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O conselho de classe e a construção do fracasso

escolar *

Carmen Lúcia Guimarães de Mattos


Universidade do Estado do Rio de Janeiro

Resumo

Este texto descreve uma das formas de construção do Fracasso


Escolar de alunos e alunas do ensino fundamental. É parte dos
resultados da pesquisa etnográfica intitulada Fracasso escolar:
imagens de explicações populares sobre “dificuldades educacio-
nais” entre jovens de área rural e urbana no Estado do Rio de
Janeiro. Foi desenvolvida em duas escolas públicas. Durante qua-
tro anos de pesquisa foram observadas duas salas de aula de
quarta séries, cujas professoras voluntariamente colaboraram com
a pesquisa. Foram, também, acompanhados por meio de observa-
ção participante e videoteipe, por dois anos consecutivos, os con-
selhos de classe de todas as turmas das duas escolas. Nos Conse-
lhos de Classe percebeu-se a existência de uma orquestra-ção de
falas de professoras que ratificam mutuamente suas impressões
sobre os resultados escolares de seus alunos e alunas. Tal
orquestração caracteriza-se por expressões articuladas, de forma
interpolada, em conjunto, pelo grupo, constituindo-se numa de-
cisão final sobre o sucesso ou o fracasso do aluno ou da aluna.
Observou-se a indefinição e a ausência de critérios avaliativos de
origem acadêmica sendo substituídos por apreciações subjetivas
sobre o aluno ou a aluna. O que se conclui disso é que esta forma
de avaliação torna os alunos e as alunas com dificuldades educa-
cionais vulneráveis às decisões do Conselho, favorecendo seu fra-
casso escolar e sua exclusão do ensino fundamental do sistema
educacional. Observou-se ainda que o uso de videoteipe foi vital
para a fundamentação das análises e conclusões aqui apresenta-
Correspondência:
das.
Carmem Lúcia G. de Mattos
Rua Duque Estrada, 32 casa 101 Palavras-chave
22451-090 – Rio de Janeiro – RJ
e-mail:
carmemlgdemattos@globlo.com Etnografia — Exclusão educacional — Conselho de classe — Fracasso
escolar — Ensino fundamental.

*Gostaria de agradecer a generosa


colaboração da socióloga e pesqui-
sadora Ângela Xavier de Brito do
CNRS-Paris na reelaboração dessa
versão do texto.

Educação e Pesquisa, São Paulo, v. 31, n. 2, p. 215-228, maio/ago. 2005 215


The class council and the construction of school
failure*

Carmen Lúcia Guimarães de Mattos


Universidade do Estado do Rio de Janeiro

Abstract

This text describes one of the forms of constructing the School


Failure of boys and girls in fundamental education. It is part of
the results of an ethnographic study called “School failure: images
of popular explanations about ‘educational difficulties’ among
youths of rural and urban areas in the State of Rio de Janeiro”. The
research was carried out in two public schools. During four years
of study, two 4th-grade classrooms, whose teachers collaborated
voluntarily with the research, were observed. The class councils of
all classes from both schools were also observed during two
consecutive years through participative observation and video
recording. At the class councils, the existence of an orchestration
of teachers’ speeches was observed, in which they would mutually
reinforce their impressions about their pupils’ results. Such
orchestration was characterized by articulated statements
interpolated by the group as a whole, constituting a final decision
on the pupil’s success or failure. The study revealed the vagueness
and absence of academic assessment criteria, the latter being
replaced by subjective evaluations about the pupil. What can be
concluded from these observations is that the work of class
councils makes pupils with educational difficulties vulnerable to
the decisions of the council, favoring their failure and exclusion
from fundamental education. It was also observed that video
recording was essential to establish the analyses and conclusions
presented here.

Contact:
Carmem Lúcia G. de Mattos
Rua Duque Estrada, 32 casa 101
Keywords
22451-090 – Rio de Janeiro – RJ
e-mail: Ethnography – Educational exclusion – Class council – School
carmemlgdemattos@globlo.com
failure – Fundamental education.

* I would like to thank the generous


collaboration of the sociologist and
researcher Ângela Xavier de Brito
from CNRS-Paris in the rewriting of
this version of the text.

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Este texto visa a demonstrar, por meio da ação pedagógica desde o seu início, visto que
observação etnográfica de Conselhos de Clas- são nos Conselhos finais que as turmas dos
se associada à análise do discurso de determi- anos seguintes são formadas. Ressaltamos ain-
nadas professoras, de que maneira se constrói da que somente através do discurso da profes-
o perfil de alunos e alunas em situação de fra- sora, não seria possível validar significativamen-
casso nessas instâncias de avaliação escolar. te os resultados aqui apresentados. Assim, uti-
O material aqui utilizado faz parte de um lizamos o procedimento de triangulação com
projeto mais ampla intitulado Fracasso escolar: outros dados (entrevistas com as professoras,
imagens de explicações populares sobre “dificul- notas de campo e arquivos da escola), para
dades educacionais” entre jovens de área rural e obter o padrão manifesto nas diversas situações
urbana no Estado do Rio de Janeiro1 . Este tra- investigadas (Mattos, 1992a; Spradley, 1980).
balho de pesquisa foi realizado dentro de uma
abordagem micro-analítica2 inspirada nos traba- O funcionamento dos Conselhos
lhos de Erickson, que pressupõe a utilização de de Classe
técnicas audiovisuais para alcançar toda sua
extensão. A limitação a técnicas discursivas, pró- Por que centramos este texto nos Conse-
pria à redação de um artigo, apresenta o risco de lhos de Classe? Porque nossas observações mos-
empobrecer relativamente o trabalho. Procurou- traram que é no seio dessas instâncias coletivas
se, no entanto, descrever da melhor maneira de avaliação que as professoras se sentem mais
possível as cenas etnográficas (Wilcox, 1982) livres para manifestar suas impressões sobre seus
observadas, em uma tentativa de restituir o mais alunos e alunas. Tais reuniões permitem, assim,
integralmente possível a realidade observada. reforçar aspectos individuais da prática docente,
A análise se centra sobretudo nos regis- através do apoio de seus pares. Os Conselhos de
tros de observação dos Conselhos de Classe, Classe, nas escolas observadas e em muitas outras
durante um período de pouco mais de um ano do sistema educacional do Rio de Janeiro, são
(novembro de 1992 a dezembro de 1993), em praticamente a única instância coletiva que sub-
duas escolas situadas no estado do Rio de Ja- siste. Fundamentalmente por razões econômicas,
neiro. A primeira delas fica em uma área urba- uma grande parte dos departamentos de orienta-
na (município do Rio de Janeiro3 ), enquanto a ção pedagógica e de supervisão escolar, que ser-
segunda em uma área rural (Cachoeiras de viam como instâncias de discussão e apoio à prá-
Macacu). Os Conselhos de Classe observados tica docente, foram desmobilizados, deixando as
foram de classes de 1ª a 4ª série do ensino fun- educadoras entregues à sua sorte. Assim, à fun-
damental. No entanto, na escola rural, as classes ção precípua de avaliação do processo de apren-
de pré-escolar e alfabetização foram incluídas no dizagem, os Conselhos de Classe são vistos, em
grupo. Este estudo, mesmo tendo sido realiza- algumas escolas, como podendo proporcionar
do há dez anos, retrata uma prática recorrente. uma discussão livre entre colegas, com a finalida-
Sua atualidade deve-se ao fato de, apesar das de de buscar soluções para os problemas diag-
reformulações sofridas pela escola nos últimos nosticados. No entanto, não é isso que se obser-
trinta anos, o processo de avaliação ter sido
pouco alterado, ou seja, mantém-se o foco no 1. Projeto financiado pelas seguintes instituições de fomento: Inep-MEC,
conteúdo em detrimento da cultura do aluno ou Propp-UFF e CNPq.
aluna, promovendo a exclusão e o impedimen- 2. F. Erickson define a microanálise como “o estudo de perto da interação
através da análise etnograficamente orientada dos registros audiovisuais
to à construção da cidadania. [...] para documentar os processos interativos em detalhes e precisão ain-
O fato de a observação participante ter da maiores do que é possível com a observação participante”.
3. Apesar de situada em um bairro da Zona Sul do Rio de Janeiro (Gávea),
se iniciado quando do último Conselho de Clas- a escola urbana é freqüentada quase que exclusivamente por alunos da
se de 1992 permitiu o acompanhamento da Favela da Rocinha.

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vou aqui. Em primeiro lugar, os Conselhos de fonoaudiólogas, psiquiatras, logopedistas ou
Classe avaliam apenas alunos e alunas, não a psicopedagogas não apenas os alunos e alunas
interação pedagógica: a professora encontra ne- que, segundo elas, apresentam dificuldades de
les poucos mecanismos que incite o questio- aprendizagem, mas igualmente aqueles ou aque-
namento de sua prática. Em segundo lugar, não las com problemas comportamentais, de relaciona-
há propriamente discussão dos casos de alunos e mento, de assiduidade, de agressividade e mesmo
alunas: as professoras parecem esperar de seus de concentração. Visa a explicar como a mistura de
colegas apenas um referendo que valide a ima- fatores intra– e extra-escolares que invade o dis-
gem de alunos e alunas que elas construíram no curso das professoras, estigmatiza alunos e alunas
decorrer do ano letivo. Ora, quem diz referendo, (Goffman, 1975) e inviabiliza qualquer busca co-
pressupõe emissão de uma forma consensual letiva de soluções em termos escolares. As entre-
explícita de julgamento. Todavia, como mostrare- vistas com as professoras mostram que pelo me-
mos no decorrer deste texto, os Conselhos de nos algumas delas reconhecem a gravidade das
Classe das escolas observadas constituíam-se em decisões que devem tomar: para elas, “julgar” um
verdadeiros “diálogos de surdos”, nos quais o aluno ou uma aluna é coisa muito séria. No entan-
relato dos casos era extremamente entrecortado. to, a emissão de julgamentos fatalistas, precon-
O discurso de uma professora sobre o desempe- ceituosos e discriminatórios sobre alunos e alunas
nho de seus alunos e alunas, quase sempre asso- que apresentam “dificuldades educacionais” não é
ciado a problemas de personalidade, de compor- coisa rara nesse contexto.
tamento e relativos ao seu cotidiano extra-esco- A utilização de critérios extra-escolares na
lar (diretamente relacionados ou não com seu avaliação do aluno e da aluna é uma evidência
desempenho escolar) eram freqüentemente inter- nos Conselhos de Classe. Reforçados e validados
rompidos pelas outras professoras — desejosas, pelo coletivo escolar, tais avaliações, baseadas em
por sua vez, de emitir seus julgamentos e opi- comentários e opiniões, assumem dimensões
niões, seja sobre seus próprios alunos e alunas, maiores e são decisivos na determinação do fu-
seja sobre as crianças confiadas a suas colegas. A turo dos alunos e das alunas. Elaboramos a hipó-
existência desses procedimentos faz com que o tese de que tal procedimento tem por objetivo
Conselho de Classe se torne um locus de obser- implícito tornar mais fáceis de suportar as péssi-
vação importante para pesquisadores interessa- mas condições materiais e/ou institucionais das
dos em desvelar o complexo fenômeno do fra- escolas que observamos. O apelo a soluções ex-
casso escolar, que leva à exclusão de muitos tra-escolares permite que as professoras se não se
jovens da escola. sintam culpadas, aliviando a tensão inerente à
Este artigo descreve igualmente a maneira prática exercida em condições tão drásticas, para
pela qual, nesses Conselhos, as educadoras atribu- a qual não se sentem armadas intelectual e ma-
em muito facilmente a causas psicológicas o fra- terialmente. Nossas observações são corroboradas
co desempenho escolar de alunos e alunas, sem por outros pesquisadores que trabalham sobre a
possuírem nem os elementos, nem os conhecimen- educação (McDermott; Hood, 1982; Patto, 1987):
tos necessários para tais afirmações. Diagnósticos
e encaminhamentos para tratamento médico e Após vários anos de pesquisa em escola,
psicológico são práticas comuns nas escolas obser- encontrei uma prática cujas implicações,
vadas. Em cinqüenta casos apresentados durante pela sua gravidade, não pode ser mais ig-
um ano, nenhum pôde ser solucionado através de norada por todos que, de alguma forma,
uma medida prática dentro do âmbito escolar, todas participam nela. É a prática de atribuir a
as soluções foram remetidas para fora da escola. frustração do desejo dos educadores, de
Professoras, diretoras e orientadoras concertam-se submissão das crianças, a deficiências ou
implicitamente para encaminhar a psicólogas, distúrbios psíquicos de que essas crianças

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seriam portadoras. Complementar a essa de essas expressões tomarem vulto durante os
prática de atribuição de causas a distúrbios Conselhos de Classe evidencia a forma que as-
psíquicos das crianças, o encaminhamento sume o processo de avaliação escolar. As impres-
dos insubmissos para diagnóstico é um an- sões individuais emitidas pelas professoras para
seio dos professores e técnicos escolares. justificar o rendimento do aluno e da aluna,
(Patto, 1987) assim como o perfil que constroem, são valida-
das pelo conjunto de pares.
Como o aluno constrói seu A atitude das professoras remete igualmen-
conhecimento te a um outro problema já diagnosticado na lite-
ratura sobre educação – o da responsabilização
Na opinião das professoras observadas, as mútua pelo fracasso escolar das duas principais
dificuldades educacionais do aluno e da aluna instâncias de socialização, a escola e a família.
têm sua origem na incapacidade em construir Parece-nos, entretanto, que, na realidade brasilei-
conhecimentos acadêmicos. De maneira geral, a ra, a responsabilização da família pela escola vai
educadora vê o processo de ensino/aprendiza- mais longe do que o diagnóstico mais corrente na
gem de modo dicotomizado: ela ensina e o alu- realidade européia – onde os pais são, no mais das
no e a aluna aprendem (Freire, 1987). Assim, vezes, acusados de falta de interesse pelo desem-
quando o processo de aprendizagem desses alu- penho escolar dos filhos e filhas. Nas cenas que
nos não são bem-sucedidos, estes são percebi- observamos, a responsabilidade familiar assume
dos como portadores de um bloqueio cognitivo mesmo um aspecto “genético”, à medida que
que os impedem de aprender (Mattos, 1992a; algumas crianças são assimiladas aos problemas
Patto, 1987). Esta justificativa comumente utili- precedentemente diagnosticados em seus irmãos
zada por professoras não teria tanta importân- e irmãs ou ao comportamento dito “anti-social”
cia na avaliação geral de alunos e alunas se a de seus pais (alcoolismo, uso de drogas e até
professora encontrasse alguma dificuldade em mesmo pobreza).
validá-la no decorrer do Conselho de Classe. As cenas etnográficas descritas abaixo
Mas, ao contrário, o apoio tácito das colegas constituem exemplos da atitude das professo-
reforça suas impressões, muitas vezes precon- ras durante os Conselhos de Classe e ilustram a
ceituosas e de caráter psicologizante. Tanto o hipótese de que, no seio dessas escolas, existe
discurso como a prática das professoras são uma construção coletiva do fracasso escolar
construídos como se a incapacidade cognitiva (Erickson, 1987; Fine, 1991). Elas colocam em
fosse inerente ao aluno(a). Ilustram essa afirma- evidência a tese do deslocamento dos proble-
ção expressões do tipo: “ele não aprende”, “ele mas escolares para fora da escola, impedindo
não consegue aprender”, “ela tem um bloqueio”, uma análise mais clara da interação pedagógi-
“não tem mesmo jeito, ela não aprende nada”. ca e, dessa forma, das causas do fracasso es-
Constatamos mesmo algumas referências bastan- colar (Patto, 1987; Mattos, 1992a).
te pejorativas: uma das professoras refere-se a
um aluno dizendo que “ele tem um Q.I. de “O tempo da Alessandra4 é
ameba...”. Esse discurso, que caracteriza as difi- diferente” [...]
culdades educacionais como distúrbios cogni-
tivos fundados em aspectos psicológicos, visa a No decorrer de uma discussão sobre os
comprovar a incapacidade da criança em apren- conteúdos mínimos no Conselho de Classe da
der o que lhes é ensinado, sem que a professo- escola urbana do dia 30 de setembro de 1993,
ra se coloque em questão. Embora este seja um
4. Embora todos os participantes tenham espontaneamente autorizado o
procedimento corriqueiro no cotidiano escolar, uso de seus verdadeiros nomes, decidimos modificá-los para preservar
já amplamente estudado em psicologia, o fato suas identidades.

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a professora Suzana fala sobre a sua turma, que passou a ir em Copacabana no consultório
ela considera “difícil”, pois tem “vários alunos dela... Mas a Alessandra, a mãe... (diretora)
carentes”, “que não têm rendimento”5 . À per- – É, a conclusão que a gente chega é real-
gunta da diretora sobre quais são os alunos em mente psicológica! (Teresa interrompe a di-
recuperação, a professora assinala oito crianças, retora)
começando a falar sobre cada uma delas e – [...] não levou ela, ela é o caso... o caso
destaca o caso da aluna Alessandra. As demais típico de um trabalho psicopedagógico,
professoras, inclusive a orientadora pedagógi- com certeza! (diretora)
ca e a diretora da escola, também se manifes- – [...] eu fui muito legal com ela, eu tentei
tam sobre o caso. paparicar e consegui alguma coisa. Aí tem
hora que eu tava, eu perdi a paciência, aí
– Agora tem casos também como eu te fa- Alessandra, tá feito? Aí eu tentei ser radical
lei. A Alessandra, ela melhorou, no compor- também, aí eu vi que não conseguia tam-
tamento e tudo... mas ela não escreve nada. bém nada com ela. Aí eu tentei maneirar,
(Suzana, professora responsável) entendeu? Mostrava as condições pra ela,
– O tempo da Alessandra é diferente, né? tipo uma chantagem, você não vai ao re-
Ela vai ter que ter mesmo um... (diretora) creio, você não vai à PUC, pra lugar ne-
– Ela não escreve! Eu dito do lado, ela não nhum, entendeu? Aí ela começou: “tia, tá
escreve. Eu cheguei à conclusão [de] que certo? Eu consegui”. Então é aquele tipo de
ela não sabe escrever, ou então, o quê que pessoa que você atende a todo momento,
acontece... eu falo outras coisas e ela escu- isso é impossível a gente fazer isso. E eu
ta... Visão não é. Então não é porque... acho ela uma pessoa esperta, capaz, ela
(Suzana) acerta rápido, agora o negócio é ela querer
– Ela se nega. Eu acho ela até capaz, mas então toda atenção pra poder, aí não é pos-
eu acho que ela se nega, quando ela que- sível a gente fazer isso, entendeu? (Teresa)
ria fazer, ela fazia. (Teresa) – A dificuldade maior dela é a escrita, na
– Mas pra mim ela nunca fez [referindo-se escrita eu já, eu já fiz um teste aqui na
às tarefas de aula], ela tá bem melhor em Alessandra que ela ficou super feliz, ela ti-
comportamento, ela não agride mais, ela rou 95. (Suzana)
aceita. Ela leva, ela continua levando bron- – Mas aí ela participa... (Teresa)
ca e tal, mas ela aceita. (Suzana) – E a leitura? Ela consegue ler? (Gigi)
– Mas aí ela se nega. (diretora) – Não consegue ler, mas é melhor do que a
– Não, não, não é pirraça, é um estado co- escrita. Ainda é um pouquinho melhor que
mum... Até que as contas, eu dei vários tes- a escrita. (Suzana)
tes pro pessoal... ela até que conta. Ela – Eu acho que ela não quer participar. Eu
consegue fazer alguma coisa... mas escrever acho que ela se nega... Ela é apática a
ela não consegue. (Suzana) tudo, quando eu a peguei na classe de al-
– A Alessandra, você se lembra que nós che- fabetização, ela não queria nem entrar na
gamos a encaminhar a Alessandra pro Noap6 , sala... ela não quer nada com a aula! [...] O
inclusive ela tem um irmão, né? Tem um ir-
mão com problema sério, tá? (diretora) 5. Conteúdos Mínimos – de acordo com a Secretaria Municipal de Edu-
– Neurológico... (Bia). cação do Rio de Janeiro o currículo básico ou “conteúdo mínimo” é o con-
junto de conceitos nucleares que têm um caráter integrador, possibilitando
– Tá sendo até, não sei se ainda continua, ao aluno pensar o mundo de maneira articulada a partir das disciplinas que
mas tá sendo atendido lá, particularmente compõem este currículo escolar.
6. Núcleo de Orientação e Aconselhamento Psicopedagógico (PUC do
com uma psicopedagoga da PUC, sabe? Ela Rio de Janeiro). Este núcleo situa-se na mesma rua da escola urbana, em
se interessou tanto pelo, pelo caso que ele, frente a ela.

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problema dela, eu acho que se ela tratar no maneira diferente quando em interação com
psicólogo, ficar, tá, eu acho que ela até uma outra professora ou em outro contexto que
consegue! [...] Cê tava dando a sua aula, não o escolar (Erickson, 1987). Nesse sentido,
né? Eu acho que a dificuldade dela só é o discurso de Teresa é paradigmático: valoriza
psicológica. Tanta dificuldade, né? (Teresa) sobretudo os esforços feitos no sentido de
melhorar o rendimento da aluna, sem visão
Alessandra é objeto de avaliações diver- crítica alguma dos métodos empregados. Aliás,
gentes por parte de duas professoras: Suzana, mesmo quando solicitadas a fazer uma crítica/
atualmente responsável por sua classe, e Tere- autocrítica de sua prática — como observamos
sa, de quem já foi aluna no passado. Enquan- no Conselho de Classe de 4 de dezembro de
to a primeira insiste em seus fracassos e tem 1992 da escola rural — raras são as professo-
uma visão inteiramente negativa da aluna, a ras que falam de suas deficiências: o discurso
outra a percebe como uma criança “esperta” e recai sempre nos problemas encontrados entre
“capaz”, mas que apresenta uma resistência ao os alunos e as alunas.
processo de aprendizagem. Reconhecemos aqui A terceira constatação ilustra o despreparo
avaliações correntes nos meios pedagógicos, e a negligência das professoras diante dos aspec-
em que crianças são apontadas como “apáti- tos emocionais envolvidos no processo de apren-
cas” ou “sem participação” por não se adapta- dizagem. Quando a criança começa a apresentar
rem ao estilo pedagógico de algumas professo- sinais de motivação, Teresa se sente por demais
ras ou até mesmo da escola que freqüentam. A solicitada afetivamente e rompe a relação de
professora Suzana, contraditoriamente, afirma confiança nascente... porque “é impossível a gen-
num primeiro momento a total incapacidade da te fazer isso”, dar a uma criança toda a atenção
aluna diante da escrita — “ela não escreve que ela requer.
nada” — para, logo a seguir, reconhecer que a O quarto ponto da análise revela a im-
mesma alcançou nota 95 (numa escala de 0 a portância dos aspectos comportamentais de
100) num teste de escrita. Por sua vez, Teresa alunos e alunas, como se estes fossem indepen-
considera que a apatia dessa aluna é apenas dentes da atitude das professoras: o fato de
uma questão de desejo de sua parte — “quan- Alessandra “aceitar as broncas” que leva, o fato
do ela quer, ela faz”. de ela não “agredir mais”, é percebido de ma-
A primeira constatação a que nos leva neira positiva. Parece-nos que os aspectos
este caso é a grande intolerância das professo- comportamentais são aqui apresentados como
ras com relação às diferenças individuais dos um revelador das possibilidades cognitivas. A
alunos. Tudo se passa como se todos os alunos “pecha” de “rebeldia” ou “agressividade”7 recai
e alunas devessem aprender no mesmo ritmo. A sobre os alunos e alunas porque eles apresen-
problemática do tempo na aprendizagem é um tam comportamentos não aceitáveis, segundo
tema que as análises do processo educativo os critérios professorais, dentro da sala de aula.
não levam suficientemente em conta. No caso Esse anseio por uma submissão dos alunos e
de Alessandra, a diretora justifica o fato de ela alunas, já igualmente diagnosticado por outros
não saber escrever como uma diferença cogni- pesquisadores (Patto, 1990), confunde-se com
tiva ligada ao tempo (lentidão) com relação às
outras crianças. 7. Um caso exemplar dessa atitude docente foi observado durante o Con-
A segunda constatação é que as profes- selho de Classe da escola rural do dia 4 de dezembro de 1992, onde uma
professora classifica o comportamento de um aluno de “super-rebelde” e
soras não colocam, em momento algum, em “agressivo” apenas porque ele “chama a atenção” sobre si. Ela faz desta
pauta, o fato de que sua maneira de ensinar situação um estado definitivo quando confessa que “isso não tem jeito”. De
acordo com a visão desta professora, a relação quase automática entre
pode não despertar o interesse da criança e que comportamento em sala de aula e desempenho se constitui em fator
esta pode, como constatamos, comportar-se de determinante do fracasso escolar.

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freqüência com o desempenho escolar, como se atendimento especial no Noap, então, o
fosse preciso dobrar-se passiva e inteiramente máximo que a gente consegue dentro da
às normas escolares para aprender. No entanto, sala, a gente vê que não depende só da
com freqüência, o contrário acontece, observa- gente, nem dele mesmo, depende de um
mos que as interações que orientam o proces- outro atendimento por fora. (Renata)
so de socialização de alunos e alunas são in- – É, esse menino... (orientadora pedagógi-
visíveis entre os mesmos. Todos esses fatores ca)
configuram claramente para estas professoras a – Sem isso, a gente fica... (Renata)
necessidade de encaminhamento para tratamen- – Ele, ele já vinha com atendimento ano
to psicológico da aluna em questão – reforça- passado, não foi? E a mãe deixou de levar,
do pelo fato de que já existem antecedentes perdeu a vaga, ainda pedi pra ela ir lá pra
familiares, como se problemas “emocionais” ver se ela conseguia novamente, mas a
fossem geneticamente transmissíveis. vaga, esse ano foi muito restrito assim.
(orientadora pedagógica)
Sem atendimento psicológico, a – É porque não tem vagas, tem aquela me-
gente fica... nina, como é o nome dela, Patrícia? Uma
alta... (diretora)
É verdade que, sem o recurso ao aten- – Não, surda... Por causa da... é... audição...
dimento médico, as professoras se sentem ex- (orientadora pedagógica)
tremamente fragilizadas. O trecho seguinte, to- – Da audição, Denise. (diretora)
mado de um outro Conselho de Classe (escola – É, mas essa até que... (Renata)
urbana, 9 de dezembro de 1992), confirma o – Tem a da audição, tem aquela outra...
quanto as professoras são marcadas por uma (diretora)
imagem da classe “ideal”, na qual prevalece o – Da ABBR 8 que veio... (Renata)
critério da “normalidade” dos alunos e das alu- É, a Renata tem alguns casos trabalhosos...
nas e como estes se sentiriam perdidos sem a (orientadora pedagógica)
medicalização das práticas desviantes. Qualquer
desvio à norma, seja ele de ordem física (sur- Esse trecho ilustra bem o amálgama entre
dez, deficiência motora, deformação) ou men- os conceitos atribuídos aos alunos e o diagnósti-
tal (agressividade, falta de concentração, agita- co infundado de encaminhamento psicológico. A
ção) compõe um quadro de dificuldades que professora sequer se lembra muito bem do concei-
lhes parecem insuperáveis. A solução é remetê- to que deu ao aluno, mas a necessidade de aten-
los para fora da esfera escolar. dimento psicológico está bem clara em seu espí-
rito. A própria organização da avaliação incita a
– E tem um outro também aqui, esse aqui estabelecer essa confusão: como os conceitos
que eu não sei direito, mas eu acho que ele são cumulativos (no sentido de que não se pode
também, eu dei “C”, o Alex também veio diminuí-los, mas apenas aumentá-los), as profes-
com... (Renata) soras preferem resguardar-se de um possível des-
– Você colocou aqui como... Um aluno mentido sobre a exatidão de suas avaliações,
com dificuldade de aproveitamento do ter- atribuindo aos alunos e alunas em dificuldade,
ceiro bimestre, o Alex. (Denise, orientadora quase que de maneira preventiva, um conceito
pedagógica) mais baixo. O aluno e alunas são assim punidos
– No terceiro, eu coloquei com dificuldade, em termos escolares por apresentarem uma defi-
mas eu acho que coloquei com dificuldade, ciência de ordem psicológica aos olhos da profes-
mas eu acho que eu coloquei D, acho que
foi no caso dele, porque ele precisa de 8. ABBR: Associação Brasileira Beneficiente de Reabilitação.

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sora. Como esperamos ter demonstrado, tal com- 1. Elas podem projetar a culpa do fracasso da
portamento não tem nada de excepcional. Ao de- interação pedagógica sobre o aluno e a aluna,
legar a solução dos problemas que conduzem ao sobre seu nível de inteligência ou suas carac-
fracasso do aluno e da aluna a terceiros, as pro- terísticas de personalidade (discurso de Rita,
fessoras diminuem o peso que lhes recai sobre os no caso de Valéria).
ombros e evitam qualquer questiona-mento de suas 2. Elas podem culpar a família por não acatar
práticas. as injunções escolares, seja porque não estão
Queremos aqui enfatizar o quanto é difí- de acordo com elas, seja porque não lhes dão
cil restituir os significados implícitos dos discur- importância, seja porque não se interessam
sos desses atores sem o recurso do vídeo. Por pelo processo escolar de seus filhos (discurso
exemplo, na passagem acima, corremos o risco de de Denise, no caso de Alex; discurso da dire-
que a atitude de descrédito quanto ao desempe- tora, no caso de Alessandra).
nho desse aluno que imputamos à orientadora 3. Elas podem ainda chegar à conclusão de que
pedagógica pareça apenas resultante de uma esse processo ultrapassa tanto as possibilidades
projeção ideológica de nossa parte. Como atribuir da professora como as do aluno e da aluna (dis-
significados a esses discursos sucintos, entre- curso de Renata, no caso de Alex) e depende di-
cortados, cheios de subentendidos? Por um lado, retamente de instâncias especia-lizadas exteriores
é graças aos gestos e expressões faciais no à escola. É nesse sentido que eles lamentam o
momento da fala, captados pelo vídeo, que po- número reduzido de vagas oferecido no NOAP.
demos reconstituir os sentidos implícitos. Por
outro lado, a permanência prolongada em cam- Essa passagem reforça outra afirmação
po permite a coleta de um grande número de que fizemos no início deste texto, com relação ao
dados correlacionados à prática docente, uma funcionamento do Conselho de Classe como um
maior familiaridade com os sujeitos da pesquisa “diálogo de surdos”. O relato da professora sobre
e até mesmo um conhecimento relativo da bio- Alex é interrompido pela fala da diretora , que
grafia dos atores. No caso de Teresa, por exem- introduz o caso da aluna Patrícia. A orientadora
plo, interpretamos sua tendência a medicalizar pedagógica retoma esse novo caso, esquecendo-
todas as situações escolares como se o fato de ser se da discussão em pauta. Novamente o assunto
casada com um médico a levasse a considerar-se é desviado para a história de outra aluna, deixan-
possuidora do mesmo saber de seu marido, como do de lado os dois primeiros. Assim, todos os
se ele pudesse ser-lhe transmitido por osmose. casos e histórias de alunos e alunas vão se entre-
A responsabilização da família fica cla- cortando, a ponto de não podermos mais distin-
ra tanto no caso de Alessandra, como no caso guir sobre que aluno ou aluna os professores
de Alex. No primeiro caso, o atendimento psi- estão falando, qual o objeto e o objetivo de suas
cológico não foi possível porque a mãe, por intervenções. A discussão termina com a consta-
resistência ou negligência, não levou a meni- tação de que a turma da professora Renata tem
na ao Noap. No segundo, há uma clara refe- muitos “casos trabalhosos”, sem que se tenha
rência à displicência materna com relação à di- dado a esta professora a oportunidade de discu-
ficuldade de aprendizagem a trajetória escolar ti-los até o fim ou de encontrar meios para solu-
de seu filho, quando a professora comenta a cionar suas dificuldades.
interrupção do atendimento do aluno. As ce-
nas descritas mostram que as professoras se “Depois do atendimento no
eximem de suas responsabilidades para com o NOAP, ele ficou ótimo” [...]
processo de aprendizagem e de socialização
de seus alunos e alunas recorrendo a fatores No caso que se segue (escola urbana, 30
de ordens diversas: de setembro de 1993), os professores retomam,

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quase um ano depois, a avaliação de Alex — alu- te. Os alunos e alunas afirmam que há um cer-
no cujo comportamento e desempenho, segundo to tipo de indisciplina tolerada, ou mesmo per-
eles, melhorou bastante depois que o mesmo re- mitida, pelas professoras. O fato de os critérios
cebeu tratamento clínico. Trata-se do mesmo alu- das professoras não serem claros e a distinção
no citado acima, que apresentava problemas entre o que é aceito ou proibido ser difusa, au-
desde 1992 e que foi encaminhado para trata- menta a sensação de arbitrariedade do que é
mento psicológico, perdendo a vaga por “negli- considerado disciplina na sala de aula, fazen-
gência” da família. O atendimento psicológico que do com que eles fiquem confusos (Mattos,
recebeu teve o mérito de torná-lo mais calmo, 1998). Lembremos ainda que um certo tipo de
mais receptivo às instruções pedagógicas — o que interação entre alunos e alunas contribui posi-
é visto pela professora com satisfação. tivamente para o processo de socialização dos
mesmos, à medida que é por meio deles que as
– Se bem que o Alex é um outro caso, gen- crianças aprendem as maneiras toleradas de
te, esses alunos todos, todos os alunos que burlar as normas e as margens de liberdade
tão colocando, foram alunos da Leila, que social.
nós encaminhamos para o NOAP, Alex co- No caso em pauta, a ficha desse aluno
meçou a ser atendido... (Orientadora Peda- revela que, apesar da interrupção do atendi-
gógica) mento psicológico, seu conceito atual não é
– É, ele melhorou bastante na época.[...] tão ruim como se poderia supor. Alex, que ti-
Quando ele repetiu a 1º série e ficou com nha, como vimos, recebido conceito D no ano
atendimento no NOAP, o rendimento foi anterior, apresenta no ano seguinte média B, o
ótimo, ele só não conseguiu chegar a “A” que o coloca na faixa dos bons alunos e alu-
porque ele na escrita dele, ele tem algum nas, pelo menos no que se refere ao desempe-
problema neurológico, que de repente nho escolar. A referência à melhora do aluno
emenda tudo, agora quando ele tá calmo refere-se, no entanto, quase que exclusivamente
ele faz tudo certinho, quer dizer, na época aos aspectos comportamentais: ninguém põe
que ele fazia NOAP, ele melhorou bastan- em valor seus progressos escolares.
te.... (Leila)
“Ela é emburrecida mesmo” [...]
A prova de que o atendimento psicoló-
gico recebido pelo aluno por orientação da Não raro encontramos no discurso das
escola tem uma relação direta com a melhora professoras expressões pejorativas, no limite da
de seu comportamento é que este volta a pio- grosseria, que desumanizam seus alunos e alu-
rar assim que o atendimento pára, por culpa da nas. Levantamos a hipótese de que elas proce-
família. Na opinião das professoras, o tratamen- dem assim no intento de expressar sua indig-
to psicológico parece ser uma condição neces- nação pelas dificuldades educacionais inerentes
sária ao bom desempenho escolar de um cer- ao processo de aprendizagem, que lhes pare-
to tipo de aluno ou aluna, na medida em que cem insuperáveis — sem pensar nas conseqüên-
os ajuda a acatar a disciplina escolar, as regras cias que tais locuções podem ter sobre a auto-
de comportamento em sala de aula (calma), as estima das crianças. Os alunos e as alunas,
indicações pedagógicas da professora (fazer geralmente, têm consciência do significado des-
tudo certinho). No entanto, entrevistas com ses termos, empregados tanto nos Conselhos de
vários tipos de atores do processo educativo Classe quanto nas salas de aula (Mattos, 1992b).
(professoras, orientadoras, pais e os próprios Mas, como vimos também no caso acima, no
alunos e alunas) mostraram que cada um deles Conselho de Classe, a professora tenta classifi-
concebe a disciplina de uma maneira diferen- car os alunos e as alunas, por um lado, com

224 Carmem Lúcia G. MATTOS. O conselho de classe e a...


relação à imagem abstrata do “aluno médio”, penho da aluna durante o ano letivo. Seu discur-
por outro lado, com relação àqueles alunos e so destaca sobretudo sua “generosidade”, seus
alunas da sua turma que mais se aproximam esforços para tentar solucionar as deficiências da
desta imagem “ideal”. As impressões destas pro- mesma, sem se interrogar se a natureza de suas
fessoras reforçam a antiga tese da deficiência práticas corresponde à personalidade da aluna,
cognitiva de origem genética e natural e ampli- minimizando os esforços desta para corres-
am a crença no determinismo social como jus- ponder à sua dedicação. À medida que seu
tificativa para a falta de inteligência do(a) empenho não apresenta resultados satisfatórios,
aluno(a). Mas não nos deteremos na análise da ela atribui isso exclusivamente à aluna, dizendo
natureza histórico-social destas justificativas. O que esta tem, de toda evidência, “um bloqueio”.
que nos interessa aqui é o processo de construção
das mesmas, explicitando de que maneira um perfil “O caso dela... é uma pré-
equivocado do aluno e da aluna pode contribuir dislexia” [...]
sobremaneira para a sua estigmatização, e até
mesmo para sua exclusão social. Examinaremos a Ao listar o nome daqueles considerados
seguir, neste sentido, o caso da aluna Valéria. aptos a ingressar na classe de alfabetização, o
No Conselho de Classe da escola urbana principal critério utilizado pela professora Isabel,
do dia 10 de dezembro de 1993, a professora do pré-escolar (escola rural, Conselho de classe
Rita descreve os problemas da sua turma e de 4 de dezembro de 1992), é a idade do alu-
enfatiza os casos que são, segundo ela, “mais nos. No entanto, a diretora questiona a inclusão
sérios”, apresentados como “atípicos”: nesta lista de alunos com problemas de inversão
de letras ou com dificuldades de dicção.
– A Valéria é, a Valéria tem problemas serís-
simos, meu Deus do céu... Tudo, bito- – Agora, problema de dicção que eu já no-
ladíssima, mas faz tudo, fica comigo depois tei, Camila, ela fala o X pelo R... (Isabel)
da hora, o pessoal: A Valéria não vai embo- – Sabe o que, esses alunos que apresentaram
ra não? Deixa a Valéria aí!... (Rita) problemas na dicção... é avaliado porque eles
– [..] Quer dizer, é horrível o que vou usar, podem apresentar mais tarde problema de,
é emburrecida mesmo, ela quem sabe, é ela até encaminhamento com fonoaudiólogos e
não tem, sabe? Ah gente, sabe? O trabalho tudo. (orientadora pedagógica)
que a gente vê, que a gente dá, tá enten- – A Camila não, é porque é muito novinha,
dendo? Ela até pra falar, mas faz né... (Rita) ela é tão novinha. (Sônia)
– Ela faz, tá vendo? Tá C, C, C, C, exprimi- – É uma pré, é uma pré-dislexia. (orientadora
do, né? Ela tem um, tem problema, um blo- pedagógica)
queio total, mas é demais de esforçada, mas – Ela é novinha, mas ela fala tudo perfeita-
demais, o negócio é que... (Rita) mente, ela fala tudo perfeitamente,... mas o
X e o R, ela.... (Isabel)
Solicitada pela diretora a emitir seu juízo – Mas não é comum nessa idade? (Sônia)
sobre a natureza das dificuldades da aluna Va- – É isso que a gente tem que acompanhar,
léria, a professora usa expressões de uma extre- entende? (orientadora pedagógica)
ma violência, classificando-a de “bitoladíssima” – Camila tem 3, fez 3 anos em... (Isabel)
e “emburrecida”. Ela tem, no entanto, uma cer- – Sônia, Sônia, por isso que a gente tem que
ta consciência de que este procedimento corre acompanhar, porque pode ser um problema
o risco de ser censurado até mesmo por seus de imaturidade ou pode ser uma pré-dislexia,
pares e manifesta um certo embaraço ao expri- que vai aparecer depois... (orientadora peda-
mir-se dessa maneira para caracterizar o desem- gógica).

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Quando a professora responsável pela clas- realizada no Brasil. Os resultados deste estudo
se destaca a dificuldade da aluna Camila, a apontam no sentido de uma vulnerabilidade da
orientadora pedagógica associa o fato de a alu- escola quanto ao modo de funcionamento dos
na trocar o fonema X pelo fonema R a um futu- Conselhos de Classe como um dos principais
ro problema e sugere um diagnóstico de possível componentes do processo de avaliação do alu-
encaminhamento médico, a partir dos poucos no. Parece-nos que a hipótese de que a função
dados que possui sobre o caso. Tudo se passa implícita dessas instâncias de fortalecer e con-
como se esta profissional, que estava dirigindo firmar as visões negativas, por vezes infundadas
esse Conselho de Classe, quisesse impor seu co- ou apressadas, que as professoras traçam de
nhecimento especializado, sem ter elementos para alunos e alunas com dificuldades de aprendiza-
tanto. A responsável pela turma – que suposta- gem foram amplamente estabelecidas pela aná-
mente deveria conhecer melhor o caso em pau- lise etnográficas das cenas apresentadas. Tudo
ta – aparentemente não ousa questionar esse indica que, diante da difícil realidade escolar, do
discurso. É a voz de uma outra professora (Sonia) seu despreparo técnico e dos obstáculos que
que se ergue, para se opor a esta conclusão que parecem ultrapassar suas possibilidades de
lhe parece bastante prematura, lembrando a pou- ação, as professoras se sentem impotentes e
ca idade da aluna. Só então a professora respon- paralisadas. Elas tentam assim eximir-se de pos-
sável ousa emitir sua opinião, reforçando a de sua síveis culpas quanto a suas responsabilidades
colega. Parece-nos que se instala então um con- para com o processo de aprendizagem e de
flito de hierarquia de saberes, onde a orientadora socialização de seus alunos e alunas, recorren-
pedagógica quer afirmar sua autoridade a todo do a recursos diversos: eles tanto podem projetar
custo e não aceita bem a intervenção da profes- a culpa do fracasso da interação pedagógica
sora que coloca em questão seu diagnóstico. A sobre o aluno e a aluna, sobre seu nível de in-
insistência da colega parece irritar a orientadora teligência ou suas características de personalida-
pedagógica, que reforça então sua opinião em de, traçando um perfil desumanizante e precon-
termos técnicos — evocando equivocadamente a ceituoso que comprove a impossibilidade de seu
possibilidade de uma pré-dislexia, quando o fe- desenvolvimento cognitivo por maior que seja a
nômeno comentado se aproximaria mais de uma competência e os esforços da professora; quanto
dislalia. Além disso, ela trata de maneira irônica podem responsabilizar a família por não acatar
e paternalista a professora que ousa levantar-se as sugestões escolares quanto ao futuro de seus
contra seu saber especializado. No entanto, dian- filhos, ou ainda remetê-los a instâncias especia-
te da resistência inesperada, ela termina por mos- lizadas exteriores à escola. Esta última forma
trar-se um pouco mais flexível em sua opinião, adotada para se eximir da culpa — a atribuição
aceitando considerar a hipótese da imaturidade da apressada do fraco desempenho escolar a cau-
aluna, sem entretanto deixar inteiramente de lado sas psicológicas — assume características de
a idéia que defendeu desde o início da discussão. uma profecia auto-realizável, cujo fundamento
Nas entrelinhas desta situação está inscrita a fa- se encontra, por vezes, até mesmo em fatores
talidade do encaminhamento médico que pesa de caráter genético. Poucos atores do sistema
sobre os alunos que apresentam dificuldades escolar têm consciência desse fato. No entan-
escolares, qualquer que seja sua idade ou os fa- to, a entrevista com duas diretoras da escola ur-
tores que cercam a situação de fracasso. bana é bastante eloqüente a esse respeito: estas
duas profissionais são unânimes ao afirmar que
Considerações finais o recurso à medicalização do fracasso não ape-
nas isenta a professora de culpa, mas também
A pesquisa que fornece o material sobre serve como elemento desmobilizador do aluno e
o qual este texto se centra foi inteiramente da aluna, em seu processo de aprendizagem.

226 Carmem Lúcia G. MATTOS. O conselho de classe e a...


Apesar de ter sido amplamente diagnosticada por Tais descrições ignoram com freqüência os pro-
pesquisadores da área de educação, essa práti- gressos dos alunos, insistindo nos aspectos nega-
ca continua em vigor nas escolas, assumindo tivos. Raras vezes assistimos a uma verdadeira
proporções desastrosas. avaliação do processo de aprendizagem do(a)
A observação dos Conselhos confirma aluno(a), por meio do seu desempenho na reali-
ainda a hipótese de que a interação pedagógica zação de tarefas, nos testes de conteúdo e em seu
jamais é levada em conta, seja pelas próprias crescimento intelectual em relação à turma. Nas
professoras, seja pela instituição escolar. Não escolas observadas, o bom rendimento obtido por
existe no seio desta última nenhuma instância alguns alunos e alunas num concurso de redação
de reflexão crítica sobre a prática das professo- ou na olimpíada de matemática, sua vitória no
ras. Por sua vez, a produção acadêmica sobre festival interescolar de música, nunca foram evo-
esse tema destina-se mais aos pares acadêmi- cados dentro dos Conselhos de classe. Esses as-
cos do que aos atores escolares: os esforços de pectos positivos eram sempre desconsiderados e
vulgarização da literatura científica e os proje- substituídos por comentários desabonadores, que
tos que prevêem uma colaboração entre o pes- ferem as mais simples normas de ética profissio-
quisador e a professora ainda são escassos. nal. Os resultados deste estudo sinalizam um aler-
Desta maneira, a análise desses Conselhos alerta ta às escolas que encaram os Conselhos de Clas-
para o fato de, com freqüência, esses alunos e se como um fórum privilegiado para a troca de
alunas se tornarem vítimas do despreparo dos informações sobre os alunos e as alunas e para o
professores em lidar com a complexidade da si- equacionamento de seus problemas pedagógicos.
tuação pedagógica. Esperamos, com este texto, ter preenchi-
Ao contexto da violência simbólica do pelo menos algumas das lacunas apontadas
(Bourdieu, 1970) inerente ao exercício da profis- por McDermott e Hood (1982) quanto à descri-
são de professora , alia-se à violência da discri- ção das situações que levam ao fracasso esco-
minação social, da imprecisão conceitual quanto lar, contribuindo para a percepção das diversas
às causas do fracasso escolar e até mesmo da funções dessas instâncias de avaliação que são
agressão verbal na descrição de alunos e alunas. os Conselhos de Classe.

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Recebido em 10.11.03
Modificado em 08.04.05
Aprovado em 09.05.05

Carmen Lúcia Guimarães de Mattos é professora do Programa de Pós-graduação em Educação da Universidade do


Estado do Rio de Janeiro. Ph.D. em Educação pela University of Pennsylvania.

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