Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
Georges Abboud
Doutor e Mestre em direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP).
Professor de processo civil da PUC-SP e do programa de Mestrado e Doutorado em
direito constitucional do Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP-DF). Advogado e
consultor jurídico. georges. abboud@neryadvogados.com.br
Keywords: Ronald Dworkin – Legal decision – Right answer – Dignity of due process
Para citar este artigo: Motta, Francisco José Borges; Abboud, Georges. Ronald Dworkin e
a dignidade do devidoprocesso: um ensaio sobre a dupla dimensão da resposta correta.
Revista de Processo. vol. 313. ano 46. p. 43-54. São Paulo: Ed. RT, março 2021.
Disponível em: inserir link consultado. Acesso em: DD.MM.AAAA.
Sumário:
Boa parte das pesquisas que desenvolvemos em Direito tem, no trabalho do jusfilósofo
1
norte-americano Ronald Dworkin (1931-2013), um centro gravitacional . Como se sabe,
Dworkin tornou-se um dos teóricos mais influentes do pensamento jurídico
contemporâneo quando, a partir da década de 60 do século passado, desafiou, de forma
2
original e abrangente, a tese da separação conceitual necessária entre Direito e Moral .
Essa postura posicionou-o em rota de colisão com o positivismo jurídico sem, contudo,
implicar alinhamento com o pensamento jusnaturalista tradicional. Naquele primeiro
momento, o autor sustentou que haveria uma conexão necessária entre os domínios da
Página 1
Ronald Dworkin e a dignidade do devido processo: um
ensaio sobre a dupla dimensão da resposta correta
Moral e do Direito, na medida em que todo sistema jurídico seria composto de princípios
de moralidade política, cuja vinculatividade não derivava de sua incorporação por uma
autoridade política formal. E a influência desses princípios morais na experiência jurídica
3
seria, por uma série de razões, decisiva . Tomando o positivismo jurídico de Herbert
4
Hart (1907-1992) como parâmetro de contraponto, Dworkin defendeu a noção de que,
mesmo nos casos controversos ou não expressamente contemplados por uma regra
jurídica formal, o juiz não estaria imediatamente autorizado a exercer sua
discricionariedade; o compromisso com princípios de moralidade política tornaria sua
tarefa mais exigente. O juiz deveria chegar a uma solução que, sem desconsiderar as
fontes primárias e formais do Direito, fosse justificada por argumentos de princípio. A
melhor justificação possível, ancorada em princípios de moralidade política, formaria a
resposta correta ao problema jurídico.
Podemos afirmar com segurança que Hart efetivamente cumpriu aquilo a que se propôs
em seu The concept of law: fazer a teoria do direito avançar, especialmente
considerando a influência exercida, à época, pela teoria imperativa de Austin. Hart
avançou, mas manteve intocado o núcleo mais problemático do positivismo jurídico, a
saber: a redução da teoria do direito a uma teoria da norma, que não incluía uma
problematização da decisão judicial entre as suas preocupações centrais.
Importante pontuar que, na visão de Dworkin, os juízos de valor não são verdadeiros
pela correspondência com o mundo natural. Eles são verdadeiros em razão de uma
defesa substantiva (um case) que pode ser feita em seu favor. O domínio da moral é
domínio do argumento, não o do fato bruto. O fato de um argumento moral não possuir
um correspondente no mundo físico natural, não o impede de ser verdadeiro. Ele será
Página 2
Ronald Dworkin e a dignidade do devido processo: um
ensaio sobre a dupla dimensão da resposta correta
9
verdadeiro se houver uma argumentação substantiva em sua defesa.
Pois bem. Neste breve ensaio, e com o apoio de Dworkin, procuraremos fazer uma
abordagem menos convencional do valor do processo jurisdicional. Mais do que
investigar uma cláusula constitucional específica, ou analisar dispositivos do CPC
(LGL\2015\1656), buscaremos, na trilha da ascensão justificatória por Dworkin sugerida,
apresentar o processo jurisdicional democrático como expressão de um conceito em
torno do qual se organiza e estrutura o mundo do valor: a dignidade humana. Em
síntese, pretendemos demonstrar que há uma profunda ligação entre dignidade humana
e processo jurisdicional democrático, a guiar a interpretação do que sejam um devido
11
processo legal e uma resposta juridicamente correta.
“o homem – e, de uma maneira geral, todo o ser racional – existe como fim em si
mesmo, e não apenas como meio para o uso arbitrário dessa ou daquela vontade. Em
todas as suas ações, pelo contrário, tanto nas direcionadas a ele mesmo como nas que o
são a outros seres racionais, deve ser ele sempre considerado simultaneamente como
fim.”
Além disso, “os seres racionais denominam-se pessoas, porque a sua natureza os
distingue já como fins em si mesmos, ou seja, como algo que não pode ser empregado
como simples meio e que, portanto, nessa medida, limita todo o arbítrio (e é um objeto
de respeito)”. Daí deriva a ideia de dignidade associada à pessoa humana, já que “no
reino dos fins, tudo tem um preço ou uma dignidade. Quando uma coisa tem preço,
pode ser substituída por algo equivalente; por outro lado, a coisa que se acha acima de
13
todo preço, e por isso não admite qualquer equivalência, compreende uma dignidade” .
É justamente no pensamento de Kant que a doutrina jurídica mais expressiva ainda hoje
14
identifica as bases de uma fundamentação da dignidade da pessoa humana , e não foi
diferente com Dworkin. Na sua leitura, o aspecto central do argumento kantiano consiste
em considerar que o respeito pela nossa própria humanidade significa respeito pela
humanidade enquanto tal, quer dizer: se alguém trata os outros como simples meios
(instrumentos), cujas vidas não têm importância intrínseca, este alguém está, na
15
verdade, desprezando a sua própria vida também .
Explicando melhor, Dworkin concebe a dignidade humana como sendo dotada de uma
dupla dimensão, que pode ser traduzida em dois princípios básicos: o princípio do valor
intrínseco da vida humana e o princípio da responsabilidade pela vida humana; outra
maneira de enunciá-los é: o princípio do respeito próprio (principle ofself-respect) e o
princípio da autenticidade (principle of authenticity).
De acordo com o primeiro princípio (princípio do valor intrínseco), toda vida humana tem
um tipo de valor objetivo. Dworkin supõe que as pessoas, em geral, concordam com a
afirmação de que suas próprias vidas tenham valor objetivo, e que não há nenhuma boa
Página 3
Ronald Dworkin e a dignidade do devido processo: um
ensaio sobre a dupla dimensão da resposta correta
razão para que a vida de alguém seja considerada mais ou menos importante do que
qualquer outra. Nessa vereda, haveria uma falha grave, uma falta de dignidade pessoal,
naquele que deixa de dar o devido valor à vida – seja à sua própria, seja à alheia. A
importância objetiva não pode pertencer a uma vida humana sem que pertença,
também, a todas as outras, de modo que é impossível separar o respeito próprio do
16
respeito pela importância da vida dos demais .
Isso não significa, por certo, que o Estado (government) não possa nos impor
18
obrigações; é claro que pode, inclusive obrigações de fundo moral .
Para entendermos esse ponto, devemos ter presente a diferença por Dworkin traçada
entre ética e moralidade. Enquanto nossas convicções éticas definem o que deve contar
como uma vida boa para nós mesmos, nossos princípios morais definem nossas
obrigações para com os demais. O princípio da responsabilidade pessoal permite que o
Estado nos force a viver de acordo com decisões coletivas baseadas em princípios
19
morais, mas proíbe que o Estado nos dite convicções éticas .
Essas considerações vêm ao caso, aqui, à medida que Dworkin sugere que a sua
concepção de dignidade humana, desdobrada nos princípios anteriormente expostos, dá
consequência a dois princípios estruturantes da democracia constitucional: a igual
consideração (equal concern) e o autogoverno (self-government).
Perceba-se: dos princípios éticos da dignidade (autenticidade e valor objetivo) fluem dois
princípios políticos fundamentais (autogoverno e igual consideração); a partir deles,
concebem-se as condições de legitimidade de um processo democrático.
Página 4
Ronald Dworkin e a dignidade do devido processo: um
ensaio sobre a dupla dimensão da resposta correta
Eis aí, portanto, guardados os limites deste ensaio, uma proposta de interpretação do
direito processual brasileiro: há uma imbricação indissolúvel entre os arts. 8º (promoção
da dignidade humana), 926 (dever de coerência e integridade) e o § 1º, IV, do art. 489 (
dever de consideração), todos do CPC (LGL\2015\1656) vigente. E é disso que trata (
procedimento e resultados) um devido processo. Não se trata de meras mudanças
legislativas, mas de uma guinada no que se entende por processo jurisdicional
democrático, que passa a ser concebido como corolário da exigência de igualdade de
consideração (decorrência dos princípios do respeito próprio e da igual consideração) e
de deferência à participação das partes na construção da resposta mais adequada a cada
caso (princípio da autenticidade ou, mais especificamente, autogoverno).
25
Registre-se, pois: assim como a dignidade é indivisível , também os seus reflexos
processuais são incindíveis e reciprocamente constitutivos. Devido processo legal e
dignidade da pessoa humana estão entrelaçados. De nada adianta garantir participação
aos interessados se a decisão final não estiver radicada numa teoria coerente, em
princípio, com a integridade do Direito; de nada ainda uma resposta correta em seu
26
resultado que tenha sido construída autocraticamente .
Isso quer dizer que a atividade coativa do Estado – realizada sob o signo do Direito –
exige uma resposta a um conjunto coerente de princípios. No caso de necessidade de
rompimento com essa cadeia de significados, igualmente recrudesce a obrigatoriedade
de motivar, e a remissão ao contexto conjuntural dos princípios se faz de maneira ainda
mais delicada. Porém, essa modificação adere-se à integridade do Direito de modo que
29
sua modificação exigirá o mesmo processo, em um momento subsequente.
Ronald Dworkin ensina, que partir da perspectiva do Direito como integridade, implica
que toda interpretação judicial tenha por finalidade uma descrição coerente da ordem
jurídica em seu conjunto. Isso ocorre porque, em uma democracia, toda interpretação do
direito constitucional deve considerar a própria democracia. Assim, por exemplo, as
decisões que interpretam o devido processo legal e a isonomia, ao serem concretizadas,
devem, necessariamente, levar em conta todo o restante da principiologia constitucional.
30
Daí a razão de defendermos o mencionado artigo do CPC (LGL\2015\1656) não sob uma
ótica de “aplicação” obrigatória, mas sim de “enfrentamento” obrigatório. Isso porque o
vício, sancionado pelo CPC (LGL\2015\1656) 489, § 1º, V e VI, é o da não diferenciação
entre o caso sub iudice e o paradigma como forma de justificar a não aplicação do
31
provimento vinculante. O enfrentamento pressupõe uma compreensão do Direito como
integridade, de modo a tornar o cotejo algo muito mais complexo, muito além dos
elementos textuais e alcançam o jurídico também na dimensão de sua justificação.
Desse modo, uma decisão judicial estará justificada não apenas quando respeita a
equidade dos procedimentos, mas, também, quando respeita a coerência de princípios
que compõem a integridade moral da comunidade política. Ou seja, a ideia de princípio
em Dworkin não é materializável, a priori, em um texto ou enunciado emanado de um
precedente, lei, ou mesmo da Constituição, mas um argumento de princípio remete à
totalidade referencial dos significados desses instrumentos jurídicos. Tanto é assim que,
no Império do direito, o “método” de Hércules e o direito como integridade aparecem
nessas três dimensões: nos precedentes (ou no common law), nas leis e na Constituição.
32
Isso quer dizer que a atividade coativa do Estado – realizada sob o signo do direito –
exige uma resposta a um conjunto coerente de princípios. No caso de necessidade de
rompimento com essa cadeia de significados, a necessidade de justificação aumenta
ainda mais, e a remissão ao contexto conjuntural dos princípios se faz de maneira ainda
mais delicada. Porém, essa modificação adere-se à integridade do direito de modo que
Página 6
Ronald Dworkin e a dignidade do devido processo: um
ensaio sobre a dupla dimensão da resposta correta
O fato de a proposição interpretativa ser diferente da científica não pode permitir que o
julgador, ao interpretar o princípio constitucional da igualdade, afirme ser legítima a
diferença dos direitos políticos entre mulheres e homens ou que brancos não podem ter
os mesmos direitos que negros. A resposta correta não é metafísica, ela se impõe
construtivamente, quando o intérprete evidencia as razões pelas quais a decisão por ele
alcançada é melhor do que todas as outras identificadas na comunidade. Nas palavras de
Dworkin, “uma proposição interpretativa é verdadeira porque as razões de sua admissão
são melhores do que as razões de admissão de qualquer outra proposição interpretativa
36
rival”.
Neste ensaio, nossa conclusão será dedicada à letra d. Somente a abordagem teórica
permite superar o relativismo; é a partir dela que se pode afirmar que uma proposta
in-terpretativa é substantivamente superior às rivais – e não apenas superior na opinião
38
do seu proponente, mas objetivamente superior.
Neste pequeno trabalho, pretendemos defender uma ideia bem geral: a de que a
discussão sobre processo fica mais rica quando se entende que se está a lidar com
valores mais amplos, como a democracia e, num nível ainda mais abrangente, com a
dignidade humana. Faz sentido propor uma interpretação assim tão generalizante?
39
Deixamos a resposta com Dworkin , dirigindo-se aos jovens que planejavam se dedicar
à filosofia do direito:
como ideais políticos, mas também como direitos jurídicos. Se vocês os ajudarem, se
falarem ao mundo dessa maneira, permanecerão mais fiéis ao gênio e à paixão de
Herbert Hart do que se seguirem suas ideias estreitas sobre a natureza e os limites da
filosofia analítica do direito. Devo, porém, adverti-los de que, se for esse o caminho que
escolherem, estarão correndo; o grande risco de se tornarem... bem, de se tornarem
interessantes.”
3 .DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a sério. São Paulo: Martins Fontes, 2002.
4 .HART, H.L.A. O conceito de direito. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2009.
5 .“Positivism’s most significant critic rejects the theory on every conceivable level. He
denies that there can be any general theory of the existence and content of law; he
denies that local theories of particular legal systems can identify law without recourse to
its merits, and he rejects the whole institutional focus on positivism” (GREEN, Leslie.
Positivism. Stanford Encyclopedia of Philosophy. Fall Edition, 2009. p. 13. Ver, ainda:
ABBOUD, Georges. Processo constitucional brasileiro. 4. ed. São Paulo: Revista dos
Tribunais/Thomson Reuters, 2020. p. 106).
6 .“A society has a legal system only when, and to the extent that, it honors this ideal,
and its law is the set of all considerations that the courts of such a society would be
morally justified in applying, whether or not those considerations are determined by any
source” (GREEN, Leslie. Positivism. Stanford Encyclopedia of Philosophy. Fall Edition,
2009, p. 13).
8 .DWORKIN, Ronald. A justiça de toga. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2010.
9 .DWORKIN, Ronald. A justiça de toga. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2010.
p. 341-69.
10 .DWORKIN, Ronald. A justiça de toga. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2010.
p. 113-115.
11 .Tese desenvolvida com mais fôlego em: MOTTA, Francisco José Borges. Ronald
Página 8
Ronald Dworkin e a dignidade do devido processo: um
ensaio sobre a dupla dimensão da resposta correta
21 .Importante o registro de que seria um erro afirmar que Dworkin teria incorporado,
de algum de modo relevante, a teoria do direito de Kant, como observa Cláudio Ari
Mello. Segundo o autor, numa passagem, aliás, crítica a Dworkin, trazer a filosofia
jurídica e política de Kant para os debates sobre democracia e jurisdição coloca “sob
suspeita algumas convicções daqueles que defendem a supremacia judicial na
interpretação constitucional e que postulam um ativismo judicial imoderado na
concretização dos princípios, valores e direitos constitucionais” (MELLO, Cláudio Ari. Kant
e a dignidade da legislação. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2010. p. 19).
22 .Esse argumento também foi explorado em: STRECK, Lenio Luiz; MOTTA, Francisco
José Borges. Para entender o novo Código de Processo Civil: da dignidade da pessoa
humana ao devido processo legal. Revista Opinião Jurídica, Fortaleza, v. 14, 2016.
p. 112-128.
23 .Com efeito, a noção de “Direito como integridade” supõe que as pessoas têm direito
Página 9
Ronald Dworkin e a dignidade do devido processo: um
ensaio sobre a dupla dimensão da resposta correta
26 .Nesse sentido, amplamente: MEDEIROS, João Paulo Fontoura de. Devido processo
ambiental: o processo como discurso imanente. Curitiba: Juruá, 2018.
27 .ABBOUD, Georges. Processo constitucional brasileiro. 4. ed. São Paulo: Revista dos
Tribunais/Thomson Reuters, 2020. p. 303 et seq.
28 .ABBOUD, Georges. Processo constitucional brasileiro. 4. ed. São Paulo: Revista dos
Tribunais/Thomson Reuters, 2020. p. 331.
31 .ABBOUD, Georges Processo constitucional brasileiro. 4. ed. São Paulo: Revista dos
Tribunais/Thomson Reuters, 2020. p. 1164.
32 .Ver: ABBOUD, Georges Processo constitucional brasileiro. 4. ed. São Paulo: Revista
dos Tribunais/Thomson Reuters, 2020. p. 374-375.
34 .ABBOUD, Georges Processo constitucional brasileiro. 4. ed. São Paulo: Revista dos
Tribunais/Thomson Reuters, 2020. p. 374.
37 .ABBOUD, Georges. Processo constitucional brasileiro. 4. ed. São Paulo: Revista dos
Tribunais/Thomson Reuters, 2020. Ver item 1.13.5.11. p. 385-387.
38 .DWORKIN, Ronald. A justiça de toga. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2010. p. 85.
39 .DWORKIN, Ronald. A justiça de toga. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2010.
p. 263-264.
Página 11