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Catequeses de santa teresa de Jesus

O ser humano hoje tem dificuldade em encontrar Deus. Anda distraído. Teresa propõe que entre na zona
mais nobre da sua intimidade para aí reconhecer o Deus que está à sua espera. Enquanto Ele for «um
estranho na nossa morada» ou nela for considerado uma presença irrelevante, estamos a ignorar algo
importante na nossa vida: desperdiçamos a intimidade da morada de Deus em nós. É tocante o alerta do
autor da carta aos Hebreus: “Não esqueçais a hospitalidade em vossa morada: graças a ela, alguns, sem sabê-
lo, hospedaram anjos” (Heb 13,2).

Parece paradoxal dizer que, mimando a imensa riqueza que trazemos dentro de nós, fazemos avançar a
história humana para o bem. Mas, dizendo isso, estamos em perfeita sintonia com a Teresa das Moradas:
“Que pouco se deve importar com a honra… a alma onde o Senhor está tão particularmente! Se ela está
muito com ele…, toda a memória se lhe vai… em como mostrar-lhe o amor que lhe tem. Para isto é a
oração, filhas minhas, para isto serve este matrimónio espiritual: que nasçam sempre obras, obras” (7M 4,6).
Oração mística ou vida mística não é mais do que comunhão com o mistério de Deus: com o Jesus do
evangelho e com os humanos por ele salvos. Quanto mais densa experiência de oração, mais realismo na
entrega pelas causas humanas. 

Vale para o livro das Moradas, a afirmação de Bento XVI: “Santa Teresa de Ávila nos seus escritos recorre
continuamente a imagens bíblicas para explicar a sua experiência mística e lembra que o próprio Jesus lhe
manifesta que «todo o mal do mundo deriva de não se conhecer claramente a verdade da Sagrada Escritura”
(Verbum Domini, 48: cita S. Teresa, Vida, 40,1). Fica igualmente claro que a nossa imitação de S. Teresa
passa necessariamente pela leitura assídua da Sagrada Escritura. Em Moradas, interiorizou-a. Fez dela o
livro da sua vida, apesar das dificuldades de acesso a ela. Torna-se então pertinente aqui a exortação do
apóstolo Tiago (1,21): “Acolhei com docilidade a Palavra em vós semeada, que é capaz de salvar as vossas
vidas”. 

P. Armindo Vaz, OCD

 Ao fim do processo de Moradas, percebemos que dois grandes temas bíblicos ajudaram Teresa a expor a
sua experiência espiritual. O da concepção do ser humano como imagem de Deus e o da conversão ou
educação do eu, temas enlaçados um no outro. O de ser humano como criado por Deus, referido nas
primeiras Moradas e repetido no início das sétimas (7M 1,1), serviu para fundamentar a grande dignidade
humana.

O cristão, pela verdade da Incarnação, vê Deus no ser humano. O Deus de Jesus Cristo existe no seu irmão:
é seu Pai. Se o cristão não cuidar dele, não pode falar com o Pai do seu irmão. Se Deus se tornou «um
estranho em nossa casa» (título do livro de Ll. DUCH, Un extraño en nuestra casa (Barcelona 2007), é
porque o outro se tornou uma ameaça a exorcizar. E há duas maneiras de a exorcizar: ou com a sua
destruição como concorrente e dispensável ou com a sua integração assimilada como irmão. A oração
proposta por S. Teresa em Moradas está unida à acção e tende para a prática do bem em favor dos outros. Se
a ajuda ao próximo já é uma espécie de oração em acção, a oração e a fé que convivem com más acções são
uma esquizofrenia da alma. Também esta conclusão das Moradas de Teresa está em sintonia com a Bíblia e
com a carta de S. Tiago (2,18-24): “A fé sem obras é estéril [está morta: variante da Vulgata]…; pelas obras
a fé alcançou a sua perfeição”. 

P. Armindo Vaz, OCD

O Castelo Interior traça a pauta em que o leitor se sente constituído em relação, com os semelhantes e com
Jesus ressuscitado. Com a sua antropologia essencialmente bíblica, Teresa via-se a si própria e o cristão
como habitados. Para ela, Deus não vem de fora. Está dentro, no fundo do nosso eu, que é essencialmente
relação.

Se já segundo a espiritualidade bíblica da criação o ser humano é imagem de Deus, segundo a teologia de S.
Paulo, bem assimilada por Teresa, o ser humano está habitado pela graça, que é o Espírito Santo de Jesus
ressuscitado, actor da vida do cristão: “Já não sou eu que vivo, é Cristo que vive em mim” (Gl 2,20). “O
Espírito de Deus habita em vós… Cristo está em vós… Se o Espírito daquele que ressuscitou Jesus de entre
os mortos habita em vós, aquele que ressuscitou Cristo de entre os mortos dará também a vida aos vossos
corpos mortais pelo Espírito que habita em vós” (Rm 8,9-11). 

Aqui encontrou o fundamento teológico para o livro de Moradas. A sua antropologia é profundamente
bíblica: o seu Cristo é o Deus incarnado ressuscitado, que está no ser humano. Teresa acode frequentemente
à Bíblia para descrever essa presença em si própria e para dar a conhecer que o que a habita é relação, amor. 

Em cada Morada deste itinerário, os actores principais são o ser humano e Jesus Cristo, em relação dinâmica
um com o outro. A relação tende para o encontro, que segundo S. Teresa, se dá na fé e na oração, também
iluminada por textos bíblicos. 

Entre os temas, conteúdos e expressões que Teresa foi buscar à Bíblia está o que da forma mais original
caracteriza o Castelo Interior: o de apontar para a enorme dignidade/mistério do ser humano, dotado de alma
‘capaz de Deus’, capaz de comunicar com Deus. Para Teresa, a do ser humano é uma vida habitada, habitada
por uma Presença e pelo Mistério interlocutor de quem exerce a arte de orar. 

Ao serem chamados por Jesus, os discípulos perguntaram-lhe: “onde moras? Respondeu-lhes: vinde e
vereis. Foram, viram onde morava e ficaram com ele aquele dia” (Jo 1,38-39). Se hoje lhe fizerem a mesma
pergunta (“onde moras?”), ele pode responder como a Teresa: “Busca-me em ti”: 
E se acaso não souberes 
Em que lugar me perdi, 
Não andes daqui para ali, 
Porque se encontrar me queres, 
A mim me acharás em ti (Poesia 4). 

P. Armindo Vaz, OCD 

 O matrimónio espiritual descrito por Teresa equivale ao encontro dos primeiros discípulos de Jesus com o
Ressuscitado, numa sequência de experiências espirituais: desde a percepção clara de que ele não pertencia
ao lugar dos mortos, passando por várias visões intelectuais dele, até à ascensão e ao dom do Espírito de
Jesus na festa do Pentecostes.

Nas sétimas Moradas, Teresa mostra que a ressurreição de Jesus dava sentido à vida e à cruz. Uma ponta
final da experiência do Ressuscitado pelos primeiros discípulos é o da missão: passaram do medo à
evangelização na partilha da experiência e na partilha dos bens ajudando os necessitados. A contemplação
não exclui a acção. Teresa mostra a associação indissolúvel entre ambas, recorrendo mais uma vez à força
da palavra de Deus: “Crede-me que Marta e Maria hão-de andar juntas para hospedar o Senhor e tê-lo
sempre consigo e não lhe dar má hospedagem, não lhe dando de comer. Como lha daria Maria, sempre
sentada a seus pés, se sua irmã não a ajudasse?” (7M 4,12). Se, ao longo do processo, o orante se foi
«dispondo» (7M 2,8) para viver em conformidade com o evangelho de Jesus, agora nas sétimas Moradas
converte-se da situação de narcisismo inicial à de doação no amor crescido e educado na comunhão com
Jesus e no bem ao próximo. E se não podemos provar o amor a Deus, podemos comprovar as mudanças
pessoais, que, com o amor ao próximo, se convertem em termómetro para discernir o progresso no processo
espiritual. O fim do «matrimónio espiritual» não é o bem-estar beatífico para viver pasmado ou fora deste
mundo. Remete para a vivência do evangelho de Jesus, “imitando a [vida] que viveu o seu Filho tão amado”
(7M 4,4). 
P. Armindo Vaz, OCD

Todo este processo espiritual tem uma forte carga antropológica, não fora todo ele inspirado em símbolos
bíblicos. De facto, a Bíblia é antropologia a partir de uma teologia, como é teologia a partir de uma
antropologia: fala do ser humano a pensar em Deus e fala de Deus a partir de uma elevada concepção de ser
humano.

Uma frase de grande carga antropológica é: o Senhor Jesus, aparecido a Teresa “como depois de
ressuscitado, disse-lhe que já era tempo de ela tomar as coisas dele por suas e ele teria cuidado das coisas
dela” (7M 2,1: repetida em 7M 3,2). Está fertilizada pelo tom existencial, esponsal, do Cântico dos Cânticos.
É nesta antropologia que toma consistência a mútua dádiva de amor: como Jesus viveu para Teresa, ela vive
para Cristo. 

Os próprios símbolos teresianos do Castelo Interior são tão antropológicos como bíblicos: se o símbolo das
moradas do castelo é estrutural, o símbolo nupcial, que cobre as quintas, sextas e sétimas Moradas, impõe a
sua força significante de matrimónio espiritual aqui nas sétimas. Enriquecido com outros elementos do
Cântico dos Cânticos (adega, vinho, amor), sublinha a dimensão relacional da vida da graça. 

A relação com Deus ao longo do itinerário espiritual em Moradas tem uma história semelhante à vivida pelo
povo de Deus, narrada pela Bíblia. De facto, no Antigo Testamento já desde o livro do Génesis Deus torna-
se presente aos patriarcas, fala com eles, manifesta-se como o Deus da pessoa. Do êxodo ao Deuteronómio,
o povo sentia-se acompanhado por Deus na sua travessia pelo deserto. A arca da aliança simbolizava essa
presença e o compromisso da relação mútua. E, como no amor humano, também na Bíblia a relação de Deus
com os humanos exige presença integral: não só estar com eles, mas também estar em eles. O Novo
Testamento narra a história de um Deus humanado, de Deus na pessoa. 

Assim na vida de Teresa, Deus se fazia sentir presente em alguns acontecimentos. E também ela sentia a
companhia de Jesus: já não só o sentia ao lado, mas dentro, no centro de si própria: Tu em mim como eu em
ti, união sem fusão e sem confusão. Se toda a história de amor intenso exige presença continuada, na
experiência espiritual (bíblica e teresiana) não foi diferente: aconteceu a incarnação e a união mística. Teresa
chegou a viver as palavras de Jesus no evangelho de João: “que todos sejam um; como tu, Pai, em mim e eu
em ti, que eles também sejam um em nós…; eu neles e tu em mim” (17,21-23). Cita-as explicitamente em
7M 2,7: “…e diz: Eu estou neles”. Este matrimónio espiritual não parecerá tão estranho se atendermos aos
textos de Paulo, aos quais recorre Teresa para o explicar: “O que se une ao Senhor torna-se um espírito com
ele” (1Cor 6,17); “para mim viver é Cristo e morrer um ganho” (Fl 1,21). 

P. Armindo Vaz, OCD

Ao fim de bons desejos e de boas concretizações, de muita oração e meditação, o caminhante chega à sétima
Morada, onde habita o Senhor do castelo, na própria alma, no centro do nosso eu. Como os primeiros
discípulos de Jesus que fizeram este itinerário o sentiram vivo e mudaram as suas vidas com a força dessa
experiência, também agora o orante medita o mistério da ressurreição de Jesus, na oração pessoal ou ao
ritmo da liturgia da Igreja: é a Morada de uma vida renovada e ressuscitada, a da santidade cristã. O
caminhante aprendeu o amor adulto, sofrendo e gozando.

Agora faz a experiência do mistério de Deus, consumando o matrimónio espiritual na comunhão com o Pai
pelo Filho no Amor que é o Espírito. Matrimónio é uma das imagens mais fecundas na história bíblica da
salvação e particularmente sublinhada por Teresa. Nas quintas Moradas tinha preparado o tema. “Já tereis
ouvido muitas vezes que Deus desposa as almas espiritualmente” (5M 4,3). Agora apresenta a realidade:
“dentro desta alma há morada para Deus” (7M 1,5). O matrimónio espiritual estará ao serviço do amor
humano. O homem novo atinge “o estado de homem adulto, a medida completa da plena maturidade de
Cristo” (Ef 4,13). O céu aproxima-se da terra. Teresa vive, compreende e fundamenta na palavra de Jesus
esta experiência de ser habitada: “o que acreditamos por fé, ali o entende a alma por vista, ainda que não é
vista dos olhos do corpo… Aqui se lhe comunicam todas as três Pessoas e lhe falam e lhe dão a entender
aquelas palavras que diz o evangelho terem sido ditas pelo Senhor: que virá ele e o Pai e o Espírito Santo a
morar com a alma que o ama e guarda os seus mandamentos” (7M 1,6). O texto completo do evangelho de
João (14,23) soa assim: “se alguém me ama, guardará a minha palavra e meu Pai o amará e viremos a ele e
estabeleceremos morada nele”. 

Isto não é estranho. É evangelho. Vai sendo vivido e confirmado no dia a dia de Teresa e do orante. A
consciência de estar habitado no centro do seu ser faz viver ao sabor dessa presença constante, que Teresa
também ilustra com a imagem dos perfumes, que é de raiz bíblica e nos remete para o Cântico dos Cânticos
(7M 2,1). A intensa vivência da dita celeste coincide com o evangelho de João: as sétimas Moradas tornam
real o definitivo, o que não acaba. 

P. Armindo Vaz, OCD

 Voltando ao tema das «falas», a mais importante que Teresa de Jesus terá ouvido foi: “És minha e eu sou
teu” (Vida 39,21). Não admira: ela tinha ouvido tantas vezes do Cântico dos Cânticos algo equivalente: “o
meu amado é meu e eu sou do meu amado” (Ct 2,16; 6,3). A estreita comunhão de qualquer amor autêntico
produz empatia e comunicação de vidas.

Tanto o Cântico dos Cânticos como o evangelho de João abundam nesta expressão de amor «eu em ti e tu
em mim», que serviu de fio condutor ao pensamento de Teresa. A forma como S. Teresa entendeu o amor
bebeu às mãos cheias nestas duas fontes bíblicas. Ela sentiu, à luz da palavra de Deus, que amar e ser amado
equivale na experiência humana a sentirmo-nos acolhidos, reconhecidos, aceites, queridos e perdoados pela
pessoa amada, em última instância, por Deus, porque só o seu amor é imperecível e satisfaz definitivamente
a necessidade de o ser humano ser amado totalmente. Então sente que toda a sua história foi amada. 

É nesta situação que Teresa fala da experiência de arroubamento, arrebatamento ou êxtase no desposório
espiritual. Desde agora, o orante participa da vida de Jesus em comunhão de amor. Os voos do espírito
fazem participar a pessoa da existência inteira de Jesus, “mostrando-lhe grandes coisas”. E, citando
claramente o livro dos Números (13,18-24), diz “que o Senhor quis mostra-lhe algo da terra aonde há-de ir”
(6M 5,9). O vazio deixado pela morte do velho eu deu lugar à pessoa e à vontade de Jesus, que Teresa
chama “verdadeiro sol de justiça”, usando a imagem bíblica de Malaquias 4,2. Realizou-se o desposório.
Nasceu a jóia da liberdade do amor. A consciência do dom produz grande alegria: “Parece que se encontrou
a si mesma e que, como o pai do filho pródigo, quereria convidar a todos e fazer grandes festins” (6M 6,10).
Repare-se que o “encontrar-se a si próprio” é fruto do esquecimento do eu velho. Para descrever esta mesma
experiência, recorda duas personagens bíblicas, a de Pedro e a da Madalena (que Teresa confundia com a
pecadora, embora não se deva pensar assim): “tinham o amor tão acrescido e tinham recebido tantas mercês
e tinham entendida a grandeza e majestade de Deus” (6M 7,4). E, ainda para descrever a mesma experiência,
no comentário ao Cântico dos Cânticos evoca outra mulher bíblica, a samaritana de João 4: “em paga da sua
tão grande caridade, mereceu… ver o grande bem que nosso Senhor fez naquela aldeia…, ver almas
beneficiadas por seu intermédio… Ia esta santa mulher, com aquela embriaguês divina, aos gritos pelas
ruas” (Conceitos do amor de Deus 7,6-7). 

Nas sextas Moradas, a pessoa converte-se ao amor, tornando-se então mais autenticamente ela própria.
Aprende a amar, por sentir que alguém a amou primeiro, dando a vida por ela. O amor de Jesus desperta
nela o amor. Os desejos, propósitos, aspirações das primeiras Moradas tornaram-se realidade nas sextas. 

P. Armindo Vaz, OCD


 A pessoa com auto-estima desmedida, que se coloca por cima de tudo e de todos, não suspeita – como os
heróis da Ilíada de Homero – que as consequências do seu orgulho a irão vergar quando chegar a sua vez de
padecer.

Esquece que o seu alarde e a sua vanglória são devaneio fugaz. Faz lembrar os jogadores de futebol a
celebrarem espalhafatosamente um golo, vindo, porém, a perder o jogo no fim: “de que serve ganhar o
mundo se se perde a alma?” (Mc 8,36). Teresa aconselharia: no jogo da vida podemos alegrar-nos com o
golo marcado e celebrar moderadamente a pequena vitória; mas até à vitória final é tempo de luta, mesmo
nas sétimas Moradas. O sofista grego do séc. V a.C. Protágoras dizia: “O homem é a medida de todas as
coisas”. Mas o contemporâneo Platão respondeu-lhe: “Nada imperfeito é medida de alguma coisa”
(República, VI, 504c), “Deus é a medida de todas as coisas” (Leis, IV, 716c). O jovem rico do evangelho
terá pensado que a sua riqueza era a medida da sua vida e o seu deus. Não precisava de outro deus. Não
precisava de seguir Jesus. Tinha o eu satisfeito com o “cumprimento de tudo isso”, todos os mandamentos.
Estava “muito carregado com esta terra da nossa miséria, que não levam os que sobem aos aposentos que
faltam” (3M 2,9). Mas o quotidiano duro e cru põe à prova o amor: “Quando já parece que haviam de estar
senhores do mundo…, prova-os Sua Majestade em coisas não muito grandes, e andam com tanta inquietação
e aperto de coração” (3M 2,1). É questão de excessivo «carregamento» e, logo, de falta de liberdade. Para a
fé bíblica, Senhor da história e medida da vida humana é Deus libertador em Jesus. Sem humildade e sem
alma, o nosso eu tem o poder de transformar os outros em coisas e de os petrificar. O humilde vai pela vida,
consciente da verdade nua do seu eu: “o caminhar que digo é com grande humildade” (3M 2,8). 

O realismo de Teresa conduz a pessoa a contemplar a própria grandeza enquanto imagem de Deus, mas
também a descer à cave escura do eu profundo e narcisista (como ela teve de fazer durante quase vinte anos,
depois da profissão no mosteiro da Encarnação), para aí desmascarar baixezas e aceitá-las. Só podemos
mudar o que tivermos aceitado e assumido. Em duas palavras, o ser humano visto em Deus é de dignidade
elevadíssima, mas em si é vulnerável. Os que aceitam consciente e realisticamente as limitações do seu eu
não julgam ninguém, porque a sua fragilidade pode deixar entrar golos na própria baliza. Aprendem a
virtude da humildade e a oração de recolhimento. 

P. Armindo Vaz, OCD

O itinerário traçado por Teresa acompanha o evangelho, associando o orante aos primeiros seguidores de
Jesus. Nas segundas Moradas, Jesus era apresentado a chamar pessoalmente os discípulos.

As terceiras concentram-se na decisão firme de o seguir. Para se tornar mais convincente, Teresa recorre ao
episódio evangélico do jovem rico (Mt 19,16-22 e paralelos), elevando-o a tema de meditação: “desde que
comecei a falar desta morada, tenho-o diante de mim” (3M 1,6). A pergunta do jovem a Jesus concentra-se
no que deveria fazer para aceder à vida definitiva. Jesus remeteu-o para o cumprimento dos mandamentos e
para o seguimento radical da sua pessoa. O jovem ainda tinha espírito de Antigo Testamento: “tudo isso eu
tenho cumprido”. Jesus pedia-lhe que, num salto qualitativo radical, se desse inteiro ao Novo, a ele: “depois
segue-me”. O problema das riquezas estava em terem impedido descortinar o novo que era Jesus, a boa nova
da graça: “Se lhe voltamos as costas e se vamos embora tristes como o mancebo do evangelho…, que
quereis que faça Sua Majestade, se ele há-de dar o prémio conforme ao amor que lhe temos? E este amor
[deve ser] provado com obras” (3M 1,7). Seguimento é mais uma categoria evangélica que denuncia as
cores bíblicas de Moradas. O itinerário do leitor de Moradas é o caminho de Jesus descrito pelo evangelho,
porque – recorda Teresa – “não é mais o servo do que o Senhor” (2M 1,12, que cita Mt 10,24). É nisso que
consiste a fé cristã: é um caminho longo, com etapas diferenciadas. Quem não tem a coragem de confrontar-
se até ao fundo com as dificuldades postas pela vida à sua fé não atinge uma vida cristã madura. O leitor de
Teresa aceita correr o risco da fé no seguimento de Jesus até à cruz, enquanto suprema manifestação de
amor. Prepare-se para o que vem a seguir. 

P. Armindo Vaz, OCD 


Se os actores do caminho espiritual são Deus e o ser humano que buscam o mútuo encontro, essa epopeia
para o encontro com Deus – avisa Teresa desde o princípio – está cheio de dificuldades. Não fora este um
itinerário para pecadores! As virtudes humanas e teologais vão transformando o interior do ser humano. Mas
o pecado é obstáculo à transformação. Por isso, nas segundas Moradas, Teresa propõe o combate espiritual
contra as forças que desestruturam a personalidade. É o que Teresa chama “demónio”.

Encontra-o com frequência na palavra bíblica, não o distinguindo do “diabo”, igualmente mencionado na
Bíblia. No seu tempo, era um tópico muito frequentado. Os medos medievais causados pelas pestes, pelas
guerras de religião e pela divisão dos cristãos, adubavam o terreno para o nascimento de fantasmas. Teresa
entendia “o demónio” como toda a gente no seu tempo, incluindo teólogos: como um ser espiritual que teria
poder de intervir de vez em quando na vida dos humanos exercendo influência nefasta sobre eles. Este
entendimento chegou até aos dias de hoje. Já na Bíblia essas duas designações eram figuras personificadas
simbólicas, diferentes uma da outra, que queriam dar uma explicação da real presença do mal no mundo: o
satán em hebraico (= diábolos/diabo, quando traduzido para o grego) simbolizava o mal moral ou as acções
hostis ao ser humano; o demónio (palavra grega) simbolizava o mal físico, psíquico ou psicofísico. Não são
seres pessoais. São símbolos que nos remetem imediatamente para realidades bem reais – físicas e morais –
que atormentam a existência humana. São as causas que concorrem para a existência desses dois tipos de
mal. Nomeá-lo ou verbalizá-lo é uma forma de o desmascarar. 

Que o diabo não é ser pessoal prova-o o facto de a sua essência é de ser anti-pessoal: despersonalizar,
dividir, destruir a pessoa. O mal moral existe só por acção dos humanos e, portanto, existe o diabo, como
existe o demónio nos achaques físicos e psicofísicos que nos debilitam. O diabo é o espírito humano (quase
sobre-humano) oposto ao divino, a atmosfera humana e espiritual que determina o pensamento, o querer e o
agir dos perversos, que exerce «tráfego de influências» nas pessoas. Através dessa atmosfera espiritual, a
dimensão do seu poder exerce autoridade sobre as pessoas e penetra nelas. No caso de as pessoas se abrirem
a essa atmosfera nebulosa e aderirem a ela, tornam-se portadores dela e contribuem para a estender mais.
Assim, vai-se tornando mais intensa e poderosa. Esta visão coincide com a que tinha S. Teresa. Era a isso
que ela chamava demónio (que, na realidade, é o diabo). Segundo aprendeu da história da salvação narrada
na Bíblia, vai mostrando nas Moradas que o ser humano é capaz de Deus e capaz do mal; e que o chamado
«demónio» tende a desviar-nos do caminho do bem para nos afundar nas estruturas do pecado, atentando
contra o amor a Deus e ao próximo (“a grande guerra que dá o demónio”: título do capítulo único de 2M).
Mas o seguidor de Jesus tem a possibilidade de o vencer, porque Jesus o venceu com a força do seu amor
supremo: “eu via o satán cair do céu como um raio” (Lc 10,18). Onde desponta o reino de Deus (abrindo-se
à sua bondade) deixa de haver espaço para o reino do diabo. O poder salvífico do reino de Deus (que une as
pessoas no bem) desarma o reino do diabo (que as divide para o mal): diabólico é tudo o que deifica o
mundo e destrói o ser humano. Seguindo Jesus, o diabo perde a sua «existência», porque Jesus abriu
radicalmente a sua pessoa e as pessoas para o bem e para Deus. Teresa sabia disso: “como o demónio
sempre tem tão má intenção… e a pobre alma não o entende, por mil maneiras nos engana, coisa que já não
pode fazer tão facilmente às que estão mais perto do Rei” (1M 2,12). 

É isso o que Teresa preconiza: renunciar ao mal, lutando contra ele. Nessa medida, a categoria teológica e
bíblica do êxodo percorre o tecido das segundas Moradas, sugerindo a constante saída do estado de servidão
para o de libertação. 

P. Armindo Vaz, OCD

Mas a visão do ser humano como imagem de Deus evoluiu a partir do Génesis até culminar na fé do Novo
Testamento, que vê a mais perfeita imagem de Deus na pessoa do ser humano Jesus: “imagem [eikón] do
Deus invisível” (Cl 1,15), “imagem fiel do seu ser” (Heb 1,3) é o seu Filho.

Para a cultura bíblica, a imagem representa a pessoa representada, é o seu ícone. É o que é Jesus
relativamente a Deus. O projecto salvador de Deus fica acabado ao gerar o Filho, comunicando-lhe a sua
própria vida e a sua divindade. Deus revelou-se totalmente ao comunicar a Jesus o seu amor, que o fez
participar do mesmo ser, realizando a íntima comunhão entre o Pai e o Filho. Ao dizer que “a Deus jamais
alguém o viu; o único Deus gerado, que está em íntima comunhão com o Pai, ele é que o explicou [deu a
conhecer]”, o evangelho de João ensina que é preciso reaprender a partir de Jesus o que se pode saber sobre
Deus. Com Jesus desapareceu a distância entre Deus e o ser humano e a busca angustiada de Deus. Depois
de Jesus, aquele que se afirma agnóstico tem a possibilidade de conhecer Deus: basta conhecer Jesus. Ele
apareceu no mundo na pessoa de Jesus de Nazaré. Para encontrar Deus, basta encontrar Jesus pela fé:
“Quem acredita em mim não acredita em mim mas naquele que me enviou; quem me vê a mim vê Aquele
que me enviou…; quem me recebe a mim recebe Aquele que me enviou” (Jo 12,44-45; 13,20); “eu estou no
Pai e o Pai está em mim” (Jo 14,10); “quem me vê vê o Pai” (Jo 14,9). 

S. Teresa está em perfeita sintonia com estas afirmações de João e com esta imagem definitiva de Deus
aparecida na pessoa de Jesus. Até as cita explicitamente nas segundas Moradas: “O próprio Senhor diz:
«ninguém subirá a meu Pai senão por mim»” (2M 1,11; 6M 7,6). Dessa forma, convida o leitor a ser
plenamente o que já é essencialmente. Introduz o fundamento do itinerário espiritual: é Jesus Cristo. A
primeira Morada põe Deus a convidar todos os humanos a comunicarem-se com Ele. A segunda Morada diz
que o mediador da comunhão com Deus é – e só pode ser – Jesus Cristo. Se a primeira insistia no
conhecimento próprio, a segunda apela ao conhecimento amoroso de Jesus e ao mistério da sua vida, morte
e ressurreição. E também aqui Teresa se apoia nos textos dos evangelhos, falando de Cristo homem, que
“não deixa de chamar-nos para que nos aproximemos dele” (2M 1,2). Chama todos, como em sua vida
chamou os discípulos. A resposta ao seu chamamento é dada na oração mental meditativa, rememorando
episódios narrados nos evangelhos. 

P. Armindo Vaz, OCD

 Para reforçar a representação do inestimável valor do ser humano, Teresa recorreu também à segunda
narrativa de criação, em Génesis, capítulos 2-3: “Se bem o consideramos, irmãs, não é outra coisa a alma do
justo senão um paraíso onde ele [Nosso Senhor] disse ter suas delícias. Pois não é isso que vos parece que
será o aposento onde um Rei tão poderoso, tão sábio, tão puro, tão cheio de todos os bens, se deleita?” (1M
1,1). Se, dizendo isto, Teresa pode ter pensado em Provérbios 8,31 (onde a Sabedoria é representada em
contexto de criação a dizer: “as minhas delícias são estar com os humanos”), também deve ter querido
referir-se ao tradicional «paraíso de delícias» de Gn 2-3, já testemunhado pela antiga tradução latina da
Bíblia (Vetus Latina) como “ horto de delícias [hortus deliciarum]”. Já no Livro da Vida (14,9) tinha usado a
imagem: “Era para mim grande deleite considerar a minha alma um horto e que o Senhor se passeava nele”. 

Para expor a experiência da grandeza da alma habitada por Deus, Teresa recorre a estes temas do Génesis,
sem percebermos com precisão se a leitura bíblica foi a inspiradora da experiência pessoal ou se a
experiência ajudou a compreender melhor o texto bíblico. Teresa faz-se eco do convite da narrativa bíblica a
superar a superficialidade, a deixar a periferia das coisas e a descobrir o sentido da vida e a riqueza interior
no fundo do ser humano. Por isso, logo no início do itinerário espiritual, acentua a necessidade do próprio
conhecimento como forma de entrar no castelo, isto é, em si mesmo: “é grande coisa o próprio
conhecimento” (1M 1,8). Desconhecer o próprio valor é viver na periferia de si próprio: “Não é pequena
lástima e confusão que, por nossa culpa, não nos entendamos a nós mesmos, nem saibamos quem somos”
(1M 1,2). 

P. Armindo Vaz, OCD

 O livro Moradas expõe um percurso de interioridade e de crescimento humano e espiritual. Mas esse
itinerário está perpassado de espírito bíblico. Foi na Bíblia que Teresa encontrou inspiração, suporte e
esclarecimento para exprimir a sua íntima experiência de Deus. Nas próximas catequeses verificaremos
como é assim.

Logo nas primeiras Moradas, a santa afirma categoricamente a grande dignidade de cada ser humano, numa
concepção altamente positiva sobre ele. Sentindo-se a si própria como um castelo habitado por uma presença
misteriosa mas real que é Deus, Teresa sente-se olhada por Ele: 
“Não encontro eu outra coisa com que comparar a grande formosura de uma alma e a sua grande
capacidade; na verdade, os nossos entendimentos, por agudos que sejam, mal podem chegar a compreendê-
la, assim como não podem chegar a considerar Deus, pois Ele mesmo disse que nos criou à sua imagem e
semelhança… Basta Sua Majestade dizer que a alma é feita à sua imagem, para que possamos entender a
grande dignidade e formosura da alma” (1M 1,1). 

Pela referência explícita que faz à primeira página do Génesis – “Deus disse: Façamos o ser humano à nossa
imagem, segundo a nossa semelhança” –, Teresa percebeu bem as incalculáveis consequências éticas a tirar
da contemplação bíblica do ser humano como criado por Deus. Lá está gravada a ideia que deveria
determinar a construção da pessoa e da sociedade. O Humano, imagem de Deus! A imagem não é a
realidade, aponta para a realidade. Dizer que Deus “criou o ser humano à sua imagem” significa que ele traz
em si indelevelmente gravada a imagem de Deus; significa que se deveria sentir inspirado a ser, a pensar e a
agir segundo Deus; significa que o ser humano mostra Deus aos outros humanos e que, de entre todos os
seres, é o mais próximo de Deus, o único capaz de captar a sua existência e de se relacionar com Ele;
significa que este Deus é sobretudo o Deus da pessoa e para a pessoa, o Deus que tem a ver com a pessoa.
Vê-lo como criado por Deus é contemplá-lo como querido por Ele. É pensar que tem uma dignidade que não
se perde (nem sequer pelo pecado), porque vem de Deus, dada por Ele. Quem atentar contra ela atenta
contra Deus – sugere o narrador bíblico. A fazer caso à contemplação miticamente proposta por Gn 1, o ser
humano, ao relacionar-se com o seu semelhante e ao usar as coisas, deveria ser um reflexo do ser de Deus e
do seu amor: se Deus criou as pessoas para as amarmos e as coisas para as usarmos, não podemos amar as
coisas e usar as pessoas. 

Esta meditação da primeira narrativa do Génesis terá ajudado Teresa a exprimir a sua experiência de que o
ser humano não está vazio por dentro: é como um castelo habitado pelo próprio Deus. 

P. Armindo Vaz, OCD

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