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Volume 1
A presente obra compõe-se de quatro volumes, a saber:
I. Introdução Evolucionista à Psicologia
II. Sensações e Percepção
III. Atenção e Memória
IV. Linguagem e Pensamento
A. R. Luria
Curso de Psicologia Geral
Volume I 2º Edição
Introdução Evolucionista. à Psicologia
Tradução de PAULO BEZERRA
Sociedade Unificada Paulista de Ensino Renovado Objetivo – SUPERO DATA
civilização
brasileira \
Título do original em russo:
EVOLYUTSIÕNNOE VVEDÊNIE VPSIKHOLÓGUIYU
Capa: DOUNÊ
Diagramação: LÉA CAULLIRAUX
Revisão:
UMBERTO F. PINTO
e MARIO ELBER CUNHA
1991
Direitos desta edição reservados à
EDITORA CIVILIZAÇÃO BRASILEIRA S.A.
Av. Rio Branco, 99-20? andar - Centro
20040 - Rio de Janeiro - RJ
Tel.: (021) 263-2082 Telex: (21) 33798 Fax: (021) 263-61Í2
Impresso no Brasil Printed in Brazil
Sumário
I — A PSICOLOGIA COMO CIÊNCIA. O OBJETO EA
IMPORTÂNCIA PRÁTICA 1
A história da Psicologia como ciência 2
A Psicologia e outras ciências 7
Partes principais da Psicologia 11
Os métodos em Psicologia 17
A importância prática da Psicologia 23
II — A EVOLUÇÃO DO PSIQUISMO 29
A origem do psiquismo 29
Variabilidade do comportamento dos protozoários 32
Mecanismos do comportamento dos protozoários 34
Origem do sistema nervoso e suas formas mais simples 36
O sistema nervoso ganglionar e o surgimento dos programas de
comportamento mais simples 38 Surgimento das formas complexas de
programação hereditária do comportamento ("instintivo") 42
O sistema nervoso central e o comportamento individualmente variável dos
vertebrados 50 Mecanismos do comportamento individualmente
variável 56 O comportamento
"intelectual" dos animais 62
Fronteiras do comportamento individualmente variável dos animais 68
A ATIVIDADE CONSCIENTE DO HOMEM E SUAS RAÍZES HISTÓRIGO-SOCIAIS 71
Princípios gerais 71
O trabalho e a formação da atividade consciente 95
A linguagem e a consciência do homem 77
A importância da linguagem para a formação dos
processos psíquicos 81
O CÉREBRO E OS PROCESSOS PSÍQUICOS 85
O problema da relação dos processos psíquicos com o cérebro 85
Princípios da organização funcional do cérebro humano 93
Os três "blocos" principais do cérebro 94
O bloco do tônus do córtex ou bloco energético do cérebro 95
Bloco do recebimento, elaboração e conservação da informação 100
O bloco da programação, regulação e controle de atividade 107
O princípio da lateralização no funcionamento dos grandes hemisférios 113
I
A Psicologia Como Ciência.
O Objeto e a Importância
Prática
O HOMEM VIVE e atua em um meio social. Sente necessidades e procura
satisfazê-las, recebe informação do meio circundante e por ele se orienta,
forma imagens conscientes da realidade, cria planos e programas de ação,
compara os resultados de sua atividade com as intenções iniciais, experimenta
estados emocionais e corrige os erros cometidos.
Tudo isto representa a atividade do homem no plano psicológico, que constitui
o objeto de uma ciência: a Psicologia. Esta ciência se propõe a tarefa de
estabelecer as leis básicas da atividade psicológica, estudar as vias de sua
evolução, descobrir os mecanismos que lhe servem de base e descrever as
mudanças que ocorrem nessa atividade nos estados patológicos. Só uma
ciência capaz de estudar as leis da atividade psicológica com uma precisão
possível pode assegurar o conhecimento dessa atividade e sua direção em
bases científicas. É justamente por isso que a Psicologia científica se torna
uma das disciplinas mais importantes, cujo significado crescerá cada vez mais
com o
1
desenvolvimento da sociedade e o contínuo aperfeiçoamento dos seus
métodos.
A história da Psicologia como ciência
É muito breve a história da Psicologia como ciência. No entanto remontam a
um passado muito distante as primeiras tentativas de descrever a vida psíquica
do homem e explicar as causas dos seus atos. Na Antigüidade, por exemplo,
os médicos já entendiam que para identificar as doenças era necessário saber
descrever a consciência do homem e descobrir as causas dos seus atos.
Esse enfoque materialista do comportamento do homem foi, séculos a fio,
combatido pela filosofia idealista e a Igreja, que viam na consciência do homem
uma manifestação da sua vida espiritual, considerando que esta não obedecia
às mesmas leis a que se subordinava toda a natureza material e por isto sua
análise não podia ser feita a partir da explicação causai dos fenômenos.
Por esses motivos o mundo psicológico do homem e sua consciência foram
vistos durante séculos como fenômenos de tipo especial, isolados de todos os
outros processos naturais. Os filósofos assumiam diferentes posições em
relação à consciência, considerando-a manifestação da razão divina ou
resultado de sensações subjetivas, onde eles viam os "elementos" mais
simples que serviam de base à consciência. Mas todos os filósofos idealistas
estavam imbuídos da convicção de que a vida psíquica devia ser entendida
como manifestação de um mundo subjetivo especial, que podia ser revelado
somente na auto-observação, sendo inacessível à análise científica objetiva ou
à explicação científica.
Séculos a fio esse enfoque dos processos psíquicos deteve a evolução da
psicologia científicas e mesmo depois de os processos do mundo exterior se
haverem tornado objeto de estudo científico preciso os fenômenos da vida
psíquica do. homem continuaram sendo vistos como manifestação de um
mundo espiritual específico, acessível apenas à descrição subjetiva.
A divisão de todos os fenômenos em duas grandes categorias — a categoria
dos fenômenos físicos, acessíveis à explicação causai, e a dos fenômenos
psíquicos, inacessíveis à análise cien-
2
tífica objetiva — foi consolidada pelas teses básicas da filosofia dualística de
Descartes, para quem todos os processos físicos, incluindo-se o
comportamento animal, estão subordinados às leis da mecânica, ao passo que
os fenômenos psíquicos devem ser considerados como formas do espírito, cuja
fonte de conhecimento pode ser encontrada apenas na razão ou intuição.
O enfoque dualista se manteve até período recente na filosofia e Psicologia em
muitos países. Se considerarmos que os pensadores do século XIX
começaram a focalizar os processos elementares dos campos físico e psíquico
(incluindo sensações e movimentos) como processos naturais suscetíveis de
estudo por métodos científicos exatos, os fenômenos superiores do campo
psíquico (consciência, pensamento) continuavam a ser considerados
manifestação do campo espiritual, que podia ser abordado somente por meio
da descrição subjetiva dos fenômenos que nele ocorrem. Essa tese levou à
divisão real da Psicologia em dois campos no final do século XIX: a Psicologia
naturalista científica ou Psicologia fisiologista, que tentava estudar com
precisão e explicar pela causalidade os processos psicológicos elementares e
definir-lhes as leis objetivas, e a Psicologia descritiva ou subjetiva, que
estudava as formas superiores do campo consciente do homem, enfocando-as
como manifestações do espírito. O enfoque dualista aos fenômenos do campo
psicológico refletiu-se nos trabalhos dos clássicos da psicologia como os
psicólogos alemães Wilhelm Wundt (1832^1920), Hermann Ebbinghaus (1856-
1909), o psicólogo americano "William James (1842-1910) e o representante
da filosofia idealista Wilhelm Dilthey (1833-1911) e outros.
A influência do enfoque dualista dos fenômenos psicológicos levou a Psicologia
ao impasse e provocou tentativas naturais de superar a estagnação surgida
nessa ciência, de aplicar métodos das ciências naturais ao estudo dos
processos psicológicos e fazer destes a mesma análise que se fazia de todos
os outros fenômenos da natureza.
Essa tendência, que já surgira com os materialistas franceses e ganhara
formulação nítida com os democratas revolucionários russos em meados do
século XIX, teve sua patente mani festação na obra do célebre fisiologista
russo Ivan Mikháylo-vitch Sétchenov (1829-1905).
Em sua famosa obra, Os reflexos do cérebro, Sétchenov expôs a idéia
segundo a qual até os processos mais complexos do campo psíquico devem
receber tratamento materialista e ser
3
abordados como reflexos complexos; segundo essa idéia, o pensamento é um
reflexo igualmente complexo porém inibido, carente de fim motor externo. Para
ele, os fenômenos dg mundo psíquico devem ser estudados pelo naturalista
com os mesmos meios empregados no estudo de outros fenômenos da
natureza. Essa linha de pensamento foi seguida por outro notável fisiologista
russo, Ivan Petrov Pávlov (1849-1936), criador do estudo objetivo da atividade
nervosa (psíquica) superior com a aplicação dos reflexos condicionados.
Outros notáveis representantes da ciência russa, como M. D. Bekhteryev
(1857-1927), A. A. Ukhtomsky (1857-1942) e outros tentaram formalizar um
enfoque das bases objetivas e fisiológicas da atividade psíquica e fundamentar
a possibilidade de uma Psicologia objetiva e naturalista.
São essas as razões pelas quais o mundo psicológico do homem e sua
consciência foram tratados, durante séculos, como fenômenos de tipo especial,
isolados de todos os outros processos naturais.
A doutrina dos reflexos condicionados de Pávlov, que ele mesmo via como
base fisiológica da ciência psicológica, exerceu influência marcante na
evolução da Psicologia americana. Em fins do século XIX, o psicólogo
americano Edward Lee Thorn-dike começou a estudar o comportamento dos
animais, aplicando métodos que permitiam observar como os animais
adquiriam novas habilidades em laboratório. Essas pesquisas serviram de base
a uma nova corrente na Psicologia, denominada behavio-rismo (ciência do
comportamento) pelo psicólogo americano J. B. Watson. Nessa corrente,
Watson via a forma científica natural da ciência psicológica, que devia substituir
a Psicologia. Partindo da tese segundo a qual a "consciência" não passa de um
conceito subjetivo, inacessível à pesquisa objetiva, os beha-vioristas
americanos propuseram que se considerasse objeto da pesquisa científica
apenas o comportamento externo do animal, comportamento esse que eles
consideravam resultado das inclinações (necessidades) biológicas dos animais
e dos reflexos condicionados a eles sobrepostos. Assim surgiu uma nova
corrente na ciência, que abandonava todo o estudo do mundo subjetivo e
limitava-se à descrição das formas exteriores de comportamento, cujas leis
eram tratadas como sistema de habilidades mecanicamente constituído,
inteiramente suscetíveis de análise naturalista.
4
A tentativa de substituir a Psicologia pelo estudo do comportamento exterior e
das leis da aquisição de habilidades complexas era reflexo da luta por uma
Psicologia científica objetiva e teve importância progressista em sua época.
Mas o behaviorismo americano, como exemplo de um enfoque excessivamente
mecanicista da atividade psíquica, iria revelar muito breve as suas limitações e
levar a Psicologia a uma crise não menos patente do que a crise do enfoque
dualista dos fenômenos psíquicos.
Por outro lado, o que ficou evidente alguns anos após a tempestuosa evolução
do behaviorismo americano, a explicação mecanicista nele dominante de
processos como a formação de habilidades não mostrava os autênticos
mecanismos fisiológicos destas e substituía sua pesquisa fisiológica científica
por uma descrição exterior e uma interpretação mecanicista desses
fenômenos. Por outro lado, a imensa parcela de formas complexas da atividade
psíquica do homem, que se manifesta na atividade consciente dos modos e
procedimentos superiores de comportamento especificamente humanos, de
atenção ativa, da memorização arbitrária e do pensamento lógico era
geralmente mantida à margem do campo da pesquisa científica.
Era por isso que nos limites do próprio behaviorismo já começava a surgir a
necessidade de ultrapassar os limites das descrições mecanicistas
simplificadas das habilidades elementares e passar a uma análise científica
das formas mais complexas da. atividade psíquica do homem.
Foi essa necessidade de criação de uma Psicologia autenticamente científica,
capaz de abordar com métodos científicos objetivos as formas mais complexas
da vida psíquica do homem, que se converteu na questão fundamental que a
década de 30 -do nosso século assimilou como condição que podia tirar a
Psicologia do estado de crise.
As vias para superar a crise na Psicologia foram formuladas pela primeira vez
pelo notável psicólogo soviético Lyev Semiônovitch Vigotsky (1896-1934); elas
se converteram na base para a posterior evolução da Psicologia como ciência,
a princípio na URSS e em seguida além de suas fronteiras.
Como já tivemos oportunidade de salientar, o sentido histórico da crise da
Psicologia deveu-se ao fato da evolução desta ciência ter assumido duas
direções. A primeira, que dava continuidade às tradições do enfoque científico-
natural dos fenômenos, propunha-se a tarefa de explicar os processos psí-
5
quicos limitando-se de fato aos processos psicofisiológicas mais elementares e
recusando-se a examinar os fenômenos complexos e especificamente
humanos da atividade consciente. A segunda orientação tomou como objeto de
sua análise justamente esses fenômenos exteriores da atividade consciente
especificamente humanos, limitando-se, porém, à descrição das manifestações
subjetivas de tais fenômenos, considerando-os manifestação do espírito e
recusando-se a dar aos mesmos um enfoque científico causai.
Para Vigotsky, a tarefa principal para superar essa crise consistia em converter
em objeto da pesquisa as formas superiores e especificamente humanas de
atividade consciente e enfocá-las da ótica da análise científica, explicar por via
causai a sua origem e definir as leis objetivas a que elas se subordinam.
Mas a execução dessa tarefa exigia uma revisão radical das teses básicas da
Psicologia.
Como observou Vigotsky, a tentativa de enfocar o psiquismo como função
imediata do cérebro e procurar a sua fonte no recôndito do cérebro é tão inútil
quanto a tentativa de considerar o psiquismo como forma de existência do
espírito. A vida psíquica dos animais surge no processo de sua atividade e é
uma forma de representação da realidade, é realizada pelo cérebro mas pode
ser explicada somente pelas leis objetivas dessa atividade representativa. De
modo semelhante, as formas superiores de atividade consciente, de atenção
ativa, memorização arbitrária e pensamento lógico que são específicas do
homem não podem ser consideradas produto natural da evolução do cérebro,
sendo o resultado da forma social específica de vida, que é característica do
homem. Para explicar por via causai as funções psíquicas superiores do
homem, é necessário ir além dos limites do organismo e procurar-lhes as
fontes não no recôndito da ahna ou nas peculiaridades do cérebro mas na
história social da humanidade, nas formas de linguagem e trabalho social que
se constituíram ao longo da história da sociedade e trouxeram para a vida tipos
mais aperfeiçoados de comunicação e novas formas de atividade consciente.
Ao procurar tornar-se ciência autêntica, a Psicologia deve estudar a origem
socialmente histórica das formas superiores de atividade consciente e
assegurar uma análise científica das leis que lhes servem de base.
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Essas teses básicas mudam radicalmente as tradições da psicologia dualista e
delineiam nitidamente o objeto de uma Psicologia científica.
A Psicologia do homem deve ocupar-se da análise das formas complexas de
representação da realidade, que se constituíram ao longo da história da
sociedade e são realizadas ]ielo cérebro humano. Ela deve substituir a anterior
descrição subjetiva das formas complexas de atividade consciente por uma
análise científica objetiva dessas formas, sem substituir essa tarefa pelo estudo
dos processos fisiológicos que lhes servem de base nem limitar-se à descrição
exterior dos mesmos. É essa a tarefa da ciência psicológica, que deve
estabelecer as leis da sensação e percepção humana, regular os processos de
atenção e memorização, de realização do pensamento lógico, formação das
necessidades complexas e da personalidade, considerando todos esses
fenômenos como produto da história social e sem separar esse estudo da
análise dos mecanismos fisiológicos que lhes servem de base. É isto que
constituirá a essência da Psicologia geral no todo e da psicologia do homem no
particular.
A Psicologia e outras ciências
A Psicologia só pode desenvolver-se em estreita ligação com outras ciências,
que não a substituem mas lhe asseguram informação importante para que ela
possa ser bem-sucedida na elucidação do seu próprio objeto.
A biologia é a primeira ciência com a qual a Psicologia deve manter a mais
estreita ligação.
Se a Psicologia animal opera com as formas de comportamento dos animais
que se desenvolvem no processo de interação deles com o meio, torna-se
absolutamente claro que a completa interpretação das leis do comportamento
animal é impossível sem o conhecimento das formas básicas de vida que
constituem o objeto da biologia. É necessário ter uma noção suficientemente
nítida das diferenças que existem na vida dos vegetais e animais para perceber
o principal que distingue todo tipo de comportamento ativo, baseado na
orientação no meio circundante, das formas de vida que se esgotam com os
processos de metabolismo e podem ocorrer fora das condições de uma
orientação ativa na realidade. É necessário ter uma noção precisa do que
muda
7
nas condições de vida com a transição da existência de unicelu-lares num meio
aquático homogêneo a formas incomparavelmente mais complexas de vida
multicelular, sobretudo nas condições de existência terrestre, que apresenta
exigências imensas à orientação ativa baseada nas condições do meio,
orientação essa que é a única que pode assegurar sucesso na obtenção de
alimentos e conjuração de perigos. É necessário conhecer bem a diferença de
princípios de vida entre o mundo dos insetos, com sólidos programas
congênitos que asseguram uma sobrevivência bem-sucedida em condições
estáveis e são capazes de conservar a espécie até em condições de mudança,
e o mundo dos vertebrados superiores com seus poucos descendentes, que
podem sobreviver somente com a evolução de novas formas individualmente
mutáveis de comportamento, que garantem a adaptação ao meio em mudança.
Sem esses conhecimentos dos princípios biológicos gerais de adaptação não
se pode assegurar nenhuma compreensão nítida das peculiaridades do
comportamento dos animais e qualquer tentativa de interpretar as complexas
formas de atividade psíquica do homem perderá sua base biológica.
Eis porque é absolutamente necessário para a Psicologia científica levar em
conta as leis básicas da biologia e novas partes delas como a ecologia
(doutrina que estuda as condições do meio e suas influências) e a etologia
(doutrina das formas congênitas de comportamento). É natural que os fatos
constituintes do objeto da ciência psicológica não podem, em hipótese
nenhuma, reduzir-se a fatos biológicos.
A segunda ciência com a qual a Psicologia deve manter a mais estreita ligação
é a jisiologia, sobretudo a parte referente à atividade nervosa superior.
A fisiologia trata dos mecanismos que exercem diferentes funções no
organismo, ocupando-se da atividade nervosa superior dos mecanismos de
trabalho do sistema nervoso que concretizam o "equilíbrio" do organismo com o
meio.
É fácil perceber a absoluta necessidade de conhecer o papel desempenhado
nesse último processo pelas diferentes fases do sistema nervoso, de conhecer
as leis pelas quais realiza-se a regulação dos processos de metabolismo no
organismo, pelas quais se regulam as leis de funcionamento do tecido nervoso,
que materializa os processos de excitação e inibição, e das complexas
formações nervosas que executam os processos de análise e síntese, de
confluência das conexões nervosas, e asseguram os processos de irradiação e
concentração da excitação; é igual-
8
mente importante o^ conhecimento das formas básicas de trabalho das células
nervosas, que se encontram em estado normal ou inibido (fásico). Tudo isso é
absolutamente necessário para que o psicólogo, que estuda os tipos principais
de atividade psíquica do homem, não se limite à simples descrição desses
tipos mas saiba em que mecanismos se baseiam essas formas altamente
complexas de atividade, conheça os dispositivos que as executam, os sistemas
em que elas ocorrem. Desconhecer as leis da fisiologia implicaria em privar a
Psicologia de uma das fontes mais importantes de conhecimento científico.
Para a Psicologia, tem importância decisiva a sua ligação com as ciências
sociais.
As formas principais de atividade psíquica do homem surgem nas condições da
história social, desenvolvem-se no processo de atividade material surgido ao
longo da história, baseiam-se nos meios que se formaram no processo de
trabalho, de emprego dos instrumentos de trabalho e da linguagem. Se não
usasse os instrumentos de trabalho e a linguagem, o homem não disporia
sequer de uma ínfima parte das possibilidades de que dispõe o seu
comportamento concreto, ficaria privado da comunicação com o meio
ambiente, evoluiria à margem das condições do mundo material — surgido no
processo da história da sociedade — nem assimilaria a experiência de toda a
humanidade, que é transmitida por meio da linguagem, esse receptáculo da
informação. É natural que as formas de'atividade do homem são executadas
pelo cérebro e se apoiam nas leis dos seus processos nervosos superiores.
Por si mesmo nenhum sistema nervoso é capaz de assegurar a formação da
capacidade de usar instrumentos de trabalho e linguagem e explicar o
surgimento das formas altamente complexas de atividade humana, surgidas no
processo da história social.
A verdadeira relação entre a Psicologia e a fisiologia consiste em que a
primeira estuda as formas e meios de atividade que surgiram no processo da
história social e determinam o comportamento, enquanto a fisiologia da
atividade nervosa superior estuda os mecanismos naturais que materializam ou
realizam esse comportamento.
Tentar reduzir a Psicologia do homem à fisiologia da atividade nervosa superior
— como em certa época propunham os pensadores mecanicistas — implicaria
em cometer o mesmo erro do arquiteto que tentasse reduzir a origem e a
análise dos estilos gótico e barroco ou o estilo Império às leis da resistência
9
dos materiais que ele naturalmente deve levar em conta mas que em hipótese
nenhuma podem explicar a origem dos estilos arquitetônicos.
O êxito do desenvolvimento da Psicologia depende grandemente da correta
compreensão da correlação dessas duas ciências e tanto o desconhecimento
da fisiologia como a tentativa de reduzir a Psicologia à fisiologia retardariam o
desenvolvimento da ciência psicológica.
O que acabamos de afirmar deixa clara a imensa importância que tem para a
Psicologia a sua ligação com as ciências sociais. Se na formação do
comportamento do animal as condições biológicas de vida desempenham
papel determinante, na formação do comportamento do homem esse papel é
desempenhado pelas condições da história social, que cria formas novas de
uma complexa relação com a realidade, mediada pelas condições de trabalho,
formas essas que são as fontes de novas formas especificamente humanas de
atividade psíquica.
Adiante teremos oportunidade de ver que o primeiro emprego de instrumentos
de trabalho e a primeira forma de trabalho social introduziram mudança radical
nas principais leis biológicas de construção do comportamento e que o
surgimento e, posteriormente, o emprego da linguagem — que permite
conservar e transmitir a experiência de gerações — levaram ao surgimento de
uma nova forma de evolução inexistente entre os animais: a forma de evolução
mediante a assimilação da experiência social. A ciência psicológica atual, que
estuda antes de tudo as formas especificamente humanas de atividade
psíquica, não pode dar um só passo sem levar em conta os dados que obtém
das ciências sociais: do materialismo histórico, que enriquece as leis básicas
do desenvolvimento da sociedade, e da lingüística, que estuda as formas
básicas de linguagem, surgida na história da sociedade.
Só levando minuciosamente em conta as condições sociais, que formam a
atividade psíquica do homem, pode a Psicologia obter uma sólida base
científica. Encontraremos a aplicação desse princípio em todas as páginas
seguintes, quando examinaremos todos os fatos psicológicos concretos. É
essa a relação da Psicologia científica com as outras ciências, com as quais
ela se desenvolve em estreito contato.
10
Partes principais da Psicologia
A Psicologia, que até recentemente não era uma ciência dividida, representa
hoje um sistema amplamente ramificado de disciplinas, que estudam a
atividade psíquica do homem em diferentes aspectos. O que já dissemos antes
deixa claro que algumas partes da Psicologia estudam as bases naturais dos
processos psíquicos, aproximando-se da biologia e fisiologia, enquanto outras
partes estudam os fundamentos sociais da atividade psíquica, aproximando-se
das ciências sociais.
A posição central cabe à Psicologia Geral, que estuda as formas básicas de
atividade psíquica e constitui a viga-mestra de todo o sistema de disciplinas
psicológicas. Afora a introdução teórica evolucionista, o exame de várias partes
científicas faz parte da composição da Psicologia Geral. Entre essas partes
incluímos a análise dos processos cognitivos (começando pelas sensações e
percepções e terminando nas formas mais complexas de pensamento;
compõem essa parte a análise das condições em que ocorrem os processos
psíquicos e a análise das leis do pensamento, da memória, imaginação, etc), a
análise dos processos afetivos (as necessidades do homem, as formas
complexas de emoções), a análise da estrutura psicológica da atividade do
homem e da regulação do seu desempenho e, por último, a análise da
psicologia do indivíduo e das diferenças individuais.
As partes aqui referidas serão objeto de exame das próximas páginas do
presente livro.
A elaboração dos problemas gerais da Psicologia foi objeto de trabalhos de
muitos pensadores célebres, entre os quais sé situam clássicos como W.
Wundt na Alemanha, W. James nos EUA, A. Binet e P. Janet na França e
contemporâneos como-L. S. Vigotsky, S. L. Rubinstein, A. N. Leôntyev, A. A.
Smirnov e V. M. Têplov na URSS, A. Vallon, A. Piéron e P. Fraisse na França, E.
Nolman, G. Miller e J. Bruner nos EUA, Donald Hebb no Canadá e J. Broadbent
na Inglaterra, etc.
É contíguo à Psicologia Geral o grupo de partes biológicas da Psicologia.
Todas elas estudam as bases naturalistas da atividade psíquica do homem.
A primeira dessas disciplinas é a Psicologia comparativa ou Psicologia animal.
Esta disciplina estuda as peculiaridades do comportamento animal em etapas
sucessivas da evolução, aque-
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Ias peculiaridades que dependem das condições de vida e da estrutura
anatômica dos animais. Ela descreve os processos de mudança das formas de
comportamento animal dependendo das exigências que o meio lhes impõe e
dos principais tipos de adaptação às condições de vida, que são de caráter
muito variado quando se tornam complexas as formas de vida.
A segunda das disciplinas pertencentes ao grupo biológico das ciências
psicológicas é a Psicologia fisiologista ou Psico-jisiologia.
As bases dessa ciência foram lançadas na segunda metade do século XIX por
pensadores que se propunham a tarefa de estudar os processos psicológicos
do homem com a aplicação de diversos métodos fisiológicos, de estudar os
mecanismos fisiológicos dos processos psicológicos. Foram precisamente
esses pensadores que organizaram os primeiros laboratórios de Psicologia e
elaboraram minuciosamente partes da Psicologia como a doutrina das
sensações, sua medida e seus mecanismos básicos, a doutrina das leis
básicas da memória e da atenção, a doutrina dos mecanismos psicofisiológicos
do movimento, etc.
É natural que a Psicologia fisiologista se aproxime da fisiologia, particularmente
da fisiologia dos órgãos dos sentidos e da fisiologia da atividade nervosa
superior. A diferença consiste em que os cientistas que se ocupam desse
problema tomam como objeto a análise das formas concretas de atividade
psíquica, estudando as sensações e percepções, a atenção e a memória do
homem, bem como a estrutura dos seus processos motores e a mudança
destes no processo de exercício e fadiga, procuram, empregando os métodos
mais precisos, estabelecer os mecanismos fisiológicos e as leis pelas quais
esses processos se realizam. A psicofisiologia, permanecendo disciplina
psicológica especial, está para a fisiologia assim como a bioquímica está para
a química ou a biofísica para a física. Ela não abstrai um instante sequer o fato
de que os processos por ela estudados fazem parte da complexa atividade
psíquica do homem, não esquece as complexas peculiaridades da estrutura
desses processos e apenas tenta descobrir os mecanismos fisiológicos que
lhes servem de base.
Uma parcela considerável dos conhecimentos das leis de realização de
processos psíquicos particulares foi acumulada justamente por essa área da
ciência psicológica, à qual estão estreitamente ligados os nomes de grandes
cientistas como Gustav Fechner e Weber (os primeiros a medir as sensações),
Wilhelm
12
Wundt (o primeiro a aplicar amplamente métodos psicofisioló-gicos de estudo
dos processos psíquicos), Hermann Ebbinghâus e Hermann Joseph Müller (os
primeiros a abordar métodos exatos de medição da memória e seus
mecanismos específicos), assim como Piéron na França, Edward Titchener nos
EUA, os grandes psicólogos atuais como O. R. Lindsley (EUA), Broad-bent
(Inglaterra), Fraisse (França) e outros.
Essa área da ciência psicológica recebeu imensa informação dos trabalhos de
clássicos notáveis da fisiologia como Pávlov, criador da doutrina da atividade
nervosa superior, N. E. Vve-densky, criador da doutrina da gênese patológica,
A. A. Ukhtomsky, cujos trabalhos permitiram introduzir uma aova área da
ciência do comportamento: a doutrina dos dominantes, L. A. Orbeli, autor de
importante contribuição à fisiologia evolu-cionista bem como fisiologistas
contemporâneos como P. A. Anokhin, criador da doutrina dos sistemas
funcionais, N. A. Bernstein, introdutor do novo conceito de organização do
movimento, G. V. Gershuni e S. V. Kravkov, que enriqueceram a ciência com
dados relativos ao funcionamento da audição e visão, etc.
A terceira disciplina componente do grupo biológico das ciências psicológicas é
a neuropsicologia.
Esta disciplina tem por tarefa o estudo do papel que desempenham os
aparelhos particulares do sistema nervoso na estruturação dos processos
psíquicos.
É fácil perceber que o papel das formações subcorticais e do paleocórtex no
processo da atividade psíquica é inteiramente diferente do papel do neocórtex
e dos grandes hemisférios cerebrais . Há, porém, fundamentos para supor que
também o papel de algumas regiões do córtex cerebral na organização dos
complexos processuais psíquicos não é idêntico e que todas as áreas do
cérebro — parietais, temporais e occipitais — dão sua contribuição toda
especial para o processo de atividade psicológica.
Esse novo campo da Psicologia emprega em suas pesquisas uma análise
psicológica minuciosa tanto das irritações como das destruições de áreas
isoladas do cérebro, estuda as mudanças dos processos psíquicos que surgem
quando ocorram afecções locais do cérebro e tira, de suas observações,
conclusões relacionadas com a estrutura interna dos processos psíquicos.
Esse campo da Psicologia é representado por estudiosos de diversos países
como K. S. Lashley e K, H. Pribram (EUA),
13
A. R. Luria (URSS), O. L. Zangwill (Inglaterra), B. Milner (Canadá) e outros.
Podemos colocar ao lado da neuropsicologia a psicopatologia, que estuda as
peculiaridades "dos processos psíquicos observáveis nos doentes psíquicos, e
permite que nos aproximemos mais de um estudo científico das doenças
mentais e do descobrimento de algumas leis gerais da atividade psíquica que
se manifesta nos estados patológicos.
A psicopatologia foi elaborada com êxito por muitos psiquiatras (Kraepelin, na
Alemanha, Janet, na França, Békhterev, na Rússia) e pelos psicólogos
contemporâneos (B. V. Zeygar-nik, na URSS, Pecheau, na França, e outros).
Uma área especial, situada nas fronteiras da psicofisiologia e da
neuropsicologia, é representada pelo estudo dos mecanismos neurônicos da
atividade psicológica. Os cientistas que elaboraram essa área (D. H. Hubel e T.
N. Wiesel na Inglaterra, Jung na Alemanha, H. H. Jasper no Canadá, E. N.
Sokolov e O. S. Vinográdov na URSS) se propõem a tarefa de investigar as
formas de funcionamento de grupos isolados de neurônios e efetuar uma
análise dos processos nervosos mais elementares, que servem de base ao
comportamento. Importantes descobertas dos mecanismos fisiológicos de
ativação e habituação foram obtidos no estudo das formas mais simples de
comportamento em base neurônica.
No sistema das ciências psicológicas, cabe posição especial à psicologia
infantil ou genética.
A importância dessa área das ciências psicológicas para a Psicologia geral
consiste em que a Psicologia genética ou infantil estuda a formação da
atividade psíquica no processo de evolução da criança e permite acompanhar a
formação dos complexos processos psíquicos e das etapas pelas quais eles
passam em sua evolução.
A Psicologia genética permite abordar os processos psíquicos superiores do
homem como produto da evolução, dando, com isto, a possibilidade de
considerar as formas complexas de atividade psíquica do homem não como
"propriedades" ou "faculdades" do psiquismo primitivamente existentes mas
como resultado de uma longa formação, que deixou vestígios na estrutura dos
processos psíquicos.
Foi justamente por isto que a Psicologia genética, que estuda a formação
(gênese) das formas superiores de atividade psíquica, adquiriu importância
decisiva tanto para uma área prática
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como a pedagogia quanto para a Psicologia geral. Foi justamente graças aos
êxitos da Psicologia genética, relacionados com a contribuição dada ao estudo
dessa disciplina pelos notáveis estudiosos Jean Piaget e Lyév S. Vigotsky, que
a Psicologia geral obteve provas convincentes de que as formas básicas dos
processos psíquicos (percepção e ação, memorização e pensamento)
possuem estrutura complexa que se forma no processo de evolução da
criança. A importância da Psicologia genética lhe, permitiu ocupar posição
central na Psicologia atual.
Outro campo da Psicologia, que deve ser colocado ao lado da Psicologia
genética e costuma ser chamado de psicologia diferencial ou psicologia das
diferenças individuais, ocupa posição importante.
Sabe-se que as pessoas têm traços comuns, estudados pela Psicologia geral,
e revelam diferenças individuais. Estas podem ser diferenças de propriedades
do sistema nervoso, de peculiaridades individuais do campo emocional e do
caráter, traços característicos do processo cognitivo e do talento.
A Psicologia diferencial se propõe a tarefa de estudar essas diferenças
individuais, descrever os tipos de comportamento e atividade psíquica das
pessoas que se distinguem umas das outras por traços característicos.
A Psicologia diferencial é de importância decisiva para a avaliação do nível de
evolução da criança, das formas individuais de assimilação do trabalho e para
a análise das peculiaridades tipológicas cujo conhecimento é indispensável à
solução das questões práticas da Psicologia.
Os fundamentos da Psicologia diferencial foram lançados em sua época pelo
psicólogo alemão W. Ster (1871-1938); em nossa época os problemas das
diferenças individuais foram estudados com êxito por cientistas como Charles
Edward Spear-man, na Inglaterra, L. L. Thurstone, nos EUA, e B. M. Teplov, na
URSS.