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TRAJECTOS

Ferreira, Vitor Sérgio (2013), «De ofício


de periferia a arte periférica: a
criativização da prática de tatuar»,
Trajectos. Revista de Comunicação,
Cultura e Educação, vol. II, n.º 1, pp.
159-170.
TRAJECTOS
Revista de Comunicação, Cultura e Educação Índice
Periodicidade: Semestral
Vol. II - N.o 1 - Outono de 2013
Preço: € 14,00

Direcção: José Rebelo (Instituto Universitário de Lisboa - ISCTE-IUL) e Muniz Sodré (Univ. Federal do Rio de
Janeiro - UFRJ)
NOTA EDITORIAL 5
Conselho de Redacção: Adelino omes (Centro de Investigação e Estudos de SOdologia - 1ESI ISCTE-IUL) ,
Alexandre Manu I ( IES/ISCfE-IUL), Avelino Rodrigues (CIESfISCl'E-JUL), Eduardo Granja outlnho (UFRJ), José Rebelo e Muniz Sodré
José Rebelo (! CfE-IUL), Maria lnácia Rezola (Escola Superior de offillnicação odal de Lisboa - ESCS), MlIniz
Sodré (UFRJJ, Uaquel Paiva (UFRJl, Rui Brites (Instituto Superior d Economia e Ge tão - ISE ).
EM ANÁLISE
Conselho Editorial: Abílio Martins (pT.COM), Alexandre Melo (ISCTE-IUL), António Firmino da Costa
(ISCTE-IUL), Eduarda Gonçalves (I rE-IUL), 11ernando Luís Machado (ISCTE-IUL), Francisco Costa Pereira Sob a forma de questões:
(. ), Gustavo Cardoso (ISCrE-IUL), ldalina Conde (ISc..íE-IUL), Isabel Babo-Lança (Un iv. Lusófona do Porto),
Lsabel Férin (Univ. de oimbra), Jean-Pierre DlIbojs (Univ. de Paris XI), )ocelyne Arqllembourg (Vniv. de Paris II, para um jornalismo do nosso tempo 9
ln tituto Francê de Imprensa), Jorge VerÍssimo (P. C) JoséJorge Barreiros (IS rl?-IUL), José Luis Garcia (ICS), Francisco Pinto Balsemão
)0 é Machado Pais (lCS),josé Manuel Paquete de OlJveira (I CTE.IUL), L uls Quéré (Escola d Alto Estudos em
iéncias Sociais, de Paris - El IES ), Manuel Castell (Un iv. Aberta da Catalunha), Maria Augusta Babo (Univ. Direitos de autor: desafios e interrogações na sociedade global - - - - 17
Nova de Li boa), Maria de Lurdes Lima dos Santo. (ICS), Maria Immacolata Vassalo Lopes (Univ. Federal de São
Paula - U P), Marialva Barbo 'a (Univ. Federal Fluminense - UFF), Maurício Lissovsky (UFR]), Michel Wieviorka José Jorge Letria
(E HESS), Miguel Gil (Prisa/Media Capital), Mohammed El Haji (UFRJ), Paulo Vaz (UFRJ), Pierre Guibentif (ISCTE-
-IOL), Teresa Seabra (ISCTE-IOL). o Diário de Notícias na transição para a democracia: o jornal acompanha
a revolução 27
Assistente de Direcção: Liliana Pacheco
Pedro Marques Gomes
Apresentação de originais: Os textos propostos para publicação deverão respeitar as normas indicadas em local
próprio (ver Índice).
DISCURSIVIDADES
Arbitragem Científica: Os textos propostos para publicação são submetidos a parecer de especialistas das áreas
respectivas, em regime de anonimato. A decisão final de publicação é da responsabilidade da Direcção. "Esta é a Hora!"
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A "crise" na mensagem presidencial de Ano Novo 45
Manuel Silva Pereira
ISCTE Q' IUL A mensagem de Ano Novo do Presidente da República 55
Instituto Universitário de Lisboa
Instituto Superior de Ciências do Trabalho e da Empresa
Escola de Sociologia e Políticas Públicas
Ana Catarina Salvador
Av. das Forças Armadas, Edifício ISCTE
1649-026 Lisboa - Portugal Os Cartoons, o lado cómico da crise: estratégias enunciativas
Tel: 217 903 016 - Fax: 217 903 017 e competências para os interpretar 65
E-mail: jose.rebelo@iscte.pt Isabel Damásio
Edição e Distribuição:
Fim de Século - Edições, Sociedade Unipessoal, Lda. Esta praia não é para pobres
Travessa de Santo António da Sé, 10_1.0 Dto. A "nova Tróia" contestada nas paredes de Setúbal 75
1100-501 Lisboa - Portugal Helena de Sousa Freitas
Tel.: 218 854 250 - Fax: 218 854 259
E-mail: fds@fimdeseculo .com

Revisão: Ricardo Santos DOSSIER

Capa: Sérgio Rafael Apresentação 93


José Rebelo e Muniz Sodré
Impressão e acabamento: Cafilesa - Soluções Gráficas

ISSN 1645-5983-19
Capitalismo artístico: quando a arte e a escultura ocupam o centro 95
Depósito legal: 180674/02 João Teixeira Lopes
A produção cultural das classes subalternas e as lutas
pelo reconhecimento 103 Nota editorial
Veneza Mayora Ronsini
Comunidade é periferia? - -- - - -- -- - _ _ _ _ __ _ 113
Eduardo Yuji Yamamoto
o superpop periférico na idade mídia - - -- - -_ ___ ___ _ 123
Luiz Felípe Pondé

Periferia Global. Disputas simbólicas e movimentos culturais


no capitalismo cognitivo - -- - - -- -- _ __ _ __ _ __ 135
PÓS dois anos de interrupção, a TRAJECTOS retoma a sua publicação. Neste número, que inicia

A
Ivana Bentes
o segundo volume, o leitor encontrará as rubricas habituais: «Em análise", «Discursividades",
Tipologia do Funk carioca: vertentes temáticas de um género musical «Dossier» e «Leituras». Destaque, na primeira das rubricas enunciadas, para um artigo de Pedro
contemporâneo 145 Marques Gomes no qual se traça a história contemporânea do Diário de Notícías e as dificuldades
Pablo Laignier que este jornal diário, fundado em 1864, encontrou, num período particularmente conturbado de
transição para a democracia. Dificuldades que ilustram bem a função dos media, enquanto lugar
De ofício de periferia a arte periférica: a criativização da prática de tatuar 159 de cruzamento de poderes. Destaque, igualmente, para os artigos de Francisco Pinto Balsemão e
Vítor Sérgio Ferreira de José Jorge Letria, duas contribuições fundamentais para um debate sobre a relação entre media
Cinema, realismo e sangue - -- - - - - -_ _ __ _ __ _ __ tradicionais e novos media e sobre as práticas de "pirataria" que, subvertendo o próprio princípio
171 de direitos de autor, põem em causa empresas e criadores. Na rubrica «Discursividades», Manuel
João Lopes
Pereira e Ana Salvador analisam o discurso de Ano Novo pronunciado, no primeiro dia de Janeiro
de 2012, pelo Presidente da República, Aníbal Cavaco Silva, destacando as estratégias usadas por
LEITURAS este no sentido de enfatizar o seu dito, ora reforçando a legitimidade de quem diz, ora implicando
aqueles a quem se diz. Isabel Damásio e Helena Freitas abordam, por seu lado, outras formas de
Este país dava muitos filmes 179 comunicação e/ou de protesto, respectivamente, o cartoon e o mural. Através de um estudo de caso,
Liliana Pacheco o de Tróia - praia situada em frente da cidade de Setúbal, antes, sítio de veraneio para populações
Uma morte anunciada - - - -- - -- _ _ __ _ _ _ __ _ _ humildes da região e, hoje, entregue a projectos turísticos de luxo -, evidencia-se a força do mural
181 enquanto factor de contestação e de mobilização. Por fim, na rubrica «Dossier», autores portugueses
Dinis de Abreu
e brasileiros, exprimindo um objectivo da TRAJECTOS, o de se afirmar nos dois países como revista
A jovem geração de internautas - - - - _ _ _ __ _ _ __ _ _ 183 de referência nos campos da comunicação, da cultura e da educação, escrevem sobre um tema de
Estrela Serrano eminente actualidade: a emergência de uma "estética do mix" pela qual, expressões até há pouco
associadas a marginalidade, como o funk e a tatuagem, ganham o estatuto de manifestações artísticas.
A periferia ocupa o centro da produção simbólica. O subúrbio já não é, só, sinónimo de miséria e de
NORMAS PARA A APRESENTAÇÃO DE TEXTOS 187 violência. Passa a gerar histórias de vida relatadas pelos grandes órgãos de comunicação social, ou
projectadas nos ecrãs de cinema. O "corpo hegemónico" e as "corporeidades multiformes da periferia"
ÍNDICE DOS NÚMEROS ANTERIORES - -_ _ _ __ _ _ _ _ _ __ entrelaçam-se, em narrativas que exaltam a diferença. Que denunciam as velhas hierarquias sociais.
189 Experiências, outras, enfim, que dão outras cores ao quotidiano.

JOSÉ REBELO (ISCTE-IUL)


M UNI Z SODRÉ (UFR])

5
De ofício de periferia a arte periférica:
a criativização da prática de tatuar
VíTOR SÉRGIO FERREIRA*

Eu não diria que a tatuagem é uma arte do sentido de arte com liA" grande. Mas é,
obviamente, uma expressão que implica algumas qualidades artísticas, no sentido em
que convoca capacidade de desenhar e de compor, de combinar cores, de gerir a escala,
de trabalhar com símbolos. E essas componentes implicam alguma disposição interior
para a expressão artística.
Crítico e Curador

É sobretudo a expressão de um sujeito que se exprime dessa maneira e que se reclama


de uma margem, não é? E de uma margem, como todas as margens, que é integrada.
(...) Quer dizer, o mundo é um espaço de integração, mesmo quando se chuta para fora,
estar a chutar para fora disto é estar dentro de outra coisa.
Artista e Professor na Faculdade de Belas Artes

Introdução muitas das cenas juvenis adeptas


desse recurso estético.
mundo da tatuagem está a crescer! No nosso Hoje, são dezenas os estúdios
«
O país está a crescer!» afirma entusiasticamente um
jovem tatuador, quando questionado sobre as
mudanças recentes no âmbito da sua actividade.! De facto, a
abertos em Portugal, já não apenas
concentrados em Lisboa ou no Porto,
mas proliferando no restante territó-
expansão do mundo português da tatuagem é notória quando rio português. O primeiro número do
se comparam os dias de hoje ao contexto em que a prática de Anuário Tattoo & Piercíng, publicado
tatuar emergiu comercialmente em Portugal, no início dos em Portugal em 2007, contabilizava
anos 90. Nessa época o mundo da tatuagem era exíguo, sendo 39 estúdios e 50 profissionais no
apenas três os estúdios que disputavam a parca clientela país. Em 2010, a mesma revista
existente2, que aí se deslocava a partir das periferias da capi- avançada com uma estimativa de 52
tal, nomeadamente da margem sul, onde se concentravam estúdios e 77 profissionais. 3 A mais

* Investigador em Pós-Doutoramento no Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa; Bolseiro


da Fundação para a Ciência e a Tecnologia.
0
I 31 anos, 12. ano, área de Artes. Agradeço a preciosa colaboração de Ana Oliveira, socióloga, no trabalho

de campo desta investigação. Foram realizadas, transcritas e analisadas 20 entrevistas a tatuadores, masculinos
e femininos, com idades compreendidas entre 22 e 41 anos, com diferentes graus de escolaridade, sediados em
estúdios de Lisboa e arredores, com diferentes situações na profissão. Para além do conjunto de tatuadores,
foram ainda entrevistados artistas plásticos, críticos de arte e professores na Faculdade de Belas Artes de Lisboa,
sobre a legitimidade artística da tatuagem.
2 Bad Bonnes Tattoo, El Diablo e Atomic Tattoo Studio, nomeadamente.

3 Estes números apenas espelham os estúdios voluntariamente inscritos no Directório "Os Estúdios no Activo

em Portugal» promovido pela revista portuguesa Anuário Tattoo & Piercing.

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numerosa e profissionalizada oferta que se tem de design corporal." Neste processo, a figura social potencializando capitais subculturais vários s: estava a fazer Belas-Artes. Tenho o meu melhor
instituído tem sido alimentada, por sua vez, por do tatuador vai deixando para trás a imagem do competências técnicas e estéticas adquiridas por amigo, que na altura era da minha turma tam-
uma procura cada vez maior, mais exigente e rufia tipicamente oriundo de meios operários osmose através da convivência com o circuito bém de Belas-Artes ... (... ) Um já fez Fotografia,
socialmente diversificada (Fortuna, 2002; Fer- ou subculturais, para passar a corresponder à da tatuagem enquanto consumidor; e capitais eu fiz Design, outro fez Belas-Artes na faculdade,
reira, 2003). imagem dos "novos trabalhadores do estilo", sociais que integravam toda uma rede de rela- dois já fizeram Ilustração. Portanto, todos esta-
A exposição mediática da tatuagem através emergentes nas "novas economias urbanas" ções acumuladas no âmbito das sociabilidades mos ligados à pintura, artes, pintamos juntos,
da sua utilização por parte de várias celebridades (Ball et ai., 2000: 281). micro-grupais, espaço social de recrutamento temos um atelier juntos há 6 anos ou 7. (... ) Por-
e figuras públicas, em vários suportes publicitá- Ao mesmo tempo, amplia e diversifica social- das primeiras clientelas. Depois de uma intensa tanto, lá está, o meu núcleo, o meu grupo de
rios e, sobretudo, através de vários programas mente a sua base de recrutamento profissional, rotatividade entre trabalhos pouco qualificados amigos, é tudo artistas. Uns usam pincel, outros
televisivos que acompanham a vida quotidiana atraindo jovens com itinerários diferentes e mais e precários, alternando com períodos de desem- usam máquina, outros usam lápis de carvão, é
de alguns dos seus profissionais nos EUA (Miami plurais relativamente aos que haviam caracteri- prego e/ou de biscates por vezes ilegais, a opção tudo a mesma coisa.
Ink, LA Ink, NY Ink), têm desconstruído a imagem zado esse grupo no passado. Se, anteriormente, a pelo ofício de tatuar - do qual já eram ávidos
tradicional da actividade como reduto social prática de tatuar se via sobretudo dispensada por consumidores - acabava por funcionar como 2S anos, Licenciatura em Design
de marginais, boémios e criminosos (Atkinson, sujeitos sem qualquer tipo de socialização escolar forma de se reconciliarem socialmente com o
2003; Peixoto, 1990), e atraído mais gente quer e/ou vocação artística, hoje em dia, entre a mais sistema de que se demarcavam, aproveitando as Para estes, a prática de tatuar continua a
para o seu consumo, quer para a sua prática pro- nova geração de tatuadores portugueses, tem brechas que nele se abriam para a produção de ser tentada como "carreira profissional alterna-
fissional. Adistinção social de que a actividade de sido encarada como uma possibilidade concreta modos de vida escapatórios. tiva" (Craine, 1997), já não para fazer face às
tatuar é investida nessas séries já não se reveste nos horizontes laborais de muitos jovens com Actualmente, o cenário é substancialmente encruzilhadas profissionais vividas no âmbito
do estigma social que detinha no passado, mas trajectórias escolares de sucesso, nomeadamente diferente. Se a tatuagem começou por ser profis- de trajectórias caracterizadas por situações de
passa a fundar-se numa imagem de sucesso e com formação superior em escolas de Belas Artes. sionalmente dispensada por indivíduos prove- marginalidade ou de desajustamento social
glamour dos seus profissionais no exercício de nientes de meios subculturais, hoje em dia é cada mas, sobretudo, para fazer face às dificuldades
uma actividade criativa, cosmopolita, autónoma vez mais procurada por jovens já não oriundos de integração sentidas no campo da produção
e lucrativa. Percursos da nova geração de tatuadores desses universos, muitas vezes nem sequer ini- cultural e artística, onde as oportunidades de
Neste contexto, a prática de tatuar tem pro- ciados no consumo de tatuagens. São sobretudo trabalho simultaneamente criativo e rentável
gressivamente deixado de configurar um ofício de Nos idos anos 90, os poucos que estiveram jovens integrados em círculos de sociabilidades são muito limitadas. Mais do que a obsessão, são
periferia, prestado por agentes marginais e ama- na génese desta actividade em Portugal eram artísticas, detentores de trajectórias escolares lon- as circunstâncias (Melo, 1988) que, a dada altura
dores a um grupo social ele próprio periférico, sobretudo indivíduos que, desde a sua adolescên- gas, institucionalmente credenciadas, e frequen- das respectivas trajectórias de vida, impelem
para se institucionalizar socialmente como prá- cia, haviam seguido rotas de ruptura, de desvios temente desenvolvidas na área das artes visuais: estes jovens para a prática de tatuar, levando-os
tica profissional e ganhar a legitimidade cultural múltiplos, itinerários de vida habitualmente a equacionar a sua possibilidade enquanto opção
de arte periférica. O conceito de periferia, aqui, é não percepcionados como os caminhos juvenis Eu sou um tatuador da nova geração. (... ) Há de carreira sedutora:
usado enquanto metáfora espacial que ultrapassa "mais apropriados" (Ferreira, 2008). As suas alguns anos atrás, o pessoal não era artista, não
a ordem da mera espacialidade geográfica, dando trajectórias de vida estavam associadas ao que fazia desenho, não era por aí que eles vinham A minha formação foi sempre artística.
conta da localização de determinados objectos, Becker (1963) chamou de "carreiras desviantes": para a tatuagem. A cena da tatuagem era dife- (... ) Depois, corri ali uma data de áreas ali no
pessoas e práticas numa ordem de legitimidade percursos de vida marcados por sucessivos fenó- rente. Não era tão aceite, era mais pessoal que meio, ou seja, trabalhei em televisão, trabalhei
cultural e de poder simbólico relativamente às menos de marginalidade e/ou desajustamento tinha ligação com tatuagem e não com dese- em estúdios de animação, trabalhei. .. (... ) Fui
instituições com o poder de regulação e controlo, face às tradicionais instituições de socialização nho. Tatuagem, motas, pá, havia a coisa do fora sempre desenhando, trabalhei com jornais,
no caso aqui tratado, ora da economia dos bens e transição juvenil (família, escola e trabalho), e da lei também, que era quem tinha a tatuagem, revistas, como ilustrador. E depois surgiu a
corporais, ora da economia dos bens artísticos. de concomitante inclusão em várias subculturas o marginal que se tatuava e que era tatuador. tatuagem. Era mais uma coisa e, entretanto, fui
De facto, com a recente liberalização, valori- ou cenas juvenis (Ferreira, 2009). (... ) Agora sim, ainda não tens curso, mas pre- ficando. (... ) Bem, isto foi assim um bocado ...
zação e exposição social do corpo nas sociedades É nesses contextos sociabilísticos que O cisas de ter um curso. Precisas saber desenhar, Não foi bem empurrado, mas foi tipo .. . Eu, na
ocidentais, a prática da tatuagem saiu da econo- «gosto» pelo consumo de marcas se começava senão não vais a lado nenhum. (... ) Tenho um altura, deixei de trabalhar nos desenhos ani-
mia informal onde estava acantonada e passou a desenvolver. Em alguns casos ia mais longe grupo de amigos em que somos todos liga- mados, passei a trabalhar como designer grá-
paulatinamente a integrar o mundo da indústria e transformava-se em gosto pela produção, dos à arte. Portanto, o meu núcleo sou eu e o fico. E depois, como é óbvio, há áreas em que o
meu amigo daqui, que é tatuador também, e trabalho vai escasseando. Há alturas boas, altu-
que conheci-o a fazer Belas-Artes, [quando] eu ras más, e a revista onde eu estava a trabalhar
, Um mundo em larga expansão e diversificação, dedicado à produção e comercialização de bens, técnicas
e tecnologias ao serviço da manutenção, modificação e estimulação do corpo, no seu todo ou nas suas mais
ínfimas pnrtes. Ver Sharp, 2000; Seale et nl., 2006; Sheper-Hughes, 2002. 5 Sobre o conceito de capital subcultural, ver Jensen (2006).

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começou a passar por um período mau. E eu, onde um gajo consiga arranjar alguém que nos o diálogo já não se faz apenas com a tradição Intersubjectividade e criatividade
na altura, já vinha aqui ter com o [mestre] aos ensine e aprender!" (... ) Nunca tinha pensado (da tatuagem), mas com a contemporaneidade colaborativa
fins-de-semana. Estava aqui um bocado a ver em vir para tatuador, nunca fui por aí além fã (da arte). Os seus stocks culturais não decorrem
como é que a coisa funcionava, até que aquilo de tatuagem a não ser como arte, como dese- apenas da reprodução da mestria que lhes foi Desde logo, uma importante especificidade
deu mesmo ... Foi mesmo ao fundo. E eu pen- nho, como pintura. ensinada no mundo da tatuagem, mas da inte- da prática de tatuar é que ela envolve sempre
sei: "bem, ok, que opções é que eu tenho? (... ) racção e transacção com stocks culturais prove- a intervenção de um órgão do corpo humano
E como já vinha aqui aos fins-de-semana, numa 2S anos, Licenciatura em Design nientes visuais de outras áreas das artes visuais. _ a mão do tatuador - sobre outro órgão - a pele
base regular, o [mestre] disse-me: "olha, então humana. Ou seja, um suporte vivo, vivido e
porque é que não vens para aqui, passas a vir Neste contexto, alguns jovens provenientes em devir, que é disponibilizado por alguém
todos os dias?" E pronto, foi assim. (... ) Estou do mundo das artes resolvem explorar o seu Criativização: da ideia do cliente ao que, frequentemente, está a pagar um serviço.
aqui por um acaso, nunca foi uma coisa "ok, gosto pela tatuagem como meio de vida e de acto da sua incorporação A tela em que se converte a pele tatuada não
vou seguir este caminho porque ... ". Não, foi expressão criativa, beneficiando de todo um está, portanto, apenas subordinada à mão e à
um acaso. capital de formação visual, de técnicas e meto- A criatividade, categoria altamente conta- criatividade do tatuador. A dimensão criativa
dologias de investigação gráfica que acabam por minada por um "excesso de bagagem român- da ideia a tatuar tende a ver-se comprometida
36 anos, Bacharelato em Design Gráfico vir a aplicar no seu métier de tatuador. É neste tica - o mistério da inspiração, os rasgos do pelo lugar que a acção do cliente adquire sobre
sentido que falamos de criativização da prática de génio" (Sennett, 2009: 323), não é um atributo o respectivo processo de produção. Quer isto
São jovens que encontram na prática de tatuar. A integração destes novos protagonistas individual (Csikszentmihalyi, 1999). Existem dizer que a concepção do projecto iconográfico
tatuar um meio de vida, uma hipótese de ren- no mundo da tatuagem tem vindo, efectiva- condições sociais e culturais que estimulam a implica sempre um trabalho intersubjectivo entre
dimento regular e vantajosa, uma alternativa mente, a fazer aumentar consideravelmente o experimentação de novoS caminhos, a ruptura tatuador e tatuado, não só a fonte de receitas
viável ao desemprego, à instabilidade laboral ou campo dos possíveis em termos das possibili- com rotinas e padrões usuais, a exploração de do primeiro, mas também o suporte do seu tra-
ao emprego desconsolador. Por fim, insatisfeitos dades estilísticas, técnicas e de metodologia da novas soluções perante determinados problemas balho, uma tela viva de que o tatuador não é o
com as limitações expressivas das artes tradi- prática de tatuar, elevando o grau de exigência e e desafios, mesmo que tradicionais. Tomando o proprietário. A propriedade da pele concede ao
cionais, a tatuagem também os alicia enquanto sofisticação da iconografia utilizada, inovando o ponto de vista da sociologia pragmatista, a cria- cliente uma participação inevitável no processo
forma de expressão gráfica pouco explorada, design, adaptando novos meios, materiais, equi- tividade não se trata de uma disposição mental, que subjaz à sua decoração, começando desde
disponível a caminhos mais esteticamente ico- pamentos e formas de fazer: consequência de um momento de inspiração logo pela conceptualização do projecto.
noclastas, onde podem capitalizar competências desincorporada e individual, mas resulta de Espera-se de um "bom tatuador" que consiga
artísticas adquiridas formalmente. Quando a tatuagem apareceu em Portugal, investimentos presentes ao longo do processo transpor para a epiderme a ideia conceptualizada
dado o facto dos tatuadores ainda não sabe- de produção do que quer que seja, processo esse pelo cliente. O tatuador é o concretizador do
Já me considero artista muito antes da tatu- rem trabalhar muito com aquilo, o que é que sempre constituído por práticas incorporadas e imaginário do cliente, é o tradutor do desejo
agem, porque faço arte. (... ) Eu não tenho pro- se tornou logo moda? Tribais! Na altura fazia-se socialmente situadas. deste . No entanto, esse trabalho de tradução
priamente aquela história de "vim para tatu- muito índios, lobos, cowboys! Hoje em dia já Assim, no caso da tatuagem, a sua criativi- gráfica, como aliás qualquer trabalho de tra-
ador porque admirava tatuagem há muito não tem nada a ver. Golfinhos, faziam-se mui- zação pode ser encontrada ao longo das várias dução linguística, não é literal. Da situação de
tempo", não! Por acaso não passei por isso. Eu tos golfinhos. A imaginação não era muita. E etapas envolvidas no processo de tatuar, desde diálogo intersubjectivo ocorrida entre tatuador e
fiz um curso de Desígn, fiz a licenciatura. (... ) os tatuadores, quando começaram, esses que a concepção de um projecto iconográfico até tatuado resulta um trabalho de CD-autoria, onde
E eu comecei porque fiz o curso e não fiquei depois se tornaram os melhores, ou os mais à sua incorporação na derme do cliente. Pelo o tatuador tenta adaptar a ideia do cliente ao seu
propriamente satisfeito com aquilo porque, pá, antigos, neste caso alguns já estão quase a que, seguir os investimentos de criatividade próprio estilo gráfico. O trabalho de interpreta-
muito computador, aquele desígn, aquela coisa reformar-se, já estão a passar a loja para outras identificados pelos tatuadores no decorrer do ção do tatuador passa pela construção de um
toda muito limpa. Eu sempre gostei de tintas, pessoas da sua confiança, até pelo grau de difi- processo de tatuar, constitui uma tarefa sociolo- entendimento estético, de um sentido estilístico
de trabalhar com as mãos, com pincéis, sujar, culdade que têm. Eles queriam era fazer coisas gicamente importante. Investimentos que não próprio para o conceito invocado pelo cliente,
pá, manual. Alguma coisa, menos estar a olhar que fossem simples! são meramente individuais, mas produzidos em deixando margem de manobra a investimentos
para um écrã. Experimentar materiais novos, interacção. Na prática de tatuar, a criatividade gráficos criativos:
sempre foi aquilo que eu gostava. E às tantas 36 anos, Licenciatura em Estilismo surge no decorrer de um processo interactivo de
eu acabei o curso, e não queria fazer aquilo, constantes ajustamentos às contingências com Quando um cliente apresenta uma ideia,
pá. Vida de pintor não era para mim. E eu mais Sem negar o património técnico legado pela que os seus praticantes se deparam, sendo a cria- nós, através disso, criamos uma peça que seja ...
um amigo meu, que está aqui a trabalhar tam- anterior geração, os tatuadores mais jovens tivização um processo que decorre da constante que conjugue, lá está, a nossa criatividade com
bém, acabámos por os dois, pá, "olha, bora com- sentem que activam no seu trabalho diferentes circulação e fluxos de transacção entre ideias, as ideias do cliente. (... ) Quando um cliente
prar umas máquinas a meias, procurar uma loja stocks culturais, mais amplos e plurais. Entre eles, CD/POS humanos e materiais. dá uma ideia geral e nós apresentamos a nossa

162 163
interpretação dessa ideia, aí acho que estamos performativa que define a especificidade da prá- lugares sociais que ocupam os indivíduos que
II do desenho. (... ) Em termos de resolução de
a ser criativos. (... ) Mas às vezes é difícil, por- tica de tatuar perante outras formas de expressão os realizam (2009 [1936]: 7). problemas, há pessoas que tatuam muito bem,
que os clientes limitam um bocado o processo. visual. Enquanto trabalho manual, trata-se de Mas o facto é que a força da tradição sobre têm uma boa técnica, mas falta-lhes essa base
uma performance incorporada que presume o hábito, em determinadas condições sociais, do desenho. E se tivessem essa base eram pro-
22 anos, 11.° ano, área de Artes a síntese sequencial de duas técnicas do corpo: pode ser alterada. É o que está a acontecer nas vavelmente os melhores tatuadores do mundo.
desenhar (no papel) e picotar (na pele). Tatuar técnicas que configuram a prática de tatuar: com (... ) Não ligo muito à parte técnica, prefiro
Quer isto dizer que nesse processo de tradu- corresponde, de facto, ao processo de inscrição a entrada de agentes com saberes diferenciados actualizar-me em termos de desenho.
ção iconográfica não acontece apenas de um acto perene de um desenho na epiderme humana. dos tradicionalmente reproduzidos no mundo
de descodificação ou de reprodução manual, mas Ora, a entrada em força de novos protagonistas da tatuagem, estes passaram a servir-se de forma 36 anos, Bacharelato em Design Gráfico
também de codificação e de produção estética. com formação artística no mundo português da diferente dos seus corpos (nomeadamente da sua
O tatuador dá forma, dá vida à ideia inicial do tatuagem impeliu um elevado grau de criativi- mão) e dos corpos dos outros (nomeadamente da O domínio mecânico sobre a mão que
cliente, molda-a graficamente ao tentar encon- zação no modo profissional de executar essas pele dos seus clientes), investindo criativamente reproduz desenhos convencionais, cópias ou os
trar a solução formal mais adequada ao projecto e mesmas técnicas. quer a nível das técnicas de desenho, quer a habituais flashes já não é suficiente. A habilidade
aos gostos estéticos daquele. Abrem-se aqui mui- Senão vejamos. nível das próprias técnicas de inscrição na pele. manual hoje requerida não é a perícia artesanal
tas possibilidades à intervenção do tatuador no Marcel Mauss define como «técnicas do Criatividade aqui equacionada como habilidade de uma "mão virtuosa ", mas sobretudo a astú-
sentido de expandir e melhorar estilisticamente corpo» as inúmeras formas como os homens, de de retirar estas técnicas para fora dos "hábitos" cia criativa de uma "mão inteligente II (Sennett,
o conceito inspirador, sob a forma de conselhos sociedade para sociedade, sabem tradicionalmente performativos que as incorporavam e as davam 2009: 264). Ou seja, uma mão com competências
e sugestões, a nível técnico, da adequação do servir-se dos seus corpos (Mauss, 2009 [1936]: 3). como únicas e garantidas. suficientemente estabilizadas mas também sufi-
desenho ao local do corpo que se quer preencher, Sublinham-se estas palavras na medida em que Saber desenhar é a competência performativa cientemente maleáveis no sentido de desbravar
da sua dimensão e pormenores, da coerência do cada uma é dotada de uma importância epis- mais valorizada, hoje em dia, para se ser tatuador, os desafios da pele e da ideia do cliente para além
projecto em função de outros desenhos que já temológica específica: o verbo "saber" remete realidade que fundamenta fortemente a clivagem das formas tradicionaisi uma mão que, ao fazer,
existam, etc. para algo que se aprende, que se educa, que se geracional que se faz sentir no mundo português pense na especificidade da interacção do gesto
Esta etapa de projecto da ideia visual da socializai o qualitativo "tradicional remete para
II da tatuagem. "Ter jeito para o desenho ", "ter mão que define o estilo do tatuador, com a imate-
tatuagem implica, portanto, uma criatividade algo que é eficaz e que se tem por garantido na para desenhar", nas palavras dos entrevistados, rialidade da ideia que é convocada pelo cliente,
colaborativa, intersubjectivamente gerida e medida em que é discretamente transmitido e trata-se de uma competência incorporada, um bem como com as materialidades que obriga-
negociada. A relação com o cliente é necessa- adquirido, incorporado, por isso naturalizadoi saber corporal no sentido de Mauss, uma prática toriamente tacteia (equipamentos, materiais,
riamente pautada por um estilo interactivo de o verbo "servir-se remete para o reconheci-
II manual que é treinada, que é aprendida fazendo- pele). Uma mão sintonizada com a detecção e
permanente negociação (Irwing, 2000), por um mento de que o corpo cumpre funcionalidades, -se. Entre os tatuadores da mais nova geração, solução do desafio específico que tem pela frente
esforço de colaboração onde se sucedem inúme- nomeadamente sociais, sendo ele próprio um esta técnica corporal, por relação à técnica de (aquela ideia naquele corpo com os materiais
ros compromissos na articulação da visão gráfica instrumento técnico, nas palavras de Mauss, perfuração, denota-se substancialmente mais disponíveis), dela emergindo um laboratório de
do tatuador aos desejos do cliente, muitas vezes "o primeiro e o mais natural objecto técnico, investida em termos de treino de execução e tra- experiências não desvinculadas da imaginação
relativamente difusos em termos de desenho e e ao mesmo tempo meio técnico do homem II balho de pesquisa, exploração e inovação gráfica: e criatividade.
localização. (2009 [1936]: 10).
O conceito de "técnicas do corpo permite
II Agora, para além das condições serem
assim revelar os modos como esse instrumento, muito melhores para esta nova geração, as Equipamentos, materiais e criativi-
Técnicas corporais e criatividade que é simultaneamente físico, mecânico e quí- pessoas também têm outro background. Por- dade técnica
performativa mico, é adaptado e se vai adaptando ao contexto que havia muitos tatuadores que nem sequer
e no contexto social em que vive. E Mauss propõe tinham conhecimentos de desenho, nem sequer A presença de jovens com escolarizações
A concretização da ideia intersubjectiva- que tal se faça a partir de análise comparada no vinham de áreas de desenho, os primeiros tatu- artísticas longas dentro do mundo da tatuagem
mente resultante da negociação entre tatuador tempo e no espaço (geográfico, cultural e social), adores, não é? E agora, os bons - não estou a veio não apenas valorizar a competência do
e cliente presume, no processo de produção de de actos quotidianos 6 que, pela força do hábito, falar na regra geral de todos, estou a falar dos tatuador enquanto desenhador, como impeliu
uma tatuagem, uma sequência operatória de ou do habitus, como prefere chamar, variam de bons -, os bons são muito bons desenhadores um conjunto de interacções e de transacções do
acções do corpo do tatuador - da sua mão - no configuração com "as sociedades, as educações, primeiro. Ou seja, têm já uma carreira na área mundo da tatuagem com outros mundos das
corpo do cliente - na sua pele. É esta sequência as conveniências, as modas, os prestígios, [e] os do desenho e na área artística, que depois trans- artes visuais (pintura, design, ilustração, graftiti,
põem para as tatuagens. (... ) Eu acho que não é etc.). Dá-se o que Sennett chama de "mudança de
6Tão diversos como nadar, marchar, andar, correr, cavar, acocorar, dormir, sentar, repousar, saltar, trepar, importante ter uma formação na área da tatu- domínio (2009: 146), referindo-se à forma como
II

comer, beber ou reproduzir ... agem. É importante ter uma formação na área determinada ferramenta (não apenas material,

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mas também conceptual ou metodológica) ini- A manipulação do equipamento, nomeadamente jovens. Afinal, a história da tecnologia faz-se da vez melhor. E perceberes que trabalho melhor
cialmente utilizada para certa finalidade pode ser da máquina de tatuar e dos materiais que lhe constante tentativa de renovar competências com esta tinta do que com aquela. Não quer
empregue noutra tarefa, ou como determinado são adstritos, exige e desafia saberes corporais práticas e de construir máquinas que incorporem dizer que uma tinta seja melhor que a outra,
princípio orientador de determinada prática específicos, os quais começam, desde logo, pela os códigos que estão no princípio da sua utiliza- mas o teu trabalho adapta-se melhor àquilo.
pode ser aplicado noutra actividade completa- necessidade de compreender formas de mani- ção por parte de alguém. Se novas competências A forma como pões a mão! Há pessoal que diz
mente diferente. pulação dos equipamentos e materiais. Tanto a fazem desenvolver novas máquinas e materiais, «bem, eu trabalho bem é assim», e o outro diz
Deste modo, a prática de tatuar abriu-se à máquina de tatuar como os pigmentos utilizados novas máquinas e utensílios também vêm fazer «bem, eu trabalho bem é assado».
aplicação de novos saberes e ao desenvolvimento têm propriedades próprias, resultado de toda desenvolver e exigir novas competências em ter- (... )
de novos saberes-fazer transferidos das áreas das uma história de adequação a "outras mãos" antes mos de técnicas corporais, chegando a propiciar Eu adoro experimentar texturas e mate-
artes e do design, transferência que alargou o daquela que lhe está a pegar, o que envolve ter mudanças profundas nos hábitos de trabalho de riais novos. Portanto, isto é um material novo
espaço de possibilidades estilísticas da tatuagem "consciência dos materiais" (Sennett, 2009: 137) determinadas actividades. para mim, a pistola de tatuagem. A máquina de
para além das tradicionais convenções instala- e domesticar todo processo de manipulação e O mesmo acontece com a prática de tatuar tatuar é um material completamente novo para
das, fazendo igualmente aumentar os níveis de escolha destes por parte do tatuador. e seus dispositivos de prolongamento da mão. 8 mim, que ainda hoje está a ser muito desen-
competitividade quanto à qualidade, criatividade Não sendo seres viventes como os clientes, Enquanto acção do corpo e no corpo, a prática de volvido, estão sempre a aparecer coisas e difi-
e inovação estética da tatuagem: tal como Sen- os materiais e os equipamentos utilizados dão tatuar tem-se desenvolvido em articulação com cilmente ... Ou seja, é preciso muito tempo até
nett enunciou, "o simples deslocamento entre vida à prática de tatuar, nos movimentos que os constrangimentos combatidos e as potenciali- estar muito à vontade com aquilo. (... ) Cane-
domínios de actividade estimula o surgimento exigem, nas competências incorporadas e cog- dades exploradas pelos seus novos profissionais, tas, lápis, marcadores, a gente habitua-se desde
de novas ideias sobre os problemas" (2009: 311): nitivas que requerem. Vida essa que não apenas num processo de intensa transacção entre os seus pequenos. Portanto, quando és mais velho e
constrange, mas também potencia, estimula e contextos de partida nos mundos das artes e os estás a usar um pincelou um marcador, além
Hoje em dia, há muita gente que estuda pode gerar novas ideias e práticas, nomeada- contextos de chegada ao mundo da tatuagem. de teres visto muito, não é, estudas essa parte.
Belas-Artes que envereda pela profissão de tatu- mente no sentido de ultrapassar o constrangi- Constrangimentos e potencialidades de ordem Mas não estudas tatuagem na escola, não estu-
ador e até conseguem fazer coisas muito giras mento. As mudanças ocorridas com a presença orgânica, ou seja, associados às habilidades e das estilos, não estudas a forma de «pincelar»,
porque aplicam todas as técnicas que apren- de novos materiais e/ou exigidas na adequação técnicas manuais; de ordem material, ou seja, não te ensinam. (... ) Para já, tens que ter sorte.
dem na escola e faculdade de artes ... Formas a novas técnicas decorrentes de outras artes na relacionados com o conhecimento e a mani- Como há muito pouca informação, não há pro-
de pintura, todas as técnicas que aprendem prática de tatuar, geram um constante diálogo no pulação dos meios de expressão disponíveis; e de fessores na escola, tens que ter a sorte de encon-
aplicadas na tatuagem, consegue-se resultados engajamento corporal do tatuador com os mate- ordem propriamente social, constrangimentos e trar um bom professor numa loja. (... ) Se não
muito bons. (... ) Eu acho que o importante é riais, assim como, em última instância, novos potencialidades que se prendem sobretudo com vais demorar realmente muito mais tempo a
nós conseguirmos, por nós próprios, dar um equipamentos e materiais, proporcionadores de os gostos das clientelas com que lidam, e com as aprender.
passo à frente. Por isso é que hoje em dia, se novas possibilidades expressivas nas técnicas de formas não institucionalizadas de socialização e (... )
calhar, muita gente que estudou Belas-Artes, perfurar a pele. de aprendizagem da prática de tatuar. Depois, o sítio no corpo onde vais colocar é
aplicando tudo o que aprenderam dentro da Embora o domínio desses equipamentos não muito importante. «Quero tatuar aqui o braço».
arte deles à tatuagem, conseguem fazer traba- seja fácil, e exija um longo tempo de adaptação Há, obviamente, o desafio do material, da Então toda a gente vai centrar aqui, porque isto
lhos lindíssimos, brutais. e treino, também aqui, nos gestos que materia- máquina e da pele da pessoa. Tens, pá, que é um quadrado branco de uma folha de papel e
lizam a passagem da tatuagem do papel à pele conhecer a pele, tens que conhecer tintas, agu- a gente centra no meio. Não precisas de ir por aí!
32 anos, Licenciatura em Informática de Gestão do cliente, na interacção da mão do tatuador lhas, a diferença que a qualidade, a marca e o Podes usar as formas do corpo, podes começar
com o equipamento, o material e a epiderme modelo da tinta pode fazer num traço, numa o lettering ou o desenho mais largo e ficar mais
Para além da mão inteligente para o desenho, do consumidor, a atitude dos mais jovens sombra ... A própria agulha, as agulhas diferen- curto. (... ) Mas entra aí a criatividade também.
"há que pensar também que há uma máquina", tatuadores provenientes dos meios artísticos tes que tens, as máquinas diferentes que tens Jogares com o sítio no corpo onde vais fazer.
diz-nos um entrevistado. 7 O gesto manual é de pesquisa, de inovação, de experiência, de para cada coisa ... E, pá, é uma coisa muito pes- E tens a parte de, como estás a trabalhar com
prolonga-se num dispositivo próprio, a máquina actualização perante novos desafios. Não dar soal ainda. Se tu tiveres capacidade para fazeres uma máquina e com pele, de não estar tão pre-
de tatuar, através da qual acontece a segunda por certo o hábito no movimento da mão sobre a tua própria máquina e perceberes o que é que ocupado só em usar como se fosse papel. Ou
técnica do corpo identificada na actividade de a pele, sequer sobre o equipamento e material a máquina faz ao teu braço e o teu braço faz à seja, podes enrugar a pele, fazer um traço com a
tatuar, aquela que, de facto, a particulariza: a de que há disponível, mas encarar criativamente máquina, consegues chegar a um trabalho cada pele toda enrugada, depois esticas e vês o que é
picotar a pele, ou seja, de inscrever permanen- a interacção com cada um desses pólos, é a
temente a pele humana com pigmentos de cor. atitude mais valorizada pelos tatuadores mais 8 Com o surgimento da máquina eléctrica em 1881, pela mão de Samuel O'Reilly, por exemplo, a execução

da tatuagem torna-se tecnicamente mais fácil e menos dolorosa, favorecendo a sua relativa popularização em
7 39 anos, licenciado em Design Gráfico. contextos sociais, não apenas em termos de clientelas, mas também enquanto meio de vida para alguns.

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que sai. Se calhar um tatuador qualquer, ou um mundos artísticos, tem-se denotado um intenso forma diferenciada e não estandardizada às BECKER, Howard (1963), Outsiders. Studies in the
tatuador mais antigo, ou um gajo com a mente processo de criativização do mundo da tatua- contingências que se interpõem nas várias etapas Sociology ofDeviance. Nova Iorque, Free Press.
menos desbloqueada, vai dizer "epá, esse traço gem por via da integração de novos processos, do processo de fazer uma tatuagem, tentando CRAINE, Steve (1997) «The Black Magic Rounda-
não é nada, é só pontinhos e riscos". Se conse- técnicas, metodologias, valores e exigências de encontrar, um a um, a singularidade do seu estilo bout: Cyclical Transitions, Social Exclusion and
guires desenvolver isso e tornar isso um estilo, trabalho provenientes dessoutros mundos das próprio. O que pressupõe, por parte do novo pro- Alternative Careers». ln: Robert MacDonald
tornar isso num trabalho de boa qualidade, artes visuais. fissional da tatuagem, uma atitude de pesquisa, (org.), Youth, the 'Underc/ass' and Social
estás aí a buscar criatividade e textura, e a ino- As transacções entre os mundos das artes de de abertura à experiência, de implicação e inves- Exc/usion. Londres, Routledge, pp. 130-152.
var dentro da tatuagem. onde provêm e o actual mundo da tatuagem timento pessoal, até de improvisação - respon- CSIKSZENTMIHALYI, Mihaly (1999), «lmplications
onde actuam, no âmbito das diversas ordens sável e controlada pela técnica e intenção, pois of a systems perspective for the study of
2S anos, Licenciatura em Design identificadas, têm habilitado os novos profis- trata-se sempre do corpo de outrem. Isto no sen- creativity». ln: R.]. Sternberg (Org.), Handbook
sionais da tatuagem a actuarem não apenas tido de potencializar as oportunidades criativas of creativity. Nova Iorque: Cambridge
Por fim, sendo a tatuagem indissociável no sentido da adequação e/ou reprodução de que se abrem no decurso das várias interacções e University Press, pp. 313-335.
do suporte em que está inscrita, aquilo que esquemas corporais (manuais), técnicos (dispo- transacções que ocorrem no processo de tatuar, FERREIRA, Vítor Sérgio (2003), «Atitudes dos
seria um constrangimento é também tornado sitivos) e sociais (competências) prévios e con- e de abrir e complexificar o campo de possíveis Jovens Portugueses perante o Corpo». In:José
potencialidade criativa entre os tatuadores da vencionais no mundo tradicional da tatuagem, que caracterizava esta prática, não se quedando Machado Pais i Manuel Villaverde Cabral
nova geração. Tatuar com arte pressupõe que mas também no sentido da transcendência das pela reprodução das fórmulas e recursos já dis- (orgs.), Condutas de Risco, Práticas Culturais
o profissional, no seu trabalho de visualização circunstâncias orgânicas, materiais e sociais que poníveis, característica de uma atitude defensiva e Atitudes perante o Corpo. Oeiras, Celta,
e de picotagem, destaque e potencialize as enquadram a prática de tatuar, potencializando e uma prática conservadora. pp. 265-366.
melhores características físicas do corpo que as capacidades criativas que advêm da "transfe- Trata-se da habilidade de tirar a prática FERREIRA, Vitor Sérgio (2008), «Os ofícios de mar-
está a marcar. Isso pressupõe a adequação das rência de domínio" das artes tradicionais para a para fora do "hábito", de enfrentar situações car o corpo: a realização profissional de um
características formais do desenho (dimensão, arte da tatuagem. Isto, no entanto, sem rejeitar problemáticas ou de "crise" (Shilling 2008), ou projecto identitário». Sociologia - Problemas e
grau de pormenor, formas e dinâmicas, etc.) e a aprendizagem e o diálogo com as tradições, até provocá-las ou estar disponível a elas, equa- Práticas (58): 71-108.
do material escolhido (máquina e pigmentos), às rotinas produtivas e convenções do mundo cionando novas soluções, estéticas, técnicas, FERREIRA, Vitor Sérgio (2009), «Youth scenes, body
características morfológicas da pele do cliente e desta prática. práticas, etc. É esta nova cultura profissional marks and bio-sociabilities». Young - Nordic
respectiva zona do corpo a inscrever a tatuagem, O valor da sua actividade e dos resultados que acaba por fundamentar a distinção entre o 'oumal ofYouth Research 18(3): 285-306.
utilizando as características "naturais" da pele, do gráficos que advém do seu exercício, já não o tradicional tatuador-artesão e o tatuador-artista, FORTUNA, Carlos (2002), Novo Comércio, Novos
volume que preenche e dos movimentos que faz, encontram na replicação mecânica de processos ícone da actual geração: o primeiro interessado Consumos. Lisboa, GEPE, Observatório do
para potenciar a dinâmica pictórica do resultado produtivos, competências técnicas, estilos, gestos na perfeição, no sentido de reproduzir virtuosa- Comércio.
final. Ou seja, a interacção que se estabelece entre e materiais habituais, geracionalmente transmiti- mente as convenções históricas do mundo da IRWING, Katheríne (2000), «Negotiating tat-
ideia, equipamentos e as capacidades anatómi- dos na relação mestre- aprendiz e adquiridos sob tatuagemi o segundo implicado na exploração too». ln: Patricia A. Adler & Peter Adler,
cas da zona da epiderme que o tatuador tem a forma de convenção no mundo da tatuagem. criativa dos meios disponíveis e até mesmo na Constructions of Deviance. Social Power, Con-
pela sua frente, introduz ainda uma imensidão Onde a reprodução da tradição era feita de uma criação de novos meios. E é neste processo que text, and Interaction. Belmont, Wadsworth,
de variações situacionais nas formas estilísticas forma passiva e mecânica, hoje encontramos o ofício de periferia de outrora se vai progressi- pp. 469-479.
reproduzidas na pele. frequentemente numa atitude de activa regene- vamente transubstanciando em arte periférica, JENSEN, Sune Qvotrup (2006), «Rethinking
ração e refundação. Sem denegar a importância realocando o seu espaço na geografia cultural subcultural capital». Young 14(3): 257-276.
dos saberes e saberes-fazer fundadores da tradição contemporânea. MAUSS, Marcel (2009 [1936]), «As técnicas do
Considerações finais estabelecida neste mundo social, os tatuadores corpo». ln: AA.VV., Corpo, Colecção Arte e
da nova geração entrecruzam-nos com apren- Sociedade (Dir. João Valente Aguiar), n. o 1.
As circunstâncias da prática de tatuar com- dizagens dos contextos de formação artística Referências bibliográficas Lisboa: Apenas Livros I Instituto de Sociolo-
plexificaram-se bastante em Portugal na última por que passaram, renegociando convenções gia da Faculdade de Letras da Universidade
década. A sua mediatização intensa tem seduzido do mundo da tatuagem (históricas, estilísticas, ATKINSON, Michael (2003), Tattooed. The Socio- do Porto, pp. 3-24.
um número crescente de jovens para a sua prá- técnicas e até materiais), e combinando-as com genes is of a Body Art. Toronto, University of MELO, Alexandre (1988), «Obsessão e circuns-
tica profissional, com percursos bastante mais conhecimentos e convenções importadas de Toronto Press. tância». Revista de Comunicação e Linguagens
diversificados e, muitos, mais qualificados do outros mundos artísticos. BALL, Stephen J. & Meg Maguire, Sheila Macrae (6-7): 203-207.
ponto de vista da formação estética e técnica É na conjugação, manipulação e aplicação (2000), «Space, work and the "new urban PEIXOTO, Rocha (1990), «A tatuagem em Por-
em artes gráficas. Com a entrada de novos e prática de todos esses conhecimentos que os economies"». 'oumal of Youth Studies 3(3): tugal», Etnografia Portuguesa. Lisboa, Publi-
cada vez mais agentes provenientes de outros mais jovens tatuadores vão respondendo de 279-300. cações Dom Quixote, pp. 15-43.

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SEALE, Clive & Debbie Cavers, Mary Dixon-Woods visuais. A entrada destes novos protagonistas no
(2006), «Commodification of body parts: mundo da tatuagem propiciou um intenso processo
by medicine or by media?». Body & Society de criativização desta prática, por via da integração
12(1): 25-42. de novos processos, técnicas, metodologias, valores
e exigências de trabalho provenientes dessoutros
SENNETT, Richard (2009), O Artífice. Rio de
mundos das artes visuais. O velho ofício de perife-
Janeiro/São Paulo: Editora Record. ria vê, assim, elevar-se o seu estatuto simbólico à
SHARP, Lesley A. (2000), «The commodification condição de arte periférica.
of the body and its parts». Annual Review of
Anthropolagy (29): 287-328. Palavras-chave: Tatuagem, Criatividade, Novos
SHEPER-HuGUES, Nancy (2001), «Bodies for sale profissionais, Criativização.
- whole or in parts». ln: Nancy Sheper-
-Hugues & LOlc Wacquant, Cammodifying
From peripheric work to peripherical art: the
Badies. Londres, SAGE, pp. 1-8.
creativization of the tattooing practice
SHILLING, Chris (2008), Changing Badies. Habit,
Crises and Creativity. Los Angeles: Sage. If the tattoo began to be professionally done by
ruffians typically from popular and working class
neighborhoods, or individuais from subcultural
contexts without any artistic socialization, nowa-
RESUMO/ ABSTRACT days this activity is increasingly sought after by
young people with artistic training in the visual arts
field . The entry of these new players in the tattoo
De ofício de periferia a arte periférica: world provided an intense process of cretivization
a criativização da prática de tatuar in this practice, through the integration of new pro-
cesses, techniques, methodologies, values and job
Se a tatuagem começou por ser profissionalmente requirements from other worlds of visual arts. The
dispensada por rufiões tipicamente oriundos de old peripheric job sees, thus, rising up its symbolic
meios operários e populares, ou por indivíduos pro- status to the status of peripherical art.
venientes de meios subculturais sem qualquer tipo
de socialização artística, hoje em dia cada vez mais Keywords: Tattoo, Creativity, New professionals,
esta actividade é procurada por jovens detentores de Creativization.
trajectórias de formação artística na área das artes

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