como jatos de construção de todo o conjunto da vida
consciente do homem. É justamente por isto que o papel da linguagem ou
"segundo sistema de sinais da realidade", como a denominou Pávlov, deve ser
enfocado como parte conclusiva da introdução evolucionista à Psicologia.
A linguagem reorganiza substancialmente os processos de percepção do
mundo exterior e cria novas leis dessa percepção.
É sabido que existe no mundo um número imenso de objetos, formas, matizes
de cores, mas é muito limitado o número de palavras que designam esses
objetos, formas e matizes. Isto leva a que, quando relacionamos o objeto, a
forma ou. matiz com alguma palavra ("mesa", "relógio", "círculo", "triângulo" ou
"vermelho", "amarelo"), nós realmente selecionamos os traços essenciais e
generalizamos os objetos, formas e cores perceptíveis em determinados
grupos ou categorias. Isto dá à percepção humana traços que a distinguem
radicalmente da percepção do animal. A percepção humana se torna mais
profunda, relacionada com a discriminação dos indícios essenciais do objeto,
generalizada e permanente.
A linguagem muda essencialmente os processos de atenção do homem.
Se a atenção do animal tinha caráter imediato, era determinada pela força, a
novidade ou valor biológico do objeto que dirigiam automaticamente
(arbitrariamente) a atenção do animal, com o surgimento da linguagem e
baseado nela o homem se acha em condições de dirigir arbitrariamente a sua
atenção.
Quando a mãe diz ao filho "isto é uma xícara", ela está distinguindo esse objeto
de todos os demais e dirigindo para ele a atenção da criança. Quando
posteriormente a própria criança assimila o discurso (a princípio exterior,
depois interior), acha-se em condições de discriminar sozinha os objetos
nomeados, as qualidades ou ações, tornando-se sua atenção dirigível,
arbitrária.
A linguagem muda essencialmente também os processos da memória do
homem. É sabido que a memória do animal depende consideravelmente da
orientação no meio ambiente e dos motivos biológicos, que servem de reforço
daquilo que é lembrado com êxito. No nível humano e apoiada nos processos
82
do discurso, a linguagem se torna pela primeira vez atividade mnemônica
consciente, na qual o homem coloca fins especiais de lembrar, organiza o
material a ser lembrado e acha-se em condições não só de ampliar de modo
imensurável o volume de informação que se mantém na memória como ainda
de voltar-se arbitrariamente para o passado, selecionando nele, no processo de
memorização, aquilo que em dada etapa se lhe afigura mais importante.
A linguagem do homem lhe permite desligar-se pela primeira vez da
experiência imediata e assegura o surgimento da ■imaginação, processo que
não existe no animal e serve de base à criação orientada e dirigida cujo estudo
constitui área especial da Psicologia.
É dispensável dizer que só com base na linguagem e com sua participação
imediata constituem-se as complexas formas de pensamento abstrato e
generalizado; o surgimento dessas formas representa uma das aquisições mais
importantes da humanidade e garante a transição do "sensorial ao racional",
considerada pela filosofia do materialismo dialético como um salto que pela
importância é igual à transição da matéria inanimada para a animada ou da
vida vegetal para a animal.
Não são menos importantes as mudanças introduzidas na reorganização da
vivência emocional pelo surgimento da linguagem, que eleva a um novo nível
os processos psíquicos.
Nos animais conhecemos apenas as reações afetivas expressas, que ocorrem
com a participação dominante dos sistemas sub-corticais e são diretamente
relacionadas com o êxito ou fracasso de sua atividade e conservam
plenamente sua ligação com as necessidades biológicas. O mundo emocional
do homem não é apenas incomparavelmente mais rico nem só isolado dos
motivos biológicos; a avaliação das correlações das ações realmente
exeqüíveis com as intenções iniciais, a possibilidade de uma formação
generalizada do caráter e do nível dos seus acertos leva a que, paralelamente
às categorias afetivas, formem-se no homem vivências e demorados estados-
de-espirito que vão muito além dos limites das reações afetivas imediatas e são
inseparáveis do seu pensamento, que se processa com a participação imediata
da linguagem.
Por último, não se pode omitir a última tese, cuja importância é especialmente
grande.
É sabido que as novas formas de comportamento individualmente variável do
animal são adquiridas com base em sia orientação imediata no meio ambiente
e que a aquisição de
83
formas estáveis de semelhante comportamento se baseia nas leis dos reflexos
condicionados, estudadas minuciosamente pela escola de Pávlov.
É fato bem conhecido que a aquisição de novas formas de comportamento
exige um reforço relativamente longo da resposta ao sinal condicional, a
repetição multiplicada da coincidência dos sinais condicionais com o reforço
incondicionado. Essa ligação é adquirida paulatinamente, começa a extinguir-
se tão logo desaparece o reforço e se reorganiza com relativa dificuldade num
novo sistema de ligações.
Não encontramos nada semelhante na formação de novas modalidades de
comportamento consciente do homem. A nova forma de atividade consciente
pode surgir no homem à base da formulação discursiva de uma regra, que o
homem estabelece com o auxílio da linguagem. Basta instruir o homem no
sentido de erguer o braço ou girar a chave em resposta a um sinal vermelho e
não fazer nenhum movimento a um azul para surgir imediatamente e
consolidar-se essa nova relação. O advento de qualquer ação, executável com
base em instrução discursiva, dispensa qualquer reforço "incondicional" (ou
biológico) . Sua formação dispensa elaboração longa e se estabelece de
imediato; essa ação, que se estabelece de acordo com uma regra formulada no
discurso, mostra-se imediatamente sólida, dispensa repetição permanente da
instrução e não se extingue se essa instrução não se repete. Por último, a
"conversão" dessa ação numa nova não apresenta, na norma, nenhuma
dificuldade, e, para que a relação anteriormente criada seja imediatamente
substituída por uma contrária, basta sugerir ao sujeito uma nova instrução,
dizendo-lhe, por exemplo, que agora ele deve fazer o contrário: em resposta âo
sinal azul, levantar o braço (ou girar a chave), nada fazendo ao sinal vermelho.
Tudo isso se refere à imensa plasticidade e ao caráter dirifgível dos processos
de atividade consciente do homem, que distingue acentuadamente o seu
comportamento do comportamento do animal.
A análise minuciosa das formas dessa atividade consciente, dos meios de sua
direção, das leis que servem de base ao seu desenvolvimento e das formas de
sua perturbação nos estados patológicos constitui uma das tarefas
fundamentais da Psicologia^
84
IV
O Cérebro e os Processos Psíquicos
1 ARA ENTENDER melhor a estrutura dos processos psíquicos do homem e das
leis que os regem, devemos conhecer acima de tudo a maneira pela qual se
construiu o órgãos principal da atividade psíquica — o cérebro humano — e as
relações dos processos psíquicos com ele.
O problema da relação dos processos psíquicos com o cérebro
O problema da relação dos processos psíquicos com o cérebro e dos princípios
de trabalho do cérebro enquanto substrato material da atividade psíquica teve
soluções diferentes em períodos diversos de evolução da ciência. O caráter da
solução desse problema dependia muito da maneira como se interpretavam os
processos psíquicos do homem e como se enfocavam os seus fundamentos
cerebrais.
Na Idade Média já se formara na filosofia e na Psicologia a ela relacionada a
concepção segundo a qual os processos psíquicos eram formas especiais de
existência do espírito ou
85
"faculdades" irredutíveis a quaisquer componentes mais elementares .
Estabeleceu-se a opinião segundo a qual podem-se distinguir ao menos três
"faculdades" básicas: a faculdade da percepção ou imaginação, a faculdade do
raciocínio e a faculdade da memória.
Os pensadores, que procuravam a base material dessas faculdades,
aventavam a hipótese de que elas estavam localizadas no líquido que
preenche três "ventrículos cerebrais", e consideravam que no ventrículo
anterior estava situada a "faculdade da percepção ou imaginação", no
ventrículo médio, a "faculdade do raciocínio", e no ventrículo posterior a
"faculdade da memória".
A idéia de que os processos psíquicos, que são a seguir "faculdades"
indivisíveis, podiam estar imediatamente "localizados" em determinadas
formações cerebrais, manteve-se durante muitos séculos e continuou
basicamente imutável inclusive depois que os cientistas deixaram de
considerar substrato do psiquismo o líquido que preenche os "ventrículos
cerebrais" e chegaram à opinião de que o fundamento da atividade psíquica
devia ser procurado na substância sólida do cérebro, sobretudo no córtex.
A primeira tentativa de semelhante "localização das faculdades psíquicas" foi
empreendida no começo do século XIX por F. J. Gall. Ele apresentou a
hipótese de que o substrato de diversas "faculdades" psíquicas é constituído
por pequenas áreas do tecido nervoso do córtex cerebral, que crescem muito
com o desenvolvimento dessas "faculdades". Após distinguir um grande
número dessas "faculdades" congênitas (às quais, segundo ele, pertenciam
"faculdades" como a "parcimônia", a "honestidade", o "respeito aos pais" e o
"amor às crianças"), Gall localizou cada uma delas em determinada área do
cérebro e considerava que o intenso crescimento dessa ou daquela área
cerebral, que levava à formação de protuberâncias no crânio, indicava uma
evolução especial dessa "faculdade". Essa hipótese acabou servindo de base a
um campo especial da "ciência" — a "frenologia" —, que, segundo Gall, com
base no estudo das protuberâncias no crânio podia fazer conclusões relativas
às capacidades individuais do homem.
Apesar de a "frenologia" de Gall ter sido considerada fantástica e sem
fundamento científico ainda com seu criador vivo, a idéia da "localização" direta
de certas funções psíqui-
86
cas do córtex cerebral continuou em evidência. Por isto os cientistas cujo
método principal passou a ser o estudo das mudanças nos processos
psíquicos, que ocorrem nos casos de afecções limitadas (locais) do cérebro,
continuarem por muito tempo a fazer tentativas de "localização" direta das
funções psíquicas em áreas isoladas do córtex cerebral.
Ao descobrir que a afecção de áreas da terceira circunvo-lução frontal do
hemisfério esquerdo leva à perturbação da fala articulada, o anatomista francês
Paul Broca (1861) lançou a hipótese segundo a qual estão "localizadas" nessa
região as imagens motoras da palavra, O psiquiatra alemão K. Wernicke (1873)
descobriu que a afecção da parte posterior da cincun-volução temporal superior
do hemisfério esquerdo mantém intacta a linguagem motora mas perturba a
compreensão das palavras; ele lançou a tese de que essa região do córtex é o
"centro da palavra sensória".
Essas tentativas de localização direta das funções psíquicas em áreas
limitadas do cérebro inspiravam os estudiosos (psiquiatras e neurologistas). A
partir da década de 70 do século passado, o estudo das observações clínicas
mostrou que a afecção de áreas limitadas do córtex cerebral faz predominar a
queda de "funções psíquicas" perfeitamente determinadas. Essas descobertas
deram aos pesquisadores fundamentos para distinguir, no córtex cerebral, as
áreas que passaram a ser consideradas "centros da escrita", "centros do
cálculo", "centro dos conceitos", etc. Essas tentativas foram reunidas num
sistema pelo psiquiatra alemão K. Kleist (1934), que, com base em
observações feitas em cérebros de feridos durante a I Guerra Mundial, colocou-
as num "mapa sinótico localizado", no qual até as "funções" psíquicas mais
complexas coincidiram com as áreas limitadas do córtex cerebral.
Apesar de que em seu tempo eram progressistas às tentativas de "localização"
direta das complexas "funções" psíquicas nas áreas limitadas do córtex
cerebral, pois tais tentativas refletiam o esforço de fazer um enfoque
materialista dos processos psíquicos e seu substrato cerebral, elas logo
mostraram sua inconsistência e deixavam de satisfazer aos estudiosos.
Isto tinha por base tanto considerações teóricas como as contradições do
material factual em relação a essas considerações. Por um lado, levantaram-se
dúvidas legítimas de que processos complexos como a fala, a escrita, a
leitura e o
87
cálculo, já sem falar da atividade intelectual, podiam ser entendidos como
simples "faculdades" congênitas, podendo-se procurar sua "localização" em
áreas limitadas do córtex cerebral. Por outro lado, a análise minuciosa dos
fatos das observações clínicas mostrou que a atribuição direta dos complexos
processos psíquicos às áreas limitadas do córtex cerebral carece de
fundamento. Verificou-se que perturbações de processos psíquicos tão
complexos como a fala, a escrita, a leitura e o cálculo podem surgir com
afecções corticais inteiramente diferentes pela posição, fato que por si só já
contrariava a idéia da estreita "localização" das funções psíquicas nas áreas
isoladas do córtex. Observou-se que a afecção de áreas limitadas do córtex
cerebral leva, via de regra, à perturbação de todo um grupo de processos
psíquicos, que à primeira vista parecem inteiramente diferentes. Assim, a
afecção do lobo temporal esquerdo provoca a perturbação da compreensão da
fala, distúrbios na escrita, dificuldades de encontrar palavras, etc, enquanto a
afecção das áreas parietais e occipitais do córtex cerebral do hemisfério
esquerdo provoca distúrbios na orientação no espaço, dificuldades de
percepção da luz, impossibilidade de compreender as complexas relações
lógico-gramaticais e vários outros distúrbios congêneres da atividade
intelectual.
Isto gerou uma crise das concepções anteriores da "localização" direta dos
processos psíquicos nas áreas limitadas do córtex cerebral e levou vários
pesquisadores (entre estes grandes psicólogos como K. S. Lashley e
neurologistas como K. Goldstein, C. Monakow e outros) a lançarem a idéia de
que os processos psíquicos são função de todo o cérebro e não podem ser
"localizados" nas áreas limitadas do córtex cerebral.
Essa idéia, que levou ao surgimento de uma corrente científica conhecida
como "antilocalizacionismo", era uma reação legítima às concepções simplistas
do "localizacibnismo estreito". No entanto ela não tardou a mostrar sua
inconsistência.
Tanto as sutis pesquisas histológicas como as observações fisiológicas
mostraram que o córtex cerebral é um aparelho bastante diversificado, que
áreas corticais distintas apresentam estrutura diferente e que os neurônios,
integrantes do córtex cerebral, são amiúde tão especializados que dentre eles
podemos distinguir os que reagem apenas a irritações muito especiais ou a
indícios muito especiais (por exemplo, só reagem aos movimentos do centro à
periferia ou da periferia ao centro, às linhas retas e curvas ou somente às
linhas quebradas, etc). Essas
88
linhas, parte das quais é o resultado de descobertas obtidas ultimamente como
decorrência de pesquisas fisiológicas, realizadas em certos neurônios,
tornaram muito pouco prováveis as hipóteses da homogeneidade de toda a
massa cerebral c as afirmações segundo as quais o cérebro sempre funciona
como um todo único.
Criou-se uma nova crise na doutrina dos princípios da organização funcional do
cérebro e na doutrina da "localização" dos processos psíquicos no córtex
cerebral.
A saída para essa crise estava relacionada com a revisão radical do conceito
de "funções psíquicas" e com a mudança radical dos principais enfoques dos
princípios da "localização" cerebral dessas "funções".
O conceito de "função" tem em biologia dois significados inteiramente diversos.
Strtctu sensu, entende-se por "função" a direção de determinado tecido. Sabe-
se que a função do fígado é a regulação da troca de hidrato de carbono, a
função do pâncreas é a segregação de insulina, a função do alvéolo pulmonar,
difusão do oxigênio e sua transmissão aos eritrócitos do sangue.
Mas o conceito de "função" tem um outro significado mais amplo. Ele pode
designar a atividade de adaptação de todo um organismo. Neste sentido fala-
se de função da respiração, função da digestão, função da locomoção.
Compreende-se perfeitamente que nesse segundo significado mais amplo, a
função se constitui^ numa complexa atividade, exercida pelo trabalho conjunto
de todo um sistema de órgãos, cada um dos quais integra esse "sistema
funcional" (termo de P. K. Ano-khin) em seus próprios papéis, assegurando
esse ou aquele aspecto desse sistema funcional.
Assim, a "função da respiração" é exercida pelo trabalho conjunto de todo um
grupo de músculos e alvéolos pulmonares. É característico que os músculos,
que participam do ato de respiração, podem substituir mutuamente uns aos
outros, e se de um sistema funcional extingue-se a participação de um grupo
de músculos (os músculos do diafragma, por exemplo), essa falha é
compensada pelo trabalho reforçado de outro grupo de músculos (os músculos
intercostais). Deste modo, o sistema funcional representa um complexo todo
dinâmico, no qual o objetivo final permanente ("invariante") é realizado pelo
sistema mutável ("variante") de suas partes componentes.
89
O mesmo podemos dizer da "função da digestão", que representa o mais
complexo sistema funcional de órgãos digestivos que funcionam em conjunto,
bem como da "função do movimento" (ou locomoção), na qual o objetivo final
(deslocamento de um lugar para outro, o acerto em dado alvo, a batida do
martelo, etc.) é realizado por um complexo sistema de músculos cuja inter-
relação varia com a mudança da posição do corpo, dependendo da tensão, da
consolidação da habilidade, etc.
É natural que um sistema funcional tão complexo não pode ser "localizado" em
determinada área limitada do sistema nervoso. Pávlov já indicara que "se antes
o centro respiratório era concebido como um ponto do tamanho da cabeça de
um alfinete no bulbo raquidiano, . . . agora ele está extremamente espalhado,
subiu para o cérebro e desceu para a medula espinhal e hoje ninguém indicará
com precisão a sua fronteira" (I. P. Pávlov, Obras completas, t. III, p. 127).
Se tão amplo significado do conceito de "função" se refere a um grande
número de atos biológicos de adaptação, é com maior fundamento que ele
deve ser aplicado às complexas "funções psicológicas".
Como mostraram pesquisas psicofisiológicas e psicológicas, até "funções"
relativamente simples como o movimento arbitrário, a marcha, o acerto no alvo,
já sem falar de funções como a fala, a escrita e o cálculo, têm estrutura
sumamente complexa, compreendendo em sua composição um número
considerável de elos CQmponentes.
Para executar o movimento mais simples (por exemplo, acertar um ponto com
a ponta do dedo ou dar uma martelada) é necessário antes de tudo manter
uma profunda sensibilidade proprioceptiva do braço que se move dando o sinal
da sua posição no espaço e do grau das distensões dos músculos em
funcionamento. Sem essa sinalização permanente da posição do extremo que
se move, garantindo a necessária correção da direção, nenhum movimento
organizado é possível. Para a sua execução é necessário um reflexo preciso
das coordenadas espaciais exteriores em cujos limites executa-se o
movimento, o movimento perde sua precisão e se torna impossível. A
execução de um movimento exige a mudança harmoniosa dos seus elementos;
até para se darem dois
90
passos é necessário inicialmente enervar um sistema de músculos e, em
seguida, transferindo os impulsos para outro sistema de músculos, desenervar
o primeiro e passar harmoniosamente ao elo seguinte do ato motor.
Tudo isso mostra que até um movimento arbitrário relativamente simples é um
complexo sistema funcional, que inclui em sua composição todo um conjunto
de impulsos tanto senso-riais (aferentes) como motores.
É ainda mais complexa a estrutura de tipos de atividade psíquica como a fala, a
escrita, a leitura ou o cálculo, formados no processo da história da sociedade.
Tomemos como exemplo a análise da maneira como foi construído o ato da
escrita e mostremos que elos complexos integram esse sistema funcional.
Para escrever uma palavra, devemos discriminar antes de tudo os sons que
integram a sua composição, noutros termos, devemos fazer a sua análise
acústica, decompondo fluxo permanente de sons nas unidades sonoras
componentes da língua — os "fonemas" (que em cada língua podem ter caráter
diverso). Amiúde a separação desses fonemas se faz não só "de ouvido" mas
com a participação imediata da articulação, por meio da qual é como se nós
"sondássemos" os sons e os distinguíssemos de outros próximos. Somente
depois desse trabalho prévio a composição sonora da palavra se considera
definida e a palavra pronta para o registro. Aqui o processo da escrita passa à
fase seguinte: os elementos sonoros ("fonemas") devem ser recodifiçados em
elementos motor-visuais da escrita ("grafemas"). Para executar essa ação é
necessário dispor tanto de um esquema motor-visual de "grafemas" ou letras
como manter a correta disposição destes no espaço. No entanto a escrita não
termina nesse processo. Ela representa um complexo programa de
movimentos, nos quais um elo deve incorporar-se harmoniosamente ao
seguinte. O cumprimento dessa condição exige a inclusão de dispositivos
inteiramente diferentes, sem os quais a escrita harmoniosa se torna impossível.
Por último, o processo da escrita deve sempre estar sujeito a uma tarefa geral
(escrever uma frase, uma carta, expor
91
uma idéia, etc.) e só com a sólida manutenção desse programa correspondente
a necessária tarefa pode ser cumprida.
Cabe observar que em diferentes línguas a escrita pode apresentar estrutura
diferente. Se na grande maioria das línguas (indo-européias, turcas) a escrita
apresenta a estrutura que acabamos de descrever, há línguas (o chinês, por
exemplo) em que a escrita não é um processo de transferência das unidades
sonoras ("fonemas") para as respectivas letras ("grafemas"); nelas o
escrevente representa imediatamente os conceitos com determinados sinais
convencionais (hieróglifos). É natural que para semelhante escrita a primeira
fase (a análise sonora da palavra) se torna desnecessária e o processo da
escrita adquire inteiramente outro caráter.
O que acaba de ser dito mostra de modo bastante convincente que deve ser
abandonada em seus primórdios a própria idéia de que um processo tão
complexo tenha sido "localizado" em determinada área limitada do cérebro e
realizado por um grupo relativamente insignificante de células. Por isto a tarefa
de "localização" das funções psíquicas nas áreas limitadas do cérebro pode ser
substituída por outra tarefa: a análise do sistema de zonas cerebrais que
funcionam em conjunto, que põem em ação dado "sistema funcional", noutros
termos, a análise da maneira pela qual esse sistema funcional se distribui pelos
aparelhos do córtex cerebral segundo as respectivas estruturas cerebrais.
Esse enfoque torna compreensível também o fato de que a afecção de
determinada área limitada do cérebro pode levar à desintegração todo um
sistema funcional, e sempre que haja afecção limitada do cérebro não será
afetada um "função" mas todos os sistemas funcionais cuja realização tem a
participação da área cerebral afetada. Torna-se compreensível que a mesma
afecção do cérebro pode provocar a perturbação dos mais diversos sistemas
funcionais (só se forem integrados por determinado elo geral ou "fator" geral
cujo funcionamento esteja diretamente relacionado com a afecção da área) e
que um mesmo sistema funcional (o ato da escrita ou da fala, por exemplo)
pode ser afetado com a afecção de diferentes áreas do cérebro, que
asseguram elos diversos, integrantes da composição de dada função.
92
Assim, se um movimento arbitrário inclui em sua composição elementos
sensórios (cinestésicos) espaço-visuais, que que criam a base "aferente" do
movimento e os impulsos efe-rentes propriamente ditos, então é perfeitamente
natural que esse movimento possa ser afetado tanto com a afeccção das áreas
sensórias e espaço-visuais como com a afecção das áreas corticais
propriamente motoras.
Se o processo da escrita inclui em sua composição a análise auditiva,
cinestésica (articular) da estrutura da letra, a realização do respectivo programa
motor será naturalmente perturbado tanto com a afecção das áreas auditivas,
cinestésicas ou visuais como das áreas motoras do cérebro e essa perturbação
será cada vez diferente.
A análise do caráter das perturbações dos complexos sistemas funcionais nos
casos de afecções locais limitadas do cérebro constitui o objeto de um campo
especial da Psicologia — a neuropsicologia. Os dados desta ciência são de
grande, importância tanto para o campo prático da neurologia — definição do
diagnóstico local (tópico) das afecções cerebrais — como para uma
compreensão mais profunda da estrutra fisiológica dos complexos processos
psicológicos.
Para entender a organização cerebral dos complexos processos psíquicos, é
necessário, antes de tudo, ter uma noção precisa dos dados atuais atinentes à
organização funcional do cérebro humano.
Princípios da organização funcional do cérebro humano
Como já foi dito (cap. II), o cérebro humano, sendo produto de uma longa
evolução, é um complexo sistema construído por hierarquia, que se distingue
pelo fato de que, aos aparelhos do tronco e do córtex primitivo — bastante
desenvolvido já nos vertebrados superiores — sobrepõem-se os grandes
hemisférios, que no homem chegam a um nível especialmente alto de
desenvolvimento
Se os aparelhos do tronco e de suas áreas superiores são aquelas partes do
cérebro que incluem em sua composição os núcleos (grupos de células que
regulam 'os processos de respiração, circulação sangüínea e do metabolismo
bioquímico, que executa os mais importantes processos vitais), já os apa-
93
relhos do corpo quadrigêmeo e dos nós subcorticais (tálamo ótico e sistema
palium estriado) são as primeiras instâncias que asseguram a obtenção das
instigações do mundo exterior que chegam através dos órgãos superiores dos
sentidos (receptores de contato e distância), a inclusão delas nos aparelhos
motores (corpo quadrigêmeo) e sua integração primária com a execução de
complexas sinergias (sistema talâmico-estriado). Esses últimos aparelhos
desempenham papel dominante nos vertebrados inferiores (anfíbios, peixes,
aves) mas são paulatinamente afastados pelas áreas superiores do cérebro
anterior — os grandes hemisférios. Estes são os dispositivos mais complexos,
que asseguram a análise e a síntese das excitações que chegam do mundo
exterior, a assimilação e elaboração da informação recebida, o fechamento de
novas ligações, o processamento de programas de atividade complexa e
regulação da realização das formas superiores de comportamento. As áreas
superiores do sistema nervoso central são os grandes hemisférios: o córtex
cerebral e a substância branca subjacente, constituída de fibras de projeção,
que ligam o córtex às formações subcorticais subjacentes, e de fibras de
associação, que ligam regiões corticais isoladas. Os grandes hemisférios
começam a ocupar posição dominante nos vertebrados superiores, tornando-
se o aparelho fundamental, o mais importante da atividade psíquica do
homem.
Pesquisas realizadas nos últimos decênios deram certa clareza não apenas à
característica morfológica dos aparelhos cerebrais como também aos princípios
fundamentais de sua organização funcional. É isto que se reveste de
importância essencial para a Psicologia.
Os três "blocos" principais do cérebro
Como já indicamos, o cérebro humano, que assegura o recebimento e a
elaboração da informação e a criação de programas de suas próprias ações
bem como o controle da execução destes, trabalha sempre como um todo
único. Contudo o cérebro é um aparelho complexo e altamente diferençado,
composto de várias partes; a perturbação do funcionamento normal de cada
parte se reflete fatalmente no seu trabalho.
94
No cérebro humano podemos distinguir ao menos três "blocos" principais, cada
um desempenhando papel especial na atividade psíquica.
O primeiro mantém o necessário tônus do córtex, indispensável para o bom
andamento dos processos de recebimento e elaboração da informação, bem
como dos processos de formação de programas e controle da execução
destes. O segundo bloco assegura o próprio processo de recebimento,
elaboração e conservação da informação que chega ao homem do mundo
exterior (dos aparelhos do seu próprio corpo). O terceiro bloco elabora
programas de comportamento, assegura e regula sua realização e participa do
controle do seu cumprimento.
Todos os três blocos se instalam em órgãos isolados do cérebro e só o
trabalho bem organizado leva a uma acertada organização da atividade
consciente do homem.
O bloco do tônus do córtex ou bloco energético do cérebro
Para que o homem possa realizar normalmente o recebimento, a elaboração e
conservação da informação, criar e executar os complexos programas de
comportamento, acompanhar o êxito das ações executadas e fazer a
necessária auto-regulação do comportamento, é necessária uma permanente
manutenção do tônus otimal do córtex. Só esse tônus pode assegurar a
escolha acertada dos sinais essenciais, a conservação dos seus vestígios, a
elaboração dos necessários programas de comportamento e um controle
permanente da execução destes.
Coube a Pávlov apresentar uma característica fisiológica desse tônus otimal do
córtex, indicando que os processos que ocorrem no córtex normal obedecem à
"lei da força", segundo a qual um instigador forte (ou mais significativo) provoca
uma reação forte, que deixa o vestígio mais estável, ao passo que o instigador
fraco (ou menos significativo) provoca uma reação mais fraca cujo vestígio se
extingue ou se inibe mais facilmente.
A existência dessa "lei da força", que caracteriza a exci-tabilidade otimal do
córtex, é necessária para a realização de atividade seletiva organizada, para a
criação de sistemas domi-
95
nantes de exeitação, para a conservação de sistemas de informação
organizados e programas estáveis de comportamento. É bem conhecido que
com a redução do tônus do córtex este pode passar ao estado inibido ou
"fásico": os instigadores fracos começam a provocar reações idênticas às que
provocam os instigadores fortes ("fase niveladora") ou até reações mais fortes
do que as dos instigadores fortes ("fase paradoxal"). Essa peculiaridade do
trabalho surge, por exemplo, no estado de sono ou sonolência.
É natural que em tais condições a atividade consciente organizada se torna
impossível e o fluxo seletivo organizado de idéias é substituído pelo
aparecimento de associações "casuais" (ou secundárias).
Uma importante descoberta da fisiologia nos últimos vinte anos consiste em
que inúmeras observações e experimentos de vários pesquisadores célebres
(Magoun K. W., Moruzzi G. Jas-per H. H.) mostraram que nesse processo
desempenham papel substancial as formações das áreas superiores do tronco
cerebral, particularmente as formações do hipotálamo, do tá-lamo ótico e do
sistema de fibras reticulares ("formação re-ticular"), que une essas formações
por uma ligação bilateral com o córtex cerebral. Essas formações são as
componentes principais do "primeiro bloco" do cérebro-bloco humano, que
assegura o tônus geral ou estado de vigília do córtex.
A esses órgãos devemos incorporar os órgãos do córtex primitivo ou límbico,
que está situado nas áreas internas (médias) dos grandes hemisférios e é
estreitamente ligado aos órgãos recém-referidos do tronco superior. Eles
compreendem em sua composição formações anliquíssimas do grande cérebro
como o hipocampo, o núcleo do tálamo ótico, os antimuros e os corpos
mamilares; o movimento da excitação nesse sistema, que recebeu a
denominação de "ciclo do hipocampo" é uma das condições mais importantes
de manutenção do tônus corti-cal, de garantia do estado emocional normal e
cria condições para a sólida manutenção dos indícios surgidos.
Todo o complexo aparelho que integra o bloco desempenha importante papel
no funcionamento normal do córtex cerebral e merece abordagem minuciosa.
A manutenção do tônus permanente do córtex tem basicamente duas fontes
(às quais só mais tarde acrescenta-se uma terceira, mais complexa) .
96
Por um lado, para manter o estado de vigília do córtex é necessário um afluxo
permanente de informação do mundo exterior; privado dessa afluência de
excitações do mundo exterior, o animal adormece. Sabe-se, ainda, o efeito
provocado pela "fome de informação", que surge no homem após um longo
período de isolamento numa cela escura à prova de som. As observações
efetuadas nos últimos anos mostram que? nesses casos, começam facilmente a
surgir alucinações no homem, qué compensam em parte essa insuficiência de
afluência permanente de instigações exteriores. Por isto, para manter o tônus
ideal do córtex, tem importância decisiva o estado de conservação do tronco
superior e do tálamo ótico que são a primeira instância do recebimento das
instigações afluentes de fora. O corte das vias que levam do tronco superior ao
córtex na composição da "formação reticular ativa ascendente" leva
inevitavelmente ao adormecimento; esse mesmo efeito pode ser provocado
pela irritação das paredes do terceiro ven-trículo (que tem como componentes
os órgãos do tálamo ótico): a irritação das paredes do terceiro ventrículo
durante operações cerebrais realizadas pelo famoso cirurgião soviético N. N.
Burdenko, levou freqüentemente o paciente a adormecer.
Deste modo, a primeira fonte do estado de vigília do córtex é a afluência
constante de irritações da periferia, no qual os órgãos do tronco, superior e a
formação reticular ascendente desempenham papel principal.
A segunda fonte igualmente importante do tônus permanente do córtex é
constituída pelos impulsos que a este chegam dos processos internos de
metabolismo do organismo, que formam a base das inclinações biológicas do
organismo.
É sabido que o estado do organismo (o nível de açúcar no sangue, por
exemplo, que é um índice do estado de fome ou saciação, o nível de oxigênio
no sangue, que, caindo para um nível inferior ao necessário, é um índice da
"fome de oxigênio") é regulado pelos órgãos do tronco superior e do hipo-
tálamo. Sabe-se, ainda, que o tronco superior e o encéfalo primitivo são
compostos também por aparelhos especiais, que regulam processos como os
reflexos sexuais, os reflexos da agressão, etc.
Irritando as respectivas áreas do tronco superior e do encéfalo primitivo, os
pesquisadores (N. Miller, J. Olds, Mc Lean, Delgado e outros) provocaram no
animal formas expressas de comportamento sexual instintivo, atos de
agressão,
97
fome constante e sede, etc. A existência, nas referidas zonas do encéfalo, de
formações nervosas que regulam as inclinações citadas, foi utilizada por alguns
pesquisadores (Olds e Delgado) para provocar nos animais reações
duradouras de "auto-estimulação". Ao fechar a corrente que se dirigia aos
eletrodos introduzidos nessas áreas do encéfalo, o animal provocava sozinho e
demoradamente a excitação desses aparelhos, considerados pelos referidos
autores como "centros" sui generís, reguladores do estado emocional do
animal.
Os impulsos que partem dessas formações do hipotálamo e do tálamo ótico,
que são transmitidos ao córtex através da formação reticular ascendente,
constituem a segunda fonte de manutenção do tônus cortical e seu estado de
vigília. A afecção desses aparelhos do hipotálamo e dos núcleos do tálamo
ótico no homem pode mudar substancialmente o tônus do córtex. Exemplos de
mudança do tônus podemos ver nos casos de distúrbio das funções da
hipófise, por um lado, e de tumores das paredes do terceiro ventrículo, por
outro.
Aos aparelhos do tronco superior da formação reticular, que asseguram a
manutenção do tônus do córtex, devemos incorporar os aparelhos do córtex
primitivo ("límbico"), situados nas áreas internas (mediais) dos grandes
hemisférios e participantes do trabalho do bloco "energético" do encéfalo.
O córtex primitivo "límbico" foi, durante muito tempo, considerado parte
essencial do "corpo olfativo". Essa hipótese se baseava no fato de que esse
córtex é especialmente desenvolvido nos animais nos quais o olfato
desempenha papel dominante no comportamento. Mas a existência dessa área
nos animais sem olfato (delfins), bem como várias observações fisiológicas
levaram à mudança desse ponto de vista; levaram a incluir na região o
hipocampo e os órgãos componentes, de funções bem mais complexas, e a
considerar o córtex primitivo e a região límbica como "encéfalo-vegetativos",
tendo participação essencial na regulação da ocorrência dos processos
vegetativos e afetivos cujo papel é importante para a conservação dos
vestígios da memória.
Essas hipóteses foram formuladas pelos grandes pesquisadores americanos K.
Klüver e P. Bucy que, depois da dani-ficação da região límbica (particularmente
das áreas mediais do lobo temporal) observaram nos animais acentuada
excitação das reações emocionais e perturbações da memória. Dados
aproximados foram obtidos também nas observações pos-
98
teriores de Mc Lean, Olds e outros, que tiveram oportunidade de presenciar
mudanças substanciais das inclinações e dos processos afetivos, que ocorrem
nos animais como resultado da danificação do hipocampo. Por último,
importantes observações realizadas em pessoas com afecção bilateral do
hipocampo pelos pesquisadores americanos W. Penfield, B. Milner e W.
Scoville permitiram mostrar que, nesses casos, muda substancialmente o tônus
do córtex e afeta-se profundamente a memória.
A explicação para esses fenômenos foi encontrada quando os fisiologistas
(Viesel, Jasper e outros) descobriram que no hipocampo existe um grande
número de neurônios que não reagem a instigadores específicos (visuais,
auditivos ou táteis) mas reagem sutilmente a cada mudança que surge no meio
ambiente. A existência desses neurônios de cujas funções faz parte a
comparação dos instigadores com os vestígios antecedentes, fazendo parte
também as reações à 'Mescoordena-ção" destes, parece explicar o papel
desempenhado pelas formações do córtex primitivo nos processos de reflexo
orientado (atenção não-dirigida) e memorização.
O papel dos aparelhos do primeiro* bloco na manutenção do tônus do córtex e
do estado de vigília é assegurado pelas suas estreitíssimas ligações com o
córtex„ que são realizadas através das fibras da formação reticular ativadora.
Cabe observar que essa formação tem tecidos tanto ascendentes como
descendentes. Através dos primeiros ("formação reticular ativadora
ascendente") efetua-se a excitação do córtex pelos impulsos decorrentes das
formações das áreas superiores do tronco do encéfalo. Por meio dos segundos
("formação reticular ativadora descendente") realizam-se 1 aquelas influências
que as áreas superiores do cérebro, particularmente o seu córtex, exercem
sobre os segmentos do tronco encefálico. Por isto o aparelho da "formação
reticular descendente" desempenha papel substancial na transmissão do
colorido afetivo e na garantia do tônus para os programas de comportamento
que surgem no córtex em decorrência da informação recebida e das formas
exteriores de programas e necessidades que se formam no homem com a
participação da fala. É esse aparelho que assegura a terceira fonte de
manutenção do estado de vigília, que apenas mencionamos e que está ligado
aos complexos programas e necessidades que surgem no homem como
resultado de sua atividade consciente.
99
Deste modo, o primeiro bloco do cérebro de cuja composição fazem parte os
aparelhos do tronco superior, da formação reticular e do córtex primitivo,
assegura o tônus geral (vigília) do córtex e a possibilidade de duradoura
conservação dos vestígios da excitação. O funcionamento desse bloco não
está relacionado especialmente com os outros órgãos dos sentidos e tem
caráter "modal-não-específico", assegurando o tônus geral do córtex.
Bloco do recebimento, elaboração e conservação da informação
Se o primeiro bloco que acabamos de descrever assegura o tônus do córtex
mas ele mesmo ainda não participa do recebimento e processamento da
informação nem da elaboração dos programas de comportamento, já o
segundo bloco está imediatamente ligado ao trabalho de análise e síntese dos
sinais trazidos do mundo exterior pelos órgãos dos sentidos, noutros termos,
está relacionado com o recebimento, o processamento e a conservação da
informação recebida pelo homem.
Esse bloco é composto de órgãos situados nas seções posteriores do córtex
cerebral (áreas parietal, temporal e occipi-tal) e, diferentemente dos aparelhos
do primeiro bloco, tem caráter modal-específico, sendo um sistema de
dispositivos centrais que registra a informação visual, auditiva e tátil,
processam-na ou "codificam-na" e conservam na memória os vestígios da
experiência adquirida.
Os aparelhos desse bloco podem ser considerados extremidades centrais
(corticais) dos sistemas perceptivos (analisa-dores), sendo que as
extremidades corticais do analisador visual estão situadas na região occipital,
as auditivas na região temporal e as táteis na região tátil-cinestésica.
Nessas seções corticais terminam os tecidos procedentes dos respectivos
aparelhos receptores, distinguindo-se e sepa-rando-se aqui indícios isolados da
informação visual, auditiva e tátil afluente. Nas seções mais complexas dessas
zonas eles se reúnem, sintetizam-se e combinam-se em estruturas mais
complexas. A esssa tarefa corresponde a delicada estrutura celular das zonas
corticais. Como todas as outras regiões do novo córtex, essas zonas têm uma
estrutura hexassegmentar. A mais desenvolvida nessas zonas é a seção IV do
córtex, aonde
100
chegam as fibras que começam nos aparelhos sensitivos periféricos. Aqui elas
se transferem para outros neurônios. Algumas fibras descem diretamente para
a seção V do córtex, onde estão instaladas as células piramidais (motoras). As
fibras se dirigem de algumas dessas células para a periferia e, deste modo,
fecha-se o arco dos reflexos sensórios mais simples. Outros tecidos, que
chegam dos órgãos sensitivos à seção IV do córtex, transferem-se ali para os
neurônios de ação curta, que servem de aparelhos de transferência das
excítações para células associativas mais complexas. Grande parte das células
associativas ou células de ação curta, que têm a forma de pequenas pirâmides
ou células asteróides, está situada nas seções II e III do córtex, que constituem
o aparelho principal de transmissão das excitações de uns neurônios a outros.
Nas zonas corticais aonde chegam diretamente as fibras vindas dos órgãos
sensitivos periféricos (mudando apenas nos núcleos sub-corticais), que são
denominadas zonas primárias ou de projeção, a posição de maior destaque
cabe à seção IV receptora das células. Nas zonas corticais contíguas às zonas
de projeção e denominadas zonas secundária? ou de projeto e associação, as
seções celulares II e III são poderosamente desenvolvidas. As seções I e VI
não examinadas têm importância especial: na I estão instaladas as ligações
horizontais "transcorticais", que contactam as áreas contíguas do* córtex,
instalando-se na VI as projeções das células vegetativas, que contactam o
córtex com as áreas profundas do encéfalo.
Toda a substância branca situada sob o córtex é constituída de fibras longas,
que contactam o córtex com as formações subjacentes (tecidos de projeção)
ou ligam áreas isoladas do córtex a outras regiões corticais (tecidos
transcorticais) . Os dois hemisférios do córtex são ligados entre si por um feixe
especialmente potente de fibras transcorticais, denominado "corpo caloso".
Quando se corta o corpo caloso, parte considerável dos grandes .hemisférios
fica desconexa e os dois hemisférios começam a funcionar isoladamente.
O princípio de construção hierárquica de cada zona cor-tical, integrante da
composição do bloco por nós examinado, é um dos princípios mais importantes
de estruturação do córtex ■cerebral. Como mostraram as pesquisas, a
informação que chega do receptor visual, auditivo ou tátil às zonas primárias
(ou de projeção do córtex) é aqui fracionada em grande número de indícios que
a compõem. Isto se deve a que nessas
101
zonas de projeção do córtex estão instalados neurônios altamente
especializados, que, como mostraram pesquisas de alguns fisiologistas,
respondem somente a alguns indícios particulares das instigações. Assim, na
zona de projeção do córtex occipital (visual) há neurônios que só reagem ao
movimento do ponto que ilumina do centro à periferia ou da periferia ao centro,
só às linhas curvas harmoniosas, às linhas quebradas agudas, etc. Essas
mesmas células, com elevadíssima especialização, existem no córtex temporal
(auditivo) e tátil (parietal). Isto permite dividir a excitação em mínimos
elementos isolados e os transforma num mosaico funcional das instigações,
acessível à organização posterior.
Sobre cada zona primária ou de projeção do córtex estão edifiçadas zonas
secundárias ou de projeto e associação. Os tecidos que aqui chegam não são
diretamente originários, via de regra, do receptor periférico; eles ou mudam nos
respectivos núcleos subcorticais e já veiculam impulsos generalizados ou
chegam das zonas primárias às zonas secundárias do córtex.
À diferença das zonas primárias do córtex, essas zonas se constituem
basicamente das seções celulares II e III (de associação) poderosamente
desenvolvidas. A maioria esmagadora dos neurônios componentes dessas
zonas não se distingue por uma especialização tão sutil como os neurônios das
zonas primárias (de associação). Eles não reagem a indícios isolados divididos,
porém, mais amiúde, a todo um complexo de instigadores específico-modais
(visuais, auditivos, táteis), sendo que alguns deles têm inclusive caráter
multimodal, reagindo a instigações de diversas modalidades. A importância
dessas zonas secundárias parece consistir em reunir as irritações que lhes
chegam dos núcleos subcorticais subjacentes ou das zonas primárias do córtex
e codificá-las em determinadas estruturas dinâmicas móveis.
Esse fato é demonstrado por uma série de experimentos fisiológicos e
psicofisiológicos.
Como mostraram as pesquisas de Mc Culloch, a irritação das zonas primárias
com estricnina, depositada num pedaço de papel, surte efeito somente nas
áreas corticais imediatamente próximas; ao contrário, a irritação das zonas
secundárias com estricnina provoca excitação, que se espalha a fundo nas
zonas contíguas. Isto mostra que as zonas secundárias das áreas corticais de
cada analisador difundem realmente a exci-
102
tação a áreas consideráveis e deste modo incorpora ao processo de excitaçâo
sistemas complexos inteiros de neurônios, garantindo o funcionamento
conjunto de grandes zonas do córtex.
A importância psicológica das zonas primárias e secundárias do córtex da
sensibilidade tornou-se clara graças aos experimentos em pacientes
submetidos a cirurgia cerebral. É sabido que o córtex do cérebro, esse órgão
superior da sensibilidade, é por si mesmo indolor, razão por que as cirurgias
cerebrais podem ser feitas sem anestesia; irritando partes isoladas do córtex,
podem-se observar as reações do doente. For isto que permitiu aos
pesquisadores (O. Foerster, O. Poetzl e W. Penfield) chegarem a uma
conclusão sobre as funções originais das áreas primárias e secundárias do
córtex. Como mostraram as pesquisas, a irritação do córtex visual ou auditivo
faz surgirem no sujeito sensações correspondentes (alucinações).
No entanto varia inteiramente o caráter dessas alucinações com a irritação das
zonas primárias e secundárias do córtex.
Assim, as irritações das zonas primárias do córtex visual (campo 17) provocam
no sujeito sensações visuais sem forma definida (o homem vê "luz colorida",
"chama", "bolas luminosas", etc). Diferentemente disto, a irritação das zonas
secundárias do córtex visual faz o homem começar a ver objetos de forma
definida (borboletas, feras, rostos conhecidos, etc.). Resultados análogos são
obtidos com a irritação do córtex auditivo: com a irritação das zonas primárias
do córtex auditivo o homem começa a ouvir tons ou sons isolados, passando a
ouvir melodias inteiras com a irritação das zonas secundárias desse córtex, etc.
Tudo isso indica que as zonas primárias do córtex da sensibilidade têm as
funções de distinguir esses e aqueles indícios específico-modais (visuais,
auditivos, táteis), noutros termos, exercem a função de fracionar (analisar) em
partes componentes a informação recebida, ao passo que as zonas visuais
dessas mesmas áreas corticais implicam a função de unificar (sintetizar) ou
proceder a uma elaboração complexa da informação que chega ao sujeito.
Cabe observar mais uma peculiaridade importante do funcionamento das
zortas primárias (de projeção) e secundárias (de projeção e associação) do
córtex.
103
As' zonas primárias do córtex, aonde os tecidos de projeção chegam dos
respectivos receptores periféricos, apresentam uma rigorosa estrutura
somatotópica. Isto significa que as fibras nervosas, que chegam das regiões
receptoras ao córtex dessas zonas, não estão distribuídas por acaso mas
dispostas em ordem rigorosa, estando cada ponto da superfície receptora
representado num ponto absolutamente determinado do córtex de projeção.
Assim, os tecidos que vão das superfícies cutâneas das zonas inferiores do
corpo, cruzando-se no tronco do encé-falo, chegam às zonas superiores da
circunvolução anterior central do hemisfério oposto, ao passo que os tecidos
que conduzem os impulsos da sensibilidade cutânea das mãos se situam na
parte intermediária e os tecidos que levam os impulsos sensíveis da pele do
rosto e da cabeça se situam nas partes inferiores da circunvolução central
anterior do hemisfério oposto; é de importância especial o fato de que a área,
ocupada pela projeção dessas ou daquelas partes do corpo, é proporcional à
importância que essas regiões do corpo realmente têm. Deste modo, a área
ocupada pela projeção do quadril ou da perna no córtex cerebral é muito
insignificante, ao passo que as projeções da mão (especialmente do polegar e
do indicador), da boca e dos lábios, são muito grandes. Isto garante maior
direção para os órgãos que devem sujeitar-se com precisão especial a uma
regulação central. É característico que a destruição de determinados trechos
das áreas cor-ticais da região parietal (póstero-central) leva à queda da
sensibilidade nas áreas rigorosamente limitadas do lado oposto do corpo,
sendo que a queda da sensibilidade na pele da perna, do braço ou do rosto dá
fundamentos para avaliar o lugar no córtex de projeção e sensibilidade ou em
suas vias condutoras, destruídas por processo patológico. Ao contrário, a
irritação das zonas primárias (de projeção) do córtex leva ao aparecimento de
sensações visuais ou auditivas, que surgem na ausência das respectivas
influências exteriores. O típico para esses casos é a "aura" (fase inicial) dos
acessos epilépticos, que surgem como resultado da influência irritante de
cicatriz localizada na zona correspondente do córtex cerebral. Assim, uma
cicatriz localizada nas áreas superiores da circunvolução póstero-central
provoca sensação de "choque" ou "formiga-mento" na extremidade inferior do
lado oposto, a cicatriz localizada nas zonas intermediárias dessa região
provoca as mesmas sensações no braço oposto, e a situada nas partes
inferiores
104
do córtex dessa região provoca as mesmas sensações na face oposta do rosto.
O princípio análogo da projeção somatotópica ocorre em outras áreas do
córtex. Assim, as fibras que vão de áreas isoladas da retina, que constituem
partes do campo visual, projetam-se em trechos absolutamente determinados
da zorja de projeção do córtex occipital (visual), resultando que a afec-ção de
determinadas áreas do córtex visual leva à eliminação de áreas perfeitamente
determinadas do campo visual; a irritação de áreas isoladas da região occipital
leva ao surgimento de sensações visuais ("fosfenos") em determinadas áreas
do campo visual.
O mesmo ocorre nas áreas de projeção do córtex temporal (auditivo): os
tecidos que implicam excitação, que corresponde a tônus elevados, projetam-
se nas áreas internas da zona auditiva primária do córtex, enquanto os
tecidos que implicam excitações, correspondentes aos tônus baixos,
projetam-se nas áreas laterais do córtex. Por isto a irritação desses setores do
córtex ou de suas vias condutoras provoca sensações auditivas
correspondentes, que podem ser o início (aura) de acessos epilépticos.
A consideração dos referidos fatos da estrutura somatotópica das zonas
primárias do córtex é de grande importância prática, pois os sintomas de sua
afecção ou irritação servem de importante indício diagnóstico para a atividade
tópica de suas afecções.
Esse princípio da rigorosa projeção somatotópica de determinadas superfícies
sensíveis (receptoras) em certas áreas dos campos corticais de projeção
(princípio esse que permite usar os sintomas de queda da sensibilidade em
determinadas áreas do corpo para o diagnóstico tópico das afecções)
caracteriza a organização funcional dos campos corticais primários. No entanto
ele não tem qualquer validade para a avaliação do funcionamento dos campos
corticais secundários.
Como já foi dito, os campos corticais secundários do bloco por nós examinado
asseguram a síntese das excitações que chegam ao campo primário,
"codificando-as"; eles substituem o princípio de projeção somatotópica por
outro princípio: o da organização fundamental das respectivas excitações. Por
isto a destruição dessas zonas não leva a ocorrências de quedas de
sensibilidade, levadas a coincidirem com determinadas regiões do corpo ou a
certa parte do campo da per-
105
cepçao, mas suscita uma desintegração geral no funcionamento desse ou
daquele analisador, a qual se manifesta na complexa decodificação da
informação que chega ao sujeito, noutros termos, leva à perturbação das
formas complexas de percepção visual, auditiva ou tátil, conhecida na clínica
pela denominação de "agnosia". Ainda voltaremos a abordar a análise desses
fenômenos quando analisarmos os processos de percepção.
As zonas primárias e secundárias do córtex não esgotam os aparelhos corticais
do bloco em análise.
Sobre elas estão edificados os aparelhos das zonas terciárias do córtex (ou
"zonas" de cobertura das extremidades corticais de determinados
analisadores), sumamente importantes para garantir as formas mais complexas
de funcionamento desse bloco.
As zonas terciárias do córtex cerebral surgem nas etapas mais tardias da
escada filogenética e são, até certo ponto, formações especificamente
humanas. Até nos carnívoros as zonas corticais de certos analisadores estão
em contato direto umas com as outras, sendo apenas esboçadas no macaco,
ao passo que no homem elas ocupam parte considerável das áreas posteriores
do córtex.
As zonas terciárias do cóitex cerebral amadurecem só muito tardiamente, na
ontogênese. Como mostrou o anatomista alemão P. Flechsig, o processo de
revestimento dos tecidos que surgem nessas zonas — a mielina, que os torna
aptos para o funcionamento — termina bem mais tarde do que em outras
zonas. Tudo isso mostra que as zonas terciárias ou "zonas de cobertura" são
as áreas do córtex cerebral mais jovens, que começam a funcionar mais
tardiamente.
Pela estrutura histológica, essas zonas pertencem àquelas em que
predominam inteiramente as camadas II e III de células de associação. Isto se
refere às suas funções básicas, que consistem na unificação da informação
que chega de diferentes analisadores ao córtex cerebral. As zonas terciárias
das áreas posteriores do córtex cerebral estão situadas nos -limites da região
parietal, occipital e temporal e compreendem os campos 39, 40, 37 das áreas
parietais inferiores do córtex. Quando elas se irritam, não surgem quaisquer
reações sensitivas ou observações, sua afecção não provoca a queda da
sensibilidade visual, auditiva ou tátil. A importância dessas áreas do córtex
106
para a unificação da informação, que chega de analisadores isolados, pode ser
vista analisando-se os comportamentos dos doentes com afecção dessas
áreas do córtex cerebral. Via de regra, surgem nesses doentes dificuldades de
fazer uma codificação mais complexa da informação recebida, predominando a
dificuldade de unificar em esquema espaciais simultâneos as irritações
sucessivas que chegam ao encéfalo. Distiguindo os objetos e sons visualmente
perceptíveis, os doentes começam a sentir dificuldades de orientar-se no
espaço, confundem a direção, não conseguem distinguir os lados direito e
esquerdo, entender a posição dos ponteiros do relógio e correlação dos países
no mapa geográfico. Esses pacientes ficam sem condições de fazer operações
matemáticas que exigem tomar como orientação a ordem numérica, subtrações
e divisões rápidas e começam a experimentar sérias dificuldades na
interpretação das complexas estruturas gramaticais e de operações lógicas que
incluem relações complexas.
Tudo isso mostra que as zonas terciárias do córtex são um importante
aparelho, indispensável para as formas mais complexas de elaboração e
codificação da informação recebida.
O bloco da programação, regulução e controle da atividade
O terceiro bloco cerebral do homem faz a programação, a regulação e o
controle do desempenho ativo do homem, fi integrado por órgãos situados nas
áreas anteriores dos grandes hemisférios, cabendo nele posição dominante as
seções frontais do encéfalo.
A atividade consciente do homem apenas começa com a obtenção da
informação e sua elaboração, terminando com a formação das intenções, do
respectivo programa de ação e com a realização desse programa em atos
exteriores (motores) ou interiores (mentais). Para isto é necessário um
aparelho especial, capaz de criar e manter as necessárias intenções, elaborar
programas de ação a elas correspondentes, realizá-los nos devidos atos e, o
que é de suma importância, acompanhar as ações em curso, comparando o
efeito da ação exercida com as intenções iniciais.
Todas essas funções são exercidas pelas áreas anteriores do encéfalo e seus
lobos frontais.
107
Pelo caráter de sua estrutura, as áreas anteriores do córtex distinguem-se
substancialmente das posteriores; se o córtex das áreas posteriores do
encéfalo apresentava • como característica raias transversais, o córtex das *
áreas anteriores se caracterizava por raias verticais, o que sugere o caráter
motor das estruturas nele dominantes. Se no córtex das áreas posteriores do
encéf alo (principalmente enx suas zonas primárias) predomina a camada IV
(aferente) de células, no córtex das áreas anteriores (especialmente em sua
zona primária) predomina a camada eferente de células com as grandes
pirâmides, cujas ações levam à periferia os impulsos formados, fazendo-os
chegar aos músculos dos braços e assim provocando os movimentos
correspondentes cujos programas foram preparados por todo o córtex cerebral,
particularmente por sua região frontal.
Como as áreas posteriores, as áreas anteriores têm as mais estreitas ligações
com as formações subjacentes da formação reticular, sendo importante que
aqui estão poderosamente representados tanto as fibras ascendentes como as
descendentes da formação reticular, que acompanham os impulsos formados
nos lobos frontais do córtex e deste modo regulam o estado geral da atividade
do organismo, mudando-a de conformidade com as intenções formadas no
córtex.
Como os sistemas das áreas posteriores do córtex, as áreas anteriores têm
estrutura hierárquica com a única diferença de que as zonas primárias do
córtex motor não são as primeiras (aonde chegam os instigadores que atingem
o encéf alo) mas as últimas pela ordem de funcionamento: a elas chegam os
impulsos preparados nas áreas mais altas do córtex e elas dirigem esses
impulsos para a periferia, provocando movimentos correspondentes.
Por uma questão de simplicidade da nossa exposição, manteremos no exame
das zonas primárias do cérebro a mesma ordem que adotamos na abordagem
das estruturas hierarquicamente organizadas das áreas posteriores do córtex.
É zona primária ou de projeção das áreas anteriores do encéfalo a
circunvolução central anterior ou a região motora do córtex (4?- área de
Brodmann), sobre a qual está construído o campo pré-motor secundário (6^
área de Brodmann); mais acima estão situadas as formações do córtex
propriamente frontal ou região pré-frontal (áreas 9, 10, 11, 46 de Brodmann).
108
Apesar de todas essas zonas corticais apresentarem como característica a
"estrutura de raias verticais" já referida, as estruturas celulares de cada uma
das referidas zonas difere muito uma. das outras.
O córtex primário ou de projeção está situado em forma de uma faixa longa nos
limites da circunvolução anterior central, predominando nele a camada eferente
constituída de gigantescas células piramidais, descobertas pelo anatomista
russo V. A. Bets. Essas gigantescas pirâmides dão início a longos axônios,
que, passando no tronco cerebral para o lado oposto, descem, chegam aos
cornos anteriores da medula espinhal e são portadores de impulsos motores
que, em suma, levam a conhecidos grupos musculares.
Como outras zonas de projeção, os campos motores primários do córtex têm
precisa estrutura somatotópica: as gigantescas células piramidais das suas
áreas superiores levam os impulsos motores aos músculos das extremidades
inferiores do lado oposto do corpo, as gigantescas pirâmides das zonas médias
levam esses impulsos aos músculos das extremidades superiores, as células
piramidais das zonas inferiores desse campo levam os impulsos aos músculos
do pescoço, da cabeça e do rosto. Como nas zonas sensórias de projeção, o
território do campo motor primário representa os respectivos grupos
musculares não pelo traço geométrico mas pelo funcional; quanto mais dirigível
deve ser o respectivo grupo muscular, tanto maior território ocupa sua projeção
na zona motora primária do córtex.
Essa organização somatotópica da circunvolução central anterior e suas vias
condutoras é de suma importância para o diagnóstico tônico das afecções
cerebrais: a destruição das áreas superiores dessa região cerebral ou de suas
vias condutoras leva à paralisia na perna oposta, a afecção das áreas médias
leva à paralisia do braço oposto, a afecção das áreas inferiores leva à paralisia
ou paresia dos nervos do lado oposto do rosto. De acordo com isto, as
cicatrizes situadas nessas áreas do córtex, e que o irritam, provocam contração
ou convulsões das partes correspondentes do corpo, razão por que o caráter
da aura (período inicial dos acessos epilépticos que surgem em casos
semelhantes) é de grande importância diagnostica, indicando o lugar da
cicatriz.
Sobre a zona motora primária do córtex cerebral edifica-se a região pré-
motora, que tem em sua composição a 6? área
109
de Brodmann. Essa região prepara o lançamento dos impulsos motores e cria a
"melodia cinética" que põe em funcionamento as "teclas" da zona motora do
córtex.
À diferença da zona motora de projeção, nessa região pré-motora predominam
pequena^ células piramidais das camadas II e III do córtex, células essas que
desempenham papel de projeção e associação; aqui o princípio da projeção
somatotópica está incomparavelmente menos representado do que na zona
motora de projeção. Por isto a afecção da zona pré-motora não leva ao
surgimento de paralisias em determinados grupos musculares. A importância
da zona pré-motora do córtex (ou "campo motor extrapiramidal") consiste em
que ela cria condições para o funcionamento sistemático do aparelho motor e,
em particular, assegura a transferência harmoniosa dos impulsos de uns elos
de movimento a outros, garantindo a execução de complexas melodias
motoras. A zona pré-motora do córtex adquire importância especialmente
grande para a criação de habilidades motoras, nas quais um elo motor deve ser
harmoniosamente substituído por outro. £ por isto que, com a irritação da zona
pré-motora do córtex, não surgem contrações de grupos musculares isolados
mas complexos movimentos conjuntos (viradas da cabeça e dos olhos,
movimentos de agarramento com os braços); com a afecção dessa zona
surgem perdas da transferência harmoniosa de um elo a outro, ou seja, em
outros termos, a perturbação das "melodias ciné-ticas" ou habilidades motoras.
Nas zonas pré-motoras do córtex cabe papel especial à 8^ área de Brodmann,
que é um centro anterior de movimentação dos olhos, que garante ativos
movimentos harmoniosos dos olhos. Com sua afecção, mantém-se os
movimentos refletores dos olhos, que acompanham os objetos em movimento,
perturbando-se os movimentos rápidos e harmoniosos dos olhos.
Sobre a zona pré-motora edificam-se as áreas terciárias do córtex frontal ou
região pré-frontal, integradas pelas áreas 9, 10, 11 e 46 de Brodmann, de
estrutura inteiramente diferente.
À diferença da zona motora e pré-motora, essas áreas do córtex não têm entre
seus componentes grandes células piramidais, estando toda a massa cortical
ocupada por células de pequenos axônios e células asteróides cujos corpos
são muito pequenos e constituem embriões ou grânulos (por isto a região pré-
frontal é às vezes chamada de "córtex frontal granular"). Ela apenas se esboça
nos vertebrados, ocupa lugar relativa-
110
mente pequeno nos macacos, desenvolvendo-se poderosamente apenas no
homem, no qual representa quase um terço de toda a massa dos hemisférios.
Por isto o córtex pré-frontal pode ser considerado formação especificamente
humana.
Os órgãos do córtex pré-frontal amadurecem bem no final da ontogênese,
ocupando pelo tempo de maturação um dos últimos lugares no mapa de
mieíinização de Flechsig. Por último, o que é de suma importância, as regiões
pré-frontais do córtex estão ligadas a todas as áreas do cérebro e às áreas
subjacentes da formação reticular. Essas ligações são especialmente
significativas nas regiões mediais e basais dos lobos frontais; como já
dissemos anteriormente, concomitantemente com as fibras ascendentes da
formação reticular, nela se desenvolvem, com força especial as fibras da
formação reticular descendente. Isto permite aos lobos frontais do encéfalo
manter permanentemente o tônus do córtex por meio de tecidos básicos, que
os contactam com as formações subjacentes do tronco.
A importância dos lobos frontais do córtex cerebral é muito grande para a
organização do comportamento, embora durante muito tempo ela não se tenha
prestado a uma definição científica precisa.
Isto se devia à impossibilidade que havia de expressar as funções dos lobos
frontais do encéfalo nos conceitos clássicos do raio refletor; a afecção dos
lobos frontais do encéfalo não levava a nenhuma perturbação dos movimentos
elementares, não provocava paralisia, distúrbios da sensibilidade nem
perturbação da fala. Isto dava a alguns autores fundamentos para considerar
as regiões frontais do córtex cerebral como "zona muda" sem quaisquer
funções especiais. A questão mudou substancialmente quando os
pesquisadores passaram a enfocar o cérebro como um sistema auto-regulador
sumamente complexo, que cria complexos programas de comportamento,
regula a ocorrência de atos motores e exerce controle sobre estes. À luz
dessas concepções conseguiu-se definir com precisão bem maior a função do
cérebro.
Dotados de poderosas ligações com a formação reticular ascendente e a
descendente, os lobos frontais do encéfalo se constituíam acima de tudo em
um aparelho de poderoso papel ativador. Como mostraram os estudos, em
cada tensão intelectual (expectativa do sinal, cálculo complexo) surgem nos
lobos frontais do cérebro ondas lentas especiais, que se esten-
111
dem a outras áreas do córtex e foram denominadas "ondas da expectativa"
pelo fisiologista inglês Walter Gray. Essas ondas desaparecem quando começa
a cessar a expectativa do sinal. O trabalho intelectual tenso, que exige elevado
tônus do córtex, provoca nos lobos frontais um elevado número de pontos de
funcionamento conjunto, que se excitam sincronicamente. Como mostrou o
cientista soviético M. N. Livanov, esses pontos de funcionamento sincrônico se
conservam durante toda a duração do trabalho intelectual complexo e
desaparecem quando este cessa.
O papel dos lobos frontais na manutenção do estado ativo, provocado pela
instrução do discurso ou uma tarefa intelectual, foi mostrado no exame de
pacientes com afecções locais (tumores ou traumas) dos lobos frontais do
encéfalo. Os experimentos da psicóloga soviética E. D. Chomskaya mostraram
que se a instrução do discurso, que provoca tensão, leva nos sujeitos normais
ao surgimento de longos estímulos de ativação (que se expressam em reações
vasculares ou eletrofisioló-gicas), então esse estado persistente de elevada
ativação não surge ou desaparece muito rapidamente nos doentes com afec-
ção dos lobos frontais do encéfalo (especialmente das suas. regiões mediais e
basais, dotadas de ligações sobretudo potentes com a formação reticular
ativante).
Ao manter o tônus do córtex, indispensável para a realização da tarefa
colocada, as regiões frontais do encéfalo desempenham papel decisivo na
criação de intenções e formulação de programas de ação que concretizam
essas intenções.
Neuropsicólogos (Luria e outros) mostraram com suas observações que a
afecção bilateral dos lobos frontais do encéfalo impede que os pacientes
fiquem em condições de conservar solidamente as intenções, manter os
programas complexos de ação, inibir os impulsos não-correspondentes aos
programas e regular a atividade sujeita a esses programas. Eles não podem
concentrar a atenção na tarefa que se lhes colocou' e fogem facilmente ao seu
cumprimento, substituindo as ações necessárias ora por simples respostas a
instigadores semelhantes, ora pela repetição apática dos estereótipos surgidos,
que continuam a reproduzir-se independentemente da tarefa colocada,
dificultando-lhe o cumprimento adequado.
É natural que a atividade intelectual organizada, orientada pela tarefa colocada,
é substancialmente perturbada com a afecção dos lobos frontais do cérebro;
aqui os planos com-
112
plexos de solução das tarefas são substituídos por respostas fragmentárias
surgidas de modo impulsivo ou pela reprodução apática dos estereótipos uma
vez assimilados (A. Luria e L. S. Tsvetkova).
É sobretudo importante o fato de que os lobos do encé-falo desempenham
papel essencial na realização do controle permanente da atividade em
processo. Os pacientes com afec-ção dos lobos frontais do encéfalo não
podem comparar os resultados das suas ações com a intenção inicial, perdem
a atitude crítica em face das suas próprias ações e ficam sem condições de
reconhecer seus próprios erros e corrigi-los. Isto dá fundamento para
considerar que os lobos frontais são importante componente do mecanismo do
"aceptor de ação" (P. A. Anokhin) que desempenha papel de suma importância
na garantia da atividade auto-reguladora do homem.
O princípio da lateralização no funcionamento dos grandes
hemisférios
A descrição dos três blocos principais cujo funcionamento conjunto é
assegurado pela atividade do cérebro humano não esgota os princípios
fundamentais do seu funcionamento. Contudo essa descrição deve ser
completada com mais um princípio, que serve de base ao funcionamento do
cérebro humano.
Se os dois hemisférios dos animais são equivalentes, no homem um deles (via
de regra, o hemisfério esquerdo) é dominante e o outro, dominado. Ao que
parece, o caráter dominante do hemisfério esquerdo começou com o
surgimento do trabalho e o destaque do braço direito como executor do papel
principal na atividade de trabalho. Por isto o hemisfério esquerdo desempenha
papel dominante nos destros, enquanto nos canhotos o papel dominante
oblitera-se ou passa para o hemisfério direito.
O indício mais importante do papel dominante do hemisfério esquerdo no
destro é o fato de esse trabalho estar estreitamente ligado à fala. Apesar de,
em termos morfoló-gicos, a diferença entre os dois hemisférios ser muito
insignificante, só o hemisfério esquerdo é aparelho cerebral da fala; as partes
inferiores das áreas posteriores do hemisfério esquerdo (regiões temporal e
panetal) estão relacionadas com
113
o discurso receptor (diferença dos sons da fala, formação de articulações da
fala e codificação do discurso falado, que chega ao sujeito em complexos
sistemas lógico-gramaticais), sendo as áreas inferiores da zona pré-motora um
aparelho que assegura a transformação dos movimentos da fala em complexas
"melodias cinéticas" do discurso e em articulação fluente da fala. É por isso
mesmo que a afecção das áreas posteriores da região temporal superior
esquerda leva à perturbação da capacidade de distinguir os complexos sons da
fala, provocando a desintegração da compreensão da fala (a chamada "afasia
seri-sória"); a afecção das áreas inferiores da região pós-central leva à
perturbação das articulações precisas ("afasia motora aferente"); a afecção das
áreas posteriores da circunvolução frontal inferior (ou áreas inferiores da zona
pré-motora esquerda) leva à perturbação da fala expressiva fluente ("afasia
motora aferente"). É natural que as afecções de todas as referidas regiões do
córtex do hemisfério esquerdo levam fatalmente à perturbação de formas
complexas da fala como os processos de localização dos nomes necessários,
da fala independente organizada, da escrita e, em alguns casos, à perturbação
da leitura,- do cálculo, etc. É característico que a afecção das zonas
correspondentes do hemisfério direito (subdominan-te) não provoca tais
distúrbios.
O caráter dominante do hemisfério esquerdo (nos destros) não se manifesta
apenas na ocorrência normal dos processos da fala. Como mostraram
observações clínicas, a integridade do hemisfério esquerdo é importante
também para o desenvolvimento de todas as foi mas de atividade consciente
relacionada com o discurso falado.
Assim, a afecção das regiões do córtex cerebral, contíguas às zonas do
discurso e pertencentes às regiões terciárias do córtex, provoca a perturbação
das formas complexas de percepção (agnosia), a desintegração das formas
mais complexas de operações lógico-gramaticais que servem de base aos
processos intelectuais ("afasia semântica"). De modo diferente, as afecções de
áreas análogas do hemisfério direito (sub-dominante) não provocam
semelhantes distúrbios dos processos cognitivos e se refletem em maior
medida no distúrbio da percepção direta e do campo emocional do homem.
Há fundamentos para supor que da íntima ligação dos processos da fala com o
córtex do hemisfério esquerdo (dominante) resulta que o seu funcionamento
transcorre de modo
114

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