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Cinema Marginal ?
Jean-Claude Bernardet
Anda-se muito, nestes dois filmes, e andar nem sempre é fácil: os sapatos
machucam ou a ferida na perna dói. Aliás, não só nestes filmes se anda. O
cinema da deambulação é uma criação dos anos 20 (vide Limite), e se
tornou um traço estilístico do cinema dos anos 50-70 (Rosselini, Nouvelle
Vague, Antonioni). A deambulação foi retomada pelo Cinema Novo, desde
Porto das Caixas e Os cafajestes, e pelo Cinema Marginal. Quando vários
personagens deslocam-se um atrás do outro, forma-se um cortejo. Essa
forma foi também apreciada nos anos 50-60: Cinzas e diamantes, La dolce
vita, com ecos no cinema brasileiro, e Fome de amor, por exemplo, e
evidentemente Orgia, filme de deambulação por excelência, em que o
grupo vai se formando e organiza-se de modo paulatino num cortejo. A
deambulação, tradicional arte pedestre, pode ser automotiva: O desafio,
Vida de artista e seus planos de carros celebrados por Jairo Ferreira; os
inesquecíveis planos de Bang Bang pelas avenidas de Belo Horizonte.
Essa arte do travelling sem corte estica o tempo num espaço em
continuidade.
Mas não só de deambulação e planos longos vive o cinema dos anos 60.
Um dos clássicos do Cinema Marginal é o contrário disso: o bandido da luz
vermelha. Este é um filme que trabalha o corte, a fragmentação. Não é a
câmara, fixa ou em movimento, nem o ator que regem o tempo e o espaço,
mas a montagem. Numa montagem ainda hoje vigorosa e audaciosa, O
bandido cria tempos e espaços não usuais. Por exemplo, quando retoma
em determinada seqüência o material de filmagem já usado parcialmente
em seqüência anterior (ver o muro onde estão as pichações do bandido),
tem-se a impressão de que o tempo não se desenvolve linearmente (como
pensamos ser a dinâmica do tempo na nossa vida cotidiana), mas que se
enrosca sobre si mesmo, que desenha meandros. Ou então quando um
plano noturno sucede um diurno sem que tenha havido mudança de cena
Outro filme que se vale dos poderes da voz over é Fome de amor.
Preste-se atenção à quantidade de falas over ou off e se perceberá
quantos elementos, que com certeza não constavam do roteiro e
provavelmente nem foram pensados durante a filmagem, foram
acrescentados na montagem e na sonorização. O bandido da luz vermelha
é outro rei da voz over e off. O diálogo do filme às vezes dribla o plano.
Numa cena, Helena Inês e Paulo Villaça estão num quarto. Helena está
sentada na cama três quartos de costas; ela fala e percebemos claramente
que o que ouvimos não é o que ela disse na filmagem, pois o ritmo do
corpo não corresponde à emissão de voz (estes filmes não foram feitos em
som direto, mas dublados em estúdios). Embora particularmente presente
em o bandido da luz vermelha, esse recurso verifica-se inúmeras vezes no
cinema da época, aproveitando atores de três quartos de costas, de longe,
para recriar diálogos. Haverá quem o atribuirá ao desleixo. Que seja ou
não, esse recurso à voz over e off tornou-se um fato de linguagem. Essa
composição imagem-som está nos antípodas do plano-seqüência, que, no
caso do plano de Odete Lara, forma um bloco audiovisual indivisível.
Essas formas de linguagem antagônicas conviviam.
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